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aa
145
A Cavalaria
aa socie-
e
s ru de , me no s em ru ptura com os valoreses e
menos bárbara, meno ui zo t, por exemplo) já iam
ns au to re s an ti g os (G
dade carolíinnggigios. Algu
X
8 do pa pel estruturantee dos dos laços vassáli-
tra tar
além da anarquia feudal, ao
a gue rra , a po nt o de fa ze re m a Cavalaria (séculos XI-X11)
cos formados pel ]
surgir da sociabilidade feudal.
a reputagac de rudeza e de
Sobapenade historiadores modernos,
violéncia sem frei os da primeira idade feud
al (Eor volta de 880'—1040)
procede com frequéncia do fato que eles a creem diretamente reflcuda‘nas
¢ de guerras civis,
canções de gesta. Eles leem nelas narrativas de vinganga
guerra santa contra
uma agressividade que só poderia ser canalizada pela
XI, da
o Infiel — ¢ nisso consistiria todo o empenho da Igreja no século
é tão antiga, e não pode
paz de Deus à cruzada. Todavia, essa literatura não
órica.
ser tomada como “reflexo” direto de uma realidade hist
Por outro lado, podemos também recorrer as crônicas de monges
e de clérigos. Os ataques normandos e as dificuldades da mutação feudal
podem ter diminuido a frequéncia das obras no final do século IX, mas
a situação se estabiliza em seguida: os Anais do conego de Reims, Flodo-
ardo, comecam em 919 e Santo Odon escreve, nos anos 940, sua Vida
de São Geraldo de Aurillac. O ano 1000, sobretudo, vê florescer, segundo
as palavras de Pierre Riché, um “terceiro renascimento carolingio”, com
a histéria de Richer de Reims, as cronicas do aquitano Ademar de Cha-
bannes e do burgindio Raul Glaber, a primeira histéria dos duques
normandos pelo cônego Dudon de Saint-Quentin, numerosos escritos
de mílagrcs € cartas mais narrativas e circunstanciadas do que antes. Em
toda essa documentação, há muito a respeito de Cavaleiros. Vários desses
autores os têm em suas famílias e o mosteiro não é estranho ao mundo
feudal: ele vive das esmolas de senhores, reza por eles, às vezes os critica
como vizinhos incômodos e “tirânicos” trata-os como bestas selvagens,
no dia seguinte legitima seu poder com fórmulas eloquentes. À docu-
mentação do ar:o 1'000, devidamente solicitada, permite çomprcendºf
bem as'compctcnclas da dinAmica do mundo feudal que ¢ menos uma
anarquia do que uma ordem, ou pelo menos uma “anarquia ordenada”
. ;
essa formula' vmd.a daantropologia africanista me parece se aplicar muit®
bem a essa situagio.
—— . ——
Vassalos, senhor
es e santos
A ordem feudal
Não é uma revolução feudal
É entre 877Z e 888, mas ap q ue se produz
d na Franciai ocidental
:
en as uma mutaçãoà feudal, que nãoã
faz desaparecer
nem a elite nem os valores do
mundo carolíngio, » mas os adapta e os faz
Í : evoluir. Essa elite, muito cedo, escolheu pactuar
com os normandos; no
fim, ela pôdeS integrá-los (91 1).
Ela renuncia a apoiar um império unitário
¢seemancipa inclusive do palácio, a ponto de, por volta de 987, Richer de
| Re.uns descrever apenas um núcleo franco do reino, cercado por povos
| (dinamarqueses, e ao Sul aquitanos, gascões, godos). Mas esses satélites
não negam a realeza franca e vivem ainda (ou vivema partir de então, como
no caso dos dinamarqueses) valores carolíngios e feudais, talvez um pouco
i à sua própria maneira. Seus príncipes prestam homenagem ao rei, preci-
samente com as mãos, segundo Richer de Reims, porque isso sublinha a
“vassalidade” de sua região em relação à Francia.
i A novidade mais marcante, em relação ao ano 800, é, cem anos
que serviam para
mais tarde, a multiplicação de muralhas, de fortificações i
as gfâ&ªá civis dag quais elas são o meio e o alvo. Em 900, elas são essen- í
cialmente muralhas de cidades, mas habitua-se a edificar fortalezas e pali- |
cadas, a elevar burgados ao nivel (estatuto) de castelo (com mercados como
em Flandres). No entanto, essa proliferação não tem nada de anárquica e
não marca uma privatização completa do poder.
Desde a ascensão do rei Eudes, em 888, desenham-se principados
| regionais bastante coesos, cujos mestres são condes. O crescimento de seu ,
poder é obra, inicialmente, dos préprios reis carolingios. Eles reúnem (em
um acúmulo inédito ) vários condados e frequentemente adicionam um Í
R
outro titulo ao de conde (& s vezes marqués ou duque). Isso se produz nas
:
nte expostas aos ataques “pagios’, como |
| regides de marca, particularme
e da ameaça ex-
Flandres e a Gótia, mas também no interior do país, long
ia a scendede ao título ducal da Aqui-
terior: é assim que o conde da Auvérn
tânia (com pr ecedência sobre os condes de Poitiers e
de Toulouse); que o
conde de Autu n torna-se duque da Borgonha e o irmão de
Eudes, Roberto,
às regiões
torna-se marquês d a “Néustria” (0 nome dado nesse momento
entre o Sena e o L oire, de Angers a Paris). Assim,
o marquês Roberto
o título de
prepara para seu filh: o Hugo, o Grande, por falta de realeza,
duque dos francos (935-9 56), que cons
agra um poder social superior ao
' 147
A Cavalaria
¢ ante
Aquitânia e a própria Normandia, porque, efetivamente, o duque gar
(ou se esforca, ou se gabade garantir) a defesa do conjunto do país, a paz
e a justica interiores, à maneira de um rei.
e sobre essa
Sem dúvida existe muito a ser dito sobre essa defesa
justi¢a. Em primeiro lugar, o adversário é em geral um principado vizinho,
eventualmente em conluio com um senhor em rebelião — tudo isso nada
mais é, portanto, do que a guerra feudal, guerra de castelos, marcada
principalmente, nós o veremos, pelas represálias sobre os camponeses.
Em segundo lugar, a justiça é então apenas um árbitro bastante fraco.
Pressionados pelos monges, cluniacenses ou outros, que reivindicam o
respeito a suas propriedades e privilégios, os príncipes inicialmente os
reconhecem, mas depois os obrigam a reduzir essas propriedades e privi-
légios. Daí a insatisfação desses monges, as preces a Deus e aos santos para
que amaldiçoem os espoliadores e os tiranos, para que os matem por meio
da vingança milagrosa. Quando se trata de querelas entre seus vassalos
armados, os príncipes conduzem transações diversas — quando não os
provocam com duplicidade, eles dividem para reinar, como mostra o me-
morando sugestivo e denso (que chamamos de Conventum) que recapitula
por volta de 1028 as reclamações de um vassalo de Poitiers, Hugo, “o
Quiliarca” de Lusignan, contra o conde de Poitiers, duque da Aquit
énia
(Guilherme V, o Grande, 996-1030)".
1 Existem duas edições recentes desse documento: uma cujo comentrio traz talvez
alguns problemas mas que numera comodamente as linhas e propse L:º arzadu a0
para o frances, a de Georges Beech, Yves Chauvin e Georges IÉonPL
: d" Cmª . tudm.’.;
onven. ;
Droz, 1995; a outra, repleta de comentérios mais convinÉente
Authority. Írí[ eev\fill'la tradugi
inglesa, produzida por Jane Martindale em Status,
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Vassalos, senhor
es e santos
Dessa f A Lot
orma, à dcsvalº“zªçªº feita pelos historiadores modernos
à guerrade i JusTfç Ú feudal talvez seja excessiva, Ela provém da idealizagio
do Estado carolingio ou moderno ¢ da desatengio a certas informagées
dos documentos que as sugestões da antropologia permitem melhor notar.
Vistos o niimero e, principalmente, a variedade das fontes escritas a partir
dos carolingios, podemos empreender com mais facilidade o exame dos
cédigos e limites da violéncia do que aquele que é possivel para a Germa-
nia e os merovingios. Essa peculiaridade talvez nos permita mesmo esta-
belecer verdadeiras diferencas em relagio às préticas daantiga germanidade,
bem como definir aquelas que estão ligadas a tragos carolingios ou mesmo
que são decorrentes das condigdes do contexto imediato, como os castelos
que não são apenas bases de ataque, mas também locais de refúgio (para
os nobres), de detengio (para os cativos) e de assembleias ou negociagoes.
Como na época merovingia, a vinganga é um sistema ambivalente: é uma
violéncia, mas também sua canalizagio, seu controle social. Nem sempre
é facil mobilizar apoio para a guerra, e ja vimos que desde os anos 890 o
cristianismo é frequentemente invocado a tempo (mas não a contratempo)
em apoio àqueles que fazem a paz. Também como na época merovíngia,
certos cronistas (como Richer de Reims) relatam e criticam “traições”. Por
outro lado, os realizadores dessas “traições” veem razão para se ocuparem
em justificá-las. A novidade então se encontra na insistência sobre a moral
da vassalidade, legado do século IX.
A França e a Aquitânia pós-carolíngias se distinguem da Gália de
Gregório de Tours por três traços notáveis pelo menos. O primeiro é a
frequência da captura de nobres, seja nas batalhas, seja em ciladas em que
se evita matá-los. Dispõem-se, a partir de então, de castelos para prendê-
los, e daí pode-se fazer pressão sobre eles com mais ou menos elegância.
Não é mais o caso de denunciá-los a um rei para a instalação de um processo
por traição?. Assim, esses nobres são mantidos, às vezes, como reféns
de fato e, às vezes, quase como hóspedes de luxo. Além disso — segundo
traço —, nas narrativas dos tempos feudais, nas cenas da vida nos castelos,
mulheres nobres têm um lugar de destaque inédito que talvez cresça pouco
a pouco. Deveremos nos perguntar: o que é um Cavaleiro servidor? O
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‘
A Cavalaria
_
Canvmtum, 1, 98-100.
Vassalos, senhores
e santos
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A Cavalaria
-
culada. Nada ilustra melhor suas preocupagées do que o discurso que faz
oarcebispo Adalberon de Reims aos vassalos de Hugo Capeto em 987 para
persuadi-los a elegé-lo A realeza®. Trata-se verdadeiramente de uma socie-
dade de herdeiros, de proprietdrios herdeiros — e, por isso, frequentemente
astutos e ardilosos, mas também sem desmesura. Será necessrio ver, mais
adiante, se a mutagio Cavaleiresca da segunda idade feudal (apés 1050)
não os levard a uma audécia acrescida.
Diante disso, não podemos nos surpreender com a possibilidade,
ou a frequéncia, de guerras entre um senhor e seu vassalo, ou, mais ainda,
entre vassalos de um mesmo senhor. Pois, obrigados inicialmente a se
ajudarem, a se apoiarem e a se amarem um ao outro, senhor e vassalo não
se sentem sempre satisfeitos. Eles se acusam mutuamente de delitos e de
falta de respeito. É preciso ler, sobre essa questão, o Conventum de Poitiers,
esse longo requisitório em favor de Hugo, o Quiliarca, e contra o conde
| (e duque) Guilherme, no qual se alternam declarações de amor e de fide-
(| lidade e reclamagdes do vassalo. No final, Hugo declara guerra a seu senhor,
| esclarecendo que ele o poupará bem como a sua Cidade (sede de sua honra),
o que desloca as hostilidades para seus súditos, vassalos ou camponeses, e
constitui um verdadeiro acordo “Cavaleiresco”.
É preciso ler também a carta (reconstituída por Richer de Reims)
na qual Eudes I de Blois proclama sua ligação com Hugo Capeto, seu rei
e senhor, após ter tomado Melun — por traição — e evitado o combate:
Talcomo o reconstitui,
j Pelo menos, Richer de Reims.
Companheiro em milíc;
8 ia ou em Cavalaria,
Richer, IV, 80 (t. 1L, p.
279). S
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A Cavalaria
.
culada. Nada ilustra melhor suas preocupagdes do que o discurso que faz
oarcebispo Adalberon de Reims aos vassalos de Hugo Capeto em 987 Para
persuadi-los a elegê-lo 4 realeza®. Trata-se verdadeiramente de uma socie.
dade de herdeiros, de proprietários herdeiros — e, por isso, frequentemente
astutos e ardilosos, mas também sem desmesura. Será necessário ver, mais
adiante, se a mutação Cavaleiresca da segunda idade feudal (após 1050)
não os levará a uma audácia acrescida.
Diante disso, não podemos nos surpreender com a possibilidade,
ou a frequência, de guerras entre um senhor e seu vassalo, ou, mais ainda,
entre vassalos de um mesmo senhor. Pois, obrigados inicialmente a se
ajudarem, a se apoiarem e a se amarem um ao outro, senhor e vassalo não
se sentem sempre satisfeitos. Eles se acusam mutuamente de delitos e de
falta de respeito. É preciso ler, sobre essa questão, o Conventum de Poitiers,
esse longo requisitório em favor de Hugo, o Quiliarca, e contra o conde
(e duque) Guilherme, no qual se alternam declarações de amor e de fide-
lidade e reclamações do vassalo. No final, Hugo declara guerra a seu senhor,
esclarecendo que ele o poupará bem como a sua Cidade (sede de sua honra),
o que desloca as hostilidades para seus súditos, vassalos ou camponeses, e
constitui um verdadeiro acordo “Cavaleiresco”.
É preciso ler também a carta (reconstituída por Richer de Reims)
na qual Eudes I de Blois proclama sua ligação com Hugo Capeto, seu rei
e senhor, após ter tomado Melun — por traição — e evitado o combate:
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Vassalos, senhores e santos
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A Cavalaria
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e
Vassalos, senhores e santos
— .
dan: s la France féodale...”
" John France, “La guerre a deste livro.
Regino de Prúm,p. 112 (876). Ver também a cap
s
Crénica, 111, 20
" 155
à
A Cavalaria
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—
Vassalos, senhores e santos
olubilidade,
indiss
madas nos tempos carolíngios. O casal é fortalecido pela
assoc ia mais estr eita ment e a dama ao senh or feudal e fav orece tam-
o que sexo
a, ou seja, os filho s do casal, incl uind o aquele s do
bém a linha diret detri-
no est abe lec ime nto dos her deiros da honra do casal, e m
feminino,
dos colater ais, começ ando pelos tios pate rno s. Ter tais direitos numa
mento
sociedade de guerreiros obriga a mulher a se col ocar
em busca de um
“protetor”, ou a deixar que lhe seja dado um. |
que não é
Com a viúva de Blois, Ingon gera um filho (Gerlon),
bem conhec ido do que ele. Gostar famos de saber se
histor icamen te mais
se
os condes de Blois do ano 1000 afir mam ou não ser descendent es des
mas que 20
personagem. A lenda convém a uma família prestigíosalº,
fazem um
mesmo tempo se presta a controvérsias. Os condes de Blois
olência, e
pouco de sombra aos reis, estando, portanto, expostos à malev
Raul Glaber,
uma outra fábula do ano 1000, forjada ou espalhada por
— pior que
descreve-os de fato como oriundos de um vassalo criminoso
Ingon, traidor de seu senhor”.
Por heroísmo ou traição, seria possível ascender socialmente? De
saíram
qualquer maneira, Ingon não é um desses “soldados de fortuna” que
s
do nada e que o século XIX imaginou na época das incursões normanda
(sobre o modelo dos soldados do ano II, da nobreza do Império) dando
|
origem a senhores. Ingon tem parentes “medíocres”, o que não significa
|
“modestos” no sentido atual, mas médios. Para que chegasse às ações que
|
conhecemos foi necessário que pegasse em armas, que sua família tivesse
I
20 menos os 12 mansos do cavaleiro de base carolingio, e sem dúvida um
pouco mais. Ele ¢ de origem não modesta, mas mediamente orgulhosa! |
E por causa disso ele pode temer a reação de uma nobreza mais alta: ele i
deve usar todos os meios ¢ até mesmo um pouco de patho s para se fazer
pouco depois do ||
para que ela peça ao rei seu perdã o. Um
aceitar por ela e
rei Eudes (morto em 898), surge um personagem muito mais histórico,
Haganão, ele também vindo de parentes “mediocres”. Surgindo junto
com outros homens também “menores” que os “príncipes”, ele ganha o |
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‘
A Cavalaria
e x . ”,
m «
os últimos à revolta, 5 ) juntament: € CO
favV or do e isso l eva
rei iei
A 21 d "
irmão do rei Eudes*'.
As Histórias de Richer de Reims descrevem várias vezeg esse tpe
re. Richer lhe dg, por
de tensio, ) ou de dinâmica, na hierarquia nob . ade q res Vezeg o
: da socied
ta bem a amb iva lén cia
uma aparência feudal. Ele no de £ . Speito
z er e
das famílias em ascensão, sendo capaz tanto de fazer elogios aos robertia.
nos — à energia e à sabedoria que os levaram à realeza — quanto de acusa,
o rival de Hugo Capeto, Carlos da Lorena, de, íl“dcspôlto de filho de rei,
ter-se casado com uma simples filha de conde, “da ordem dos vassalos”
(que ele chama também de “equestre”, à mºdíl romana). O ideal Parece ser,
de fato, que 0 homem suba em mérito e se veja elevado por um Casamento
um pouco superior a seu nível: conquista-se uma mulher elevando-se em
direção a ela, enquanto um casamento com alguém de nível inferior con-
sagraria uma nobreza degenerada por um deficit de “vassalagem” (no
sentido de valentia, militia).
Richer de Reims atesta também que, apesar de sua fraqueza, o
tltimos carolingios tém uma espécie de corte. Pelo menos o rei Luís [v
tem um séquito de jovens nobres desejosos de se ilustrarem através de atos
de astuciosa coragem na guerra civil, tal como Raul, pai de Richer. Nela
acontecem cerimonias cristas, mas também festivas e diplomiticas, nas
quais se forma aquilo que as cartas chamam de “milicia do reino”, Foi em
uma ocasido como essas, segundo Richer, que, por pura extravagincia,
ódios mortais teriam surgido contra o filho do conde Rolon, o normando
Guilherme Longa Espada, dando origem à lenda do vassalo de grande
coragao que mereceu ser contada juntamente com aquela de Ingon e Catilo.
Não são apenas os normandos, convertidos recentemente, que traem sua
fé matando. Um marqués de Flandres, de ascendéncia carolingia
por seu
av6, manda matar Guilherme durante um encontro de paz
em Picquigny,
em dezembro de 942. Historicamente esse é um risco da guerra de vizi-
nhanga. Masuma aura de lenda se forma em torno desse
crime retumbante,
e Richer de Reims pode apresentar Guilherme como um
fiel totalmente
devotado a Luis IV, com um coragio puro, cheio de ardor de neófito por
|
N :iade, — s:.
A Nd: |
9v3e marquê é seu filho Hugo, o Grande, que será promovido a duque depois
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Vassalos, senhores
e santos
22 i
ele”. Guilherme Longa Espada ¢ um modclo, também, para
ideal de devoção até o sacrifício, Pois o afirmar um
tempo em que vive Richer — com
tantos vassalos pouco apressados
em m orrer por seu senhor, pusilânimes,
e mesmo cúpidos e traidores —
Precisa disso.
Em 978, temos belos discursos sobre esse ideal vassálico. Mas os
atos o seguem? É nesse momento que se dá o ataque relâmpago do rei
Lotário, descendente de Carlos Magno, sobre Aix-la-Chapelle. Agrada-lhe
atacar de surpresa a retaguarda do imperador Oto II, então bem mais
poderoso que ele. Tempo suficiente, porém, para que ele, Oto, virasse para
o Leste a águia de bronze que “os germanos haviam virado para o Oeste
para significar que sua cavalaria poderia vencer os gauleses quando qui-
sesse™. Oto II reúne seus fidis e lhes faz — segundo Richer — um vibrante
apelo ao auxílio tal como um senhor ofendido pode e deve fazer a seus
bons vassalos, sob a forma de um pedido de conselho: “Mostrastes até aqui,
ilustres senhores, grande energia (vertu) e obtivestes renome de honra e
glória, avisados pelo conselho e invictos no combate. Hoje é necessária a
mesma energia, frente ao temor de que vosso renome se transforme em
vergonha”. A afronta feita por Lotário deve ser “lavada não apenas com-
batendo, mas inclusive morrendo”?. Esse discurso lembra a Germânia de
Tácito, mas ele não caracteriza a “Germânia” pós-carolíngia em contraste
com a “Gália” de Lotário e Hugo Capeto. Tanto a “Germânia” quanto a
“Gália” de então cultivam os mesmos valores heroicos que reencontraremos
nas canções de gesta.Já conhecemos a arte de não conformar todas as ações
a esses valores heroicos...
Que efeitos esse discurso produz? Nada além de um contra-ataque.
Primeiro, o saque ao palácio de Compiêgne. Em seguida, a Pilhagem dos
camponeses das regiões do Sena, que evidentemente não têm nada a ver
com o virar da águia em Aix. É ao duque Hugo Capeto que o rei Lotário
se fia. O duque levanta uma hoste, bastante magra, mas suficiente para
avançar em direção à hoste da Germânia. Mas porque ainda quase se
trata
de uma guerra civil entre as duas metades separadas da França carolíngia,
159
p N
A Cavalaria
160
Vassalos, senhores e santos
arainha Gerberga, 2 qual Richer faz várias vezes alusão porque seu próprio
Pai, o chamado Raul, pertencia a ela. Esse Raul legou a seu filho verda-
deiras lembranças, e também sem dúvida lendas a reelaborar.
Devido a isso, essa cavalaria Ppareceria quase uma Companheíra-
gem da Germânia antiga, vibrante em emulação de bravura e de recom-
pensa, glória e riqueza juntas. O chefe é um rei sagrado que não se arrisca
na linha de frente. Richer de Reims atribui a Luís IV de Além-mar, na
praia de Wissant, uma demonstração de sua aptidão equestre, por ocasião
de sua chegada à Gália (936)! Certamente, não se trata de colocá-lo
à
prova, uma vez que ele recebe imediatamente a lealdade dos grandes
à frente dos quais está Hugo, o Grande. Logo, segundo Richer, “o duque
lhe leva um cavalo ornado de insígnias reais” e se faz seu escudeiro, que-
rendo colocá-lo na sela — a um cavaleiro encouraçado, de fato, é neces-
sário ajuda.
2 Idem,II, 4.
3º Melhor é que Hugo, o Grande, desempenhe o papel de escudeiro.
161
_—7——
A Cavalaria
162
Vassalos, senhores e santos
2—
3 Idem,II, 11. , ,
o Venerdvel..., 7.
36 Idem, IV, 75-8; ver também Eudes de Saint-Maur, Vida de Bouchard,
163
——cA
socqecs ——=. RR
A Cavalaria
Geraldo de Aurillac e os
defensores de igrejas
164
Vassalos, senhor
es e santos
165
A Cavalaria
adversário “virando para trás a ponta de suas espadas”. Deus estava com ele
e com seus homens e aqueles que estão diante deles o sabem. Dessa forma,
Geraldo obtém a vitória sem mancha e sem risco: “Uma coisa certa, é que
Clcjafnais causou um fCrínlcntO a unn'l qucf un fOSSC, tampouco rcccbeu
-
“ Odon de Cluny, 1, 8.
166
tn 2cocea UOOO”O
Vassalos, senhores e santos
s, confessa inge-
a Everardo do Frioul. “É-lhe imposto o estudo das letra:
30 eclesiástica,
h nuamente Odon de Cluny, para que esteja apto a uma fung
a im pressão que
caso não permaneça no século.” Esse comentário reforça
o refugo da Cavala-
se tem de que a Igreja recruta, em parte pelo menos,
nobr e tornam-se
ria do século; os coxos e os neuróticos de nascimento
nada de um
“Cavaleiros” postiços na “outra milícia”... Geraldo não tem
instruído nos exercícios
inválido; “Uma vez lido o saltério, passou a ser
do século, como é uso das criangas nobres: langar cães de caga, manejar
arco e flecha, soltar falcões e gavides com a o impulso adequado”“- Mas
que nés qualifica-
a crianga se cansa e se cobre de bolhas — essa reação
de Deus. Ela leva
riamos de psicossomdtica ¢ relacionada à vontade
na pubcrdade. “Ele
Geraldo às letras antes que os sintomas desapareçam
pa de
foi, então, bastante lépido para saltar sem esforço por cima da garu
volta-se a
um cavalo; e ao vê-lo assim, crescido em força e em agilidade,
ainda
prepará-lo para a ‘milicia’ e para as armas.” De qualquer forma, ele
de
prefere as letras e diz com a Bíblia, como se tivesse lido o manual
lendário
Duoda: “Mais vale sabedoria que força”. Efetivamente ele e o
Ingon não se assemelham!?
Tornado senhor após seu pai, Geraldo de Aurillac vive ainda assim
as de
todos os cuidados decorrentes dessa honra. Sua Vida evoca as guerr
seus
vizinhança, nas quais é necessário responder às pilhagens contra
los
camponeses através de cercos (rapidamente interrompidos) de caste
adversários. Quer-se crer, uma vez que Santo Odon nos fala isso, que ele
outros.
mesmo não pratica a vingança indireta pilhando os camponeses de
one-
Mas pode-se pensar que ele não proteja suficientemente os seus camp
ses, pois perdoa rapidamente seu opressor. Arnal, senhor do castelo de
se jogava
Saint-Cernin, frequentemente, “tal como um lobo da noite,
sobre os domínios de Geraldo; esse, ao contrário, homem de paz se ende-
dom de
reçando a alguém que odiava a paz, dava-lhe presentes, fazia-lhe
armas de guerra para tentar amansar através de bons procedimentos esse
qual Richer
caráter selvagem”. Em seguida, “um sucesso inesperado” (do
teria feito sem dúvida alguma bela narrativa de traição ou de ardil ousado)
a mínima
“lhe permite extirpar essa besta feroz de seu alojamento sem
4 Idem, 1, 4.
42 Ver, neste volume, pp. 155-7.
167
em
-
A Cavalaria
perda de vida humana”. Tendo-o cativo, Geraldo não faz a Arnal nenhuma
reprimenda humilhante, ele apenas o exorta sobre aquilo que seria neces-
sário para que adotasse por si mesmo uma atitude humilde, o que lhe
traria mérito muito mais do que vergonha. São Geraldo lhe dá a liberdade
graciosamente, sem lhe pedir refém, nem juramento, nem resgate: “Não
quero levar de ti o que quer que seja de teus bens, como compensação às
pilhagens às quais você se entregou”. Essa anedota edificante®® prova a
caridade de um santo, ou a consciéncia de classe de um Cavaleiro como os
outros? E o lobo ¢ assim completa e definitivamente domado? O rei e os
bispos, na Francia que Flodoardo apresenta nos Anais, perdoam da mesma
maneira aos senhores “salteadores” ou excomungados®.
Em sua justica, Geraldo de Aurillac toma o cuidado também
de dar a cada um segundo seu direito, de defender os vassalos contra seu
senhor e, portanto, de manter a pequena Cavalaria nobre; quanto aos
pobres, ele quer igualmente punir seus erros. Por outro lado, ele não recusa
o auxilio ao duque da Aquitania, participando de uma hoste que pilha a
provincia adversaria. Ele se contenta em não pilhar®. Isso mostra que
Geraldo, no minimo, não desencoraja radicalmente a vingança indireta.
Enfim, Santo Odon conta com detalhes como ele escapou, com o auxilio
de Deus, de golpes audaciosos, operagdes de encomenda contra sua pessoa
e seu castelo, à maneira do pai de Richer®. Em outros termos, é um senhor
que tem sorte. Seu sucesso é interpretado pela Igreja como resultado dos
dons e do respeito que Geraldo tem por ela (calando-se sobre seus fracas-
sos). Sobre este tiltimo ponto, podemos considerar que a “Cavalaria” não
precisa ser “cristianizada”: ela já o ¢, como nos tempos merovingios... Em
suma, Geraldo de Aurillac se passava por exatamente aquilo que Ademar
de Chabannes diz mais tarde de Galberto de Malemort, um “eclesiástico”,
no sentido de alguém favoravel às igrejas e de bom comportamento tendo
em conta as expectativas da sociedade feudal.
168
Vassalos, senhores e santos
se mobilizar e
nhor, mas não por um castelo. Entretanto, é necessario
desculpa
fazer represélias para defender bens e reputação. Odon de Cluny
do senti-
vérias vezes São Geraldo de imputagdes de covardia, em nome
a
mento cristão. Devemos crer que os contemporineos lhe reprovaram
falta de coragem?
Nio incomoda a Santo Odon colocar em evidéncia em São
Geraldo um sentido de manobra na interação social. Ele não ¢ evidente-
mente um desses traidores de que Richer fala. Mas a Vida de São Geraldo
conta um ou dois ardis ou duplicidades que acharfamos um pouco tortuo-
sos demais se nao fossem conduzidos por uma boa causa. A desculpa por
não prestar homenagem ao duque denota já um certo sentido de comuni-
cação politica: Geraldo de Aurillac faz parecer lealdade uma recusa talvez
ditada por orgulho, que arriscava desencadear guerras. Há também as
fugas de seus cativos, que cle mesmo organiza, sua arte de dar sinais ambi-
guos e sua consciéncia da importancia dos rearranjos®. Não se é senhor
(nem vassalo, nem santo) com um coragio simples.
Santo Odon, seu bidgrafo, também é habil. Escreve em defesa de
um santo — e para tornd-lo ilustre — cujo cardter laico e guerreiro faz
tremer um pouco os claustros — onde se deseja que todo santo seja um
monge —, o que é um belo desafio intelectual. Ele o supera essencialmente
tendo em vista a necessidade de que os Cavaleiros defendam o senhorio
da Igreja. Legada antecipadamente a Deus para o estabelecimento de um
mosteiro, a “terra” de Geraldo já é santa: é por ela que ele guerreia (pru-
dentemente) muito mais do que por sua honra de cavaleiro nobre. A defesa
armada das terras da Igreja se encontra assim justificada. Tal é o alvo dessa
hagiografia redigida em parte para o uso da milicia dos claustros... Esta
carrega uma mensagem ambivalente: essa defesa é justa em seu principio,
mas ela deve evitar ser dura demais.
4 Isso se confirma aqui (idem, 1, 36): os vassalos do conde de Poitiers tomam um castelo
de Geraldo, que os cerca; uma vez que seu senhor fracassa em socorré-los, capitulam
muito naturalmente, com sua vida salva como se deve.
% Odon de Cluny, I, 20.
169
A Cavalaria
# Idem, 1, 38-9.
5º Idem, 1, 37.
5 Milagres de São Geraldo, 4.
170
Vassalos, senhores e santos
171
A Cavalaria
172
|
Vassalos, senhores e santos
camponeses. Eles
notar-se-á também que isso os dispensa de armar seus
nam que permaneçam
lhes dizem que o santo os defende e, portanto, orde
vivendo sempre sob um
em seu estatuto de trabalhadores sem armas,
defensor, Cavaleiro ou santo.
aos infantes que ocasio-
A esses Cavaleiros defensores, e mesmo
nsado também um auxilio sobre-
nalmente os apoiam, nao pode ser dispe
va com à ajuda
natural? Armado como Cavaleiro, o monge Gimão conta
e (e ameaçavª) sua
de Santa Foy. Em caso de revés, ele injuriava vivament
bênçãos das armas de Cava-
estátua. O ano 1000 é uma grande época de
bem que não se trata do aduba-
leiros. Jean Flori agrupou-as, mostrando
das contas, ao longo do século
mento Cavaleiresco”” — ainda que, no fim
um jovem. A rubrica anuncia
X, se trate uma vez do ordenamento de
de um defensor da Igreja, ou
claramente: “ritual para benzer as armas
a a interpretações. Acontece
outro Cavaleiro”, o que deixaria a porta abert
de 1100, na época da cruzada
que essa série de bênçãos cessa um pouco antes
Flori reconhece não poder
¢ da ascensão do adubamento — o que Jean
explicar, e ao que voltaremos mais adiante®®.
os anuncia expres-
Sublinhemos, por ora, que o ritual dessas bênçã
a salva guard a ao port ador dessa s armas, tanto ou mais que a
samente
vitór ia e de forma algu ma a remis são de seus pecados. Os Cavalei-
própr ia
uram ser defendidos contra a
ros do ano 1000, defensores de igrejas, proc
milagre em Berry o mostra clara-
morte por liturgias e paraliturgias. Um em
Bento”. Pouco tempo depois,
mente com relação aos pães de São
rústica, veem-se Cavaleiros pedirem
Conques, no coração da Aquitânia ou a
o estandarte de Santa Foy,
para “comprar”, por meio de um dom,
combates. Um escapa assim
bênção de sualanga, para que favorecesse seus
retoma, através de guerra,
de uma emboscada feita por seus inimigos; outro
entregado ao inimigo...
um castelo — com o qual sua mulher havia se
dom que originalmente
Obsevamos nesses casos um desdobramento do
“pelo resgate [a com-
deveria ser um legado funerério, em troca de preces
23
57 Jean Flori, “Chevalerie et liturgie...” (férmula S. 26; por outro lado, a férmula S.
)
anuncia a bênção de um jovem).
58 Ver, neste volume, p. 298.
59 Milagres de Sio Bento, 11, 16. Ver meu estudo de Ln mil et la paix de Dieu
pp- 110-3.
173
A Cavalaria
Os cativos da Aquitânia
174
Vassalos, senhores e santos
% Ha somente uma alusio breve de Ademar (111, 30) a uma batalha sangrenta conduzi-
da pelos aquitanos sobrc os francos de Hugo Capeto, mas ela não aconteceu, e não há
muitos tragos, à parte esse, de sentimento hostil em relação aos “francos” nessa Crô-
nica da qual os dois primeiros livros e o comego do terceiro retomam a vulgata da
histéria franca e carolingia.
6 H4 uma coletinea de sermões seus muito cristdos, do tempo da paz de Deus...
175
A Cavalaria
deve seu
forjada por Galand®. Seu sucessor, Arnaldo “Peliça” [Bouration],
omem
sobrenome à vestimenta que portava no dia em que matou um lobis
tora da
que infestava a região””. Nos dois casos, cria-se uma façanha prote
nome
região, fonte de legitimidade feudal. E isso cria também um sobre
do qual se
visual (evocatório de um gesto ou de um costume) a partir
de
transmite uma fábula. Sente-se, portanto, entre os aquitanos, o vigor
nobres.
um ideal de proeza, o que não surpreende entre os guerreiros
Mas na Aquitânia do ano 1000, os condes, os “príncipes” de cas-
telos, ou mesmo os vassalos desses se arriscam muito pouco a se fazerem
cortar em dois. A Deus não agrada que se coloquem os descendentes de
um Talhaferro em perigo na batalha contra os últimos piratas normandos,
vindos da Irlanda, entre 1003 e 1013, para fazer capturas! O duque da
Aquitânia, conde de Poitiers, é então Guilherme V, o Grande (996-1030).
A ameaça o leva a extremos como o rompimento com o esquema carolin-
gio de trés ordens, uma vez que ordena aos bispos e a0 povo que fagam
stiplicas ao Senhor através de jejuns e litanias, enquanto ele avanga com
electi (guerreiros de elite) numerosos®. Os pagios tém medo, mas conhe-
cem a cavalaria pés-carolingia. Com base nesse conhecimento, preparam
para o duque Guilherme a mesma armadilha que os bretdes haviam recen-
temente armado contra o conde de Anjou, em Conquereuil (992)%.
A noite, cavam armadilhas nas quais, 20 amanhecer, cai a “carga
desenfreada” dos Cavaleiros aquitanos. “Os cavalos despencam com seus
cavaleiros pesados pelo peso das armas, e muitos são feitos prisioneiros
pelos pagãos” — cujos ancestrais teriam preferido matar, a se acreditar em
sua reputagio de ferocidade. Portanto, as primeiras fileiras aquitanas caem
naarmadilha: desmontados, os Cavaleiros são pegos. Os da segunda linha
tém tempo de desmontar. O duque Guilherme V, que chamamos de “o
Grande’, estava frente e caiu de cabeça em uma fossa. É necessario um
pequeno milagre para que ele escape à captura. Pesado devido as suas armas,
“ia cair nas mãos dos adversarios, se Deus, que sempre o protege [nio es-
176
Vassalos, senhores e santos
queçamos também que rezavam por ele os bispos e o povo], não lhe tivesse
dado força e presença de espírito para, com um grande impulso, saltar e
juntar-se novamente aos seus”. Depois disso, a batalha para. Ela é curta,
como a maior parte das batalhas da época em comparação com aquelas
das guerras modernas.
Os cativos são reféns, e não se desdenha de suas vidas. “Logo o
combate cessou por causa dos prisioneiros, por medo de que fossem mor-
tos. Eles estavam de fato entre os mais nobres. Para-se, portanto, a primeira
carga, após o que o dia se passa em negociações ásperas. Elas não parecem
nem um pouco frutíferas, uma vez que os normandos retornam ao mar
com os cativos. Sem dúvida eles os levam à Irlanda e, depois disso, o duque
os compra de volta, cada um por seu peso em prata””. Na mesma época
(antes de 1013), os mesmos, sem dúvida, raptaram de surpresa, em Saint-
Michel-en-I'Herm, a viscondessa de Limoges Ema. Ela vale ouro para seu
marido, um “peso infinito” deduzido do tesouro das igrejas’'. Mas, uma
vez pago o resgate, é necessária a intervenção do duque Ricardo de Rouen
para que seus raptores a entreguem bem...
É o resgate que distingue essa batalha costeira daquelas conduzi-
das, no interior, pelos condes e senhores da Aquitânia em suas guerras
civis. No entanto, Ademar de Chabannes não o confessa; lendo o Conven-
tum, descobre-se uma alusão preocupante àquilo que Cavaleiros cativos,
devolvidos pelo senhor de Lusignan pela injunção do conde, poderiam
ter-lhe contado™.
Pensava-se em resgate, antes do incidente grave que mancha a
guerra entre os senhores de Limoges (o bispo e seu irmão, o visconde,
1010/1015) e o de Chabanais, Jordão? Contra este último, edificaram o
castelo de Beaujeu, em Saint-Junien, com a ajuda do duque Guilherme
que pôde, segundo o Conventum, ao mesmo tempo fazer um desembolso
e levar sua caução política... Uma vez o duque tendo partido, Jordão quer
177
A Cavalaria
atacar Beaujeu com uma elite (seus cavaleiros) e o bispo o enfrenta com
uma grande hoste”™.
cor-
Uma rude batalha foi combinada para o coragio do inverno. Muito sangue
reu, os limosinos foram postos em fuga e Jordao, vencedor, voltou com numero-
sos senhores (príncipes) que tinha capturado; acreditava já estar em seguranga
quando recebe, atrés da cabega, um golpe desferido por um Cavaleiro que ele
u
mesmo havia langado por terra [sem tê-lo desarmado ou amarrado?]. Morre
desse golpe ¢, para vingé-lo, seus homens imediatamente perfuram com golpes
mais
os prisioneiros, que entregaram a alma junto com seu sangue. Esses serão
dolorosamente chorados do que aqueles que haviam cafdo em batalha.
7? Mobilizado por um “pacto de paz”, como o de Bourges em 1038? Depois de tudo, isso
não parece impossivel.
74 Ademar, III, 42.
75 Pierre Bonnassie, “Les descriptions de forteresses...”.
178
Vassalos, senhores e santos
talvez
¢ dessa forma recuperam Ruffec” (o castelo contestado )76, Os leudes
A luta pelo
tivessem feito pior, cortando-o com uma serra, como Sic 4rio.
patriménio familiar — a honra — acenderé sempre, mesmo no momento
mais Cavaleiresco da Idade Média (por volta de 1100), vendetas odiosas
entre parentes muito proximos”’.
O conde de Anjou Fulques Nerra move por todos os lados seus
pedes sem hesitação (989-1040). Depois de 1016 ele aparece”® como autor
de um ardil nem um pouco Cavaleiresco: “Nessa época, o conde de Angers
Fulques, incapaz de vencer abertamente o conde de Le Mans Herberto,
filho de Hugo, por meio de uma artimanha o atraiu 4 cidadela de Saintes
[um castelo com uma aula — grande sala — local por exceléncia do coló-
quio sem armas], como se quisesse lhe ceder essa cidade em feudo”. Her-
berto não desconfia de nada — afinal, não se está na Quaresma? E eis que
Fulques o prende! Felizmente Ademar de Chabannes espalha aqui
aparentemente uma fábula — o que não retira em nada seu interesse por
certas explicações que oferece. Inicialmente, atribui as mulheres dos
dois contendores um lugar interessante na aventura. Fulques Nerra teria
encarregado a sua de prender, também por artimanha, a mulher de
Herberto, que, tendo sido prevenida a tempo, se defende. Em seguida,
Ademar evoca o que pode deter, mesmo um traidor, na palavra dada de
levar alguém à morte: “Fulques, temendo os senhores de Herberto e
de sua esposa, não ousou maté-lo, mantendo-o cativo durante dois anos”.
E, para terminar, o cronista evoca o Céu: “Enfim o Senhor agraciou o
inocente com Suas mãos””*. Nos Salmos biblicos, o Justo espera isso Dele,
mas no texto, de que maneira isso se passou? Relatar uma fuga miraculosa
é frequentemente uma boa mancira de pôr fim, sem humilhar nem denun-
ciar ninguém, a uma negociagio em impasse: o que fazer com um prisio-
neiro que se tem à mão, mas cuja retenção provoca criticas, que não cede
a0 que se espera dele e que se é obrigado a não matar?
Há uma diferenga no destino dos diversos cativos que resulta,
muito frequentemente, mais do acaso do que da justiga. H4 aqueles que
179
A Cavalaria
têm sorte e outros não — e que acabam pagando pelos primeiros. Pod.e—se
bem no caso do “corebi spo”** Bento. Esse sucessor designado do bispo
vê-lo
Limoge s, irmão do duque Guilhe rme IV, foi preso e Éegado por
Ebes de
as-
Hélio, conde de Périgord®. Ora, os viscondes de Limoges (pai e filho
sociados), algum tempo depois, aprisionam Hélio e seu irmão Aldeberrtode
capturam “por meio de traição”, nota Adema
“de la Marche”. Eles os
duque Guilherme1V,
Chabannes. Hélio se encontra em grande perigo. O
“Ele iria ser cegado,
sabendo do que se passa, faz pressão sobre o yisconde:
spo”®. Um
sob o ‘conselho’ do duque Guilherme para vinganga do corebi
de Deus, e pouco
milagre vem salvi-lo. “Ele fugiu da prisão com a ajuda
É possivel
depois morreu peregrino, a servigo de Deus na rota de Roma.”
de
que Deus, aqui, seja apenas um pretexto invocado pelos viscondes
deixado
Limoges para se livrarem do embarago. Talvez eles o tenham
escapar, tranquilamente, como fizera antes Geraldo de Aurillac com
alguns prisioneiros. E eis um milagre produzido provavelmente por uma
solidariedade de classe entre Cavaleiros de primeira ordem, e por um
cálculo dos viscondes no jogo politico a trés, entre Poitiers, Limoges ¢
Périgueux. Depois disso, o ar da Aquiténia não ¢ mais muito bom para o
conde Hélio: é o momento de partir, e sob a salvaguarda de São Pedro.
O que não o impede de morrer no caminho, Deus sabe como. O ódio do
duque o teria alcançado?
O jogo dos viscondes de Limoges torna-se evidente quando se
sabe do tratamento reservado ao irmão de Hélio, preso junto com ele:
Aldeberto de la Marche. “Encerrado por muito tempo na torre de Limo-
ges, ele foi enfim libertado depois de ter desposado a irma do visconde
Guido”*?. Não vamos imaginar uma paixão romanesca, como a de Fabrício
del Dongo e Clélia Conti, nem mesmo um episódio do século XII, com
sedução da donzela pelo Cavaleiro Cavaleiresco apesar do pai e do irmão.
Não, aqui é o Cavaleiro feudal que negocia laboriosamente com seus pares,
os homens, uma reconciliação, uma mudança de aliança certamente
fundada sobre um interesse material bem estabelecido: castelo e terra. Será
Título usado até o século XI pelos vigários episcopais; arcediago. (N. da R.)
8! Ademar, 111, 25.
8 Ibidem.
83 Jbidem.
180
Vassalos, senhores e santos
181
A Cavalaria
182
Vassalos, senhores e santos
8 Idem, 1,33, eIV,7 (onde temos uma questio de resgate — estamos então porvoltade
1050). No caso deles, as coisas não se resolvem amigavelmente, senio nio haveria
milagre para contar; eles retornam para o cativeiro e a santa os liberta em seguida.
” Milagres de Santa Foy, 111, 52. Mesma eucaristia presente em Dudon, no tempo dos
normandos pagãos, II, 14.
183
A Cavalaria
curiosamente, à ideia de
traduz em terror diante de um milagre”". Mas,
rado sotf 2 pena de Ade-
expedição cristd ao Oriente teria ainda assim aflo
da Gália e sarr acenos;
mar, de uma forma indireta. Intrigantes — judeus
falsa ameaça para forçá-
da Espanha — teriam feito al-Hakim crer em uma
lo a destruir o Santo Sepulcro!
mar de Chabannes
Por outro lado, percebe-se claramente que Ade
combates sangrentos no
se inquieta, querendo alertar seu leitor sobre
em contar as hccat(?mbc.s
decorrer da guerra feudal, enquanto se compraz
verdadeira pi-
dos sarracenos — não escondendo que elas balizam uma
rataria cristá em Al-Andaluz (Espanha muçulmana). Assim, quando
os normandos da França, conduzidos por Rogério de Tosny, fazem incur-
sões e prisioneiros, alguns dos quais são comidos por eles a fim de aterro-
rizar os reis mouros e lhes extorquir tributo, percebe-se claramente também
que — ouso dizer — Ademar de Chabannes acha isso bastante bom!” Ele
saúda o heroísmo de Rogério quando, no retorno da Espanha, é surpreen-
dido em uma emboscada com 40 homens contra 500 aos quais faz frente
matando-os, vindo a sobreviver. Esse Rogério se parece um pouco com o
Rolando da Canção — elaborada desde o final do século XI com um ver-
dadeiro verniz de Espanha muçulmana. Mas com um “Rolando” que teria
sobrevivido a uma aventura espanhola diversa, conduzida tendo ele mesmo
como chefe, sem rei franco acima dele.
Será que, como outros, divago entre as linhas da Crônica de Ade-
mar de Chabannes? A cada pequeno trecho que ela consagra aos mouros,
pode-se pensar que o advento do ano 1000, depois a sua narrativa e sua
fábula rapidamente elaboradas fazem florescer a epopeia francesa. É ver-
dade que esta última foi escrita cem anos mais tarde pelo menos, e que não
se deveria tomá-la por uma pura transcrição de tradições orais antigas. Mas
essas existiram, como nos assegura, entre outras, uma “nota” do mosteiro
espanhol de San Milan de la Cogolla”?. Elas se cristalizaram sobre
. :
nomes
e trechos de história; carolingia®,
.
elas puderam evoluir; ou se renovar em
torno de episédios do ano 1000, ou talvez lembranças míticas dos
tempos
184
Vassalos, senhores e santos
185
A Cavalaria
186
Vassalos, senhores e santos
Miguel e São Pedro estão com eles; eles devem preferir a morte à desonra,
certos da vitória, de fazer muitos mortos (entre os quais um califa deca-
pitado®), butim e cativos”.
André de Fleury e Raul Glaber atestam, cada um à sua maneira,
o barulho que fazem, mesmo na Francia e na Borgonha, certos combates
na Espanha. Raul Glaber assegura que os monges e clérigos que tinham
pegado em armas e que foram mortos em combate ganharam a salvação
eterna a despeito de realizarem uma infração contra sua ordem — ou
mesmo por causa dela: um monge visionário o vira'®. Esse episódio é
frequentemente citado como um prelúdio à ideia de guerra santa autêntica,
ou seja, à cruzada. Não deve ser negligenciado no entanto que, no ano
1000, a questão se coloca apenas para os monges. Os commilitones de Ber-
nardo de Besalu não arriscam certamente sua alma lutando contra o infiel,
mas eles também não ganham a remissão de seus pecados por isso. Os
papas Leão IV e Jodo VIII o tinham prometido em 846 e 878 aos defenso-
res de Roma!®, sem encontrar grande repercussao. Por ora, a oferta não
foi ainda reeditada.
É necessirio dizer que, no front espanhol, ou no conjunto medi-
terrineo, um Cavaleiro cristão pode de qualquer forma perder sua alma...
trocando de campo! Como em contraponto às narrativas dsperas de Ade-
mar de Chabannes, às piginas de André e de Raul, todas exalando um
verdadeiro perfume épico, pode-se parar sobre um dos “milagres de Santa
Foy’, compostos por volta de 1010 por Bernardo de Angers. Diante deles,
por pouco não nos acreditamos já na terceira parte de Raul de Cambrai'®,
romanesca à vontade.
Raimundo do Bousquet, um rico senhor do Toulousain, conta
um tipo de odisseia do ano 1000. Ele busca, em seu retorno, após 15 anos
de auséncia, a caugio de Santa Foy (mas aparentemente não o seu estan-
darte) para reaver seu castelo, em uma guerra contra sua esposa, casada
novamente. E sorrimos, quase a cada linha, de tudo que ¢ dito em seu
187
A Cavalaria
ntos
favor — não o acreditando completamente. No entanto, os eleme
peregrinação a
dessa história permanecem muito sugestivos! Ele ia em
mas seu navio sofre
Jerusalém (após qual sinistra aventura de feudal?),
dita-se que estivesse
naufrágio; com base em relato de seu escudeiro, acre
sincera? Não, uma vez
morto. Sua viúva é toda prantos. Ela é, no entanto,
dá festas, se entrega ao prazer e
que logo “se veste com um luxo afetado,
seu parceiro,
acaba por desposar publicamente [portanto legalmente]
eadeixar tudo para ele, até o castelo de seu marido [mas esse
castelo provi-
duas filhas que teve
nha mesmo dele, e não dela?] e a herança paterna das
Hugo Escafredo, apre-
com Raimundo”. Um velho amigo de Raimundo,
dizer evitar a
senta-se, felizmente, para cuidar de seus interesses, o que quer
arrancando da mãe metade
“vergonha de uma aliança com alguém inferior”,
homens de
dos bens paternos com os quais suas filhas poderiam desposar
letamente
seu nível. Cavaleiresco, esse Hugo? Sem dúvida, mas não comp
desinteressado, uma vez que “as faz esposar seus próprios filhos”...
No entanto, Raimundo escapara ao naufrágio, pela proteção de
Santa Foy, e aporta na costa do Maghreb. Lá, “bárbaros” o recolhem e
perguntam sobre seu nascimento, “por cupidez”, pois pensam, caso seja
nobre, exigir resgate por ele. Ora, ele se confessa cristão, mas finge ser
cultivador. Portanto, colocam-no nos trabalhos dos campos em “Turlande”
(Tunísia?). Infelizmente, ele não sabe fazer nada, é punido cruelmente, e
ei-lo forçado a confessar que só sabe usar armas. Ele lhes faz uma demons-
tração: “Ninguém melhor do que ele sabia manejar uma arma, se cobrir
com o escudo, aparar os golpes, tornar-se invulnerável” — vê-se quanto
aarte da defesa prima. “Então eles o alistam em seu exército”, ele se distingue
por sua valentia e obtém um grau, ainda que subalterno. Ao contar essa
história, esse renegado, esse mercenário provável sugere que foi feito amné-
sico por uma poção — da qual Santa Foy só destruiu metade do efeito.
Certamente, ele não faz nada para rever sua pátria. É uma série de
eventos que o leva de volta. Prisioneiro dos sarracenos da Barbaria (mais
a Oeste), ele passa a seu serviço. É de novo apanhado e de novo reempre-
gado pelos sarracenos de Córdoba. Todos ficam espantados com sua
bravura, mas ele luta sempre até o final? Ele tem a arte de portar o escudo,
sem dúvida também a de negociar sua transferência. Depois disso, basta
que seja preso por um conde de Castela para voltar a sua região. Só lhe
resta ligar-se a Hugo Escafredo, pedir a Santa Foy de Conques que expulse
188
Vassalos, senhores e santos
189
A Cavalaria
190
Vassalos, senhores e santos
p. 285.
108 Ver meu estudo sobre LAn mil et la paix de Dieu...,
19 Concilio de Vienne: idem, p. 493.
191
A Cavalaria
11º Esse ponto é bem sublinhado por Jane Martindale, “Peace and War...”
" LAn milet la paix de Dieu..., p. 422.
"' Tal como o retoma então o bispo Adalberon de Laon, Poema ao rei Roberto...,
vv. 275-305.
192
Vassalos, senhores e santos
193
A Cavalaria
, “to-
O abade de Saint-Martial e o bispo de Limoges, Hilduíno
uma sanção e reúnem
mando o conselho do duque Guilherme”, prescrevem
, 2 felicidade
um concílio de bispos e de relíquias. E assim a epidemia cessa
do
volta e “um pacto de paz, com justiça [uma instituição], une em acor
mútuo o duque e os grandes™!,
Ele diz so-
Pena que Ademar de Chabannes não desenvolva isso.
emente preocu-
mente que Hilduíno, na sequência, se encontra frequent
infringidos aos
pado em impedir “as pilhagens dos Cavaleiros, os danos
mais
pobres”, promulgando sanções espirituais (uma “excomunhão”, ou,
anece, enquan-
ainda, um interdito contra suas terras). Mas esse bispo perm
ra. Nós o
to gerente de um senhorio da Igreja, ele próprio autor de guer
vimos, com o aval do duque, com o apoio de seu irmão, o visconde Guido,
levantar um castelo em Beaujeu contra o senhor de Chabanais. É esse o me-
lhor meio para que nenhum pobre da região sofra rapinas de Cavaleiros?
É inclusive impcnsávcl que essa guerra de Beaujeu, ocorrida entre
1010 e 1015, e ganha não sem peripécia dramática pelos irmãos de Chaba-
nais, tenha colocado estes últimos, com sua “tropa de elite”, diante de uma
“multidao™® mobilizada em Limoges ¢ arredores, graças ao bispo, em
nome do pacto de paz?
O ocorrido, nesse caso, seria um prelúdio às guerras de paz dos
anos 1030 no Berry, tal como as conta André de Fleury, inicialmente seu
entusiasta e logo preocupado com elas. A instituição que ele apresenta é
“uma paz fundada sobre o juramento”, decretada por um concílio — não
há dúvida, trata-se daquilo que nós chamamos de uma paz de Deus. Logo,
”
Andréatoma por uma mobilização: “todos os homens de 15 anos ou mais
sto
levantar-se-lam contra o violador do pacto, primeiro pagando um impo
as
e, sendo necessário, “com armas em mãos”. Não seriam, portanto, apen
endendo
os cavaleiros que iriam à guerra, mas uma hoste grande compre
e suas
infantes, inclusive padres portando estandartes de santos — sobr
os mouros.
relíquias —, um pouco como no combate contra
Tal como a descreveu, André de Fleury evoca, portanto, uma
o Aimon não
“instituição de paz” aparentemente subversiva. O arcebisp
MNA
14 Thidem. pp. 177-8.
Tl 42. Ver, neste volume,
15 Ademar de Chabannes,
194
Vassalos, senhores e santos
Dieu...,
16 Milagres de São Bento, V, 3; ver meu estudo sobre LAn mil et la paix de
pp. 404-5.
17 Ver, neste volume, p. 262.
195
— Rata -
A Cavalaria
196
Vassalos, senhores e santos
É preciso dizer que essas batalhas são raras, e que elas dão
lugar,
muitas vezes, a penitências, por causa do homicidi
o entre cristãos. Se esse
crime não foi diretamente evocado pelos concílios
do ano 1000, se eles
prcferir am atacar a vingança indireta, ou seja, a pilhagem dos
camponeses:
pelos guerreiros, é porque isso era muito mais frequente e muit
o menos
reprovado.
A guerra feudal é essencialmente uma atividade sazonal, e sua
razão de ser é, como vimos; a Pilhagem sobre as terras do inimigo e o cerco
a um de seus castelos. Essas operações com alvos precisos são entrecortadas
por conciliábulos. As hostes que “trocam” inimizades evitam o choque
frontal, seja se.esquivando, seja se engajando em conversações mais ou
menos sinceras”, ' |
— Nãoobstante, temos para a primeira idade feudal, cinco ou seis
narrativas de batalhas de reis e príncipes, que, levadas em conta, trariam
grande proveito à história da guerra e da Cavalaria. É possível que nos
tenha chegado o eco das batalhas mais ressoantes, celebradas e controver-
sas. Nesse caso, o dossiê das batálhas da primeira idade feudal comportaria
dois aspectos distintos e significativos. -
Primeiramente, as narrativas e as menções da batalha de Soissons.
Em 15 de junho de 923, os reis rivais, Carlos, o Simples, e Roberto I (irmão
de Eudes, avô de Hugo Capeto), se enfrentam em um combate sangrento:
Roberto é morto, mas seu filho Hugo, o Grande, chegando com reforços,
se mantém mestre do campo de batalha. Um rei é então escolhido em uma
terceira familia, a dos duques de Borgonha. Essa batalha é objeto de
uma pbnitência, ordenada em Reims por um concílio de bispos também
colocado em destaque por Philippe Contamine"". Assim, temos algo da
reprovação religiosa das guerras entre reis çarolíngios. Em uina carea do
monge Rabano Mauro — retomada nos penitenciais renanos dos séculos
' Das quais Fulques de Nerra oferece um exemplo admirável, como o que conta Richer
(1v,91-92).
itaçã e eto, depoisi do regiistro
12! Philippe Contaniine, La Guerre..., p. 430 (com citagao do decr
de uma p4gina eloquente de Rabano Mauro).
A Cavalaria
o
XI — lemos que mesmo em uma guerra ordenada pelos principes,
X e H 1 122
*
há cupidez demais
considerada como jul gamento de Deus,
batalha mortífera,
Além disso, o precedente o ferecido por essa ,
com um resultado ambíguo, poderia bem
exccutada em um domingo
explicar a ausência de qualquer outra batalh
a entre carolíngios e robertia-
torno do ano 1000,
nos, ou implicando os três primeiros capetinglo s. Em
smitem tradições
os monges Richer de Reims e Ademar de Chabannes tran
Inventadas nesse inin-
interessantes sobre o domingo de Soissons (923)'%.
. . 123
198
Vassalos, senhores e santos
2.
126 Robert Latouche (1937), em sua edição de Richer, t. IL, p. 285, nota
199
A Cavalaria
l levar a sério
nas narrativas de batalhas. Consequentemente é indispenséve
Conquereuil ou
tudo o que eles dizem em suas paginas sobre Soissons,
sobre a bata lha nobre
Nouy. E preciso ver af representagées do ano 1000
¢ crista em geral e evitar dec idir entre eles em caso de
contradigio sobre
os fatos. O mais importante não é q ue 20 lê-los atentame
nte, desmasca-
rando suas estratégias narrativas, 0s descubra mos portador
es ou testemu-
nhas dos mesmos valores pré- ou proto- Cavaleiresc os?
A necessidade que
à aju da dos santos,
os grandcs tém de justificar suas guerras, seu recurso
sua maneira de ter coragem e demonstrá-la um pouco mais, tudo isso é
em
constitutivo de todos os pequenos e médios Cavaleiros que entraram
cena ao longo deste capítulo. E ainda, a História dos condes de Anjou, na
confrontação com Raul Glaber a propósito de Nouy, apesar das divergên-
cias, aparece mais conformada. Devemos fazer reservas a essa História (ou
guardá-la para um capítulo sobre o século XII), mas não nos privarmos
dela completamente.
Além do quê, qual narrativa de batalha histórica é verdadeira, ou
seja, exata e completa? Trata-se de momentos fortes demais, exultantes ou
traumáticos, bastante confusos também, cuja narração ulterior comporta
muitos problemas... Os estudos de Xavier Hélary sobre os séculos XIII e
XIV dão outros exemplos de divergência'””. Precisamos reler as reconstru-
ções de Waterloo feitas por Stendhal e Vitor Hugo para nos persuadirmos
do interesse das confissões do romance'?, cuja função, no final das contas,
é desempenhada pelas crônicas do ano 1000.
Sem serem batalhas napoleônicas, as da época feudal não o são
menos organizadas. Elas não se reduzem a uma justaposição de “combates”
como as batalhas dos germanos descritas por Tácito. Em Soissons e em
Conquereuil há um verdadeiro deslocamento da cavalaria em duas linhas.
A som:{ d;s cbhcfcs,I dos pretel;dentes à vitória, não o é menos decisiva. À
morte de Roberto I traz para Soissons o indecifrável julgamento
uma vez que seu filho vence em seguida. A morte do íongde conagíâãí
o resultado em Conquereuil, dando à obstinagio angevina uma re-
compensa talvez inesperada. Em Nouy, enfim, a captura de Teobaldo
de Blois explica provavelmente por que a batalha para um pouco brusca-
200
Vassalos, senhores e santos
R <. S—
129 Elodoardo, Anais, p. 13.
201
A Cavalaria
PA
insígnia”, nota Ademar. As duas narrativas identificam aquele que ele mata
(e com quem morre): o conde Fulberto, mandado por Carlos, o Simpl
es,
segundo Richer, para o comando da primeira linha, avisado por ele do
perigo, segundo Ademar. A batalha se concentra, então, nas duas narrati-
vas, sobre o duelo até a morte, palpitante e heroico.
Para os autores do ano 1000 há códigos nas batalhas. A de Con-
quereuil se desenvolve, segundo Raul Glaber'™, em um lugar combinado
entre os adversários, e onde, além disso, 11 anos antes, uma outra batalha
acontecera, o que tenderia a fazer desse lugar um tipo de sítio costumeiro
para batalhas, como haverá para os torneiros futuros, a zona fronteiriça
entre “regiões”.
Não creio nem um pouco que Richer invente tudo dos discursos
de Conan e de Fulques antes da batalha. Conan ordena aos seus que não
se mexam; ele alega que não cairá no erro de atacar primeiro. Trata-se de
um pretexto para atrair os angevinos para a armadilha dos fossos que ele
mandou cavar e cobrir com vegertação. Nesses momentos, a guerra feudal
se mostra plena de um pacifismo de circunstância ou de fachada. Por seu
lado, Fulques Nerra chama os seus para o ataque: “Eles deviam ter confiança
em suas forças, considerando que Deus não lhes seja desfavorável”"*,
Mesmo Geraldo de Aurillac poderia ter dito isso. Richer organiza sua
narrativa em função de valores e de uma presença do discurso e do fin-
gimento nas guerras de príncipes, que ele nos reconstitui de maneira
certamente autêntica. Não deixemos de lado um fato importante, novo, e
que ele é o primeiro a atestar para a França feudal: o recrutamento de
mercenários, ou pelo menos de Cavaleiros contratados, por Fulques Nerra.
Tsso teria se dado mesmo antes de Conquereuil, como ele diz? E se tivesse
se dado, sobretudo, após a batalha, entre seus próprios adversários inespe-
a partir fíe
radamente privados de seus condados? A empreitada angevinf,
regiões do Loire
992, pôde alistar mais de um Cavaleiro bretão: as cartas de
esses Çava-
atestam pontualmente a presença deles. Ora, como veremos,
da Cavalaria!
leiros a soldo vão ter uma importância capital na história
Em um outro sentido, a bela batalha de Nouy, em Saint-Martin-
Como
le-Beau (21 de agosto de 1044), é também um marco importante.
D
130 Histórias, 11, 3-
131 Richer, IV, 84-
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