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Rev Bras Anest

1993; 43: 1: 65 - 74

Complicações em Anestesia Obstétrica: Problemas


Hematológicos, Eclâmpsia e Pré-Eclâmpsia e Aspiração de
Conteúdo Gástrico
Jaime Pinto Araújo Neto,TSA; Carlos Eduardo Lopes Nunes,TSA
Araújo Neto JP, Nunes CEL - Complications in Obstetric Anesthesia. Hematoligic Disorders, Pre-Eclampsia and
Eclampsia, Gastric Aspiration.

Key Words: COMPLICATIONS: toxemic, coagulopathy, aspiration of gastric contents; SURGERY: Obstetric

grávida com complicação grave, é um sério pro-


A blema para o obstetra, clínico, anestesista e pe-
Quadro I - Critérios Diagnósticos para Hipertensão Leve na
Gravidez
diatra. A doença aguda da mãe atinge
simultaneamente dois seres com fisiologias marca- Hipertensão
damente diferentes. A integração destas especialida- - PA - diastólica > 90 mmHg
des, no tratamento de gestações complicadas, é de - sistólica > 140 mmHg
extrema importância para o bem estar materno e - Aumento relativo da PA - diastólica > 15 mmHg
fetal. As cardiopatias, esteatose hepática aguda, - sistólica > 30 mmHg
doenças tromboembólicas, hemorragias, hiperten- Proteinúria
são com pré-eclâmpsia e eclâmpsia, embolia amnió- - 300 mg proteina/24 h
tica, broncaspiração (S. de Mendelson) são algumas - concentração proteina urinária > 18/L
das complicações que podem afetar a grávida e cau-
Edema
sar transtorno para o feto.
- > 1 + de edema com cálcio após 12 h repouso/leito
- aumento de peso > 2,5 kg em uma semana
A - Pré-Eclâmpsia e Eclâmpsia Dados do American College of Obstetricians and Gynecologists - Fev -
ereiro de 1986
É uma síndrome clínica caracterizada por hiper-
tensão, edema e proteinúria, surgindo, geralmente, Quadro II - Critérios Diagnósticos para Hipertensão Severa na
Gravidez
após a 20ª semana de gestação. A eclâmpsia implica
a ocorrência de convulsões e coma numa paciente
- PA - diastólica > 110 mmHg
com pré-eclâmpsia. Os quadros I e II, propostos pelo - sistólica > 160 mmHg
"American College of Obstetrics and Gynecology"
- Proteinúria > 5 g/24 h
tentam sistematizar os critérios clínicos desta sín-
drome. Nos E.U.A., a pré-eclâmpsia ocorre em cêrca - Oligúria < 400 a 500 ml/24 h
de 5 a 7% das gestações, afetando cerca de 250.000 - Alterações - cerebrais: nível de consiência, cefaléia
pacientes por ano. As mortes maternas por hemor- - visuais: escotoma, borramento da visão
ragia cerebral, falência hepática e renal são as com- - Edema Pulmonar
plicações mais graves relacionadas com a doença. É - Trombocitopenia
importante distinguir hipertensão crônica de pré- - Alteração dos testes de função hepática
eclâmpsia, na evolução de uma gestação. As disfun-
- Dor epigástrica
ções neurológicas, cardiovasculares, pulmonares,
- Eclâmpsia
Dados do American College of Obstetricians and Gynecologists
Correspondência para Jaime Pinto de Araújo Neto Fevereiro de 1986
R Kobe 330
22631-410 Rio de Jeneiro - RJ
hematológicas, renais e hepáticas fazem parte do
conjunto de sinais e sintomas agravantes da síndro-
© 1993, Sociedade Brasileira de Anestesiologia
me1,2 .

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ARAÚJO NETO E NUNES

Etiologia cular disseminada ou de fibrinólise. Dosagens de


protrombina, tromboplastina parcial (PTT) e fibrino-
São várias teorias etiológicas propostas para ex- gênio são necessários.
plicar a pré-eclâmpsia incluindo infecção, respostas O controle do bem estar fetal através de teste sem
imunológicas anormais à placenta e anormalidades estresse ou de aceleração cardíaca fetal pela ocito-
da prostaglandina. cina deve ser controlado por cardiotocografia ou ul-
trassonografia. Este exame avalia a movimentação,
Fisiopatologia tônus, respiração e volume qualitativo do líquido am-
niótico.
A placenta, por mecanismos imunológicos, levaria
a alterações da relação prostaciclina/tromboxano de Fatores de Risco
ativação da trombina e deposição de fibrina no leito
vascular sistêmico materno, levando a disfunção nos Podem ser enquadrados no Quadro III.
leitos vasculares hepático, renal, uteroplacentário e
no sistema nervoso. Ocorre um espasmo arteriolar Quadro III - Fatores de Risco para a Pré-Eclâmpsia
generalizado com redução de fluxo e hipóxia tissular.
Há um envelhecimento precoce da placenta podendo História Familiar Eritroblastose fetal
surgir necrose e infarto. Esta redução de fluxo piora Nuliparidade Diabetes mellitus
com as contrações durante o trabalho de parto, au- Poli hidramnia Hipertensão crônica
mentando o risco de morte fetal. Gestações múltiplas Doença vascular
No SNC, devido a perda do vasoespasmo protetor
Mola hidatiforme Lupus eritematoso
da autoregulação cerebral, podem surgir edema
cerebral vasogênico e petéquias corticais. Há piora
do edema cerebral após crise convulsiva, podendo Tratamento
surgir também letargia, cegueira cortical e coma. Nos
rins há redução do fluxo sangüíneo renal e da fil- Podemos dividir em tratamento obstétrico, trata-
tração glomerular, levando a queda do "clearance" da mento clínico e conduta anestésica.
creatinina. Nos casos mais graves pode surgir ne-
crose cortical e insuficiência renal. A função renal a) Tratamento Obstétrico: A retirada do feto de um
melhora geralmente após o nascimento2. ambiente que só lhe é prejudicial surge como única
A lesão hepática aguda com esteatose ocorre medida terapêutica definitiva, possibilitando me--
geralmente no 3º trimestre. As enzimas hepáticas lhores condições de assistência numa UTI espe-
estão elevadas e pode surgir trombocitopenia. Além cializada, protegendo-o dos riscos de sua
da redução do fluxo hepático, as deficiências nu- permanência dentro do útero.A preferência pelo
parto cesáreo advém da maior rapidez na extração
tricionais, infecções virais e toxinas ambientais
do feto, com menor risco de hipóxia (em relação
podem ser causa de falência hepática.
ao trabalho de parto) sobretudo com indução com
O edema característico da síndrome aparece
ocitocina. Nas pacientes que chegam em trabalho
devido à combinação de defeito do endotélio capilar de parto avançado, devemos abreviar o período
associado a aumento da pressão hidrostática ou da expulsivo com aplicação de fórceps de alívio3.
redução da pressão oncótica. b) Tratamento Clínico:
As alterações cardiovasculares têm relação com 1) Monitorização - Visa prevenir alterações
o aumento da volemia por retenção hídrica. Há ele- hemodinâmicas agudas que possam inter-
vação do débito cardíaco, do volume sistólico e da ferir ainda mais na perfusão placentária. O
freqüência cardíaca. Há aumento do trabalho controle da pressão arterial, pressão arterial
cardíaco e do consumo de oxigênio pelo miocárdio, pulmonar, capilar pulmonar, pressão venosa
podendo evoluir para falência cardíaca e edema pul- central e sobretudo do débito urinário são
monar agudo. A resistência vascular sistêmica está importantes métodos de monitorização que
elevada pelo alto teor de angiotensina II, surgindo devem ser empregados, sobretudo nos casos
graves2.
espasmo generalizado. Na gravidez normal, o co-
2) Hidratação - Na maioria dos casos de pré-
ração se adapta à sobrecarga de volume fisiológico eclâmpsia severa, em que muitas vezes há
pela hipertrofia excêntrica, quase no limite de reserva hiponatremia, a reposição deve ser feita com
de pré-carga. solução isotônica ou ligeiramente hipertônica
O controle hematológico é importante para se ou Ringer lactato numa média de 75 a 125
detectar o risco de hemorragia, de coagulação vas- ml/hora, sempre atentos a outras fontes de

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hidratação (ex. infusão de sulfato de 20 minutos até atingir uma pressão diastólica de 100
magnésio) com controle da diurese. Deve ser mmHg.
evitada sobrecarga volêmica que pode e) Diazóxido: potente vasodilatador arterial direto
agravar o edema pulmonar e cerebral. com pouca ação sobre os vasos de capacitância,
O uso de colóide, sobretudo de albumina, nos sem ação cardíaca direta. Pode produzir hipotensão
casos de edema importante com pressão
materna e fetal com taquicardia reflexa. Usado em
coloidosmótica menor que 12 mmHg, deve
ser feito geralmente associado a diuréticos. "bolus" de 30 a 75 mg sem grande risco.
A hipovolemia, nos casos de emprego de f) Nitroprussiato de sódio: vasodilatador que age
anestesia condutiva, deve ser corrigida pre sobre vasos de capacitância e resistência. Usado em
viamente para se evitar hipotensões bruscas. infusão contínua com resposta rápida (3 a 5 minutos).
3) Uso de Diuréticos - Como a pré-eclâmpsia cursa Tem como subproduto o cianeto que pode causar, em
com estado de volume contraído, o uso inicial uso prolongado, problemas de intoxicação. Exige
de diuréticos para controle de hipertensão monitorização eficiente pelo risco de queda rápida da
deve ser evitado. O uso de diuréticos tiazídi- pressão arterial. A infusão deve ser iniciada na dose
cos e furosemida, nos casos em que se em- de 0,25 mg/kg/min.
prega albumina ou após reposição salina,
g) Nitroglicerina: age sobre o fluxo placentário
deve ser considerado, bem como em casos
de insuficiência cadíaca congestiva e falência semelhante ao nitroprussiato de sódio. Causa hipo-
renal. tensão séria em paciente hipovolêmica, exigindo ex-
4) Controle da Hipertensão - O objetivo da terapêu- pansão de volume. Deve ser usada em paciente com
tica farmacológica é evitar picos hiperten- edema pulmonar e para controle de pico hipertensivo
sivos com possibilidade de hemorragia associado a manipulação traqueal durante in-
cerebral, hemorragia hepática e descola- tubação.
mento da placenta. Indicado nos casos em h) Bloqueador de canal de cálcio: usado via oral
que a pressão sistólica exceder 170 mmHg e com início rápido de ação e duração de efeito de 3 a
a diastólica 110 mmHg. As drogas mais 5 horas. Melhora a perfusão placentária. Pode
usadas são: agravar a trombocitopenia e causar queda do pH.
Melhor indicado na hipertensão pós-parto.
a) Clonidina: causa redução gradativa da pressão i) Inibidor de enzima conversora de angiotensina:
arterial com início em 30 a 60 minutos (máximo de 2 de uso limitado na pré-eclâmpsia. Há relato de dis-
a 4 horas) com ausência de taquicardia reflexa. morfia em fetos, quando de seu emprego materno.
b) Alfa-metildopa: tem a desvantagem de um Pode causar hipotensão fetal após o nascimento.
longo período de latência (6 a 8 horas) podendo
piorar a disfunção hepática. Causa depressão de 5) Controle das convulsões - É importante a pre-
enzimas biogênicas. venção e controle das convulsões na
c) Betabloqueadores2,4 : eclâmpsia, pelo risco de lesões graves para
o SNC bem como riscos para o concepto. As
- Propranolol: há relatos de diminuição do peso drogas mais freqüentemente empregadas
das crianças ao nascer (uso crônico), bem como são:
apnéia prolongada após uso venoso no pré-parto. a) Benzodiazepínicos: aumentam o limiar de con-
Causa redução da atividade cronotrópica e vulsão impedindo a propagação das disritmias
inotrópica. causadas por focos no cortex, tálamo e estruturas
- Labetalol: induz rápido controle da PA com límbicas. Causam problemas de depressão e hipo-
ausência de taquicardia reflexa. A dose inicial de 10 tonia sobretudo em prematuros de baixo peso ou com
mg, aumentada a cada 10 minutos até atingir 300 mg sofrimento uterino crônico, tendo efeito cumulativo.
por via venosa. Causa aumento da perfusão utero- b) Coquetel lítico (M1) (clorpromazina, prometaz-
placentária com diminuição da resistência vascular ina e meperidina): de uso restrito hoje em dia, pelas
uterina. ações colaterais. Atua diminuindo o metabolismo
d) Hidralazina: é atualmente o antihipertensivo celular no SNC, dificultando o desencadear das cri-
mais empregado. Tem efeito de relaxamento sobre a ses convulsivas. A clorpromazina pode causar trom-
musculatura lisa vascular (vasos arteriais) com bocitopenia, icterícia e alterações na retina. A
pouca ação sobre os vasos de capacitância. Pode meperidina causa depressão fetal. O coquetel lítico
causar queda da pressão arterial e redução da per- pode causar hipotensão brusca, o que limita seu
fusão placentária, sobretudo na paciente hipo- emprego.
volêmica. Empregado na dose de 5 a 10 mg em cada c) Sulfato de magnésio: é a droga de maior indi-

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cação no controle das convulsões. Deprime a trans-


missão neuromuscular por inibição pré-sinática na B - Distúrbios da Coagulação
junção neuromuscular, devido a diminuição da lib-
eração de acetilcolina. O sulfato de magnésio deve A hemostasia origina-se de uma inter-relação das
ser usado de forma cuidadosa, pois pode causar vias de ativação e inibição, tendo como resultado a
depressão respiratória grave e parada cardíaca. formação do coágulo e, de maneira dinâmica, sua
Deve ser usado com uma dose de ataque de 4 g por lise. Resulta, portanto, do equilíbrio entre sistemas
via venosa, seguido de infusão de 2 g/h. A monitori- pró-coágulo e pró-fibrinólise6.
zação clínica (reflexos patelares, freqüência respi- Deve-se sempre ter em mente os quatro pilares
ratória e débito urinário) e os níveis séricos de básicos da hemostasia: 1) integridade vascular; 2)
magnésio são essenciais. Sempre que possível usar plaquetas; 3) cascata da coagulação; 4) lise do
bomba de infusão. O nível sangüíneo ideal está entre coágulo. Esta abordagem facilita o raciocínio tanto
1,5 a 2,5 mEq/l. Apresenta interação grave com re- no que diz respeito ao diagnóstico, quanto para fins
laxantes musculares, prologando seus efeitos. A in- terapêuticos.
terrupção da infusão, oxigenioterapia e uso de O processo de formação do coágulo é deflagrado,
gluconato de cálcio são as medidas que podem ser primariamente, pela exposição do colágeno sub-en-
tomadas em caso de sobredose4 . Todos estes cui- dotelial, em decorrência da perda de continuidade do
dados com o uso de drogas anticonvulsivantes de- endotélio. As fibras colágenas promovem a adesão
vem acompanhar os cuidados básicos de tratamento, das plaquetas à parede vascular, fenômeno que é
como oxigenação e tratamento da acidose. prontamente seguido por uma alteração morfológica
6) Cuidados anestésicos3 - As pacientes com pré- plaquetária. Durante esta alteração, ocorre a des-
eclâmpsia e eclâmpsia requerem cuidados granulação das plaquetas com liberação de au-
básicos na administração de qualquer anest- tacóides, ADP e do fator 3 plaquetário (FP3;
esia. Cateterismo de veia de grosso calibre, tromboplastina). O ADP liberado atrai mais
evitar excesso de reposição de soro gli- plaquetas, que, por sua vez, liberam mais ADP. Desta
cosado, que pode causar intoxicação pela maneira, quantidades cada vez maiores de FP3 tor-
água, uso moderado de glicose, evitando nam-se disponíveis para desencadear a fase
hipoglicemia fetal e monitorização enzimática da coagulação.A cascata da coagulação
hemodinâmica eficaz são alguns dos cui- pode ser dividida em três partes: a via intrínseca, a
dados prévios. A escolha da anestesia de- via extrínseca e a via comum. A via intrínseca é a via
pende da situação obstétrica.
habitual, sendo iniciada pela ativação do fator XII
a) Analgesia peridural lombar: Visa obter analge- (fator Hageman). Já a via extrínseca, iniciada pela
sia com estabilidade hemodinâmica, mantendo per- ativação do fator VII (pró-convertina) parece ser uma
fusão tecidual, evitando depressão materna e fetal. via alternativa para a ativação do fator X (fator Stu-
Pode ser empregada em pré-eclâmpsia, melhorando art-Power), sendo esta a primeira etapa da via
a perfusão úteroplacentária. Devem ser tomados cui- comum.
dados em pacientes eclâmpticas que apresentem O fator XII ativado inicia, ao mesmo tempo, a
alterações da coagulação (plaquetopenia, CID), al- ativação do sistema fibrinolítico, através da cali-
terações hemodinâmicas, com a profilaxia de re- creína, que é a enzima responsável pela ativação das
dução do fluxo uterino (deslocamento do útero para cininas plasmáticas e da plasmina.O sangue da
esquerda evitando compressão aorta cava). grávida é descrito como hipercoagulável, com uma
b) Anestesia geral5 - Os cuidados de hidratação e elevação de todos os fatores pró-coagulantes, ex-
monitorização devem ser tomados. A resposta hiper- ceto o XIII e possivelmente o XI. Os inibidores ou
tensiva por ocasião da intubação traqueal deve ser moduladores da coagulação limitam o efeito amplifi-
evitada (com uso de nitroprussiato de sódio ou cador da cascata, com o objetivo de circunscrever as
opióides). Os cuidados de oxigenação são funda- reações ao local da lesão. Esses moduladores, cujo
mentais pois há aumento de consumo de oxigênio. principal exemplo é a anti-trombina III (AT III), per-
Nas pacientes com uso de sulfato de magnésio pode manecem em níveis similares aos da não-grávida,
ocorrer interação com relaxantes musculares.Os cui- durante toda a gestação.
dados pós-operatórios da mãe e do feto de controle
ventilatório, hemodinâmico, de hidratação e de con- Avaliação Laboratorial
trole das crises convulsivas são importantes para
uma boa evolução. Não existe um teste confiável, que sirva como um
"marcador" de coagulopatia. Dessa forma, as pes-

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quisas devem ser feitas de acordo com a patologia centrado de plaquetas, mesmo após o final do gote-
em questão. De uma maneira genérica, os testes de jamento, ainda existe uma grande quantidade de
triagem podem ser resumidos no quadro IV. Há vários células, que podem e devem ser recolocadas em
outros estudos que avaliam anormalidades da função suspensão através da adição de soro fisiológico. O
plaquetária ou permitem dosagens dos fatores plas- aumento exato na contagem plaquetária, assim como
máticos da coagulação. Os testes de Rumpel-Leede, sua vida útil no receptor vão depender da patologia
adesividade plaquetária, agregação plaquetária, subjacente e do tempo decorrente entre a coleta e a
taxa de ativação da protrombina e retração do administração da transfusão. As complicações
coágulo são alguns exemplos de avaliação mais pro- decorrentes de uma transfusão plaquetária podem
funda da atividade das plaquetas. Há ainda testes ser infecciosas, reações febris pós-transfusionais ou
bioquímicos e por radioimunoensaio que avaliam púrpura pós-transfusão.
quantitativamente os diversos fatores da coagu-
lação6,7 . Púrpura Trombocitopênica Idiopática (PTI)
Manuseio do Paciente
A púrpura trombocitopênica idiopática é uma
As coagulopatias adquiridas são muito mais doença auto-imune onde há produção de imunoglo-
freqüentes do que a congênitas em pacientes ob- bina anti-plaqueta, do tipo IgG. O sistema retículo-
stétricas. Entre as primeiras, a purpura tromboci- endotelial é o responsável pela destruição
topênica idiopática (PTI), coagulação intra-vascular plaquetária, sendo o baço o principal local onde isto
disseminada (CID), coagulopatia secundária à hepa- ocorre. Além disto, o baço é também o local de
topatia e terapia anti-coagulante são as mais produção dos anticorpos anti-plaqueta. O di-
comuns. A doença de Von Willebrand e a deficiência agnóstico é sugerido pela associação de tromboci-
do fator XI são as coagulopatias congênitas que mais topenia no sangue periférico com medula óssea
se encontram durante a gravidez. normal e povoada de megacariócitos. Há também
Alterações Plaquetárias grandes plaquetas na periferia e níveis altos de IgG
ligada às plaquetas. Todos os testes referentes à
Considerações Gerais cascata da coagulação são normais7 .
As trombocitopenias são, em geral, as causas O tratamento é feito, inicialmente, com corticóide
isolada mais comuns de coagulopatia em pacientes (prednisona 1 mg/kg). Caso a resposta não seja sat-
obstétricas. O defeito básico pode ser tanto uma isfatória, está indicada a esplenectomia, de preferên-
cia no 2º trimestre. Persistindo a trombocitopenia,
Quadro IV - Exames e fatores
deve-se pensar no uso de imunossupressores ou
plasmaferese, como último recurso.
Exames Fatores
Sabe-se que há, na placenta humana, receptores
Plaquetas e integridade para a porção Fc da IgG, podendo ocorrer a trans-
Tempo de Coagulação vascular
ferência ativa materno-fetal. A incidência de plaque-
Contagem de Plaquetas Nº de Plaquetas topenia neonatal em filhos de portadoras de PTI varia
Tempo Parcial de de 50 a 70%.
Tromboplastia (PTT) II, V, VIII, IX, X, XI Embora, teoricamente, a probabilidade de hemor--
Tempo de Protombina (PT) II, V, VII, X ragia intra-craniana fetal seja maior nos partos vagi-
Tempo de Trombina I, II, PDF*, Heparina nais, este dado não foi corroborado estatisticamente.
* PDF- Produtos de Degradação da Fibrina Isso implica que, até prova em contrário, a via do
parto não influi no prognóstico fetal, sendo o bom
diminuição da produção como um aumento da de- controle pré-natal da portadora de PTI o principal
struição das plaquetas. Embora o diagnóstico fator determinante da morbidade ou mortalidade neo-
etiológico preciso seja importante para o manuseio natal.
global da paciente, as transfusões plaquetárias são Com relação à técnica anestésica, deve-se seguir
quase sempre suficientes para conter a hemorragia, as normas gerais para a realização de bloqueios
pelo menos num primeiro momento. O sucesso de- espinhais em pacientes com coagulopatia. As
finitivo da transfusão plaquetária vai depender da pacientes bem controladas no período pré-natal
integridade funcional das células transfundidas, da podem ser submetidas à anestesia peridural ou
presença ou não de anticorpos anti-plaquetários no subaracnóidea.
plasma receptor e da etiologia da alteração
plaquetária. Deve-se lembrar que, na bolsa de con- Coagulação Intra-Vascular Disseminada (CID)

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a) tratamento das vias fisiopatológicas: correção do


Fisiopatologia volume intra-vascular, reposição de sangue ou
hemoderivados, apoio circulatório e respiratório
Não se trata de uma doença, mas de uma via b) tratamento da patologia subjacente (mecanismo
patológica comum, resultante de um ou mais desencadeador). Entre as medidas necessárias à
fenômenos desencadeantes.O consumo de pro- correção, ou melhor, compensação dos distúrbios
teínas pró-coagulantes e a ativação do sistema fibri- da coagulação encontram-se:
nolítico produzem (1) hemorragia, (2) produção
sistêmica de onômeros e polímeros de fibrina, com 1 - manter o fibrinogênio acima de 100 ng/ml, com
plasma fresco congelado (elevação prevista
conseqüênte isquemia do órgão terminal, (3) ati-
de 10mg/100ml por bolsa de plasma) ou crio-
vação dos sistema das cininas, levando a um precipitado (elevação prevista de 2 a 5
aumento da permeabilidade vascular e hipotensão e mg/100 ml por bolsa);
(4) ativação do sistema do complemento7. 2 - manter o número de plaquetas acima de
A ativação intra-parto do sistema da coagulação 50.000/L (aumento aproximado é de 5.000 a
(evidenciada pelo aumento de fibrinopetídeo A, fator 10.000/L por bolsa de plaquetas);
XII ativado e complexos solúveis de monômeros de 3 - manter o hematócrito mínimo de 30%, através
fibrina), assim como a ativação do sistema fibri- de transfusão de concentrado de hemácias
nolítico (evidenciada pelos produtos de degradação (cada unidade aumenta em torno de 3% o
da fibrina - PDF e pela diminuição do tempo de hematócrito e 1,5 g/ml a hemoglobina;
euglobulina), levaram os investigadores a designar o 4 - corrigir as deficiências de fatores da coagu-
lação com plasma fresco congelado.
parto normal como um estado de CID de baixo grau
e por curto prazo. Há também uma diminuição da O tratamento da patologia subjacente é geral-
agregação plaquetária (que pode decorrer do efeito mente alcançado com o esvaziamento uterino,
inibidor dos PDF) e ativação do sistema da calicreína havendo casos em que só a histerectomia consegue
durante o parto normal, fato que reforça a tendência abolir o processo desencadeador, de maneira eficaz.
atual de se considerar o parto como um estado de
CID pouco intenso e transitório. Coagulopatias Hereditárias
Doença de Von Willebrand
Diagnóstico
Esta doença é uma coagulopatia hereditária,
O diagnóstico da CID inclui achados clínicos e transmitida como um traço autossômico dominante,
laboratoriais. Entre os primeiros, estão sangramento com penetrância variável da grávida de dos sin-
em locais de punção venosa e/ou nas mucosas, tomas. O defeito está na porção Von Willebrand do
hemólise pela ativação do complemento, metror- fator VIII, ocorrendo um tempo de sangramento pro-
ragia, hemorragia na incisão da cesariana ou episio- longado devido à diminuição da adesividade
tomia, atonia uterina, hipotensão (hemorragia + plaquetária, fato que diferencia esta patologia das
bradicinina) e oligúria (hipovolemia + agressão re- outras coagulopatias hereditárias. A análise labora-
nal). A avaliação laboratorial deve incluir os níveis de torial revela diminuição do fator VIII coagulante e
anti-trombina III (AT - III), que funcionam como um antigênico, sendo a dosagem dos níveis de fator VIII
parâmetro de alta sensibilidade (97%) e especifici- no pré-parto um indicativo da necessidade ou não de
dade. A dosagem dos PDF, embora de alta sensibili- profilaxia intra-parto com crioprecipitado. Acima de
dade (95 - 100%), é um indicador inespecífico, a 50% dos níveis não gravídicos a profilaxia é dispen-
menos que os níveis sejam superiores a 40 mg/ ml. sável. A hemorragia intra-parto ou puerpural exige o
Os complexos solúveis de monômeros de fibrina e os crioprecipitado ou o plasma fresco congelado. Tanto
níveis de fibrinopeptídeo A indicam atividade recente um quanto o outro corrigem a deficiência do fator VIII
da trombina, sendo, juntamente com os níveis di- e o tempo de sangramento prolongado.
minuídos de fibrinogênio, um sinal de processo de
coagulação em curso. O esfregaço periférico revela Outras Coagulopatias Hereditárias
esquisócitos (hemólise) e plaquetopenia (90% das
pacientes). Devido ao aumento natural dos fatores da coagu-
lação durante a gravidez, as portadoras de deficiên-
Tratamento cia dos fatores VIII (hemofilia A) e IX (hemofilia B)
raramente apresentam graves hemorragias durante
Deve ser conduzido em duas vertentes principais: o parto. Estes defeitos respondem satisfatoriamente

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à administração de plasma fresco congelado. O com o tipo de material aspirado e também em função
mesmo ocorre com a deficiência de fator XI (que das complicações desenvolvidas10 .
parece não aumentar durante a gravidez).
Esvaziamento Gástrico

Anticoagulantes Devido a grande quantidade de variáveis, é im-


possível, apenas em função do tempo de jejum,
Cumarínicos predizer o volume intra-gástrico em um dado mo-
mento. Tanto a dor quanto a ansiedade, o uso de
As grávidas em uso destas drogas toleram o parto opiáceos e o próprio trabalho de parto em si, prolon-
(normal ou cesáreo) desde que o tempo de protrom- gam o tempo de esvaziamento gástrico.
bina esteja igual ou menos que 13 segundos. As principais substâncias estimulantes da cinética
A suspensão da droga, associada à administração gastro-entérica são a gastrina e a motilina, enquanto
de vitamina K, tendem a restabelecer a coagulação, a colecistoquinina retarda o trânsito digestivo. Além
porém este processo não é imediato. Caso a paciente disso, a gastrina estimula a secreção gástrica,
tenha entrado em trabalho de parto na vigência de aumenta o tônus do esfíncter gastro-esogágico
cumarínicos e com tempo de coagulação maior que (EGE) e relaxa o piloro. A motilina também aumenta
13 segundos, deve-se administrar plasma fresco o tônus do EGE.
congelado intra-parto. Normalmente forma-se 1 ml/min no período inter-
digestivo e 3 a 4 ml/min no período digestivo, sendo
Heparina a secreção diária total de aproximadamente 2.000
ml. Estes números, como outras variáveis, podem
Além da curta meia-vida ( 1 a 5 horas, de acordo não ser uniformes durante a gravidez10 .
com a dose), a heparina possui um antagonista efi-
caz, com efeito imediato, que é a protamina (1 mg Regurgitação Gástrica
para cada 100 unidades de heparina). Isto faz da
heparina o anticoagulante ideal para grávidas. Há Na regurgitação, o conteúdo gástrico flui passi-
ainda a questão da passagem placentária que, ao vamente do estômago para o esôfago através da
contrário dos cumarínicos, é quase nula. EGE, podendo atingir a faringe e, estando a glote
aberta, a laringe. A estrutura-chave para a ocorrência
C - Peumonite por Aspiração ou não de regurgitação parece ser, portanto, o esfínc-
ter gastro-esofágico. Ao que tudo indica, esta região
Incidência, Morbidade e Mortalidade funciona não como um esfíncter anatômico (já que
sua estrutura histólogica é similar ao resto do
Em alguns estudos, a aspiração concorre com 1 a esôfago) mas como um esfíncter funcional (fato que
20 por cento de todas as mortes relacionadas com a é corroborado pela riqueza de fibras nervosas na
anestesia, sendo a causa-mortis em 0,008 a 0,2 área). Além disto, aventa-se a possibilidade de haver
casos em cada 1.000 pacientes submetidos à anest- um mecanismo tipo válvula uni-direcional, que se
esia geral. formaria em decorrência do diafragma. Foram de-
Na grávida, este número cresce significati- monstradas, ainda, pregas mucosas atuando como
vamente, devido às peculiaridades do esvaziamento válvulas na região12.
gástrico. Embora o número de casos tenha di- O fato de os últimos 2 - 3 cm de esôfago lo-
minuído, alega-se que, na realidade, diminui o calizarem-se abaixo do diafragma, sujeitando-se as-
múmero de anestesias gerais nas grávidas, já que é sim a uma pressão intra-abdominal de
unânime entre os anestesiologistas a preferência por aproximadamente 10 cmH2 O (indivíduos normais e
anestesia condutiva nos procedimentos obstétricos. não-grávidas), dificulta a "abertura deste esfíncter,
Dessa forma, nos poucos casos onde é necessária a qualquer que seja o mecanismo envolvido.
anestesia geral, o risco continua alto9. A atropina, a morfina, meperidina e o diazepam
Devido à multiplicidade de complicações envolvi- reduzem a pressão do EGE, enquanto a metoclo-
das (pneumonite, abscesso pulmonar, insuficiência pramida, a gastrina e a motilina levam a um aumento
renal), fica difícil quantificar a morbidade decorrente do tônus12 .
da aspiração do conteúdo gástrico.
A taxa de mortalidade está em torno de 30 por Peculiaridades da Grávida
cento, mas pode variar de 3 a 70 por cento de acordo

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ARAÚJO NETO E NUNES

O aumento do útero causa um aumento da choque. A hipoxemia está sempre presente. Os


pressão intra-abdominal e intra-gástrica, sendo um achados radiológicos são variáveis, sendo o padrão
fator importante na fisiopatologia do refluxo. Ocorre mais freqüente constituído de pequenas áreas
que, ainda no primeiro trimestre, cem por cento das hipotransparentes, irregulares, com distribuição bi-
grávidas apresentam um aumento da pressão intra- lateral e com preferência pelas regiões peri-hilares e
gástrica, levando à conclusão de que o fator basais. Estes sinais tornam-se mais evidentes no
mecânico, embora importante, não é o principal a curso dos primeiros dias, para melhorar gradati-
favorecer a regurgitação. A produção de gastrina vamente ao final de uma semana. A piora radiológica
está aumentada durante toda a gestação sendo a após este período sugere pneumonia bacteriana, sín-
placenta o provável local de origem. Já a motilina, drome de angústia respiratória do adulto (SARA) ou
que acelera o esvaziamento gástrico, encontra-se embolia pulmonar.
diminuída desde o início da gestação. Com relação Como a hipoxemia é o sinal mais precoce e mais
à distorsão anatômica do EGE, causada pela com- sensível de broncoaspiração, a oximetria de pulso é
pressão uterina, acredita-se que seja irrelevante o parâmetro que mais auxilia no diagnóstico desta
como causa de refluxo. Na verdade, por deslocar o catástrofe em tempo hábil. Toda insaturação não
estômago para cima e para a esquerda, o útero explicada, ocorrida logo após a indução da anestesia
grávido determina uma maior angulação do esfíncter ou após a extubação, é suspeita. Esta regra aplica-se
e, conseqüentemente, uma maior barreira mecânica a todos os pacientes e não só às grávidas.
à regurgitação. Talvez esta angulação prejudique a
atuação do EGE como barreira funcional, fato que Profilaxia
não é confirmado pela maioria dos estudos existen-
tes. Embora o esvaziamento gástrico esteja dificul-
tado na grávida, inviabilizando as estimativas de
volume gástrico residual em função do tempo de
Tipo de Material Aspirado jejum, deve-se buscar como ideal o maior tempo de
jejum possível. Nas cesáreas eletivas este tempo
A influência do tipo de material (sólido x líquido) deve ser superior a 8 horas, recomendando-se que a
e seu pH já foi comprovada por Mendelson e, poste- última refeição seja líquida. A profilaxia compreende
riormente, quantificada por Tedbeant. Sabe-se que o medidas para reduzir a acidez, o volume intra-
pH crítico, para a ocorrência ou não de grave dano gástrico e medidas anti-aspiração12.
pulmonar, é 2,5. Acima deste valor, a histopatologia
(realizada em coelhos) revela as mesmas alterações Anti-ácidos
que a aspiração de igual volume de água destilada.
Abaixo, entretanto, observa-se agravamento da O uso de anti-ácidos não particulados parece
lesão pulmonar, de maneira proporcional ao pH. minimizar o dano pulmonar, caso ocorra a regurgi-
O material contendo partículas sólidas é o que tação. Seu efeito ocorre 20 minutos após a ingestão
desencadeia mais grave dano pulmonar. Quanto e pode permanecer por 1 a 3 horas, como no caso do
mais sólido o material, menor a influência do pH, de citrato de sódio. Os anti-ácidos particulados não de-
tal forma que nos aspirados com grande quantidade vem ser usados, pois sua aspiração provoca lesões
de sólido a histopatologia e sua tradução clínica, a pulmonares similares àquelas causadas pela aspi-
hipoxemia com hipercarbia, são semelhantes, ração de líquido ácido.
qualquer que seja o pH. O aspirado de sólido não Bloqueadores H 2
ácido causa mais lesão (e hipoxemia) do que o de
líquido ácido. Isto ocorre porque além das lesões Os bloqueadores H2 (cimetidina e ranitidina) re-
decorrentes da broncoaspiração em si, ocorrem duzem tanto a acidez como o volume intra-gástrico,
reações do tipo corpo estranho e atelectasias, decor- devido a diminuição da secreção de ácido clorídico.
rentes da obstrução mecânica de bronquíolos pelo O início da ação ocorre aproximadamente 45 min
material particulado10 . após a administração (venosa, intra-muscular ou
oral), sendo o efeito máximo observado entre 60 e 90
minutos e durando em torno de 4 horas (cimetidina).
Sinais e Sintomas Estas drogas cruzam facilmente a placenta mas não
têm efeito deletério significativo sobre o feto. As
Pode haver conteúdo gástrico na orofaringe, vantagens da ranitidina sobre a cimetidina são: maior
tosse, cianose, broncoespasmo, edema pulmonar e duração (8 horas), menor incidência de reações co-

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COMPLICAÇÕES EM ANESTESIA OBSTÉTRICA

laterais e menor interferência com o metabolismo sos.


hepático de outras drogas11.
Indução Rápida
Metoclopramida
Antes de considerarmos a indução rápida propria-
Tem ação central e periférica, estimulando o es-
mente dita, devemos ressaltar que esta técnica não
vaziamento gástrico, aumentando a pressão do EGE
é uma unanimidade entre os anestesiologistas.
e atuando como anti-emético. As ações centrais de-
Mesmo assim, continua sendo a técnica mais utili-
vem-se à inibição das vias dopaminérgicas, en-
zada para pacientes com estômago cheio a serem
quanto na periferia estimula a liberação de
submetidos à anestesia geral.
acetilcolina e, por isto, aumenta a motilidade gastro-
Fundamenta-se no fato de o período mais vul-
intestinal e o tônus do EGE, além de relaxar o piloro
nerável à broncoaspiração durante a indução ser
e o duodeno.
aquele que vai da perda da consciência à insuflação
Embora com estas vantagens teóricas, os estudos
do balonete do tubo traqueal.A sequência consiste
não confirmam, estatisticamente, a eficácia desta
de desnitrogenação com Fi O2 de 1.0 sob máscara,
droga de maneira definitiva. Entretanto, a combi-
por 5 minutos, pré-curarização, hipnótico, succinil-
nação de metoclopramida com bloqueador H2 parece
colina e intubação.
determinar uma diminuição clinicamente significativa
Outro dado importante é a inspeção da boca,
da acidez e do volume intra-gástrico. Não foram
língua, dentes, mandíbula, orofaringe e, se possível,
detectados efeitos colaterais nos neonatos cujas
visualização da epiglote antes de se iniciar a in-
mães usaram metoclopramida, quer crônica quer
dução. Quando houver perspectiva de dificuldade na
agudamente.
intubação, deve-se considerar a intubação com a
paciente acordada.
Posição
Como alternativa à succinilcolina, pode-se usar
O céfalo-declive ajuda a "escoar" material regur- atracúrio ou vecurônio, após uma "prime-dose". O
gitado para a nasofaringe e para a boca, e o céfalo- anestesiologista deve lançar mão das drogras hip-
aclive diminui a própria tendência ao refluxo. Desde nóticas e relaxantes com as quais esteja habituado,
que seja utilizada uma mesa confiável, que se possa pois a familiaridade com a técnica é o que mais influi
inverter rapidamente a inclinação em caso regurgi- no sucesso do procedimento. A succinilcolina
tação, pode-se deixá-la sempre em céfalo-declive, aumenta a pressão intra-gástrica devido às fascicu-
sendo dispensável o céfalo-aclive inicial9. lações musculares que acarreta. Estas, embora
menos intensas e freqüentes na grávida, devem ser
Intubação Traqueal previnidas com a pré-curarização. Há pacientes que
desenvolvem bloqueio neuromuscular significativo
Este procedimento deve ser regra geral para (por sensibilidade aumentada ou por dose excessiva)
qualquer paciente com estômago potencialmente após a "prime-dose". O esforço respiratório decor-
cheio e que vai submeter-se à anestesia geral. rente pode gerar uma pressão intra-torácica muito
Devemos lembrar que as grávidas já apresentam negativa, devido à descordenação entre os movimen-
alterações do esvaziamento gástrico desde o 1º tos diafragmáticos (que ainda persistem) e a ausên-
trimestre, o que as tornam especialmente perigosas cia de movimentos da musculatura das estruturas
nas curetagens uterinas pós-aborto, tão freqüentes superiores (língua, orofaringe, pescoço). Esta acen-
neste período. A prática clínica tem absolvido a an- tuação do gradiente de pressão abdominotorácico
estesia sob máscara neste grupo de pacientes, facilita o refluxo.
talvez porque o procedimento seja realizado numa Manobra de Sellick 9
fase em que os níveis de gastrina e motilina já ten-
ham voltado ao normal. Nestas pacientes, o tempo Considerada por muitos o método individual mais
de jejum deve ser respeitado com sobras. Caso ex- eficaz na prevenção da broncoaspiração, consiste na
ista urgência, deve-se proceder a uma anestesia compressão da cartilagem cricóide contra a coluna
condutiva. Entretanto, se a urgência for em con- cervical, aumentando a pressão no esôfago proximal
seqüência de hemor--ragia grave, contra-indicando e dificultando o refluxo. É indispensável a ajuda de
os bloqueios espinhais, não se deve hesitar em reali- outra pessoa, já que a compressão deve persistir
zar uma entubação traqueal como se fosse uma desde a perda da consciência até a insuflação do
cirurgia de maior porte. Lembrar que o bloqueio para- balonete (a simples intubação não é garantia de
cervical é uma opção a ser considerada nestes ca- traquéia vedada). Estudos retrospectivos feitos na

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Inglaterra revelaram que quase 70 por cento dos Tratamento


casos de broncoaspiração em cesarianas ocorreram
em intubações difíceis e/ou acidentadas, no exato Visa o retorno da função pulmonar o mais rápido
momento em que o auxiliar interrompeu a manobra possível. Dependendo da gravidade do quadro, as
de Sellick para ajudar o anestesiologista. Apanhar medidas consistem de ventilação mecânica simples,
qualquer material que tenha caído, colocar um guia CPAP ou apoio pressórico.
no tubo, ligar o aspirador, por exemplo, são coisas A broncoscopia está indicada nos casos de aspi-
que devem ser feitas pelo próprio anestesiologista, ração de material sólido, com obstrução brônquica.
por um outro auxiliar, por uma enfermeira, enfim por Os corticosteróides podem acarretar alguma
qualquer pessoa na sala cirúrgica, exceto a que está modificação no processo inflamatório mas não al-
incumbida da manobra de Sellick. Caso a intubação teram o curso da doença.
não tenha sido conseguida na primeira tentativa e Antibióticos profiláticos devem ser reservados
seja necessário ventilar a paciente sob máscara para para os casos de aspiração de material sabidamente
evitar a hipóxia, a compressão da cartilagem cricóide contaminado (por exemplo, obstrução intestinal
deve continuar. baixa, com aspiração de material fecal).

Sonda Nasogástrica (SNG)


Araújo Neto JP, Nunes CEL - Complicações em An-
Existe controvérsia neste ítem. A SNG, mesmo estesia Obstétrica: Problemas Hematológicos,
quando bem posicionada, pode deixar um resíduo Eclâmpsia e Pré-Eclâmpsia e Aspiração de Conteúdo
gástrico considerável. Dessa forma,acredita-se que Gástrico
a sonda não seja um método confiável para a pro-
filaxia do refluxo, ainda mais que sua presença di- Unitermos: CIRURGIA: Obstétrica;
minui o tônus do esfíncter esofageano inferior. Outra COMPLICAÇÕES: toxemia, aspiração de
restrição feita é quanto a incapacidade da SNG de conteúdo gástrico, coagulopatia
remover sólidos do estômago.

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