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aa

VASSALOS, SENHORES E SANTOS

No fim do século IX produz-se aquilo que podemos chamar dea


murtação feudal: os reis perdem todo o controle efetivo das províncias, seu
palácio entra em decadência e acontecea ascensão dos condes, assim como
de vassalos reais e, por vezes, de bispos, ao nível de senhores do país. O ano
888, ou seus arredores, é apreendido por todos os historiadores-cronistas
castelos
do ano 1000 como o início das dinastias de condes guerreiros, dos
como acabamos
e das discórdias. As guerras de vizinhança se desenvolvem,
de ver, apresentadas como vinganças e represálias. Todos
os senhores têm
desen-
seu senhori: o a título hereditário, e ninguém pode verdadeiramente
es-
raizar sua família, mesmo em caso de falta. Nesse aspecto, é possível
tabelecer um certo paralelo coma tenência camponesa. À
expressão “so-
ciedade feudal” não ¢, portanto, enganadora: ela peca
apenas, como
qualquer rótulo, pelo exc esso de esquematismo;
ela erra ao excluir os laços
idade carolin-
de parentesco, as classes, o papel do cristianismo, a continu
gia, mas permanece uma referência útil.
Georges Duby, que renovou a
riamente. Ele ape-
compreensão dos séculos X-X11, não a rejeitava necessa
nas tomava uma boa distân: cia em relação
a ela a ponto de ratificá-la. Ele a
centaria:
via menos tumultuada do que se afirmou. Por meu lado, eu acres

145
A Cavalaria

aa socie-
e
s ru de , me no s em ru ptura com os valoreses e
menos bárbara, meno ui zo t, por exemplo) já iam
ns au to re s an ti g os (G
dade carolíinnggigios. Algu
X
8 do pa pel estruturantee dos dos laços vassáli-
tra tar
além da anarquia feudal, ao
a gue rra , a po nt o de fa ze re m a Cavalaria (séculos XI-X11)
cos formados pel ]
surgir da sociabilidade feudal.
a reputagac de rudeza e de
Sobapenade historiadores modernos,
violéncia sem frei os da primeira idade feud
al (Eor volta de 880'—1040)
procede com frequéncia do fato que eles a creem diretamente reflcuda‘nas
¢ de guerras civis,
canções de gesta. Eles leem nelas narrativas de vinganga
guerra santa contra
uma agressividade que só poderia ser canalizada pela
XI, da
o Infiel — ¢ nisso consistiria todo o empenho da Igreja no século
é tão antiga, e não pode
paz de Deus à cruzada. Todavia, essa literatura não
órica.
ser tomada como “reflexo” direto de uma realidade hist
Por outro lado, podemos também recorrer as crônicas de monges
e de clérigos. Os ataques normandos e as dificuldades da mutação feudal
podem ter diminuido a frequéncia das obras no final do século IX, mas
a situação se estabiliza em seguida: os Anais do conego de Reims, Flodo-
ardo, comecam em 919 e Santo Odon escreve, nos anos 940, sua Vida
de São Geraldo de Aurillac. O ano 1000, sobretudo, vê florescer, segundo
as palavras de Pierre Riché, um “terceiro renascimento carolingio”, com
a histéria de Richer de Reims, as cronicas do aquitano Ademar de Cha-
bannes e do burgindio Raul Glaber, a primeira histéria dos duques
normandos pelo cônego Dudon de Saint-Quentin, numerosos escritos
de mílagrcs € cartas mais narrativas e circunstanciadas do que antes. Em
toda essa documentação, há muito a respeito de Cavaleiros. Vários desses
autores os têm em suas famílias e o mosteiro não é estranho ao mundo
feudal: ele vive das esmolas de senhores, reza por eles, às vezes os critica
como vizinhos incômodos e “tirânicos” trata-os como bestas selvagens,
no dia seguinte legitima seu poder com fórmulas eloquentes. À docu-
mentação do ar:o 1'000, devidamente solicitada, permite çomprcendºf
bem as'compctcnclas da dinAmica do mundo feudal que ¢ menos uma
anarquia do que uma ordem, ou pelo menos uma “anarquia ordenada”
. ;
essa formula' vmd.a daantropologia africanista me parece se aplicar muit®
bem a essa situagio.
—— . ——
Vassalos, senhor
es e santos

A ordem feudal
Não é uma revolução feudal
É entre 877Z e 888, mas ap q ue se produz
d na Franciai ocidental
:
en as uma mutaçãoà feudal, que nãoã
faz desaparecer
nem a elite nem os valores do
mundo carolíngio, » mas os adapta e os faz
Í : evoluir. Essa elite, muito cedo, escolheu pactuar
com os normandos; no
fim, ela pôdeS integrá-los (91 1).
Ela renuncia a apoiar um império unitário
¢seemancipa inclusive do palácio, a ponto de, por volta de 987, Richer de
| Re.uns descrever apenas um núcleo franco do reino, cercado por povos
| (dinamarqueses, e ao Sul aquitanos, gascões, godos). Mas esses satélites
não negam a realeza franca e vivem ainda (ou vivema partir de então, como
no caso dos dinamarqueses) valores carolíngios e feudais, talvez um pouco
i à sua própria maneira. Seus príncipes prestam homenagem ao rei, preci-
samente com as mãos, segundo Richer de Reims, porque isso sublinha a
“vassalidade” de sua região em relação à Francia.
i A novidade mais marcante, em relação ao ano 800, é, cem anos
que serviam para
mais tarde, a multiplicação de muralhas, de fortificações i
as gfâ&ªá civis dag quais elas são o meio e o alvo. Em 900, elas são essen- í
cialmente muralhas de cidades, mas habitua-se a edificar fortalezas e pali- |
cadas, a elevar burgados ao nivel (estatuto) de castelo (com mercados como
em Flandres). No entanto, essa proliferação não tem nada de anárquica e
não marca uma privatização completa do poder.
Desde a ascensão do rei Eudes, em 888, desenham-se principados
| regionais bastante coesos, cujos mestres são condes. O crescimento de seu ,
poder é obra, inicialmente, dos préprios reis carolingios. Eles reúnem (em
um acúmulo inédito ) vários condados e frequentemente adicionam um Í
R
outro titulo ao de conde (& s vezes marqués ou duque). Isso se produz nas
:
nte expostas aos ataques “pagios’, como |
| regides de marca, particularme
e da ameaça ex-
Flandres e a Gótia, mas também no interior do país, long
ia a scendede ao título ducal da Aqui-
terior: é assim que o conde da Auvérn
tânia (com pr ecedência sobre os condes de Poitiers e
de Toulouse); que o
conde de Autu n torna-se duque da Borgonha e o irmão de
Eudes, Roberto,
às regiões
torna-se marquês d a “Néustria” (0 nome dado nesse momento
entre o Sena e o L oire, de Angers a Paris). Assim,
o marquês Roberto
o título de
prepara para seu filh: o Hugo, o Grande, por falta de realeza,
duque dos francos (935-9 56), que cons
agra um poder social superior ao

' 147
A Cavalaria

dos a Laon e à Reims (898-987). Os nor-


dos últim os reis carolí ngios, retira
ipado s em 911, agregando a eles
mandos se inser em no sistem a de princ
i ai inda, na bacia pa-
d
'
muitos elementos francos. E logo depois emergem de Hugo,;
antes que 2 mor te
risiense, outros agrupamentos: os verm: andos, Blois
ao, n a Néustria, dos condes de
B reca a emancipag
o Grande: , (956) favo
colecionam cidades e
cria duqu es, marq uese s, cond es que
e de Angers. Isso
men os cert os dire itos sobr e esse s locais que disputam
castelos ou pelo
mam, de maneir a durável, i verdadei-
entre si. Ao mesmo tempo, alguns for tals como a
monarqulas,
ras províncias, principados p ensados como

¢ ante
Aquitânia e a própria Normandia, porque, efetivamente, o duque gar
(ou se esforca, ou se gabade garantir) a defesa do conjunto do país, a paz
e a justica interiores, à maneira de um rei.
e sobre essa
Sem dúvida existe muito a ser dito sobre essa defesa
justi¢a. Em primeiro lugar, o adversário é em geral um principado vizinho,
eventualmente em conluio com um senhor em rebelião — tudo isso nada
mais é, portanto, do que a guerra feudal, guerra de castelos, marcada
principalmente, nós o veremos, pelas represálias sobre os camponeses.
Em segundo lugar, a justiça é então apenas um árbitro bastante fraco.
Pressionados pelos monges, cluniacenses ou outros, que reivindicam o
respeito a suas propriedades e privilégios, os príncipes inicialmente os
reconhecem, mas depois os obrigam a reduzir essas propriedades e privi-
légios. Daí a insatisfação desses monges, as preces a Deus e aos santos para
que amaldiçoem os espoliadores e os tiranos, para que os matem por meio
da vingança milagrosa. Quando se trata de querelas entre seus vassalos
armados, os príncipes conduzem transações diversas — quando não os
provocam com duplicidade, eles dividem para reinar, como mostra o me-
morando sugestivo e denso (que chamamos de Conventum) que recapitula
por volta de 1028 as reclamações de um vassalo de Poitiers, Hugo, “o
Quiliarca” de Lusignan, contra o conde de Poitiers, duque da Aquit
énia
(Guilherme V, o Grande, 996-1030)".

1 Existem duas edições recentes desse documento: uma cujo comentrio traz talvez
alguns problemas mas que numera comodamente as linhas e propse L:º arzadu a0
para o frances, a de Georges Beech, Yves Chauvin e Georges IÉonPL
: d" Cmª . tudm.’.;
onven. ;
Droz, 1995; a outra, repleta de comentérios mais convinÉente
Authority. Írí[ eev\fill'la tradugi
inglesa, produzida por Jane Martindale em Status,

148
Vassalos, senhor
es e santos

Dessa f A Lot
orma, à dcsvalº“zªçªº feita pelos historiadores modernos
à guerrade i JusTfç Ú feudal talvez seja excessiva, Ela provém da idealizagio
do Estado carolingio ou moderno ¢ da desatengio a certas informagées
dos documentos que as sugestões da antropologia permitem melhor notar.
Vistos o niimero e, principalmente, a variedade das fontes escritas a partir
dos carolingios, podemos empreender com mais facilidade o exame dos
cédigos e limites da violéncia do que aquele que é possivel para a Germa-
nia e os merovingios. Essa peculiaridade talvez nos permita mesmo esta-
belecer verdadeiras diferencas em relagio às préticas daantiga germanidade,
bem como definir aquelas que estão ligadas a tragos carolingios ou mesmo
que são decorrentes das condigdes do contexto imediato, como os castelos
que não são apenas bases de ataque, mas também locais de refúgio (para
os nobres), de detengio (para os cativos) e de assembleias ou negociagoes.
Como na época merovingia, a vinganga é um sistema ambivalente: é uma
violéncia, mas também sua canalizagio, seu controle social. Nem sempre
é facil mobilizar apoio para a guerra, e ja vimos que desde os anos 890 o
cristianismo é frequentemente invocado a tempo (mas não a contratempo)
em apoio àqueles que fazem a paz. Também como na época merovíngia,
certos cronistas (como Richer de Reims) relatam e criticam “traições”. Por
outro lado, os realizadores dessas “traições” veem razão para se ocuparem
em justificá-las. A novidade então se encontra na insistência sobre a moral
da vassalidade, legado do século IX.
A França e a Aquitânia pós-carolíngias se distinguem da Gália de
Gregório de Tours por três traços notáveis pelo menos. O primeiro é a
frequência da captura de nobres, seja nas batalhas, seja em ciladas em que
se evita matá-los. Dispõem-se, a partir de então, de castelos para prendê-
los, e daí pode-se fazer pressão sobre eles com mais ou menos elegância.
Não é mais o caso de denunciá-los a um rei para a instalação de um processo
por traição?. Assim, esses nobres são mantidos, às vezes, como reféns
de fato e, às vezes, quase como hóspedes de luxo. Além disso — segundo
traço —, nas narrativas dos tempos feudais, nas cenas da vida nos castelos,
mulheres nobres têm um lugar de destaque inédito que talvez cresça pouco
a pouco. Deveremos nos perguntar: o que é um Cavaleiro servidor? O

Richer, IV, 78.


? Salvoaexceção de um cativo direto do rei.

149

A Cavalaria

ideal de bravura estd entio completo, e talvez recoberto, quase eclipsado,


por esse ideal de fidelidade vassálica de ressonância cris-tã, etalvez romana,
que o Manual de Duoda e a teoria das milícias já cont'mham, Assim, sub.
siste após 888 um tipo de império moral dos carolíngios.
Sem dúvida os velhos historiadores esquematizaram demais ,
sociedade feudal, supondo que todas as formas de lealdade dos nobres
estavam fundadas sobre a homenagem de mãos, e aquelas dos camponeses,
sobre a servidão. Na realidade, parece haver dois rituais nos séculos IX ¢
X. O beijo no pé do rei por seus vassalos é evocado por Dudon de Saint-
Quentin e Richer de Reims e depois, por Ermoldo, o Negro. Sobretudo,
adocumentagio não é sempre clara a respeito dos “fiéis” do rei e dos prin-
cipes: todos eles prestaram homenagem? A fidelidade nio implica
uma relagio mútua? Alguns não sio dispensados da homenagem em pro-
veito de uma amizade de aparéncia mais igualitdria? Hugo de Lusignan
afirma formalmente sua fidelidade ao conde de Poitiers e lhe presta ho-
menagem. Nessa situação, ele entende ser tratado com respeito reforgado
por seus senhorios de castelos. Ao mesmo tempo, ele se nega a prestar
outra homenagem — mesmo que dela lhe advenha um quarto de um
castelo — a Bernardo de la Marche, que ele considera como seu igual’.
“Tomar por senhor” um homem de mesmo nivel que ele tem algo de ve-
xatério, pois isso tenderd a classificá-lo um degrau abaixo na hierarquia
das familias nobres. Por outro lado, ser o vassalo imediato do rei ou de um
duque o coloca como senhor de castelos! Para dizer de outra maneira: a
homenagem de mãos oferece a todos aqueles que a prestam, mesmo aos
cavaleiros mediocres, um rito que permite distingui-los da condição servil,
ou seja, aquilo que é necessario para evitar que sejam confundidos com os.
servos ministeriais.
A homenagem de mãos ¢, portanto, um simbolo importante, ¢,
durante a primeira idade feudal (até meados do século XI), ela não parece
suscetivel de ser prestada facilmente a vários senhores a0 mesmo tempo-
Ela cria uma solidariedade de armas, a obrigação do vassalo de ajudar e
aconselhar seu senhor e a do senhor de proteger seu vassalo. Não se pode
repreendé-los por se ajudarem mutuamente e eles sio censurados quandO

_
Canvmtum, 1, 98-100.
Vassalos, senhores
e santos

não o fazer.n. Os historiadores modernos frequentemente tiraram o con-


texto € O Impacto exato desse rito, dessa relação, vendo nele apenas
um acordo privado, um contrato Para o aliciamento de homens de ação,
quando na verdade ele é muito mais um gesto demonstrativo, um acordo
entre guerreiros nobres em suas assembleias. De fato, frequentemente a
homenagem é símbolo e meio para a reconciliação. Ela também permite
partilhar os direitos sobre um bem disputado. Assim, Foulques Nerra,
conde de Anjou, presta homenagem a Guilherme V da Aquitânia por
Saintesí. As transações desse tipo se apoiam sobre a ideia de que o senhor
dá alguma coisa (uma terra, um castelo) e em troca ele tem sobre essa
doação um direito de controle e o serviço do vassalo — ou pelo menos a
paz. O mesmo Foulques Nerra não propõe a seu grande rival Eudes
de Blois, num momento de fraqueza, prestar “homenagem contra todos,
à exceção do rei e de sua parentela próxima”?” A oferta é retirada quando
o rei Hugo Capeto lhe entrega 12 mil homens como reforgo!
Tais senhores e vassalos não sio, portanto, de forma alguma como
o chefe e seus companheiros da Germania antiga. Sua principal preo-
cupagio não ¢ serem os melhores guerreiros, reconhecidos por seu he-
roismo, em suma, adquirir uma gléria Cavaleiresca. Eles se ocupam muito
mais em ter o maximo de terras e de castelos. E a prépria palavra honra
nessa época, empregada positivamente, designa apenas terras (feudo ou
senhorio), ou, se preferirmos, baronias. A moral da honra só se aperfeicoa
negativamente: as cronicas atestam bem, entre os condes, os senhores e os
Cavaleiros do ano 1000, o pavor da desonra, com os riscos corresponden-
tes, a comegar pelo deserdamento. Não é pelo desejo de fazer uma bela
carreira de guerreiro que se presta homenagem, mas pelo desejo de manter
com mais firmeza um castelo, um senhorio, uma parte de um ou de outro.
Deseja-se ser apoiado em uma guerra de vizinhanga ou em um processo,
e buscar-se-4 retirar a palavra empenhada caso ela não se mostre eficaz. Os
feudais são, nesse sentido, um establishment, com muito mais propriedades
que virtudes, mais prudência que ousadia, mais astúcia que coragem, mais
cálculo que elegância — ou, se eles têm elegância, é de uma maneira cal-

* Ademar de Chabannes, III, 41.


5 Richer, IV, 91 (t. IL, p. 297).

151
A Cavalaria
-
culada. Nada ilustra melhor suas preocupagées do que o discurso que faz
oarcebispo Adalberon de Reims aos vassalos de Hugo Capeto em 987 para
persuadi-los a elegé-lo A realeza®. Trata-se verdadeiramente de uma socie-
dade de herdeiros, de proprietdrios herdeiros — e, por isso, frequentemente
astutos e ardilosos, mas também sem desmesura. Será necessrio ver, mais
adiante, se a mutagio Cavaleiresca da segunda idade feudal (apés 1050)
não os levard a uma audécia acrescida.
Diante disso, não podemos nos surpreender com a possibilidade,
ou a frequéncia, de guerras entre um senhor e seu vassalo, ou, mais ainda,
entre vassalos de um mesmo senhor. Pois, obrigados inicialmente a se
ajudarem, a se apoiarem e a se amarem um ao outro, senhor e vassalo não
se sentem sempre satisfeitos. Eles se acusam mutuamente de delitos e de
falta de respeito. É preciso ler, sobre essa questão, o Conventum de Poitiers,
esse longo requisitório em favor de Hugo, o Quiliarca, e contra o conde
| (e duque) Guilherme, no qual se alternam declarações de amor e de fide-
(| lidade e reclamagdes do vassalo. No final, Hugo declara guerra a seu senhor,
| esclarecendo que ele o poupará bem como a sua Cidade (sede de sua honra),
o que desloca as hostilidades para seus súditos, vassalos ou camponeses, e
constitui um verdadeiro acordo “Cavaleiresco”.
É preciso ler também a carta (reconstituída por Richer de Reims)
na qual Eudes I de Blois proclama sua ligação com Hugo Capeto, seu rei
e senhor, após ter tomado Melun — por traição — e evitado o combate:

Não foi ao rei, mas a um outro vassalo [literalmente um “covassalo”, commilito’)


que ele tomou Melun. Ele não tinha feito mal ao rei, pois era pessoalmente
l seu homem tanto quanto aquele de quem ele havia tomado a cidade. O que
i importava à dignidade do rei era que um ou outro a tivesse por intermédio dele!
Ele tinha tido, além disso, motivos legitimos para agir, pois podia
provar que a
i\ cidade tinha outrora pertencido a seus predecessores!®

| Em outras palavras, um senhor não pode escolher


| para qual de
seus vassalos vai um feudo; ele só pode reconhecer o
direito do herdeiro.

Talcomo o reconstitui,
j Pelo menos, Richer de Reims.
Companheiro em milíc;
8 ia ou em Cavalaria,
Richer, IV, 80 (t. 1L, p.
279). S

152
A Cavalaria
.
culada. Nada ilustra melhor suas preocupagdes do que o discurso que faz
oarcebispo Adalberon de Reims aos vassalos de Hugo Capeto em 987 Para
persuadi-los a elegê-lo 4 realeza®. Trata-se verdadeiramente de uma socie.
dade de herdeiros, de proprietários herdeiros — e, por isso, frequentemente
astutos e ardilosos, mas também sem desmesura. Será necessário ver, mais
adiante, se a mutação Cavaleiresca da segunda idade feudal (após 1050)
não os levará a uma audácia acrescida.
Diante disso, não podemos nos surpreender com a possibilidade,
ou a frequência, de guerras entre um senhor e seu vassalo, ou, mais ainda,
entre vassalos de um mesmo senhor. Pois, obrigados inicialmente a se
ajudarem, a se apoiarem e a se amarem um ao outro, senhor e vassalo não
se sentem sempre satisfeitos. Eles se acusam mutuamente de delitos e de
falta de respeito. É preciso ler, sobre essa questão, o Conventum de Poitiers,
esse longo requisitório em favor de Hugo, o Quiliarca, e contra o conde
(e duque) Guilherme, no qual se alternam declarações de amor e de fide-
lidade e reclamações do vassalo. No final, Hugo declara guerra a seu senhor,
esclarecendo que ele o poupará bem como a sua Cidade (sede de sua honra),
o que desloca as hostilidades para seus súditos, vassalos ou camponeses, e
constitui um verdadeiro acordo “Cavaleiresco”.
É preciso ler também a carta (reconstituída por Richer de Reims)
na qual Eudes I de Blois proclama sua ligação com Hugo Capeto, seu rei
e senhor, após ter tomado Melun — por traição — e evitado o combate:

Não foi ao rei, mas a um outro vassalo [literalmente um “covassalo”, commilito”)


que ele tomou Melun. Ele não tinha feito mal ao rei, pois era pessoalmente
seu homem tanto quanto aquele de quem ele havia tomado a cidade. O que
importava à dignidade do rei era que um ou outro a tivesse por intermédio dele!
Ele tinha tido, além disso, motivos legítimos para agir, pois podia provar que à
cidade tinha outrora pertencido a seus predecessores!®

Em outras palavras, um senhor não pode escolher para qual de


seus vassalos vai um feudo; ele só pode reconhecer o direito do herdeiro.

Tal como o reconstitui, pelo menos, Richer de Reims


7 .
Companheiro em milícia ou em Cavalaria.
8
Richer, IV, 80 (t. 11, p. 279).

152
Vassalos, senhores e santos

Senhor e vassalo estão destinados um ao outro por sua herança, e eles


fingem afinidade eletiva, apego de coração.
Na prática, os conflitos entre vassalos são ocasião para que seu
senhor atue como mediador, árbitro, ou para que reverta alianças. Seum
dos rivais crê estar sendo maltratado, ele lança o desafio de “fazer para si
um outro senhor” (sim, tal expressão não é rara), fazendo o antigo senhor
então acusá-lo de felonia (traição)... Seria isso a anarquia feudal? O con-
texto das relações feudo-vassálicas é, na realidade, o de uma sociedade de
vingança na qual podemos entrever aquilo que Michelet chamava, por
meio de uma bela intuição, de uma “ordem íntima e profunda”.
Não devemos exagerar a fraqueza desses senhores porque existem
herdeiros rivais entre as famílias vassálicas. O que os limita, especialmente
diante dos mais importantes de seus vassalos, é a intervenção possível de
um príncipe vizinhoIsso acontece pelo menos durante trés séculos, a par-
tir do ano 900: guerras de vizinhança justificadas pelo auxílio a um vassa-
lo lesado, ou a uma igreja oprimida, cujo ato principal consiste em fazer
cerco a um castelo, pilhar os camponeses, realizar bloqueios por algumas
semanas, tomando o castelo após um tratado ou conciliábulos, muito mais
do que um assalto assassino, evitando geralmente a batalha frontal com
aqueles que forçam o bloqueio. O defensor de um castelo que não recebe
socorro de seu senhor pode capitular com honra e concluir uma paz de
bravos, propícia por vezes a gestos Cavaleirescos entre Cavaleiros.
Não se deve, portanto, dramatizar a proliferação de fortificações
rurais secundárias ao longo da primeira idade feudal: torres, paliçadas,
pequen: muralhas. Isso-ndo-énecessariamente o sinal de uma escalada das
_violéncias. Essa proliferagao ilustra muito mais sua diluição, sua margina-
lizagao. Nos limites das florestas do ano 1000, temos marcas e contramar-
cas de pequenos esquadrdes de cavaleiros, e, durante esse tempo, poucos
grandes castelos, ¢ ainda menos Cidades sitiadas. Hugo de Lusignan,
dissemos, excluiu a cidade de Poitiers de sua guerra com o conde.
As guerras desse tipo não impedem o crescimento rural e a mul-
tiplicação das cidades, conhecidas por meio das cartas e cronicas do ano
1000. Elas apenas mantém a pressão ¢ a supremacia da classe feudal, cons-
tituida de Cavaleiros por estatuto, cujos modos preparam, em certos as-
pectos, a Cavalaria propriamente dita. '

153
A Cavalaria

Lendas de heróis e histórias de traidores

Não faltam ideais à primeira idade feudal: há o ideal do vassal


o
he.roico, cuja valentia faz merecer o senhorio; e há o ideal do senhor
santo.
cujas boas ações e intenções fazem merecer legitimidade plena. É inte_,
ressante nos determos um pouco nas narrativas de traição e de
heroísmo
da França (ou “Francia”) por meio de Richer de Reims, antes de nos diri-
girmos ao Sul, para acompanhar aí a vida edificante de um vassalo real do
ano 900, Geraldo de Aurillac. Nessas duas regiões a guerra feudal é feita
em grande parte de vingança indireta (pilhagem de camponeses), traições
Ou capturas, que são ocasiões para entender a importância dos debates e
das justificações. |
Richer é o filho de um Cavaleiro real e manifestamente preocu-
pado em poupar os poderosos do momento — é preciso observar, por
meio de Jason Glenn, como ele busca acompanhar as mudanças de equi-
líbrio entre Hugo Capeto e Carlos da Lorena’. Ele narra o período entre
888 e 996 — tempo de discórdias — usando ao mesmo tempo traços his-
tóricos e traços lendários; desfila também discursos de sua própria inven-
ção, os quais não deveríamos, no entanto, ver como sendo colocados arti-
ficialmente sobre um mundo feudal no qual se sabe apenas bater, nunca
falar. Suas “invenções” nos fazem conhecer as preocupações de um mundo
nobre e cristão do ano 1000.
Richer toma emprestado a César elementos sobre a Gália que lhe
permitem falar sobre o caráter duplo desses povos guerreiros: ao mesmo
tempo ousados e briguentos, capazes de mortes e de fúria, mas também
cheios de razão e de cloquéncia'. Todos unem sabedoria à audácia.
Segundo Richer, o rei Eudes pode unir francos e aquitanos na
defesa contra os normandos — isso o coloca na contramão da guerra civil
de 889! Eudes discursa lembrando-lhes a bravura ancestral e em seguida
os comanda na batalha de Montpensier (que, historicamente, não ocorreu)
em que infantaria e cavalaria se articulam. John France mostrou a seme-
lhanga com Conquereuil (992), batalha contemporânea de Richer, e até

? Jason Glenn, “The composition...”.


* Richer, 1, 3.

154
e
Vassalos, senhores e santos

que ainda estava por vir (1 06 6) ". Ma s a época dos


mesmo com Hastings ,
| par ece ter con hec ido bat alh as sangren tas como
| ataques normandos não de Mon tpe nsi er pro cedeco m maior
de
esta. Pelo número mor tos , a bat alh a
ez a da im ag in aç ão ép ic a. El a é, de ssa forma, propicia 3 emergénc ia de
cert e retomar
um heréilendério. Provada pela batal ha, a hoste do rei Eudes dev
ate, €, entao , todos os nobr es ferid os se retir a m. Resta um jovem
o comb à servir
med ioc re, mas bra vo dia nte da morte, que s¢ propoe
de ori gem
ta- est and art e, ou sej a, a dir igir as manobras s e CXP OndO aos

como por de a scgunda metade


do
golpes, uma pos ição perigosa que as crônicas des
Ing on mos tra nis so sua coragem. Sob seu estimulo
século IX valorizam!?. O rei lhe
a ¢ gan ha e o “ti ran o” no rmando, Catilo, capturado-
a baralh
e o bati smo e a mort e. Ao sair das fontes batismais,
permite escolher entr
l de Limoges, Ingon o mata
— desres-
em plena basilica de Saint-Martia
era Pentecostes.
peitmdo o local e o tempo santo, pois n,
o, que ele merece a morte. Ingo
Os principese o rei julgam, entã que
enta nto, se justi fica. Ele defe nde a morte preventiva (“Foi o amor
no der a “majes-
tenho por vós que me levo u a esse ato...”) sob o risco de ofen
pela roma-
, cujo conc eito Rich er, pró ximo dos reis e apaixonado
tade real” al. De fato,
, apesar de tudo, muito feud
nidade, emprega num contexto pedir
n, “obs erve i que foi o med o que levou o tirano cativo a
explica Ingo rias
smo. Ass im que foss e libe rtad o, ele teria retribuído as inúmeras injú
bati Nas cap-
0s SEUS, que massacramos".
que recebeu e vingado seriamente são
quais falaremos novamente, 2 pres
turas realizadas entre francos, das rio, as
revanche dos libertos. Ao contrá
social deve limitar o espírito de mente
lendas dos tempos das “pi ra! tarias” normandas contêm frequente
nv er sã o" . Par a Ad em ar de Chabannes, o próprio
narrativas de falsa co cativos a seus anti-
Rolon, após seu bat ismo, ainda sacrificou cem cristãos
mir através de esmolas.
gos ídolos”, ante s de se redi
pei to diss o, a his tór ia nos ensina que, desde os anos 860,
A des das
se convertera m e foram leais. Mas o público das len
certos normandos

— .
dan: s la France féodale...”
" John France, “La guerre a deste livro.
Regino de Prúm,p. 112 (876). Ver também a cap
s

Richer, 1, 11 (t. 1, p- 29)- 5-7.


Quentin, De moribus et gestis..., 1,
Assim, em Dudon de Saint-
[

Crénica, 111, 20

" 155
à

A Cavalaria

do ano 1000 está pronto para acreditar na argumentação de Ingon,


e vibra
com a lembrança de sua coragem e de seus ferimentos. Ele crê em uma
verdadeira brutalização dos costumes francos, porque isso era necessário
nos tempos das “incursões pagas”. E é nesse passado já terminado que
podemos colocar belos e fabulosos golpes de espada, o heroísmo do qual
o ano 1000 na França oferece poucos exemplos.
Portanto, a nobreza chora, nessa fábula de Richer de Reims, ao
pensar que o bravo Ingon corre risco de morte por sacrilégio e lesa-ma-
jestade. Ela intercede, assim, com força, e o rei, sem vergonha de si mesmo,
e sem surpresa para nós, pode então agraciar seu porta-estandarte. “Ele
lhe dá ainda o castelo de Blois, cujo castelão havia sido morto na guerra
contra os piratas. Ingon se casa com a viúva do castelão, como dom real”",
Em outras palavras, por sua bravura e sua devoção, ou seja, sua vassalidade
no sentido duplo do termo”, ele mereceu uma recompensa totalmente
feudal, se mostrou digno da guarda, e praticamente do senhorio, de um
castelo estratégico.
Ao mesmo tempo, o casamento com a viúva mostra a importância
da dama, mesmo ela não tendo sido nomeada. Richer a imagina provavel-
mente como a herdeira originária de Blois. Os dois maridos sucessivos são
como Cavaleiros servidores — atenção à derivação ulterior da expressão
“cavaleiros servidores”, pois os veremos então servindo não à mulher, mas
ao suserano em seu lugar —, guerreiros nobres necessários para manter
um honor, reger um senhorio. As transferências desse tipo não são raras:
Eudes de Saint-Maur conta assim a carreira do conde Buchardo (fim do
século X) na corte do rei Hugo Capeto. Ele obtém o castelo de Corbeil
casando-se com a viúva de seu detentor precedente". O castelo é um pouco
uma casa de senhor e a família feudal é modelada pelas regras cristãs afir-

' Richer, 111, 11.


17
fázs;us em
o
latim
a
(vassal em francés)
A
éL empregado tanto no sentido
.
absoluto (valente,
que tem vassalagem”), quanto em sentido relat
ivo (vassalo de um senhor, “em vassa-
lagem”). Miles na primeira ida
de feudal tem o mesmo dup
i
di ssuadisua
r tr tr, adugioa por “C“Cavalale
sua lo uso, o que tenderia a
eiriro
o”” — ouentaoão ¢é necessdrio toma
to CSMO tem npo ufu/sm ári r por “ “Cavaleiriro
o”
SU ' erm
€ ilei s, mas somente qu
ando emprcgados no
POrtanto estatutário sentido absolu-
¢ moral).
" Fudes: de Saint-
Maur, Vida de bBuchardo, o Veene
sentido duplo do neráv
rá el... ; 1 (bom exemplo de vassalo no
termo, valo
)

156

Vassalos, senhores e santos

olubilidade,
indiss
madas nos tempos carolíngios. O casal é fortalecido pela
assoc ia mais estr eita ment e a dama ao senh or feudal e fav orece tam-
o que sexo
a, ou seja, os filho s do casal, incl uind o aquele s do
bém a linha diret detri-
no est abe lec ime nto dos her deiros da honra do casal, e m
feminino,
dos colater ais, começ ando pelos tios pate rno s. Ter tais direitos numa
mento
sociedade de guerreiros obriga a mulher a se col ocar
em busca de um
“protetor”, ou a deixar que lhe seja dado um. |
que não é
Com a viúva de Blois, Ingon gera um filho (Gerlon),
bem conhec ido do que ele. Gostar famos de saber se
histor icamen te mais
se
os condes de Blois do ano 1000 afir mam ou não ser descendent es des
mas que 20
personagem. A lenda convém a uma família prestigíosalº,
fazem um
mesmo tempo se presta a controvérsias. Os condes de Blois
olência, e
pouco de sombra aos reis, estando, portanto, expostos à malev
Raul Glaber,
uma outra fábula do ano 1000, forjada ou espalhada por
— pior que
descreve-os de fato como oriundos de um vassalo criminoso
Ingon, traidor de seu senhor”.
Por heroísmo ou traição, seria possível ascender socialmente? De
saíram
qualquer maneira, Ingon não é um desses “soldados de fortuna” que
s
do nada e que o século XIX imaginou na época das incursões normanda
(sobre o modelo dos soldados do ano II, da nobreza do Império) dando
|
origem a senhores. Ingon tem parentes “medíocres”, o que não significa
|
“modestos” no sentido atual, mas médios. Para que chegasse às ações que
|
conhecemos foi necessário que pegasse em armas, que sua família tivesse
I
20 menos os 12 mansos do cavaleiro de base carolingio, e sem dúvida um
pouco mais. Ele ¢ de origem não modesta, mas mediamente orgulhosa! |
E por causa disso ele pode temer a reação de uma nobreza mais alta: ele i
deve usar todos os meios ¢ até mesmo um pouco de patho s para se fazer
pouco depois do ||
para que ela peça ao rei seu perdã o. Um
aceitar por ela e
rei Eudes (morto em 898), surge um personagem muito mais histórico,
Haganão, ele também vindo de parentes “mediocres”. Surgindo junto
com outros homens também “menores” que os “príncipes”, ele ganha o |

neste volume, p-357.


” Comparar com Enjeuger, para Anjou: ver,
® Raul Glaber, Histérias, 111, 39. Mais tarde vem o descrédito do conde Estêva, devi ||
volume, p. 354. o devido
a sua fuga de Antioquia em 1098: ver, neste

157

A Cavalaria

e x . ”,
m «
os últimos à revolta, 5 ) juntament: € CO
favV or do e isso l eva
rei iei
A 21 d "
irmão do rei Eudes*'.
As Histórias de Richer de Reims descrevem várias vezeg esse tpe
re. Richer lhe dg, por
de tensio, ) ou de dinâmica, na hierarquia nob . ade q res Vezeg o
: da socied
ta bem a amb iva lén cia
uma aparência feudal. Ele no de £ . Speito
z er e
das famílias em ascensão, sendo capaz tanto de fazer elogios aos robertia.
nos — à energia e à sabedoria que os levaram à realeza — quanto de acusa,
o rival de Hugo Capeto, Carlos da Lorena, de, íl“dcspôlto de filho de rei,
ter-se casado com uma simples filha de conde, “da ordem dos vassalos”
(que ele chama também de “equestre”, à mºdíl romana). O ideal Parece ser,
de fato, que 0 homem suba em mérito e se veja elevado por um Casamento
um pouco superior a seu nível: conquista-se uma mulher elevando-se em
direção a ela, enquanto um casamento com alguém de nível inferior con-
sagraria uma nobreza degenerada por um deficit de “vassalagem” (no
sentido de valentia, militia).
Richer de Reims atesta também que, apesar de sua fraqueza, o
tltimos carolingios tém uma espécie de corte. Pelo menos o rei Luís [v
tem um séquito de jovens nobres desejosos de se ilustrarem através de atos
de astuciosa coragem na guerra civil, tal como Raul, pai de Richer. Nela
acontecem cerimonias cristas, mas também festivas e diplomiticas, nas
quais se forma aquilo que as cartas chamam de “milicia do reino”, Foi em
uma ocasido como essas, segundo Richer, que, por pura extravagincia,
ódios mortais teriam surgido contra o filho do conde Rolon, o normando
Guilherme Longa Espada, dando origem à lenda do vassalo de grande
coragao que mereceu ser contada juntamente com aquela de Ingon e Catilo.
Não são apenas os normandos, convertidos recentemente, que traem sua
fé matando. Um marqués de Flandres, de ascendéncia carolingia
por seu
av6, manda matar Guilherme durante um encontro de paz
em Picquigny,
em dezembro de 942. Historicamente esse é um risco da guerra de vizi-
nhanga. Masuma aura de lenda se forma em torno desse
crime retumbante,
e Richer de Reims pode apresentar Guilherme como um
fiel totalmente
devotado a Luis IV, com um coragio puro, cheio de ardor de neófito por

|
N :iade, — s:.
A Nd: |
9v3e marquê é seu filho Hugo, o Grande, que será promovido a duque depois

158
Vassalos, senhores
e santos

22 i
ele”. Guilherme Longa Espada ¢ um modclo, também, para
ideal de devoção até o sacrifício, Pois o afirmar um
tempo em que vive Richer — com
tantos vassalos pouco apressados
em m orrer por seu senhor, pusilânimes,
e mesmo cúpidos e traidores —
Precisa disso.
Em 978, temos belos discursos sobre esse ideal vassálico. Mas os
atos o seguem? É nesse momento que se dá o ataque relâmpago do rei
Lotário, descendente de Carlos Magno, sobre Aix-la-Chapelle. Agrada-lhe
atacar de surpresa a retaguarda do imperador Oto II, então bem mais
poderoso que ele. Tempo suficiente, porém, para que ele, Oto, virasse para
o Leste a águia de bronze que “os germanos haviam virado para o Oeste
para significar que sua cavalaria poderia vencer os gauleses quando qui-
sesse™. Oto II reúne seus fidis e lhes faz — segundo Richer — um vibrante
apelo ao auxílio tal como um senhor ofendido pode e deve fazer a seus
bons vassalos, sob a forma de um pedido de conselho: “Mostrastes até aqui,
ilustres senhores, grande energia (vertu) e obtivestes renome de honra e
glória, avisados pelo conselho e invictos no combate. Hoje é necessária a
mesma energia, frente ao temor de que vosso renome se transforme em
vergonha”. A afronta feita por Lotário deve ser “lavada não apenas com-
batendo, mas inclusive morrendo”?. Esse discurso lembra a Germânia de
Tácito, mas ele não caracteriza a “Germânia” pós-carolíngia em contraste
com a “Gália” de Lotário e Hugo Capeto. Tanto a “Germânia” quanto a
“Gália” de então cultivam os mesmos valores heroicos que reencontraremos
nas canções de gesta.Já conhecemos a arte de não conformar todas as ações
a esses valores heroicos...
Que efeitos esse discurso produz? Nada além de um contra-ataque.
Primeiro, o saque ao palácio de Compiêgne. Em seguida, a Pilhagem dos
camponeses das regiões do Sena, que evidentemente não têm nada a ver
com o virar da águia em Aix. É ao duque Hugo Capeto que o rei Lotário
se fia. O duque levanta uma hoste, bastante magra, mas suficiente para
avançar em direção à hoste da Germânia. Mas porque ainda quase se
trata
de uma guerra civil entre as duas metades separadas da França carolíngia,

* Richer,1I, 2-32. Ver também Dudon de Saint-Quentin, III, 52-64, que


faz de Guilher-
me de fato um modelo de valentia e de justiça.
2 Richer, 1II,71.
* Idem, 111, 73.

159
p N
A Cavalaria

a batalha é evitada. Otto II se retira sem ser perseguido. Ele se reconcilia


com Lotário, depois com Hugo Capeto, rivais certos pela supremacia no
Oeste (na “Gália” céltica). Temos, portanto, palavras heroicas ao lado de
condutas bastante prudentes que Richer atribui ao espírito de concórdia
(slogan carolíngio). Dudon de Saint-Quentin, na mesma época, atribui
esse tipo de procedimento a uma verdadeira prática de beatitudes evangé-
licas pelo duque dos normandos, Ricardo®.
De qualquer forma, em 978, Richer compensa a mediocridade
do real com uma bela invenção — que estarfamos errados em nio levar a
sério. Ele imagina que um “germano confiante em seu valor e sua forga”
desafia os “gauleses” para um combate singular. Imediatamente o duque
€ os principes pedem um voluntário entre os “vassalos” (milites). Muitos
se apresentam, e um deles ¢ escolhido para lutar com a lança (usada em
arremesso ou golpe). Aparentemente a pé, ele trespassa o oponente no
momento em que tirava sua espada para encerrar o combate. “O gaulés,
vitorioso, toma as armas do inimigo e as oferece ao duque. Esse homem
valente pede e obtém sua recompensa®. Gostariamos muito de saber
qual foi. Não ¢ de qualquer forma insignificante que, assim, nas proximi-
dades do século XI (Richer escreve por volta de 995), as histérias de
combate singular fagam grande sucesso sem que se trate de um julgamento
de Deus, mas de proeza®. Isso anuncia a mutagio Cavaleiresca. Vemos,
aqui, empolgar-se ¢ agir pela gléria um tipo de vassalo muito diferente
daquele da sociedade de senhores prudentes, conciliadores e benevolen-
tes que, em 987, movidos por um reflexo fundamentalmente conservador,
serao responsaveis pela eleição real de Hugo Capeto. Estes o fazem a fim
de evitar toda aventura atrás do aventureiro Carlos da Lorena, tal como
lhes aconselha o arcebispo Adalberon de Reims?. Neste caso, o suposto
campeão ¢ da mesma linha que o porta-estandarte Ingon. Ele não pode-
ria dessa forma encarnar, como Ingon, o destino sonhado de jovens
membros da “cavalaria real”, no tempo de Luis IV (936-954) e de sua viúva,

2 Dudon de Saint-Quentin, IV, 127.


% Richer, 1,76 (t. 11, p. 95). Esse prémio parece anunciar a mistura entre honra e provei-
to de Cavaleiros assoldadados: ver, neste volume, p. 285.
2 Ver Ademar de Chabannes, sobre Guilherme Talhaferro: Crénica, 111, 28.
2 Richer, IV, 11.

160
Vassalos, senhores e santos

arainha Gerberga, 2 qual Richer faz várias vezes alusão porque seu próprio
Pai, o chamado Raul, pertencia a ela. Esse Raul legou a seu filho verda-
deiras lembranças, e também sem dúvida lendas a reelaborar.
Devido a isso, essa cavalaria Ppareceria quase uma Companheíra-
gem da Germânia antiga, vibrante em emulação de bravura e de recom-
pensa, glória e riqueza juntas. O chefe é um rei sagrado que não se arrisca
na linha de frente. Richer de Reims atribui a Luís IV de Além-mar, na
praia de Wissant, uma demonstração de sua aptidão equestre, por ocasião
de sua chegada à Gália (936)! Certamente, não se trata de colocá-lo
à
prova, uma vez que ele recebe imediatamente a lealdade dos grandes
à frente dos quais está Hugo, o Grande. Logo, segundo Richer, “o duque
lhe leva um cavalo ornado de insígnias reais” e se faz seu escudeiro, que-
rendo colocá-lo na sela — a um cavaleiro encouraçado, de fato, é neces-
sário ajuda.

No entanto, o cavalo se agita, refuga daqui e dali. Luís, com um pulo


ágil, salta
bruscamente, sem estribos, sobre o cavalo que relincha. Esse gesto agrada
a
todos; aplaudem-no. Então, o duque porta as armas do rei diante dele,
como
faz um escudeiro (armiger). Sob sua ordem, ele as entrega aos magnatas
das
Gálias. Eles lhe prestam servigo de vassalos (militantibus) e o conduzem a Laon
sob escolta atenta?,

É uma bela sequéncia, imaginada no ano 1000, que também anun-


cia a grande inflexio Cavaleiresca do século XI. Apesar da falta de entrega
de espada — que talvez valorizasse demais o adubamento —, ela tem
certos pontos comuns com um adubamento. Nés temos aqui um jovem
nobre que, em consideragio a seu nascimento, ¢ admitido e honrado,
em armas, na sociedade dos guerreiros de exceléncia. O calgamento dos
estribos ¢ um elemento de adubamentos ulteriores, assim como a volta na
pista a cavalo. Não há aí uma singular mistura de rito pré-Cavaleiresco,
vasslico e também real?
Mas diante dos esplendores Cavaleirescos de depois de 1050, como
o século X é apagado, mesquinho, desesperadamente cheio
de um sórdido

2 Idem,II, 4.
3º Melhor é que Hugo, o Grande, desempenhe o papel de escudeiro.

161
_—7——

A Cavalaria

materialismo feudal! Mesmo quando a pena ágil de Richer de Reims o


guarnece com fábulas sugestivas ou o apimenta com belos discursos, sa-
borosos à força de sofismas. Pois, enfim (e a começar pelo duque e os
grandes no tempo de Luís IV), tudo é apenas ardil e traição.
Isso se dá ainda quando estão em questão os ardis de Raul, pai de
Richer, tal como deles se vangloriou ao filho. Ele certamente deu prova
de iniciativa e sangue-frio, como Cavaleiro chefe de comando, forçador de
portas de castelos feudais. Uma vez, em 948, informado por espiões, ele
se disfarça de palafreneiro e, acompanhado de seus homens, penetra em
Laon, tomando para Luís IV a cidade (mas não sua torre, quase inexpug-
nável)?!. Uma outra vez, em 958, ele toma Mons para a rainha Gerberga.
Novamente bem informado, ele aproveita trabalhos de construção em
curso nesse castelo para aí se introduzir à noite com os seus e fazer o rapto,
audacioso, da mulher e dos filhos do conde Régnier, ou seja, de reféns que
renderiam em troca o lugar®.
Eis de que se honra Raul. Isso não lhe dá um perfil Cavaleiresco
clássico, mas para seu tempo trata-se ainda de uma guerra leal. Ele poupa
sangue cristão (franco), do qual, somando tudo, a época não é muito
pródiga. Poucos castelos cedem de farto a um verdadeiro assalto. Em geral,
se eles não cedem aos ardis da guerra, capitulam com honra — ou defen-
dendo-se da vergonha —, ou são entregues por traição.
Artoldo de Reims, arcebispo chefe de guerra, é “um homem bom,
que não queria mal 4 vida de ninguém”. Ele faz tomar de assalto o castelo
de Chausot e capturar aqueles que o haviam deixado — mas lhes poupa a
vida®. Como em Mouzon (948), é uma tomada de assalto, mas a resistên-
cia não se fez até o fim — o que faz prisioneiros, e não mortos — sob a
desculpa do número de assaltantes. Montaigu capitula em 948 por não ter
uma boa muralha*. Tem-se a impressão de que, nessas guerras civis, as
pessoas (vassalos) são dispensadas de heroísmo, lutando por seu senhor
salvo quando isso representa ameaça para suas vidas.

3 Richer, II, 88-90.


* TIdem,I111,9-10 (t.II, pp. 17-9).
? Idem, 11, 21.
* Idem, I1, 83-4.

162
Vassalos, senhores e santos

Há mesmo quem se dispense de lealdade. Seu comportamento


não deixa de lembrar as guerras civis dos tempos merovíngios: o interesse
€ a cupidez determinam seus gestos. O que temos de novo aqui é a preo-
cupação em justificar isso!
Eis aqui, por exemplo, como Richer imagina a “traição” (segundo
o diagnóstico breve de Flodoardo) por meio da qual Montreuil-sur-Mer
é entregue, em 939, ao conde de Flandres Arnoldo. O conde envia homens
vestidos sordidamente (dissimulando seu estatuto de Cavaleiros), não para
uma exibição de força, mas para subornar Roberto, guardião por conta do
senhor Heloíno. Eles lhe dão duas opções, jogando com dois anéis; ou
ele terd o de ouro (quer dizer, bens doados por Flandres), ou ele teré o de
ferro (uma prisio), visto que os normandos estão todos prontos para tomar
o lugar. Ora, “empurrado pela cupidez, o homem se pergunta se traird. Ele
ainda estd sob o golpe da surpresa, hesita. Enfim, diz a si mesmo que poderá
se desculpar da vergonha da traição, argumentando saber que todas as
pessoas do castelo estavam a ponto de serem [presas ¢ exiladas] ou mor-
tas”®. Eis aqui aparentemente um “mediocre” que pensa se elevar pela
traição, jurando cometé-la. Ele entrega de fato o lugar, além do mais, com
a mulher e os filhos de Heloino. Vemos aqui a evolução sucessiva da guerra,
passando quase pelo homicidio, até as negociações.
Mas é preciso reconhecer algo aos traidores de Richer: eles tam-
bém se arriscam à morte. O casteldo de Melun, que entregou o lugar ao
conde de Blois*, e sua mulher não foram poupados da morte. Primeira-
mente, o enviado de Eudes tinha prometido enriquecé-lo, e lhe sugeriu
uma justificativa paraa traição (o direito hereditério de Eudes). O episédio
é tão sinistro quanto sugestivo.
Observamos ardil, sutileza e, às vezes, impostura, nessa primeira
idade feudal e castela. Isso, no entanto, não a coloca em desordem. Isso
não exclui dela nem a coragem, nem o comedimento na guerra. Isso não
santidade.
impede, inclusive, certos senhores de flertar com a

2—
3 Idem,II, 11. , ,
o Venerdvel..., 7.
36 Idem, IV, 75-8; ver também Eudes de Saint-Maur, Vida de Bouchard,

163

——cA
socqecs ——=. RR
A Cavalaria

Geraldo de Aurillac e os
defensores de igrejas

São Geraldo de Aurillac foi vassalo, senhor e santo. Foi vassalo


real, na Aquitânia, no tempo da mutação feudal (por volta de 5555,-909)'
Mestre de numerosos domínios, senhor do castelo de Aurillac, não é certo
que tenha dado a si próprio o título de conde que por vezes lh.º é atribuído.
Ele pertence, em todo caso, ao segundo círculo da aristocracia do mundo
carolíngio. Nascido de pais nobres, ele dedicou à sua herança e.:ssa ener-
gia guerreira e justiceira que os clérigos em seus escritos qualificam de
bom grado de “milícia do século”, da qual mencionam o boldrié ou a
espada — sem que isso implique ritos de adubamento. Vimos que se fala
do boldrié e da espada, sobretudo, quando um poderoso renuncia a eles,
bem como à cabeleira, para entrar na vida monástica. Mas Geraldo de
Aurillac nunca se despojou deles, embora pareça que não lhe tenha fal-
tado vontade. Não sendo casado, não tendo, portanto, filho nem
filha,
mas somente um sobrinho por sucessor, ele finalmente doou à
Igreja uma
parte de seu senhorio, para fundar um mosteiro que foi efetivamente
edificado após sua morte e ligado a Cluny.
Geraldo de Aurillac foi de fato próximo do duque da Aquitânia
Guilherme I, o Pio, conde da Auvérnia, fundador de Cluny
em 909. Ao
menos a Vida de São Geraldo, escrita por Santo Odon,
segundo abade de
Cluny (por volta de 940), sustenta que suas relações foram
boas, ainda
que Geraldo se recusasse sucessivamente a prestar
homenagem ao duque
€ a desposar sua irmã””. No primeiro caso, ele s
apoiava sobre sua fideli-
dade para com o rei. Isso já o colocava no ponto
mais alto da elite ou
quase, e não lhe custava nenhum sacrifício.
Odon não conta que Geraldo
tenha conhecido o martírio por amor de
seu senhor, como o normando
Guilherme Longa Espada ou mais tarde o Rolando
da canção de gesta.
Al não está a causa de sua santidade. Quanto
à sua recusa ao casamento,
ele se funda sobre seu amor a Deus €
castidade — outro bom pretexto
Pparaevitar fazer afronta a alguém.
Guilherme, o Pio, parece compreender
ou aceitar tudo isso, uma vez que
nio insiste. É verdade que Geraldo
di-
_
¥ Odon de Cluny, 1, 32.

164
Vassalos, senhor
es e santos

oalmente das hostes do


a € a estreiteza de sua lealdade
seu princípio. que estão em questão, não

No ano 1000, vários


senhores da Aquitânia sabem que
SEUS, a quem muitos são ap um dos
arentados, tornou-se santo, objeto
como mártir de veneração
es, bispos ou abades “con fesso
res”, sem renunciar formalmente
às suas armas. Contam-s
e os mil agres que ele fez enquanto vivo, sobret
de curas, e aqueles que udo
r ealizou no presente, apds sua
mente “vinganças” em def morte, frequente-
esa de direitos se nhoriais que
Aurillac herdaram dele. Lo os monges de
go, a “Cavalaria” — quer dizer,
guerreiro nobre, a vida e os o estatuto de
atos de senhor d e castelo e de feudos
compativel com a santidade cri — seria
stã. E Geraldo não estd longe de fazer éscola,
uma vez que Ademar de Chaban
nes evoca u m senhor de Malemort, Gal-
berto, que, libertado da prisão,
encontroua morte em peregrinacio, tendo
realizado, também, milagres® - A Aqui
tania aparentemente se permite
af
uma dessas ousadias, um pouco risti
cas, na designacio ou no culto de
santos, das quais conhecemos outros exemplos,
como em Conques.
Mas como são contadas, então, as vidas de
Galberto de Malemort
e de Geraldo de Aurillac? Gostarfamos muit
o de saber. A difusio nos
mosteiros e a divulgação aos laicos da Vida
de São Geraldo de Odon de
Cluny permanecem mal conhecidas. Parece que
foram frequentemente
truncadas. Como as Histórias de Richer, a Vida
de São Geraldo foi pouco
lida na Idade Média na versio integral de que disp
omos. No entanto, isso
invalidaria seu interesse quando se trata de document
ar relagoes sociais e
ideologias, considerando que Santo Odon afirma
ter recebido boas infor-
mações de virios membros, clérigos e nobres, do séquito
de Geraldo?®
Os historiadores atuais tomam frequentemente
esse texto como
um esforgo exagerado de Santo Odon paraedulcorar as
guerras feudais de
Geraldo de Aurillac, para promover a ideia de guerra justa, ou
mesmo para
“cristianizar a Cavalaria”, Eles citam de bom grado a pagina na
qual Geraldo,
segundo seu hagiégrafo, ordena a seus vassalos que marchem
contra o

% Ademar de Chabannes, Crénica, 111, 48, .


? Ver meus comentérios em Chevaliers et miracles..., pp. 48-67.

165
A Cavalaria

adversário “virando para trás a ponta de suas espadas”. Deus estava com ele
e com seus homens e aqueles que estão diante deles o sabem. Dessa forma,
Geraldo obtém a vitória sem mancha e sem risco: “Uma coisa certa, é que
Clcjafnais causou um fCrínlcntO a unn'l qucf un fOSSC, tampouco rcccbeu

um de alguém”*º, Mesmo que consideremos sua atuação na Auvérnia, que


deve à geografia o privilégio de ter sido poupada pelas incursões norman-
das, Geraldo de Aurillac parece um pouco deslocado no “século de ferro”,
a menos que nos demos conta de que a moderação é um caráter funda-
mental da guerra feudal, e que talvez sua exceção não seja a única. Santo
Odon não parece mentir: ele escolhe, embeleza e generaliza certos traços
de seu personagem.
A leitura histórica da Vida de São Geraldo é prejudicada por um
mal-entendido. O autor de fato retoma e utiliza a teoria carolíngia das
duas milicias (quer dizer, das duas elites), para fazer dois livros. No pri-
meiro, ele mostra que Geraldo, na “milicia do século’, não se manchou,
mas tornou-se até mesmo util por sua justiga. No segundo, ele sustenta
que, na realidade, Geraldo era um monge de coragio, que permaneceu no
século por falta de companheiros para a vida mondstica ou sob demanda
expressa de um bispo, para ajudar a Igreja e seus senhorios. Portanto, ele
brilhava nas duas milicias. Em consequéncia disso, historiadores veem nele
mais a “Cavalaria” do que o senhorio feudal, e pensam que ele é apresentado
por Santo Odon como exemplo para a reforma dos costumes. Nio seria
muito mais um tipo de caução — entre outras — dada aos feudais pru-
dentemente conservadores de seus patrimonios?
A guerra feudal ordindria era, no século X, bastante codificada
e comedida. Santo Odon dispôs de material que corroborava essas ca-
racteristicas da guerra antes de produzir na Vida, bem como em outros
textos, uma verdadeira introdugio às teorias dos promotores da paz de
Deus do ano 1000.
Acompanhemos, por meio de Odon, Geraldo de Aurillac. Nas-
cido na nobreza, Geraldo deve ter aprendido a0 mesmo tempo as armas
e a.s letras — tal como os duques normandos descritos
por Dudon de
Saint-Quentin e os reis e condes famosos do século IX,
de Carlos Magno

-
“ Odon de Cluny, 1, 8.

166
tn 2cocea UOOO”O
Vassalos, senhores e santos

s, confessa inge-
a Everardo do Frioul. “É-lhe imposto o estudo das letra:
30 eclesiástica,
h nuamente Odon de Cluny, para que esteja apto a uma fung
a im pressão que
caso não permaneça no século.” Esse comentário reforça
o refugo da Cavala-
se tem de que a Igreja recruta, em parte pelo menos,
nobr e tornam-se
ria do século; os coxos e os neuróticos de nascimento
nada de um
“Cavaleiros” postiços na “outra milícia”... Geraldo não tem
instruído nos exercícios
inválido; “Uma vez lido o saltério, passou a ser
do século, como é uso das criangas nobres: langar cães de caga, manejar
arco e flecha, soltar falcões e gavides com a o impulso adequado”“- Mas
que nés qualifica-
a crianga se cansa e se cobre de bolhas — essa reação
de Deus. Ela leva
riamos de psicossomdtica ¢ relacionada à vontade
na pubcrdade. “Ele
Geraldo às letras antes que os sintomas desapareçam
pa de
foi, então, bastante lépido para saltar sem esforço por cima da garu
volta-se a
um cavalo; e ao vê-lo assim, crescido em força e em agilidade,
ainda
prepará-lo para a ‘milicia’ e para as armas.” De qualquer forma, ele
de
prefere as letras e diz com a Bíblia, como se tivesse lido o manual
lendário
Duoda: “Mais vale sabedoria que força”. Efetivamente ele e o
Ingon não se assemelham!?
Tornado senhor após seu pai, Geraldo de Aurillac vive ainda assim
as de
todos os cuidados decorrentes dessa honra. Sua Vida evoca as guerr
seus
vizinhança, nas quais é necessário responder às pilhagens contra
los
camponeses através de cercos (rapidamente interrompidos) de caste
adversários. Quer-se crer, uma vez que Santo Odon nos fala isso, que ele
outros.
mesmo não pratica a vingança indireta pilhando os camponeses de
one-
Mas pode-se pensar que ele não proteja suficientemente os seus camp
ses, pois perdoa rapidamente seu opressor. Arnal, senhor do castelo de
se jogava
Saint-Cernin, frequentemente, “tal como um lobo da noite,
sobre os domínios de Geraldo; esse, ao contrário, homem de paz se ende-
dom de
reçando a alguém que odiava a paz, dava-lhe presentes, fazia-lhe
armas de guerra para tentar amansar através de bons procedimentos esse
qual Richer
caráter selvagem”. Em seguida, “um sucesso inesperado” (do
teria feito sem dúvida alguma bela narrativa de traição ou de ardil ousado)
a mínima
“lhe permite extirpar essa besta feroz de seu alojamento sem

4 Idem, 1, 4.
42 Ver, neste volume, pp. 155-7.

167
em
-
A Cavalaria

perda de vida humana”. Tendo-o cativo, Geraldo não faz a Arnal nenhuma
reprimenda humilhante, ele apenas o exorta sobre aquilo que seria neces-
sário para que adotasse por si mesmo uma atitude humilde, o que lhe
traria mérito muito mais do que vergonha. São Geraldo lhe dá a liberdade
graciosamente, sem lhe pedir refém, nem juramento, nem resgate: “Não
quero levar de ti o que quer que seja de teus bens, como compensação às
pilhagens às quais você se entregou”. Essa anedota edificante®® prova a
caridade de um santo, ou a consciéncia de classe de um Cavaleiro como os
outros? E o lobo ¢ assim completa e definitivamente domado? O rei e os
bispos, na Francia que Flodoardo apresenta nos Anais, perdoam da mesma
maneira aos senhores “salteadores” ou excomungados®.
Em sua justica, Geraldo de Aurillac toma o cuidado também
de dar a cada um segundo seu direito, de defender os vassalos contra seu
senhor e, portanto, de manter a pequena Cavalaria nobre; quanto aos
pobres, ele quer igualmente punir seus erros. Por outro lado, ele não recusa
o auxilio ao duque da Aquitania, participando de uma hoste que pilha a
provincia adversaria. Ele se contenta em não pilhar®. Isso mostra que
Geraldo, no minimo, não desencoraja radicalmente a vingança indireta.
Enfim, Santo Odon conta com detalhes como ele escapou, com o auxilio
de Deus, de golpes audaciosos, operagdes de encomenda contra sua pessoa
e seu castelo, à maneira do pai de Richer®. Em outros termos, é um senhor
que tem sorte. Seu sucesso é interpretado pela Igreja como resultado dos
dons e do respeito que Geraldo tem por ela (calando-se sobre seus fracas-
sos). Sobre este tiltimo ponto, podemos considerar que a “Cavalaria” não
precisa ser “cristianizada”: ela já o ¢, como nos tempos merovingios... Em
suma, Geraldo de Aurillac se passava por exatamente aquilo que Ademar
de Chabannes diz mais tarde de Galberto de Malemort, um “eclesiástico”,
no sentido de alguém favoravel às igrejas e de bom comportamento tendo
em conta as expectativas da sociedade feudal.

43 Odon de Cluny, I, 40.


Flodoardo, Anais, pp. 25, 68-9, 136, 156 (anos 924, 938, 953, 965).
ES

4 Odon de Cluny, I, 33.


Idem, 1, 35-6.
&

168
Vassalos, senhores e santos

Essa sociedade permite em muitos casos?’ fugir para salvar a vida


e prefere muito mais discutir a lutar. Deve-se morrer para salva
I seu se-

se mobilizar e
nhor, mas não por um castelo. Entretanto, é necessario
desculpa
fazer represélias para defender bens e reputação. Odon de Cluny
do senti-
vérias vezes São Geraldo de imputagdes de covardia, em nome
a
mento cristão. Devemos crer que os contemporineos lhe reprovaram
falta de coragem?
Nio incomoda a Santo Odon colocar em evidéncia em São
Geraldo um sentido de manobra na interação social. Ele não ¢ evidente-
mente um desses traidores de que Richer fala. Mas a Vida de São Geraldo
conta um ou dois ardis ou duplicidades que acharfamos um pouco tortuo-
sos demais se nao fossem conduzidos por uma boa causa. A desculpa por
não prestar homenagem ao duque denota já um certo sentido de comuni-
cação politica: Geraldo de Aurillac faz parecer lealdade uma recusa talvez
ditada por orgulho, que arriscava desencadear guerras. Há também as
fugas de seus cativos, que cle mesmo organiza, sua arte de dar sinais ambi-
guos e sua consciéncia da importancia dos rearranjos®. Não se é senhor
(nem vassalo, nem santo) com um coragio simples.
Santo Odon, seu bidgrafo, também é habil. Escreve em defesa de
um santo — e para tornd-lo ilustre — cujo cardter laico e guerreiro faz
tremer um pouco os claustros — onde se deseja que todo santo seja um
monge —, o que é um belo desafio intelectual. Ele o supera essencialmente
tendo em vista a necessidade de que os Cavaleiros defendam o senhorio
da Igreja. Legada antecipadamente a Deus para o estabelecimento de um
mosteiro, a “terra” de Geraldo já é santa: é por ela que ele guerreia (pru-
dentemente) muito mais do que por sua honra de cavaleiro nobre. A defesa
armada das terras da Igreja se encontra assim justificada. Tal é o alvo dessa
hagiografia redigida em parte para o uso da milicia dos claustros... Esta
carrega uma mensagem ambivalente: essa defesa é justa em seu principio,
mas ela deve evitar ser dura demais.

4 Isso se confirma aqui (idem, 1, 36): os vassalos do conde de Poitiers tomam um castelo
de Geraldo, que os cerca; uma vez que seu senhor fracassa em socorré-los, capitulam
muito naturalmente, com sua vida salva como se deve.
% Odon de Cluny, I, 20.

169
A Cavalaria

P € tal, q ue advers arios lhe


O prestigio de Ger ald o enquan to Vivo
to em sua s ter ras por cau sa da reprovagio de homens
devolvem o butim fei -
)9 Interp a-se rando
retprepa mo pro
já co-se para
de bem (honest i viri, “home ns de honr: e
videncial o acidente do visconde de Turenne, que, |
sua terra, se fere com a propria P
ópria espada®’.50 Tornado
combatê-lo ou devastar
icári se venera
ven em Aur 1llac
i — , ' Ger: aldo
um santo morto cujaj estátua-rehcarlo
i
vela sua terra com um cuidado ciument o, como suste nta desde antes de
s
972 uma coletinea de seus milagres. Temos como cxcmp'lo Is?.rnÍ Tátil,
senhor “tirano” no Albigeois. De retorno de um combate mfílz,íle quer
ser recebido, albergado e alimentado à custa dos monges de Aurillac por
meio de sua dependência de Varen. Como o dispensam, ele.se dc.rrama em
ameaças antes de se retirar com seus vassalos que ele prec1sa.ahmlen-ta,r e
recompensar. Em outras palavras, esse “tirano furioso” não insiste; é difícil
entender como ele poderia se limitar a ameaças, se quisesse poupar sua
imagem diante dos seus. “Em sua retirada, ele encontra um rebanho de
porcos, percebe que são dos monges e faz com que sejam reunidos e con-
duzidos em direção a sua casa, para fazer deles uma refeição e presentes a
seus vassalos frustrados em sua expectativa de conquista sobre seus inimi-
gos”*!. É um mérito dessa narrativa e de outras nos deixar entrever as razões
do adversário e mesmo sua moderação, apesar da polêmica lançada contra
ele. O narrador ousa de fato falar de “crueldade enraivecida e
sem freios
| em relação aos monges”. É verdade que o porqueiro deles, que
) tenta resis-
|| tir, é extremamente maltratado: ele é jogado por terra
e um olho lhe ¢
arrancado. Ele conserva o segundo, pois invoca
São Geraldo. Por que Isarne
€ OS seus não ousam fazer mais que isso? No
entanto, ocorre que, na noite
seguinte, São Geraldo (invisivel) golpeia Isarne “no topo
do crinio com
um bastão de porqueiro”, o que o faz perder
a vista e parcialmente o espirito,
morrendo um pouco depois. O narrador satirizaa
covardia e a deslealdade
desse Cavaleiro temido pelas pessoas
simples e rebelde a Deus. Nio era
um bbravo, so‘mente um astuto. “Se langava
um golpe ou ataque contra um
inimigo,rapldameril.te cessav:a. Elese protegia,
entio, trocando frequente-
mente de esconderijo. Depois disso,
ele se gabava de sey sucesso, e
se feli-

# Idem, 1, 38-9.
5º Idem, 1, 37.
5 Milagres de São Geraldo, 4.

170
Vassalos, senhores e santos

citava por ter escapado a todos os seus perseguidores””??. O interessante é


constatar que ele deve ter realizado as mesmas práticas que o próprio
Geraldo de Aurillac enquanto estava vivo; mas o que Santo Odon inter-
pretava nele como sinal de moderação é visto como covardia em Isarne
Tátil. Na Aquitânia, como em outros lugares, a honra — o renome — dos
guerreiros nobres está em debate permanente, e os monges tentam influen-
ciar a opinião geral em um sentido ou outro.
Em uma outra ocasião, um ataque de espoliadores termina em
uma confusão, na qual a Providência é ajudada pela pressão dos monges
e por tensões entre senhores e vassalos. O “vassalo” (vassus) albigense
Deusdete tem alguma coisa (sem dúvida uma reivindicação de herança)
contra o senhorio de São Geraldo. Ele zomba dele e o ameaça; em outros
termos, blasfema. Juntando às suas palavras duras atos, ele toma potros de
São Geraldo, permitindo que seus guardas se refugiem em uma igreja.
Depois disso, seu próprio senhor, Bernardo, solicitado por um monge,
intervém para que Deusdete devolva os potros. Ele tira a espada contra
Deusdete, sem, no entanto, golpeá-lo. Em seguida, seus próprios homens
o ferem — por causa desse desafio, ou por medo de que ele não entregasse
os potros? O narrador apaga o que tornaria a sequência inteligível, para
construir seu milagre de vingança. Ele conclui: “Seu séquito é tomado de
horror a ele e não lhe resta mais nem vassalo nem servidor, ninguém para
lhe obedecer, ninguém para lhe servir segundo o costume. E, para camulo
de sua desonra, sua esposa toma por ele um desprezo absoluto, e se une em
casamento a um outro”.
Outras narrativas de milagres sustentam que um demônio tomou
o corpo de um Cavaleiro em luta com um santo. É uma ocasião de repre-
sentá-lo atormentado por um furor demente, pela loucura, pela perda do
sentido — de fazer o leitor acreditar na violência sem freios dos feudais.
Depois disso, uma cura milagrosa é possível, se ele ou seu séquito renun-
ciarem à sua reivindicação.
Na Francia, assim como na Aquitânia do ano 1000 (980-1060), a
“defesa das igrejas”, ou seja, de suas propriedades (que se podem chamar

5? Odon de Cluny, 1, 98.

171
A Cavalaria

5 ; rada p pelas a rmas


de “feudais”, uma vez que são senhorios), pode ser assegurada
;
aos
do século ou pelas forças sobrenaturais que Deus dá
santos.

No século X, as “armas d o século” foram, às


vezes, ' carregadas
cavalo e de seu arma-
pelos monges, apesar da regra, ainda em posse de seu
mento, tal como Gimão de Conques**. Isso se deu por volta de 960, mas
o hagiógrafo Bernardo de Angers, nos anos 1010, elabora rctrosp'ectiva-
feita por
mente uma teoria a esse respeito que vai mais longe que aquela
Santo Odon sobre São Geraldo: para Gimao, esse outro Davi, ela permite
o homicidio baseada no modelo de São Mercúrio, um mártir ressuscitado
por Deus para matar o perseguidor Juliano, o Apéstata. Mas, cada vez
mais, são os cavaleiros laicos, principes da regido ou senhores da vizinhança,
enquanto advocati*, por exemplo, que têm esse papel nas guerras justas,
conduzidas, no entanto, sem obstinaggo. Eles podem representar proble-
mas, seja por sua moleza, seja por suas pretensdes, a0 se imiscuirem nos
negécios das igrejas. Ou ainda porque a terra dos santos, pelo fato de que
eles a protegem, passa um pouco por sua propricdade. Em consequéncia,
seus adversdrios se lancam sobre ela, para exercer sobre seus camponeses
suas vingangas indiretas, o que empobrece os monges. Mas, enfim, tudo
se negocia, mais ou menos, e ter uma ligação de interesse com bons advo-
cati não deixa de apresentar vantagem®.
Como armas espirituais, quando não dispõem do direito de
excomungar®, os monges usam maldiges rituais contra seus “persegui-
dores”: proferem contra eles violentas imprecações littirgicas por meio
de versiculos vingativos tirados do Antigo Testamento. Na aparéncia,
existe aí uma grande violéncia verbal, que passa a determinar de antemio
ainterpretagio do menor mal que acontega a um Cavaleiro maldito: uma
queda de cavalo, um golpe de langa ruim depois, inesperadamente uma vin-
ganca do Céu. Como essa vinganga nio é imediata, nem mesmo é certa
(embora Deus a reserve sem dúvida para o Além), ¢, sobretudo, uma
ameaga que permite aos monges negociar em posição mais favoravel. E

533 Milagres de Santa Foy, 1, 26.


54 Defensores-procuradores das igrejas e dos mosteiros. (N, da R.)
55 Ver, além disso, o episódio dos Milagres de São Bento sobre Estabilo, em meu Cheva-
liers et miracles..., pp. 162-6.
56 Esse direito pertence aos bispos, mas o abade de Cluny tende a dispor dele.

172
|
Vassalos, senhores e santos

camponeses. Eles
notar-se-á também que isso os dispensa de armar seus
nam que permaneçam
lhes dizem que o santo os defende e, portanto, orde
vivendo sempre sob um
em seu estatuto de trabalhadores sem armas,
defensor, Cavaleiro ou santo.
aos infantes que ocasio-
A esses Cavaleiros defensores, e mesmo
nsado também um auxilio sobre-
nalmente os apoiam, nao pode ser dispe
va com à ajuda
natural? Armado como Cavaleiro, o monge Gimão conta
e (e ameaçavª) sua
de Santa Foy. Em caso de revés, ele injuriava vivament
bênçãos das armas de Cava-
estátua. O ano 1000 é uma grande época de
bem que não se trata do aduba-
leiros. Jean Flori agrupou-as, mostrando
das contas, ao longo do século
mento Cavaleiresco”” — ainda que, no fim
um jovem. A rubrica anuncia
X, se trate uma vez do ordenamento de
de um defensor da Igreja, ou
claramente: “ritual para benzer as armas
a a interpretações. Acontece
outro Cavaleiro”, o que deixaria a porta abert
de 1100, na época da cruzada
que essa série de bênçãos cessa um pouco antes
Flori reconhece não poder
¢ da ascensão do adubamento — o que Jean
explicar, e ao que voltaremos mais adiante®®.
os anuncia expres-
Sublinhemos, por ora, que o ritual dessas bênçã
a salva guard a ao port ador dessa s armas, tanto ou mais que a
samente
vitór ia e de forma algu ma a remis são de seus pecados. Os Cavalei-
própr ia
uram ser defendidos contra a
ros do ano 1000, defensores de igrejas, proc
milagre em Berry o mostra clara-
morte por liturgias e paraliturgias. Um em
Bento”. Pouco tempo depois,
mente com relação aos pães de São
rústica, veem-se Cavaleiros pedirem
Conques, no coração da Aquitânia ou a
o estandarte de Santa Foy,
para “comprar”, por meio de um dom,
combates. Um escapa assim
bênção de sualanga, para que favorecesse seus
retoma, através de guerra,
de uma emboscada feita por seus inimigos; outro
entregado ao inimigo...
um castelo — com o qual sua mulher havia se
dom que originalmente
Obsevamos nesses casos um desdobramento do
“pelo resgate [a com-
deveria ser um legado funerério, em troca de preces

23
57 Jean Flori, “Chevalerie et liturgie...” (férmula S. 26; por outro lado, a férmula S.
)
anuncia a bênção de um jovem).
58 Ver, neste volume, p. 298.
59 Milagres de Sio Bento, 11, 16. Ver meu estudo de Ln mil et la paix de Dieu
pp- 110-3.

173
A Cavalaria

pra] da alma do doador”, ou praticado, como a enfeudação, para resolver


um conflito partilhando direitos...éº
Esses estandartes, essas bênçãos permitem aos Cavaleiros melhor
galvanizar suas tropas. Acredita-se que possam defender contra a morte,
Sem dúvida, eles não se arriscam sistematicamente, sobretudo se pegam 5
espada pela ponta e a brandem com a guarda à frente, tal como Geraldo
de Aurillac — pois o adversário se apazigua! Mas a morte em combate, ou
por acidente, quando de uma emboscada em curso de campanha, não é de
todo rara.
Podemos medir o risco disso?

Os cativos da Aquitânia

A Aquitânia é um “laboratório” para o estudo das guerras do ano


1000, pois temos mais narrativas provenientes daí sobre
condes e senhores
do que de outros lugares. Nela vemos duques e condes
de Poitiers — Gui-
lherme IV Braço de Ferro (963-993), depois seu filho
Guilherme V,
o Grande (993-1030) — brilharem com uma inten
sidade quase real. É o
monge Ademar de Chabannes, ao menos, que
o diz do segundo: ele tinha
a valentia e o gosto das letras, fazia assembleias
Públicas nos condados,
protegia a Igreja e tinha o ar, em suma, “de
um rei muiro mais do que de
um duque”®, Sem dúvida, com suas três mulheres
e seus quatro filhos, ele
não pretende a santidade, mas um auxíl
io especial de Deusó2. Por outro
lado, Ademar, que escreve seu louvor,
não insiste sobre sua vassalidade em
relação ao rei Roberto. Abordando a quest
ão por outro lado, ele diz que
esse rei o honrava muito em seu palácio. Em
revanche, Guilherme, o
Grande, é inequivocamente senhor dos senho
res aquitanos que “não ou-
savam levantar a mão contra ele”, Ele dispensa
o conde de Angoulême
de uma homenagem de mãos, para lhe fazer a honra
de uma amizade, mas

º Milagres de Santa Foy, 111, 18, ¢ IV, 9. Ver meu Chevalier


set miracles..., pp. 108-13.
9 Crônic 111, 49.
a,
& Idem, 111, 531.
3 Idem, III, 49.

174
Vassalos, senhores e santos

aparentemente a recebe de outros. Em suas querelas, todos os vassalos


procuram o apoio do duque; se ele o concede a um, o adversário fica inti-
midado. Frequentemente Guilherme arranja pactos de paz que são mais
ou menos observados, mas cuja transgressão não passa despercebida. Uma
ordem feudal, com seus limites, reina, portanto, aqui também. A crônica
de Ademar de Chabannes revela uma e outras à sua maneira.
Tudo se passa um pouco como na Francia de Richer: temos sobre
o solo da Aquitânia mais atos heroicos do tempo das incursdes pagas do
que faganhas contemporineas®. Aqui, no entanto, podem-se contar tam-
bém as faganhas recentes, as conquistadas na Espanha no combate contra
os mouros. Quanto às guerras feudais, a impressio se confirma de que os
cavaleiros, senhores da primeira idade feudal, prezam mais a vida que a
honra sem manchas, que em suas lutas eles preferem o perjúrio à morte,
esforgando-se por salvar-se tanto quanto podem. Ademar de Chabannes
mostra de forma particular suas traigdes e suas deslealdades, sua coragem
¢ sua habilidade, em narrativas breves onde a captura e a detenção de ad-
versarios nobres se revelam uma prática muito importante. Como Richer
de Reims, Ademar é um monge muito culto, filho e sobrinho de cavaleiros
que ele cita em sua Crénica. E essa, como as Histdrias de Richer, é salpicada
de lendas provenientes desse meio; mas ele não coloca aí discursos de
feudais® e, de maneira geral, não desenvolve muito suas narrativas. Nem
por isso elas são menos sugestivas.
Temos primeiramente lendas que remontam a0 momento mais
agudo das incursdes normandas. Por volta de 900, o conde de Angouléme,
préximo ao Oceano, diversamente de Geraldo de Aurillac, não era de muita
sutileza, merecendo o codinome de “Talhaferro” [ Tzillefer] devido a um
belo golpe contra o pirata Estorin. Ademar de Chabannes o descreve co-
locado em posigio de batalha no momento do combate singular entre os
chefes de duas hostes. Instante em que sublinha a qualidade de sua espada,

% Ha somente uma alusio breve de Ademar (111, 30) a uma batalha sangrenta conduzi-
da pelos aquitanos sobrc os francos de Hugo Capeto, mas ela não aconteceu, e não há
muitos tragos, à parte esse, de sentimento hostil em relação aos “francos” nessa Crô-
nica da qual os dois primeiros livros e o comego do terceiro retomam a vulgata da
histéria franca e carolingia.
6 H4 uma coletinea de sermões seus muito cristdos, do tempo da paz de Deus...

175
A Cavalaria

deve seu
forjada por Galand®. Seu sucessor, Arnaldo “Peliça” [Bouration],
omem
sobrenome à vestimenta que portava no dia em que matou um lobis
tora da
que infestava a região””. Nos dois casos, cria-se uma façanha prote
nome
região, fonte de legitimidade feudal. E isso cria também um sobre
do qual se
visual (evocatório de um gesto ou de um costume) a partir
de
transmite uma fábula. Sente-se, portanto, entre os aquitanos, o vigor
nobres.
um ideal de proeza, o que não surpreende entre os guerreiros
Mas na Aquitânia do ano 1000, os condes, os “príncipes” de cas-
telos, ou mesmo os vassalos desses se arriscam muito pouco a se fazerem
cortar em dois. A Deus não agrada que se coloquem os descendentes de
um Talhaferro em perigo na batalha contra os últimos piratas normandos,
vindos da Irlanda, entre 1003 e 1013, para fazer capturas! O duque da
Aquitânia, conde de Poitiers, é então Guilherme V, o Grande (996-1030).
A ameaça o leva a extremos como o rompimento com o esquema carolin-
gio de trés ordens, uma vez que ordena aos bispos e a0 povo que fagam
stiplicas ao Senhor através de jejuns e litanias, enquanto ele avanga com
electi (guerreiros de elite) numerosos®. Os pagios tém medo, mas conhe-
cem a cavalaria pés-carolingia. Com base nesse conhecimento, preparam
para o duque Guilherme a mesma armadilha que os bretdes haviam recen-
temente armado contra o conde de Anjou, em Conquereuil (992)%.
A noite, cavam armadilhas nas quais, 20 amanhecer, cai a “carga
desenfreada” dos Cavaleiros aquitanos. “Os cavalos despencam com seus
cavaleiros pesados pelo peso das armas, e muitos são feitos prisioneiros
pelos pagãos” — cujos ancestrais teriam preferido matar, a se acreditar em
sua reputagio de ferocidade. Portanto, as primeiras fileiras aquitanas caem
naarmadilha: desmontados, os Cavaleiros são pegos. Os da segunda linha
tém tempo de desmontar. O duque Guilherme V, que chamamos de “o
Grande’, estava frente e caiu de cabeça em uma fossa. É necessario um
pequeno milagre para que ele escape à captura. Pesado devido as suas armas,
“ia cair nas mãos dos adversarios, se Deus, que sempre o protege [nio es-

& Cronica, 111, 28.


& Ibidem.
@ Cronica, 111, 53.
% Segundo Richer (Histdrias, IV, 84), a segunda linha angevina foge, mas a primeira
linha é dizimada. Ver, neste volume, p. 199.

176
Vassalos, senhores e santos

queçamos também que rezavam por ele os bispos e o povo], não lhe tivesse
dado força e presença de espírito para, com um grande impulso, saltar e
juntar-se novamente aos seus”. Depois disso, a batalha para. Ela é curta,
como a maior parte das batalhas da época em comparação com aquelas
das guerras modernas.
Os cativos são reféns, e não se desdenha de suas vidas. “Logo o
combate cessou por causa dos prisioneiros, por medo de que fossem mor-
tos. Eles estavam de fato entre os mais nobres. Para-se, portanto, a primeira
carga, após o que o dia se passa em negociações ásperas. Elas não parecem
nem um pouco frutíferas, uma vez que os normandos retornam ao mar
com os cativos. Sem dúvida eles os levam à Irlanda e, depois disso, o duque
os compra de volta, cada um por seu peso em prata””. Na mesma época
(antes de 1013), os mesmos, sem dúvida, raptaram de surpresa, em Saint-
Michel-en-I'Herm, a viscondessa de Limoges Ema. Ela vale ouro para seu
marido, um “peso infinito” deduzido do tesouro das igrejas’'. Mas, uma
vez pago o resgate, é necessária a intervenção do duque Ricardo de Rouen
para que seus raptores a entreguem bem...
É o resgate que distingue essa batalha costeira daquelas conduzi-
das, no interior, pelos condes e senhores da Aquitânia em suas guerras
civis. No entanto, Ademar de Chabannes não o confessa; lendo o Conven-
tum, descobre-se uma alusão preocupante àquilo que Cavaleiros cativos,
devolvidos pelo senhor de Lusignan pela injunção do conde, poderiam
ter-lhe contado™.
Pensava-se em resgate, antes do incidente grave que mancha a
guerra entre os senhores de Limoges (o bispo e seu irmão, o visconde,
1010/1015) e o de Chabanais, Jordão? Contra este último, edificaram o
castelo de Beaujeu, em Saint-Junien, com a ajuda do duque Guilherme
que pôde, segundo o Conventum, ao mesmo tempo fazer um desembolso
e levar sua caução política... Uma vez o duque tendo partido, Jordão quer

7º Crônica, UM, 53.


7º Idem, 111, 44 — o que, além disso, recoloca em circulação objetos de valor.
72 Conventum, |. 64-7: “Ele se ampara de 43 dos melhores Cavaleiros de Thouars; pode-
ria ter tido a paz, garantido suas propriedades e obtido justiça para os erros cometidos;
€ se quisesse aceitar um resgate, poderia ter tocado em 40 mil soldos”. ‘

177
A Cavalaria

atacar Beaujeu com uma elite (seus cavaleiros) e o bispo o enfrenta com
uma grande hoste”™.

cor-
Uma rude batalha foi combinada para o coragio do inverno. Muito sangue
reu, os limosinos foram postos em fuga e Jordao, vencedor, voltou com numero-
sos senhores (príncipes) que tinha capturado; acreditava já estar em seguranga
quando recebe, atrés da cabega, um golpe desferido por um Cavaleiro que ele
u
mesmo havia langado por terra [sem tê-lo desarmado ou amarrado?]. Morre
desse golpe ¢, para vingé-lo, seus homens imediatamente perfuram com golpes
mais
os prisioneiros, que entregaram a alma junto com seu sangue. Esses serão
dolorosamente chorados do que aqueles que haviam cafdo em batalha.

Sem dúvida eles eram mais nobres. Tudo parece recomegar e um


irmão bastardo de Jordio se encarrega de ganhar a guerra. Nio se sabe
como, “cle agarrou um pouco depois Aimeri, irmão do bispo, e o manteve
prisioneiro até a destruigio do dito castelo” (Beaujeu, o pivô da guerra)”*.
Os senhores encarceradores pretendem obter, por meio dos cati-
vos que detêm em seus castelos — frequentemente em torres altas de ma-
deira ou, mais a Leste, em promontórios escarpados, dominando os vales
do maciço central —, concessões, mais do que resgares”*. Isso quer dizer
que eles tratam esses Cavaleiros cativos de maneira mais ou menos amigá-
vel, alternando ofertas e ameaças, indo às vezes a ponto de cegá-los, mas te-
mendo matá-los por medo de represálias e da desaprovação da nobreza.
Raramente os cativos são feitos de forma leal, em batalha aberta
e para evitar que pessoas de “boa companhia” se matem entre si. Parece
acontecer nesses casos, sobretudo (como para as tomadas de castelos, na
Francia), emboscadas audaciosas, e mesmo traições entre próximos. Éum
verdadeiro perjúrio que cometem dois irmãos viscondes de Marcillac
contra Alduíno, o terceiro irmão, depois de tê-lo recebido, regalado e al-
bergado em um dos castelos familiares, no tempo da Páscoa e apesar de
uma paz jurada. “Eles o prendem, cortam sua língua, perfuram seus olhos,

7? Mobilizado por um “pacto de paz”, como o de Bourges em 1038? Depois de tudo, isso
não parece impossivel.
74 Ademar, III, 42.
75 Pierre Bonnassie, “Les descriptions de forteresses...”.

178
Vassalos, senhores e santos

talvez
¢ dessa forma recuperam Ruffec” (o castelo contestado )76, Os leudes
A luta pelo
tivessem feito pior, cortando-o com uma serra, como Sic 4rio.
patriménio familiar — a honra — acenderé sempre, mesmo no momento
mais Cavaleiresco da Idade Média (por volta de 1100), vendetas odiosas
entre parentes muito proximos”’.
O conde de Anjou Fulques Nerra move por todos os lados seus
pedes sem hesitação (989-1040). Depois de 1016 ele aparece”® como autor
de um ardil nem um pouco Cavaleiresco: “Nessa época, o conde de Angers
Fulques, incapaz de vencer abertamente o conde de Le Mans Herberto,
filho de Hugo, por meio de uma artimanha o atraiu 4 cidadela de Saintes
[um castelo com uma aula — grande sala — local por exceléncia do coló-
quio sem armas], como se quisesse lhe ceder essa cidade em feudo”. Her-
berto não desconfia de nada — afinal, não se está na Quaresma? E eis que
Fulques o prende! Felizmente Ademar de Chabannes espalha aqui
aparentemente uma fábula — o que não retira em nada seu interesse por
certas explicações que oferece. Inicialmente, atribui as mulheres dos
dois contendores um lugar interessante na aventura. Fulques Nerra teria
encarregado a sua de prender, também por artimanha, a mulher de
Herberto, que, tendo sido prevenida a tempo, se defende. Em seguida,
Ademar evoca o que pode deter, mesmo um traidor, na palavra dada de
levar alguém à morte: “Fulques, temendo os senhores de Herberto e
de sua esposa, não ousou maté-lo, mantendo-o cativo durante dois anos”.
E, para terminar, o cronista evoca o Céu: “Enfim o Senhor agraciou o
inocente com Suas mãos””*. Nos Salmos biblicos, o Justo espera isso Dele,
mas no texto, de que maneira isso se passou? Relatar uma fuga miraculosa
é frequentemente uma boa mancira de pôr fim, sem humilhar nem denun-
ciar ninguém, a uma negociagio em impasse: o que fazer com um prisio-
neiro que se tem à mão, mas cuja retenção provoca criticas, que não cede
a0 que se espera dele e que se é obrigado a não matar?
Há uma diferenga no destino dos diversos cativos que resulta,
muito frequentemente, mais do acaso do que da justiga. H4 aqueles que

76 Ademar, 11, 60.


Ver, neste volume, pp. 210-1.
7 É uma fábula, segundo Bernard S. Bachrach, Fulk Nerra..., p. 173.
7? Ademar, I11, 64.

179
A Cavalaria

têm sorte e outros não — e que acabam pagando pelos primeiros. Pod.e—se
bem no caso do “corebi spo”** Bento. Esse sucessor designado do bispo
vê-lo
Limoge s, irmão do duque Guilhe rme IV, foi preso e Éegado por
Ebes de
as-
Hélio, conde de Périgord®. Ora, os viscondes de Limoges (pai e filho
sociados), algum tempo depois, aprisionam Hélio e seu irmão Aldeberrtode
capturam “por meio de traição”, nota Adema
“de la Marche”. Eles os
duque Guilherme1V,
Chabannes. Hélio se encontra em grande perigo. O
“Ele iria ser cegado,
sabendo do que se passa, faz pressão sobre o yisconde:
spo”®. Um
sob o ‘conselho’ do duque Guilherme para vinganga do corebi
de Deus, e pouco
milagre vem salvi-lo. “Ele fugiu da prisão com a ajuda
É possivel
depois morreu peregrino, a servigo de Deus na rota de Roma.”
de
que Deus, aqui, seja apenas um pretexto invocado pelos viscondes
deixado
Limoges para se livrarem do embarago. Talvez eles o tenham
escapar, tranquilamente, como fizera antes Geraldo de Aurillac com
alguns prisioneiros. E eis um milagre produzido provavelmente por uma
solidariedade de classe entre Cavaleiros de primeira ordem, e por um
cálculo dos viscondes no jogo politico a trés, entre Poitiers, Limoges ¢
Périgueux. Depois disso, o ar da Aquiténia não ¢ mais muito bom para o
conde Hélio: é o momento de partir, e sob a salvaguarda de São Pedro.
O que não o impede de morrer no caminho, Deus sabe como. O ódio do
duque o teria alcançado?
O jogo dos viscondes de Limoges torna-se evidente quando se
sabe do tratamento reservado ao irmão de Hélio, preso junto com ele:
Aldeberto de la Marche. “Encerrado por muito tempo na torre de Limo-
ges, ele foi enfim libertado depois de ter desposado a irma do visconde
Guido”*?. Não vamos imaginar uma paixão romanesca, como a de Fabrício
del Dongo e Clélia Conti, nem mesmo um episódio do século XII, com
sedução da donzela pelo Cavaleiro Cavaleiresco apesar do pai e do irmão.
Não, aqui é o Cavaleiro feudal que negocia laboriosamente com seus pares,
os homens, uma reconciliação, uma mudança de aliança certamente
fundada sobre um interesse material bem estabelecido: castelo e terra. Será

Título usado até o século XI pelos vigários episcopais; arcediago. (N. da R.)
8! Ademar, 111, 25.
8 Ibidem.
83 Jbidem.

180
Vassalos, senhores e santos

o terceiro irmão de Périgord, preso um dia pelo duque, que perde


rá os
olhos — ele que não tinha nada a ver com o atentado ao corebispo!
Deus, no entanto, não se desinteressa de tudo isso — Deus,
o que
quer dizer os bispos, cônegos, abades e monges. É evidente que Ele não
trabalha para abolir as capturas em seu principio®. Mas, várias vezes,
Ademar de Chabannes O mostrou preservando os poderosos: o duque
Guilherme, os condes Huberto e Hélio. Ele não os odeia: Ademar talvez
tenha lido isso na Vida de São Geraldo de Odon de Cluny, se a conheceu.
Julga-se que Deus os preservou da morte, alguns da cegueira, e que per-
mitiu a evasão de Hélio*.
De fato, na Aquitânia do ano 1000, e logo na Francia (ou um pouco
depois, sem dúvida em imitação a ela), muitos Cavaleiros saídos do cativeiro
vêm agradecer às relíquias de santos mortos por terem permitido sua
evasão. Eles não a atribuem a Deus apenas, mas também ( por delegação,
esclarecem clérigos e monges) a uma mártir lendária, Santa Foy de Con-
ques, cuja resistência firme a seu perseguidor e cuja vitória espiritual sobre
ele teriam prefigurado e garantido a deles®. Em seu cativeiro, eles dizem
tê-la chamado, invocado, frequentemente feito votos, e ela lhes apareceu,
desfez seus laços, abriu as portas diante deles, adormeceu seus guardiões,
garantindo sua passagem despercebida na grande sala da torre, ou mesmo
um salto perigoso no vazio. Esse é o motivo principal do culto de Santa
Foy de Conques, como precisa Bernardo de Angers, um clérigo das esco-
las do Norte, vindo se informar a respeito nos anos 1010, antes de colocar
em boa narrativa latina e bom discurso a história de seus mais belos mila-
gres (desde 982). Santa Foy terá logo emuladores, tais como São Leonardo
de Noblat no Limosin, Santa Honorina de Conflans perto de Paris e
muitos outros até a Normandia, que provam a importância da captura
de Cavaleiros em toda a “Gália” feudal dos séculos XI e XII.
Esses milagres atestam, portanto, a difusão de uma prática que
nos parece ainda bem bárbara — se nos esquecermos de que ela substitui

unc chamamos de “paz de Deus” (acontecidos na Aquitânia a partir de


989) não se incomodam com isso.
** Mas não expressamente a de Galberto
de Malemort. No entanto, Hélio, se fazendo
peregrino em seguida à sua fuga, não a teria atribuido a Deus? Ademar, I11, 48,
% Ver meu Chevaliers et miracles..., pp. 85-9.

181
A Cavalaria

tempo a un iversalidade das


0 assassinato. Mas eles nio atestam ao mesmo
es e de manob ras paraapa-
já um pouco Cavaleirescas condutas entre nobr inhos,
nós se desfazerem soz
ziguar seus conflitos? Espanta vermos tantos
amarrados, esses
tantos carcereiros cairem no sono. Eram solidamente
das a feçharem
nés? Era essa Santa Foy sozinha que comandava os guar
ar partir todo
os olhos? Em Turenne, a dama Beatriz teria querido deix
inimigo mortal de
um grupo de cativos; um dos Cavaleiros do castelo,
um dos cativos, o retém, no entant ' r ao
o — até sua fuga!®” Ao agradece
santo ou santa e relatar seu milagre, o fugitivo se faz seu peregrino, seu
miraculado, o que lhe assegura uma certa salvaguarda, assim como a seus
climplices, em caso de necessidade, pois evita que sejam denunciados
como traidores a seu senhor.
A histéria inversa, de uma evasio falha, e que custou caro ao cúm-
plice, nos é revelada pela narrativa do milagre de Santa Foy que é reputada
depois de té-lo curado. Trata-se de uma histéria extremamente significativa
que se passa um pouco apds 982. O Cavaleiro Gerberto, do castelo de
Calmillac no Velay, renomado por sua bravura e sua piedade, se deixa apie-
dar por trés cativos de seu senhor. São eles vassalos da igreja de Puy, portanto
da Virgem Maria. Eles lhe suplicam ajuda e tocam seu coragio (ou seu
espirito calculador, por um argumento de interesse?). Então, “colocando
em perigo a prépria vida, ele se apressa em procurar duas facas, as esconde
sob suas vestimentas e as entrega com uma corda para escalar o muro, fa-
zendo-os prometer não denunciá-lo” [o melhor meio para contar sua fuga
não teria sido uma narrativa de milagre?]. Infelizmente, os imprudentes
não aguardam sequer a noite, são percebidos, presos novamente e denun-
ciam Gcrbcíto. Seu senhor, o “tirânico e cruel” Hugo, o condena a ser
Ícgado. Os companl}eirf)i de vassalagem” (mmmilitanes) de Gerberto,
apesar de sua repugnância”, executam a ordem recebida
e o cegam...º..
Sem fazer a apologia do “tirano” feudal Hugo, pode-se pensar
que
ele foi de alguma form
d a ridi
À cularizado, lembrando que nem nessa
À narrativa
nem em outras, 9 despotismo aparece como princípio essencial
do senho-

? Milagres de Santa Foy, 1, 6; ver meu estudo dobre 24


mil et la paix de Dieu...,
Pp. 13 e 133.
* Milagres de Santa Foy, 1, 2. Santa Foy lhe
restituirá parcialmente a visão.

182
Vassalos, senhores e santos

rio medieval. A tirania constitui muito mais um tema de polêmica entre


senhores, o que atesta precisamente uma certa vigilância social e o valor
das pressões morais. Ora, estas últimas, ou os bons ofícios de clérigos e d?

monges, podem também “explicar” as fugas tidas como miraculosas.
nos Milagres de Santa Foy prisioneiros libertados provisoriamente, em
troca de reféns (e não sob palavra de honra), e que tiram proveito dessa
“permissio” para implorar socorro 4 santa — certamente também para
pedir a mediagio dos monges de Conques®. No século XII, ver-se-a Ca-
valeiros darem sua palavra de honra e principes libertarem-nos graciosa-
mente. É, em suma, por falta de uma “Cavalaria” suficiente no comporta-
mento dos Cavaleiros do ano 1000 que são necessarios milagres. Mas se
há tantos deles, não é porque eles tendem já um pouco para a Cavalaria
cortés?

O combate contra os mouros

Ademar de Chabannes aprecia os pactos de paz entre os aquitanos


sob a égide do duque, mas não lhe vem a ideia de que eles poderiam, de
repente, ir todos juntos exterminar os Infiéis. Estes são uma verdadeira
ameaga? Entre 1008 e 1019, um ataque ocasional sobre Narbona provoca
uma guerra cristd, com eucaristia sendo dada aos combatentes [para sua
salvagio aqui embaixo ou depois da morte?]*. Mas quando chega a noti-
cia da destruigio do Santo Sepulcro pelo califa al-Hakim (1009), isso não
emociona o duque Guilherme e seus vassalos, tal como a esse Hugo que
se honra com o titulo biblico de “quiliarca” Mas a ideia de replicar com
uma cruzada não ocorre a Ademar e a seus contemporaneos. No entanto,
não seria o momento para isso, bem mais do que 10952 Para dizer a verdade,
esse califa xiita, cuja politica religiosa sai das normas habituais do isla,
sofre pouco depois uma mudanga brusca, que Ademar de Chabannes

8 Idem, 1,33, eIV,7 (onde temos uma questio de resgate — estamos então porvoltade
1050). No caso deles, as coisas não se resolvem amigavelmente, senio nio haveria
milagre para contar; eles retornam para o cativeiro e a santa os liberta em seguida.
” Milagres de Santa Foy, 111, 52. Mesma eucaristia presente em Dudon, no tempo dos
normandos pagãos, II, 14.

183
A Cavalaria

curiosamente, à ideia de
traduz em terror diante de um milagre”". Mas,
rado sotf 2 pena de Ade-
expedição cristd ao Oriente teria ainda assim aflo
da Gália e sarr acenos;
mar, de uma forma indireta. Intrigantes — judeus
falsa ameaça para forçá-
da Espanha — teriam feito al-Hakim crer em uma
lo a destruir o Santo Sepulcro!
mar de Chabannes
Por outro lado, percebe-se claramente que Ade
combates sangrentos no
se inquieta, querendo alertar seu leitor sobre
em contar as hccat(?mbc.s
decorrer da guerra feudal, enquanto se compraz
verdadeira pi-
dos sarracenos — não escondendo que elas balizam uma
rataria cristá em Al-Andaluz (Espanha muçulmana). Assim, quando
os normandos da França, conduzidos por Rogério de Tosny, fazem incur-
sões e prisioneiros, alguns dos quais são comidos por eles a fim de aterro-
rizar os reis mouros e lhes extorquir tributo, percebe-se claramente também
que — ouso dizer — Ademar de Chabannes acha isso bastante bom!” Ele
saúda o heroísmo de Rogério quando, no retorno da Espanha, é surpreen-
dido em uma emboscada com 40 homens contra 500 aos quais faz frente
matando-os, vindo a sobreviver. Esse Rogério se parece um pouco com o
Rolando da Canção — elaborada desde o final do século XI com um ver-
dadeiro verniz de Espanha muçulmana. Mas com um “Rolando” que teria
sobrevivido a uma aventura espanhola diversa, conduzida tendo ele mesmo
como chefe, sem rei franco acima dele.
Será que, como outros, divago entre as linhas da Crônica de Ade-
mar de Chabannes? A cada pequeno trecho que ela consagra aos mouros,
pode-se pensar que o advento do ano 1000, depois a sua narrativa e sua
fábula rapidamente elaboradas fazem florescer a epopeia francesa. É ver-
dade que esta última foi escrita cem anos mais tarde pelo menos, e que não
se deveria tomá-la por uma pura transcrição de tradições orais antigas. Mas
essas existiram, como nos assegura, entre outras, uma “nota” do mosteiro
espanhol de San Milan de la Cogolla”?. Elas se cristalizaram sobre
. :
nomes
e trechos de história; carolingia®,
.
elas puderam evoluir; ou se renovar em
torno de episédios do ano 1000, ou talvez lembranças míticas dos
tempos

” Milagres de Santa Foy, 111, 47.


? Idem, I11, 55.
Ver Michel Zink, Littérature..., pp. 89-95.
b

Ver, neste volume, pp- 107-8.


v*

184
Vassalos, senhores e santos

carolíngios ressoassem sobre a percepção que se tem, no ano 1000, do


combate contra os mouros.
Eis, por exemplo, em 1010, o conde Ermengol de Urgel. Ele tam-
bém (ele primeiro, com o normando de 1024) volta da Espanha vencedor.
Segundo Ademar de Chabannes, ele teria realizado carnificinas entre 05
sarracenos, enquanto historicamente teriam sido muito mais represdlias e
extorsoes de tributos por meio de ameaga.

No entanto, partindo vencedor ele se chocou com um outro exército de mouros


que acorria. Marchou sobre eles com alguns dos seus; no limite de suas forgas,
matou muitos antes de sucumbir. Os sarracenos carregaram sua cabega como a
um grande tesouro. Seu rei a fez embalsamar ¢ recobrir de ouro, e depois a car-
regou sempre com ele nos combates como um penhor de vit6ria®.

Os sarracenos, aqui, tornam-se, como o Zadon de Ermoldo, o


Negro, testemunhas da bravura dos “francos”. O que supõe de toda forma
que esses não os desestimavam demais. Não são povos dos quais os clérigos
do ano 1000 teriam querido empreender uma etnografia impressionista,
como faziam, na Antiguidade, Técito para os germanos, ou Amiano Mar-
celino para os hunos ou alanos, inventariando suas diferencas. Não, essa
sociedade crista penetrada de valores guerreiros não nota muito bem essas
diferengas. Ela entreviu as vezes no normando do ano 900, ela entrevé
incidentalmente nos mouros do ano 1000, homens tão parecidos com sua
elite, com sua religiao, que ela se serve deles como pretexto e como suporte
às suas projegoes. Quanto 20 conde Ermengol, eis um caso muito particu-
lar de Cavaleiro santificado. Ele o é em certo sentido, uma vez que sua
cabega se torna uma reliquia e suscita certo tipo de veneragio. Entretanto,
não se trata de um culto cristão de santos mortos, mas de uma imaginaria
idolatria sarracena. Pois — é necessario sublinhar? — essa Aquitania do
ano 1000 ignora tudo do islá como religido, e atribui aos sarracenos, to-
mando-os por “pagaos’, todos os tipos de “superstigdes” convencionais.
Há entre eles, portanto, sortilégíos para os quais a eucaristia constitui o
antídoto. No exemplo mencionado temos uma idolatria inventada em
todos os seus componentes — €XCeto pelo fato de que ela estranhamente

% Ademar de Chabannes, III, 38.

185
A Cavalaria

; as- rel 1rios como as de São20 Ge Ce-


icá
estátu
se parece com o culto aquitano de
raldo e de Santa Foy! or
não ter essas “ima gens ” poderosas consigo como penh
Por que
indo cercar cidades e castelos
de vitória, quando se é um guer! reiro cristão
virt ude mira c ul os a só val e co ntra adversarios pró-
na Espanha? É que sua
da mes ma soci edad e e da me sm a religido. E já € ousado
ximos, vindos
fora de sua terra , à sede dadi oce: se ou da província eclesiástica,
levá-las para
s mais adiante.
nos concilios de paz de Deus dos quais falaremo
s, por volt a de mead os do século XI, os monges de
Pelo meno
estandarte de Santa Foy aos habi-
Conques não se recusam a entregar o
Esses colocam o castelo de
tantes da regido de Ausone, na Catalunha.
um tributo em ouro e o dízimo
Calaf sob sua proteção e prometem em troca
nto, sem o estandarte.
de suas razias em terra sarracena — feitas, no enta o
espondesse ao envi
É verossimil que esse gesto de lealdade religiosa corr
a de Santa Foy,
de reforços e de subsídios. Quanto à capacidade protetor
contexto
ela se revela quando de uma captura feita por um sarraceno, num
al.
de guerra vicinal, sobre a “fronteira”, muito comparável ao da guerra feud
O caralão Oliba era prisioneiro. A santa lhe aparece, quebra seus ferros,
mas ele não ousa fugir. O detalhe dos tormentos que ele suporta não deve
nos impedir de ver que o “tirano, em favor de uma trégua concluída com
os cristãos, o devolveu 2 sua casa™.
Consequentemente, na dura guerra da Espanha, sangrenta e
épica, quando se invoca a proteção [de Cristo, do arcanjo São Miguel, da
Virgem Maria] sobre uma hoste crist, isso se d4 em termos mais auten-
ticamente biblicos do que de costume. Hé verdadeiros heréis dessa guerra
crist, e eles não voltam todos vivos. Eles não tém a protegio préxima das
reliquias dos santos mortos, e demonstram tanto mais sua coragem —
eu iria dizer sua germanidade — diante de um adversário que iriultm
como “povo efeminado™’, mas que os faz tremer de medo. André de
l;lleury É um mongeddas regides do Loire, escrevendo por volta de 1040
e se faz cronista de uma epopeia crista :
Bernardo de Besalu discursa p!:u‘z{J os Cº;;íí;?j: ce_lºl?esª pa qual o conde
Cristo, quecles
contra os sarracenos, , esses “novos ovos fili filisteus”;” oºmt_ªºsª e laneem
Santa Maria, São

% Milagres de Santa Foy, 1V, 8.


” Idem,IV,10.

186
Vassalos, senhores e santos

Miguel e São Pedro estão com eles; eles devem preferir a morte à desonra,
certos da vitória, de fazer muitos mortos (entre os quais um califa deca-
pitado®), butim e cativos”.
André de Fleury e Raul Glaber atestam, cada um à sua maneira,
o barulho que fazem, mesmo na Francia e na Borgonha, certos combates
na Espanha. Raul Glaber assegura que os monges e clérigos que tinham
pegado em armas e que foram mortos em combate ganharam a salvação
eterna a despeito de realizarem uma infração contra sua ordem — ou
mesmo por causa dela: um monge visionário o vira'®. Esse episódio é
frequentemente citado como um prelúdio à ideia de guerra santa autêntica,
ou seja, à cruzada. Não deve ser negligenciado no entanto que, no ano
1000, a questão se coloca apenas para os monges. Os commilitones de Ber-
nardo de Besalu não arriscam certamente sua alma lutando contra o infiel,
mas eles também não ganham a remissão de seus pecados por isso. Os
papas Leão IV e Jodo VIII o tinham prometido em 846 e 878 aos defenso-
res de Roma!®, sem encontrar grande repercussao. Por ora, a oferta não
foi ainda reeditada.
É necessirio dizer que, no front espanhol, ou no conjunto medi-
terrineo, um Cavaleiro cristão pode de qualquer forma perder sua alma...
trocando de campo! Como em contraponto às narrativas dsperas de Ade-
mar de Chabannes, às piginas de André e de Raul, todas exalando um
verdadeiro perfume épico, pode-se parar sobre um dos “milagres de Santa
Foy’, compostos por volta de 1010 por Bernardo de Angers. Diante deles,
por pouco não nos acreditamos já na terceira parte de Raul de Cambrai'®,
romanesca à vontade.
Raimundo do Bousquet, um rico senhor do Toulousain, conta
um tipo de odisseia do ano 1000. Ele busca, em seu retorno, após 15 anos
de auséncia, a caugio de Santa Foy (mas aparentemente não o seu estan-
darte) para reaver seu castelo, em uma guerra contra sua esposa, casada
novamente. E sorrimos, quase a cada linha, de tudo que ¢ dito em seu

% Contraponto com o conde Ermengardo, em Ademar, 111, 18.


»” Milagres de Sao Bento, 1V, 10.
100 Raul Glaber, Histdrias, 11,9 (18-20).
101 Jafé, nº 2.642 e 3.195. Ver Carl Erdman, Die Entstehung, pp. 26-7.
102 Ver, neste volume, pp. 488-9.

187
A Cavalaria

ntos
favor — não o acreditando completamente. No entanto, os eleme
peregrinação a
dessa história permanecem muito sugestivos! Ele ia em
mas seu navio sofre
Jerusalém (após qual sinistra aventura de feudal?),
dita-se que estivesse
naufrágio; com base em relato de seu escudeiro, acre
sincera? Não, uma vez
morto. Sua viúva é toda prantos. Ela é, no entanto,
dá festas, se entrega ao prazer e
que logo “se veste com um luxo afetado,
seu parceiro,
acaba por desposar publicamente [portanto legalmente]
eadeixar tudo para ele, até o castelo de seu marido [mas esse
castelo provi-
duas filhas que teve
nha mesmo dele, e não dela?] e a herança paterna das
Hugo Escafredo, apre-
com Raimundo”. Um velho amigo de Raimundo,
dizer evitar a
senta-se, felizmente, para cuidar de seus interesses, o que quer
arrancando da mãe metade
“vergonha de uma aliança com alguém inferior”,
homens de
dos bens paternos com os quais suas filhas poderiam desposar
letamente
seu nível. Cavaleiresco, esse Hugo? Sem dúvida, mas não comp
desinteressado, uma vez que “as faz esposar seus próprios filhos”...
No entanto, Raimundo escapara ao naufrágio, pela proteção de
Santa Foy, e aporta na costa do Maghreb. Lá, “bárbaros” o recolhem e
perguntam sobre seu nascimento, “por cupidez”, pois pensam, caso seja
nobre, exigir resgate por ele. Ora, ele se confessa cristão, mas finge ser
cultivador. Portanto, colocam-no nos trabalhos dos campos em “Turlande”
(Tunísia?). Infelizmente, ele não sabe fazer nada, é punido cruelmente, e
ei-lo forçado a confessar que só sabe usar armas. Ele lhes faz uma demons-
tração: “Ninguém melhor do que ele sabia manejar uma arma, se cobrir
com o escudo, aparar os golpes, tornar-se invulnerável” — vê-se quanto
aarte da defesa prima. “Então eles o alistam em seu exército”, ele se distingue
por sua valentia e obtém um grau, ainda que subalterno. Ao contar essa
história, esse renegado, esse mercenário provável sugere que foi feito amné-
sico por uma poção — da qual Santa Foy só destruiu metade do efeito.
Certamente, ele não faz nada para rever sua pátria. É uma série de
eventos que o leva de volta. Prisioneiro dos sarracenos da Barbaria (mais
a Oeste), ele passa a seu serviço. É de novo apanhado e de novo reempre-
gado pelos sarracenos de Córdoba. Todos ficam espantados com sua
bravura, mas ele luta sempre até o final? Ele tem a arte de portar o escudo,
sem dúvida também a de negociar sua transferência. Depois disso, basta
que seja preso por um conde de Castela para voltar a sua região. Só lhe
resta ligar-se a Hugo Escafredo, pedir a Santa Foy de Conques que expulse

188
Vassalos, senhores e santos

sorte que o apoiefn


o usurpador e viver em paz o resto de seus dias. Ele tem
matado um herói cristão
assim, de qualquer forma, pois por pouco teria
quía). Mas
como o conde Ermengol (arriscando ter de venerar sua relí
depois de fazer sua confissão, ele é reintegrado um pouco edulcorado pela
fábula de uma devoção intermitente a Santa Foy, através de uma história
grosseiramente construída, ornada pelo reconhecimento de seu valor
pelos sarracenos... em combates duvidosos!"*?
O mérito de compilações como os Milagres de Santa Foy é o de
projetar aqui e lá um feixe de luz sobre toda zona de sombra da vida dos
hobereaux (membros da pequena nobreza que vivem em suas terras) da
Aquitânia. Veem-se aí notadamente as preocupações muito concretas de
pequenos e médios Cavaleiros. Um é enganado por seu senhor, que lhe
empresta um falcão esperando que ele o perca e se encontre privado de
feudo; um outro perde seus cabelos e, por isso, é desconsiderado pelos de
sua classe!®. Vários se encontram sem dinheiro suficiente para restituir
cavalos e mulas que lhes foram emprestados e que morreram no caminho.
A cada um deles, Santa Foy de Conques restabelece a posição, a honra e,
portanto, a vida, sem cobranças morais, sem questionar os costumes de
sua classe. São suas mulheres, frequentemente, que os levam acla, e é pre-
cioso ver atestado aqui seu papel social.
As pilhagens de certos Cavaleiros em terra da Igreja aparecem
20 contrário incidentalmente — e também um sinodo de paz de Deus'®.
Será que isso não evidencia que chegou a hora de um grande questiona-
mento? Veremos que não — ou pouco. O que nós chamamos de “paz de
Deus” não instaura na Aquitânia, nem em outros lugares, uma paz geral
entre cristãos que lhes permitiria ir conquistar a Espanha ou Jerusalém,
atrás do rei Roberto e do duque Guilherme, sob a chefia de São Geraldo
de Aurillac e o estandarte de Santa Foy de Conques. Os vassalos conti-
nuam a se vigiar e a se afrontar mutuamente, sob o olhar de seus senho-
Deus”"º,
res e de seus santos. Vejamos então o que é a “paz de

13 Milagres de Santa Foy, 11, 2.


106 Idem, 1, 26, e 111, 7. Ver meu Chevaliers et Miracles..., pp. 103-6.
195 Milagres de Santa Foy, 1, 28.
196 Que os contemporâneos não chamam assim. Então, há apenas “assembleias [placita)
de Deus” e “pactos de paz”; é à trégua de Deus, nascida nos anos 1060 na Frang
3, que
eles chamam também de paz de Deus.

189
A Cavalaria

A “paz de Deus” e a guerra dos principes

Os juramentos do ano 1000 ditos da “paz de Deus” são famosos,


sobretudo desde 1860. Pensou-se frequentemente, desde entdo, que em
plena anarquia ou barbárie feudal, de repente, uma Igreja cuja ponta de
langa é Cluny — que reforma seus monges e logo seus padres — preten-
deria também reformar a “milicia do século”, Ela lhe daria como modelo
esse bom conde Geraldo, que não pilhava, e se imporia pelo terror sacro
diante das reliquias dos santos e de juramentos prestados que formariam
o primeiro c6digo da Cavalaria.
No entanto, essa visio moderna dramatiza excessivamente a de-
sordem e o recurso ao sagrado. Os cavaleiros do ano 1000, acabamos de
ver, observam um certo número de c6digos e sabem conduzir negociações
sutis. Os juramentos que prestam nunca sio simples. Sempre comportam
importantes reservas e engendram uma casuistica: isso é verdade tanto
para os juramentos de fidelidade aos senhores quanto para os juramentos
de “paz de Deus”
Os meios de pressão da Igreja sio exatamente aqueles que vimos
há pouco utilizados contra os “espoliadores” ou “opressores” dos senho-
rios santos, e somos muito naturalmente levados aos concilios de paz
pelas narrativas de milagres, uma vez que as reliquias de Santa Foy, ou
de São Bento, e de muitos outros santos são aí conduzidas em procissio
sob ordem dos bispos ¢ com o aval dos condes. Trata-se de um grande
ato social e religioso, de tradição carolingia, uma vez que é então habitual
que nos concilios regionais (ou sinodos diocesanos) os laicos e primeiro
os poderosos participem também: eles escutam as injunções
dos bispos,
discutem e negociam com eles assuntos particulares. É importante
para
um principe do ano 1000, como jáo era para os reis
merovíngios, mos-
trar-se em meio aos bispos. E Gregório de Toursjá assinalava as reuniões
de relíquias!”,
Estabelece-se, portanto, um verdadeiro contrassenso quando se
imaginam os concílios de “paz de Deus” suscitando um grande movimento
popular e antifeudal — sobretudo quando se junta a isso um toque im-

197 Gregório de Tours, A glória dos mártires, 11, 30.

190
Vassalos, senhores e santos

portuno de “milenarismo”. Esses concílios, a partir de 989 no Poitou (em


Charroux) e às margens da Auvérnia (em Puy-en-Velay), e depois disso em
outras regiões, só são conhecidos por nós infelizmente através de trechos,
de uma documentação parcial; é inegável que neles os bispos acentuam
sua pressão sobre os Cavaleiros, bem como sobre o conjunto do clero e do
povo, com um projeto reformador. Seus decretos prescrevem, ao mesmo
tempo, a reforma do clero, a defesa do direito de propriedade contra es-
poliações, a salvaguarda de pessoas desarmadas e dos lugares sagrados
(igrejas). Tudo isso não é novo, tudo isso já poderia ser encontrado em
capitulários carolíngios (e no concílio de Trosly em 919, na provincia de
Reims). No entanto, dessa vez, uma prioridade clara, um forte acento é
posto sobre os abusos, os “danos colaterais” da guerra feudal.
Em Charroux, em 989, a palavra de ordem é langada: “Se alguém
tomar carneiros, bois, asnos, vacas, cabras, bodes ou porcos de cultivadores
e de outros pobres, que seja anatematizado — salvo se for por causa de um
erro do próprio pobre, e somente se ele nada fez para se corrigir™®. É à
classe nobre que esse discurso claramente se endereca: o concilio tende a
lhe interditar a vinganca indireta. A primeira reserva diz respeito, de fato,
a sua vinganca direta ou sua justiga. A segunda supõe alguns avisos antes
da medida grave do andtema.
Além disso, sabemos por meio de Ademar de Chabannes que —
no mais tardar em 1021 — os Cavaleiros aquitanos também prestavam
juramentos. Alguns dos juramentos dessa época chegaram até nés, mas
realizados na Borgonha e na Franga, segundo o exemplo aquitano. Um
modelo circulou de Vienne e Verdun-sur-le-Doubs até Soissons e Douai.
Em cada diocese, alto clero e senhores negociavam ajustes a esse modelo.
Por exemplo, as vezes 0 bispo ordenava o juramento apenas aos Cavaleiros
(caballarii), “portadores de armas do século™®, as vezes o queria mais
geral e o prestava ele mesmo.
Quem faz tais juramentos interdita globalmente a si mesmo
aquilo que os concilios reprovam: a violação do direito de asilo em uma
igreja, qualquer que seja ela, o assalto ou a captura de religiosos e de suas
escoltas (uma vez que desde esse momento cles estão, de acordo com a

p. 285.
108 Ver meu estudo sobre LAn mil et la paix de Dieu...,
19 Concilio de Vienne: idem, p. 493.

191
A Cavalaria

teoria das duas milícias, desprovidos de lança e escudo""º), a espoliação


€ a taxação das propriedades da Igreja e, sobretudo, o conjunto de atos
de vingança indireta que constituem a tomada de gado, aveia, a captura
e os golpes contra os camponeses, a destruição de casas e de material.
Entretanto, como já se notou com frequência, as reservas são eloquentes;
elas tendem a definir em negativo uma série de atos de guerra e de justiça
tolerados — ou ao menos regidos por outras normas, eventualmente
procedentes de juramentos diversos daquele prescrito pelos bispos de
Borgonha. “Eu não incendiarei casas”, jura o Cavaleiro, “salvo se eu
encontrar aí um Cavaleiro que seja meu inimigo ou um ladrão, e salvo
se elas estiverem contíguas a um castelo”!!. Em seu senhorio (alódio
ou feudo), o prestador do juramento não se interdita sanções nem de-
predações. Isso parece quase normal, salvo que a fórmula diz respeito a
“uma terra que eu sei que me chegou por direito”. Em outras palavras,
uma terra que ele reivindica, da qual se diz ele próprio espoliado. Além
disso, a guerra do conde, do bispo, do rei suspende os compromissos,
em parte ou em sua totalidade. Enfim, essas cláusulas sobre o asilo nas
igrejas e a segurança dos viajantes sem armas desaparecem quando estão
em questão “destruidores da paz”, levando-se em conta que “paz”, neste
caso, refere-se exatamente àquela que se está para jurar, necessariamente
dotada de jurisdição própria (a do bispo).
Nem o direito de propriedade feudal, nem o direito de vingança,
nem nenhuma das justificativas mais comuns da guerra feudal são, em
suma, postas em questão. Trata-se de pura ideologia feudal: o lugar emi-
nente do guerreiro nobre no esquema das três ordens!"? não é de nenhum
modo afetado, mas sim fortalecido. No méximo sentimos que os inspira-
dores desses textos (certamente clérigos preocupados com a reforma)
quiseram criticar a ordem feudal em um angulo morto de sua ideologia,
lá onde se encontra sua principal impostura: é que na prática os senhores
“protetores” de igrejas e de seus camponeses atacam estes tltimos sob o
pretexto de seus lagos com um outro senhor. Não ¢ isso o bastante, de

11º Esse ponto é bem sublinhado por Jane Martindale, “Peace and War...”
" LAn milet la paix de Dieu..., p. 422.
"' Tal como o retoma então o bispo Adalberon de Laon, Poema ao rei Roberto...,
vv. 275-305.

192
Vassalos, senhores e santos

qualquer forma, para abrir uma brecha, dar apoio ao ressentimento


dos
humildes contra os guerreiros nobres?
Temos a impressão de que isso acontece às vezes.
. M”aS É.ª forma e n,o método de ação, bem como em sua essência,
os “pactos” e juramentos” da Aquitânia e depois da Borgonha não rom-
pem com as práticas feudais. Eles se adaptam a elas. De fato, eles produ-
zem, como todo pacto de paz, ao mesmo tempo, a paz entre aqueles que
se associam e oportunidades de guerra contra aqueles que os recusam, ou
que são acusados de não respeitá-los. Sem dúvida não se parte em guerra
(da mesma forma que não se lança ao anátema) de maneira precipitada:
começa-se por uma série de ameaças e de pressões. Ademar de Chabannes
apresenta o concílio de Limoges, em 994, como um pacto de paz entre
os senhores da região, concluído sob a égide do duque Guilherme. O
decreto de um concílio de Poitiers, acontecido sem dúvida em 1000,
prevê que os cojuradores do pacto cessem de resolver pelas armas seus
conflitos de propriedade e façam pressão para que todos recorram à
justiça. Trata-se de um artigo que vai longe demais (ele raramente será
retomado em seguida), uma vez que privaria a guerra feudal de seu mo-
tivo mais corrente. Mas trata-se também de um artigo que levaria longe
um promotor de paz um pouco ambicioso, uma vez que prevê a coalizão
guerreira contra o recalcitrante.
Ademar de Chabannes é um firme partidário desses pactos no
Limousin. No entanto, há uma distância notável entre os sermões que
e de
produz a esse respeito, todos vibrantes de preocupação com a justiça
em sua
apelos a São Marcial e a Deus, e o lugar reduzido desses pactos
de 99?.
Crônica da Aquitânia. Ele só evoca os pactos de Limoges, a parti}'
incendiou o Li-
“Nesse tempo, uma peste de fogo [0 mal dos ardentes]
dcvi)rados por
mousin. Incontáveis corpos de homens e de mulheres eram
um fogo invisivel e por todos os lados a terra ressoava lamentos”"". "lÍcmf)S
aíum sinal da cólera de Deus segundo o modelo bíblico do Deuteronômio,
uma advertência dada aos homens. Esta, uma vez que atinge o servo .Pºr
um parente próximo
culpa dos nobres, poderia inclusive ser pensada como
da vingança indireta.

113 Ademar de Chabannes, III, 35.

193
A Cavalaria

, “to-
O abade de Saint-Martial e o bispo de Limoges, Hilduíno
uma sanção e reúnem
mando o conselho do duque Guilherme”, prescrevem
, 2 felicidade
um concílio de bispos e de relíquias. E assim a epidemia cessa
do
volta e “um pacto de paz, com justiça [uma instituição], une em acor
mútuo o duque e os grandes™!,
Ele diz so-
Pena que Ademar de Chabannes não desenvolva isso.
emente preocu-
mente que Hilduíno, na sequência, se encontra frequent
infringidos aos
pado em impedir “as pilhagens dos Cavaleiros, os danos
mais
pobres”, promulgando sanções espirituais (uma “excomunhão”, ou,
anece, enquan-
ainda, um interdito contra suas terras). Mas esse bispo perm
ra. Nós o
to gerente de um senhorio da Igreja, ele próprio autor de guer
vimos, com o aval do duque, com o apoio de seu irmão, o visconde Guido,
levantar um castelo em Beaujeu contra o senhor de Chabanais. É esse o me-
lhor meio para que nenhum pobre da região sofra rapinas de Cavaleiros?
É inclusive impcnsávcl que essa guerra de Beaujeu, ocorrida entre
1010 e 1015, e ganha não sem peripécia dramática pelos irmãos de Chaba-
nais, tenha colocado estes últimos, com sua “tropa de elite”, diante de uma
“multidao™® mobilizada em Limoges ¢ arredores, graças ao bispo, em
nome do pacto de paz?
O ocorrido, nesse caso, seria um prelúdio às guerras de paz dos
anos 1030 no Berry, tal como as conta André de Fleury, inicialmente seu
entusiasta e logo preocupado com elas. A instituição que ele apresenta é
“uma paz fundada sobre o juramento”, decretada por um concílio — não
há dúvida, trata-se daquilo que nós chamamos de uma paz de Deus. Logo,

Andréatoma por uma mobilização: “todos os homens de 15 anos ou mais
sto
levantar-se-lam contra o violador do pacto, primeiro pagando um impo
as
e, sendo necessário, “com armas em mãos”. Não seriam, portanto, apen
endendo
os cavaleiros que iriam à guerra, mas uma hoste grande compre
e suas
infantes, inclusive padres portando estandartes de santos — sobr
os mouros.
relíquias —, um pouco como no combate contra
Tal como a descreveu, André de Fleury evoca, portanto, uma
o Aimon não
“instituição de paz” aparentemente subversiva. O arcebisp

MNA
14 Thidem. pp. 177-8.
Tl 42. Ver, neste volume,
15 Ademar de Chabannes,

194
Vassalos, senhores e santos

diz mais que as vinganças milagrosas dispensam os pobres de


se armarem
contra Cavaleiros pilhadores: é a hora do levante em massa,
e André de
Fleury celebra, com grande apoio de versículos bíblicos, a hora
em que os
humildes dispersam os soberbos. Entretanto, o inimigo que desig
na o texto
do juramento de Aimon é somente o opressor de bens da Igrej
a e do clero.
E a hoste da paz comporta um certo número de Cavaleiros
, a começar pelo
próprio visconde de Bourges, aliado do arcebispo.
Essa hoste de paz parte em campanha contra castelos, afugentand
o
seus senhores e habitantes. Ela encontra, no entanto, em um castelo,
Bene-
cianum, camponeses refugiados, com a mulher e os filhos do senhor
— que
fugira. Ora, essa hoste Ihes nega a rendição, realizando um massacre. Desde
então, André de Fleury, cheio de repugnância, só espera a vingança de Deus
contra a paz de Deus. Ela ocorre em 18 de janeiro de 1038, quando essa
hoste sanguinária atravessa imprudentemente o Cher para entrar na terra
do poderoso Eudes de Déols. Esse senhor não tem Cavaleiros em número
suficiente, mas, para enganar o inimigo, “vem-lhe a ideia de fazer montar
infantes sobre não importa que animais e colocá-los em meio aos Cavalei-
ros”. Então, a hoste de paz, apesar dos estandartes brandidos pelos padres,
fica atemorizada, se dispersa ¢, na travessia do Cher, é despedagada'’®.
Aqui, portanto, o pacto de paz foi apenas um meio de endurecer
a guerra feudal. Ou, mais precisamente, de fundar a supremacia dos se-
nhores da cidade sobre uma hoste aumentada por infantes, nos quais seria
necessário talvez adivinhar uma burguesia já emergente, ao menos por
analogia com a “comuna” de Mans de 1070, cuja história se parece um
pouco com essa””!.
Até aqui, as guerras feudais, reguladas pel?s n(')rmas bastante an-
tigas da vassalidade e do cristianismo pés-carolingio, tlvcrar,n que poupar
não apenas a vida e a reprodugio da classe nobre, mas i também aquelas da:
i
classe camponesa e a ri queza local. Daí, em continuidade com o ' cresci-
mento rural e impulsionado por ele, dá-se um princípio de crescimento
para
urbano, À com burgos que começam a se expandir por todos os lados,
fora das muralhas dessas cidades que a guerra atinge apenas levemente.

Dieu...,
16 Milagres de São Bento, V, 3; ver meu estudo sobre LAn mil et la paix de
pp. 404-5.
17 Ver, neste volume, p. 262.

195
— Rata -

A Cavalaria

Mas se, ao longo do século X1, forcas sediadas em cidades reforcam,


quando necessario, as forgas dos principes regionais, não estamos cami-
nhando em direção a0 endurecimento das guerras?
Os codigos e juramentos ditos de “paz de Deus” — e mesmo a
“trégua de Deus” que evocaremos mais adiante — não visam limitar demais
as guerras de principes. De fato, eles muitas vezes dão tratamento parti-
cular guerra do rei, conde ou bispo, como Philippe Contamine notou
bem"*. O juramento de Verdun-sur-le-Doubs (1019-1021) é um dos mais
famosos. Ora, ele evoca com todas as letras, entretanto, o castelo ilegal,
que se deve ir sitiar com o rei, bispo ou conde. Nesse caso, as requisições
que pesam sobre os vilões não são interditas, ¢, inclusive, precisa o Cavaleiro
em seu juramento: “no tempo das hostes, eu não infringirei o sauvetet
[salvamento] (recinto em que vigora o direito de asilo) das igrejas, salvo
se recusarem me vender ou fornecer víveres”!",
Sobretudo, como bem vimos na Aquitânia, esses pactos de paz,
principalmente utilizados em favor da Igreja ao longo de seus dois séculos
de existência intermitente ou localizada (séculos XI e X11), fortalecem o
reieos principes regionais em seu papel de protetores, salvo em uma região
como o Maciço Central, onde não há mais príncipe. Lá, é a autoridade
politica dos bispos que mais se beneficia deles, até que, precocemente,
venham a pedir o auxílio do rei capetíngio, no século XII. Ora, a Igreja
tem mais frequentemente tendência e interesse em caucionar, em apoiar
a ação dos príncipes. Ela é mais indulgente com suas guerras do que com
qualquer outra, menos reticente em contribuir com elas, e até em justiflcá-
las e suscitá-las... Dessa forma, já ao longo dos séculos XI e XII, a principal
“escalada de violências” a ser temida não seria aquela das “guerras” princi-
pescas e reais? De fato, vários cronistas se emocionam com o número de
vitimas que podem fazer as batalhas entre reis e principes. Por que os
concilios da “paz de Deus” não langam anátema sobre eles? Não seria essa
a primeira coisa a fazer contra a guerra entre cristãos?

118 Especialmente em Histoire militaire de France..., p. 52.


19 LAn milet la paix de Dieu..., p. 431.

196
Vassalos, senhores e santos

As batalhas entre príncipes

É preciso dizer que essas batalhas são raras, e que elas dão
lugar,
muitas vezes, a penitências, por causa do homicidi
o entre cristãos. Se esse
crime não foi diretamente evocado pelos concílios
do ano 1000, se eles
prcferir am atacar a vingança indireta, ou seja, a pilhagem dos
camponeses:
pelos guerreiros, é porque isso era muito mais frequente e muit
o menos
reprovado.
A guerra feudal é essencialmente uma atividade sazonal, e sua
razão de ser é, como vimos; a Pilhagem sobre as terras do inimigo e o cerco
a um de seus castelos. Essas operações com alvos precisos são entrecortadas
por conciliábulos. As hostes que “trocam” inimizades evitam o choque
frontal, seja se.esquivando, seja se engajando em conversações mais ou
menos sinceras”, ' |
— Nãoobstante, temos para a primeira idade feudal, cinco ou seis
narrativas de batalhas de reis e príncipes, que, levadas em conta, trariam
grande proveito à história da guerra e da Cavalaria. É possível que nos
tenha chegado o eco das batalhas mais ressoantes, celebradas e controver-
sas. Nesse caso, o dossiê das batálhas da primeira idade feudal comportaria
dois aspectos distintos e significativos. -
Primeiramente, as narrativas e as menções da batalha de Soissons.
Em 15 de junho de 923, os reis rivais, Carlos, o Simples, e Roberto I (irmão
de Eudes, avô de Hugo Capeto), se enfrentam em um combate sangrento:
Roberto é morto, mas seu filho Hugo, o Grande, chegando com reforços,
se mantém mestre do campo de batalha. Um rei é então escolhido em uma
terceira familia, a dos duques de Borgonha. Essa batalha é objeto de
uma pbnitência, ordenada em Reims por um concílio de bispos também
colocado em destaque por Philippe Contamine"". Assim, temos algo da
reprovação religiosa das guerras entre reis çarolíngios. Em uina carea do
monge Rabano Mauro — retomada nos penitenciais renanos dos séculos

' Das quais Fulques de Nerra oferece um exemplo admirável, como o que conta Richer
(1v,91-92).
itaçã e eto, depoisi do regiistro
12! Philippe Contaniine, La Guerre..., p. 430 (com citagao do decr
de uma p4gina eloquente de Rabano Mauro).
A Cavalaria

o
XI — lemos que mesmo em uma guerra ordenada pelos principes,
X e H 1 122
*
há cupidez demais
considerada como jul gamento de Deus,
batalha mortífera,
Além disso, o precedente o ferecido por essa ,
com um resultado ambíguo, poderia bem
exccutada em um domingo
explicar a ausência de qualquer outra batalh
a entre carolíngios e robertia-
torno do ano 1000,
nos, ou implicando os três primeiros capetinglo s. Em
smitem tradições
os monges Richer de Reims e Ademar de Chabannes tran
Inventadas nesse inin-
interessantes sobre o domingo de Soissons (923)'%.
. . 123

tervalo de tempo, ou talvez refeitas, elas atestam um tipo de traumatismo


20 mesmo tempo que o ideal heroico do qual falamos. —
As outras batalhas do dossié da primeira idade feudal são vitdrias
dos condes de Anjou. Elas enumeram os progessos de seu poder em de-
trimento de seus vizinhos bretdes, aquitanos e de Blois. Em Conquereuil,
em 27 de junho de 992, Fulques Nerra supera a catastrofe inicial da em-
boscada 4 sua cavalaria nos fossos, ¢, no final de uma jornada mortifera,
seu adversario, o conde bretão Conan, é morto. O acontecimento reper-
cute, e as narrativas de Richer, de Raul Glaber'?%, assim como as crénicas
de Nantes e de Angers confirmam a armadilha inicial, mesmo divergindo
sobre Conan ¢ Fulques. Este tltimo, a fim de expiar os homicidios dos
quais ¢ tido como responsével, faz dons a mosteiros e até mesmo uma
peregrinagdo a Jerusalém. No entanto, cai novamente em 6 de julho de
1016, entregando ao conde Eudes I1 de Blois a batalha de Pontlevoy, sobre
o Cher, que faz centenas de mortos. A carnificina é mencionada pelo
alemio Thlft@ar de Merseburg, que ouviu falar em trés mil mortos. En-
tretanto, a única narrativa detalhada, que é angevina e ulterior, atribui ao
conde de Blois a iniciativa da batalha, ¢ reconhece ao conde de Mans,
Hcrvllpzcszrto De[s}?crta—ci(? ('o'cativo de Saintes, segundo Ademar de Chaban-
nes!"”), o mérito da vitéria por seu reforco decisivo. Em seguida o filho
.de }.Tulques Nerra, Godofredo Martel, conde de Anjou de 1040 a
1060,
justifica seu sobrenome poruma série de vitórias sobre a Aquitania (desde
1033) e pelo sucesso decisivo de 21 de agosto de 1044 sobre os condes

122 Philippe Contamine, Lz Guerre..., pp. 429-30.


123 Richer, I, 46; Ademar de Chabannes, Crônicas, 111, 22.
124 Richer, IV, 82-6; Raul Glaber, Histdrias 11, 3. História dos condes de Anjou, . 13,
125 Ver, neste volume, p. 179. PB

198
Vassalos, senhores e santos

de Blois, em Nouy, Saint-Martin-le-Beau. Ele captura aí Teobaldo de Blois,


e o obriga a lhe entregar Touraine, que era objeto de luta secular entre suas
famílias. Temos a esse respeito duas narrativas que seriam muito suspeitas
de embelezamento (em sentidos diferentes) se clas não concordassem no
que diz respeito a ver aí uma batalha menos mortífera que todas as prece-
dentes e mais decisiva que Soissons ¢ Pontlevoy. Ela parece de fato coroar
uma empreitada angevina que vale a Fulque Nerra e a Godofredo Martel,
tanto em sua época como nos livros modernos, reputação de valentia e de
dureza. Mesmo à época da paz de Deus, que eles nunca deixam ser decre-
tada em seus “Estados”, eles encarnam a rudeza acompanhada de uma
verdadeira desenvoltura em relação à Igreja, da qual eles compram a com-
placência através de doações e peregrinações. Em sua inclinação hipercrí-
tica, os historiadores de 1900 acusaram seus cronistas de fabulação cada
vez que davam elementos em favor de sua sutileza e dos limites de sua
violência. Para Robert Latouche, por exemplo, quando Richer escreve
sobre Conquereuil (992), “cede à sua inclinação de complicar por prazer
as situações e de emprestar ideias sutis a seus personagens”, “efeito deplo-
rável da imitação de Salústio”"?é. Mas ele é ainda um contemporâneo do
fato, confirmado por outros no que diz respeito às armadilhas bretás. Mas
o que dizer da Histdria dos condes de Anjou, em scus trés estágios sucessivos
que datam todos do século XII? É um livro repleto de Lucano, e ainda de
Saltstio. E, sobretudo, um livro ao gosto cortés — que impregna anacro-
relatar,
nicamente a versão de Conquereuil — e que estima acima de tudo
melhor pôr em
a cada batalha, a presungao ou o avango adversério, para
relevo o sobressalto angevino. O que se pode reter, a partir tanto de Sois-
de narrativas recons-
sons (923) quanto da série de vitórias angevinas, além
truídas ou fabulosas dessas batalhas feudais?
da mutação feu-
Para dizer a verdade, o dilema não data para nós
dal. Ele foi colocado desde a Antiguidade, e mais vivamente ainda na
medida em que as páginas de Tácito, de Gregório de Tours, de Ermoldo,
o Negro, eram mais ricas em sugestões. Mas, dessa vez, ele é mais agudo
do que nunca, pois os três grandes cronistas do ano 1000, Richer, Raul,
Ademar, fazem aparecer, cada um à sua mancira, as premissas da Cavalaria

2.
126 Robert Latouche (1937), em sua edição de Richer, t. IL, p. 285, nota

199
A Cavalaria

l levar a sério
nas narrativas de batalhas. Consequentemente é indispenséve
Conquereuil ou
tudo o que eles dizem em suas paginas sobre Soissons,
sobre a bata lha nobre
Nouy. E preciso ver af representagées do ano 1000
¢ crista em geral e evitar dec idir entre eles em caso de
contradigio sobre
os fatos. O mais importante não é q ue 20 lê-los atentame
nte, desmasca-
rando suas estratégias narrativas, 0s descubra mos portador
es ou testemu-
nhas dos mesmos valores pré- ou proto- Cavaleiresc os?
A necessidade que
à aju da dos santos,
os grandcs tém de justificar suas guerras, seu recurso
sua maneira de ter coragem e demonstrá-la um pouco mais, tudo isso é
em
constitutivo de todos os pequenos e médios Cavaleiros que entraram
cena ao longo deste capítulo. E ainda, a História dos condes de Anjou, na
confrontação com Raul Glaber a propósito de Nouy, apesar das divergên-
cias, aparece mais conformada. Devemos fazer reservas a essa História (ou
guardá-la para um capítulo sobre o século XII), mas não nos privarmos
dela completamente.
Além do quê, qual narrativa de batalha histórica é verdadeira, ou
seja, exata e completa? Trata-se de momentos fortes demais, exultantes ou
traumáticos, bastante confusos também, cuja narração ulterior comporta
muitos problemas... Os estudos de Xavier Hélary sobre os séculos XIII e
XIV dão outros exemplos de divergência'””. Precisamos reler as reconstru-
ções de Waterloo feitas por Stendhal e Vitor Hugo para nos persuadirmos
do interesse das confissões do romance'?, cuja função, no final das contas,
é desempenhada pelas crônicas do ano 1000.
Sem serem batalhas napoleônicas, as da época feudal não o são
menos organizadas. Elas não se reduzem a uma justaposição de “combates”
como as batalhas dos germanos descritas por Tácito. Em Soissons e em
Conquereuil há um verdadeiro deslocamento da cavalaria em duas linhas.
A som:{ d;s cbhcfcs,I dos pretel;dentes à vitória, não o é menos decisiva. À
morte de Roberto I traz para Soissons o indecifrável julgamento
uma vez que seu filho vence em seguida. A morte do íongde conagíâãí
o resultado em Conquereuil, dando à obstinagio angevina uma re-
compensa talvez inesperada. Em Nouy, enfim, a captura de Teobaldo
de Blois explica provavelmente por que a batalha para um pouco brusca-

127 Xavier Hélary, “La guerre vue par les clercs....


128 Segundo a bela expressio de Mona Ozouf, Les aveux du roman. Paris, Fayard, 2004

200
Vassalos, senhores e santos

mente — e torna possível, senão absolutamente meritória, a celebração


por Raul Glaber de uma milagrosa ausência de mortos e feridos.
, A p;Tiori, essas batalhas não deveriam parecer muito “Cavaleires-
cas”, namedida em que elas são iguais a tantas outras manobras da guerra
feudal. Isso não se deve à gravidade das circunstancias e à deriva enraive-
cida? A cada vez, alguém quer forcar a decisio e, aparte Godofredo
Martel em Nouy, ela vira confusio e efusio de sangue. Procura-se em
vão, nas narrativas, reconciliagGes com belos gestos no entardecer das
grandes baralhas. Richer e Raul Glaber, tomando partido por um dos
adversários, criticam a injustiga do outro. E a Histdria dos condes de An-
Jjou zomba dos vencidos.
Além disso, essas batalhas são entrecortadas por deslealdades ¢, à
primeira vista, ninguém ¢ leal. De duas, uma: ou bem nio existe cédigo,
mesmo implícito, na guerra de principes, ou realizam infrações contínuas a
ele. O dia 15 de julho de 923 cai em um domingo, e o rei Roberto I não espera
um ataque da hoste adversária. Isso lhe custa a vida, pois seu partido além
de se armar muito precipitadamente também é menos numeroso — até a
chegada de Hugo e seus reforgos'?. Carlos, o Simples, portanto, o surpreen-
deu. Ele certamente não propôs o julgamento de Deus por meio de combate
singular. Ele também não marcha à frente ou em meio a suas tropas. Em
Conquereuil em seguida, em 27 de junho de 992, o conde Conan usou uma
armadilha, provavelmente inspirado e auxiliado pelos aliados normandos,
na qual cai a cavalaria angevina, após o que não se teve pena dele.
Mas Carlos, o Simples, é um carolíngio apavorantemente decaído
e controvertido, e Conan é um bretão. Não há golpes tortuosos compará-
veis aos seus, em Pontlevoy e Nouy.
E, para dizer a verdade, mesmo as batalhas mais Cavaleirescas
eios do século XII
(como Brémule em 20 de agosto de 1119) ¢ os torn
os, fingimentos.
comportarão ardis de guerra — ou, pelo men
(923), Richer de
Além disso, a respeito da batalha de Soissons
lado de Roberto I — mesmo
Reims e Ademar de Chabannes colocam do
cedimento nobre. Ele se faz
o tendo por usurpad or — um verdadeiro pro
r pelo adve rsár io dei xan do flut uar sua barba branca: ela é como sua
nota

R <. S—
129 Elodoardo, Anais, p. 13.

201
A Cavalaria

PA
insígnia”, nota Ademar. As duas narrativas identificam aquele que ele mata
(e com quem morre): o conde Fulberto, mandado por Carlos, o Simpl
es,
segundo Richer, para o comando da primeira linha, avisado por ele do
perigo, segundo Ademar. A batalha se concentra, então, nas duas narrati-
vas, sobre o duelo até a morte, palpitante e heroico.
Para os autores do ano 1000 há códigos nas batalhas. A de Con-
quereuil se desenvolve, segundo Raul Glaber'™, em um lugar combinado
entre os adversários, e onde, além disso, 11 anos antes, uma outra batalha
acontecera, o que tenderia a fazer desse lugar um tipo de sítio costumeiro
para batalhas, como haverá para os torneiros futuros, a zona fronteiriça
entre “regiões”.
Não creio nem um pouco que Richer invente tudo dos discursos
de Conan e de Fulques antes da batalha. Conan ordena aos seus que não
se mexam; ele alega que não cairá no erro de atacar primeiro. Trata-se de
um pretexto para atrair os angevinos para a armadilha dos fossos que ele
mandou cavar e cobrir com vegertação. Nesses momentos, a guerra feudal
se mostra plena de um pacifismo de circunstância ou de fachada. Por seu
lado, Fulques Nerra chama os seus para o ataque: “Eles deviam ter confiança
em suas forças, considerando que Deus não lhes seja desfavorável”"*,
Mesmo Geraldo de Aurillac poderia ter dito isso. Richer organiza sua
narrativa em função de valores e de uma presença do discurso e do fin-
gimento nas guerras de príncipes, que ele nos reconstitui de maneira
certamente autêntica. Não deixemos de lado um fato importante, novo, e
que ele é o primeiro a atestar para a França feudal: o recrutamento de
mercenários, ou pelo menos de Cavaleiros contratados, por Fulques Nerra.
Tsso teria se dado mesmo antes de Conquereuil, como ele diz? E se tivesse
se dado, sobretudo, após a batalha, entre seus próprios adversários inespe-
a partir fíe
radamente privados de seus condados? A empreitada angevinf,
regiões do Loire
992, pôde alistar mais de um Cavaleiro bretão: as cartas de
esses Çava-
atestam pontualmente a presença deles. Ora, como veremos,
da Cavalaria!
leiros a soldo vão ter uma importância capital na história
Em um outro sentido, a bela batalha de Nouy, em Saint-Martin-
Como
le-Beau (21 de agosto de 1044), é também um marco importante.
D
130 Histórias, 11, 3-
131 Richer, IV, 84-

202
Vassalos, senhores e santos

São Geraldo anteriormente, Godofredo Martel triunfa aí com a ajuda dos


céus. Tal ¢, pelo menos, a tese de Raul Glaber'® O conde Godofredo
consegue o direito de carregar sobre sua lança a insignia de São Martinho,
prometendo restituir-lhe senhorios. Em consequência disso, diante dele,
a hoste adversária conduzida pelo conde de Blois e seu irmão encontra-
se paralisada de terror. O conde é preso, seu irmão foge, e o balanço
magnífico é “a captura sem efusão de sangue de 1.700 homens em armas”.
Eles podem narrar que seus vencedores, da hoste de Godofredo, “tanto
a pé quanto a cavalo, pareciam portar vestimentas imaculadas” — à
maneira dos santos que aparecem nas igrejas. E se isso fosse uma bela
desculpa para fazer admitir sua falta de combatividade, depois da captura
do conde Teobaldo?
A versao angevina ulterior, escrita após 1100 na Histdria dos condes
de Anjou, é aparentemente muito diferente!: no lugar de sacralizagio há
a coragem, a valentia angevina, e isso causa mortes. No entanto, mesmo
essa História atesta bem um contraste com a batalha de Pontlevoy (1016),
reputadamente muito mortifera, perdida pelo pai de Teobaldo diante do
de Godofredo: a narrativa esclarece que os Cavaleiros adversérios fugiram
enquanto os infantes se fizeram matar'*%, Em Nouy, em 1044, a derrocada
de Blois faz muito mais cativos, mesmo entre os infantes, ¢ esse dado parece
auténtico.
Dessa forma as guerras de principes aparecem, em meados do
século XI, como aquelas cuja prática coloca o maior número de problemas.
Os meios crescentes desses principes regionais, a necessidade que tém de
afirmar, e até endurecer — tal como os angevinos — seu perfil guerreiro,
para se juntarem ou impressionarem os senhores e Cavaleiros de castelos,
devem empurra-los a procurar, pelas armas, prestigio e ganhos politicos,
para além inclusive dos ataques e pilhagens. E inclusive a Igreja da “paz de
da
Deus” pode ajudé-los a justificar suas guerras, ou se dividir a respeito
dureza que ela comporta.
Além disso, por meio da Igreja, e para além dela, toda a sociedade
sobre
feudal é ambivalente a respeito da guerra de principes. As narrativas

132 Histdrias, V, 19.


133 História dos condes de Anjou, pp. 56-8.
134 Idem, p. 52.

203
A Cavalaria

a batalha de Soissons, afinal de contas, não fazem brilhar a coragem do rei


Roberto, apesar da justificação da causa de Carlos, o Simples? Em geral,
deseja-se que a justiça triunfe, mas não sem espetáculo de valor guerreiro.
Desejam-se belas baralhas, mas sem efusão exagerada de sangue. Há de
fato risco de desvios, sobretudo no caso das guerras de príncipes — as
mesmas para as quais a reprovação da Igreja é mais tímida.
-
Não é chegado o tempo em que, sobre a base dos acordos tradi
propriamente Ca-
cionais entre guerreiros, se desenvolvem convenções
valeirescas?

204

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