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Supressio, surrectio, duty to mitigate the loss, tu quoque, adimplemento substancial, proibição
do venire contra factum proprium e os demais desdobramentos da boa-fé objetiva nos
contratos.
INTRODUÇÃO
O contrato traduz um negócio jurídico por meio do qual os negociantes, de acordo com sua
vontade/autonomia, visam a atingir determinados interesses segundo princípios superiores de
natureza constitucional.
A figura contratual segue, hoje, uma principiologia que outrora não era observada nos tempos
do estrito pacta sunt servanda. Os princípios sociais dos contratos – equivalência material, boa-
fé objetiva e função social (Eticidade, Sociabilidade, Operabilidade ou concretude) – fazem-se
presentes na globalidade das figuras contratuais, inclusive nas hipóteses em que não se faça
evidente de maneira precisa a preponderância do poder negocial de algum dos contratantes.
Existe diferença entre conceito aberto e cláusula geral. Um conceito aberto significa
simplesmente um preceito normativo vago ou indeterminado a ser preenchido pelo juiz no caso
concreto (exemplo: justa causa). A cláusula geral, apesar de conter um conceito aberto, é uma
disposição normativa impositiva ao juiz. A carga normativa é maior.
Para o estudo do direito contratual, ingressando na seara dos princípios, interessante fazer
uma imersão conceitual a respeito destes. No entendimento de Humberto Ávila (2004, p. 70):
“Os princípios são normas imediatamente finalísticas, primariamente prospectivas e com
pretensão de complementaridade e de parcialidade, para cuja aplicação se demanda uma
avaliação da correlação entre o estado de coisas a ser promovido e os efeitos decorrentes da
conduta havida como necessária à sua promoção”.
Desse conceito é possível depreender que os princípios não se constituem em meros valores
cuja realização depende de vontades individuais, mas sim impõem o dever de adoção de
comportamentos necessários à viabilização de um estado de coisas. A boa-fé objetiva não é
nada mais do que uma regra de comportamento, que goza de exigibilidade jurídica e tem
alicerce na dignidade da pessoa humana.
Sendo a dignidade da pessoa humana um valor-fonte que norteia outros valores dentro do
ordenamento jurídico, inspira-se o próprio legislador na sua técnica de elaboração de cláusulas
gerais, que são textos dos quais se extraem normas, sendo muitas delas princípios
informadores de um determinado ramo do Direito. No caso do direito dos contratos, pode-se
mencionar justamente a boa-fé objetiva. O art. 422 do CC assim dispõe: “Os contratantes são
obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios da
probidade e da boa-fé”.
O art. 113, por sua vez: “Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os
usos do lugar de sua celebração”.
O BGB alemão abandonou a noção de boa-fé como sendo apenas uma ética individual,
passando a consagrar esse princípio como um valor ou como uma cláusula objetiva.
Esse princípio tem a função de resguardar a eticidade e a cooperação entre as partes, bem
como o cumprimento dos deveres anexos em todas as fases do contrato, a exemplo do dever
de informação que os contratantes têm entre si. O desrespeito aos deveres de informação,
cooperação, comportamento ético – deveres anexos – enseja violação positiva da relação
contratual, gerando direito à indenização pelos danos materiais ou morais sofridos.
Assim dispõe o Enunciado 24 do Conselho de Justiça Federal: “Em virtude do princípio da boa-
fé, positivado no art. 422, a violação dos deveres anexos constitui espécie de inadimplemento,
independentemente de culpa”.
Resta lembrar que a doutrina identifica na boa-fé objetiva três funções: diretriz ou critério
hermenêutico; criação de deveres jurídicos denominados anexos, conexos ou acessórios;
limitação do exercício de direitos subjetivos.
Veja-se um exemplo nítido no que concerne ao dever anexo de informação: a relação médico-
paciente. O art. 6º, III, do CDC, prevê que é direito do consumidor “(...) a informação adequada
e clara sobre os diferentes produtos e serviços, com especificação correta de quantidade,
características, composição, qualidade, tributos incidentes e preço, bem como sobre os riscos
que apresentem”.
A informação tem por finalidade deixar o paciente ciente de elementos objetivos de realidade,
para que dê, ou não, o consentimento para tratamento. O consentimento informado é
fundamental nessa relação contratual – afinal, a atividade médica é dotada do chamado risco
inerente. Embora médicos e hospitais, em princípio, não respondam pelos riscos inerentes da
atividade que exercem, pode, porventura, haver responsabilidade, se acontecer alguma
omissão de informação aos pacientes sobre as consequências possíveis do tratamento a que
serão submetidos.
Nesse mesmo contexto, Ávila (2004, p.44) traz lição sobre a possibilidade de regras, assim
como os princípios, comportarem ponderação. São casos em que as regras entram em conflito
sem que uma delas perca validade, ocorrendo a solução pela atribuição de peso maior a uma
delas: "(...) uma regra do Código de Ética Médica determina que o médico deve dizer para seu
paciente toda a verdade sobre sua doença, e outra estabelece que o médico deve utilizar de
todos os meios disponíveis para curar seu paciente. Mas como deliberar o que fazer no caso
em que dizer a verdade ao paciente sobre sua doença irá diminuir as chances de cura, em
razão do abalo emocional daí decorrente? O médico deve dizer ou omitir a verdade? Casos
hipotéticos como esse não só demonstram que o conflito entre regras não é necessariamente
estabelecido em nível abstrato, mas pode surgir no plano concreto, como ocorre normalmente
como os princípios. Esses casos também indicam que a decisão envolve uma atividade de
sopesamento de razões".
Esse exemplo da relação médico/paciente serve para colocar em evidência a relação dialógica
existente entre Código Civil e Código de Defesa do Consumidor. O alemão Eric Jayme criou a
TEORIA DO DIÁLOGO DAS FONTES NORMATIVAS, muito bem explicada em nossa doutrina
pátria por Cláudia Lima Marques (2008, p. 87): “O uso da expressão do mestre, ‘diálogo das
fontes’, é uma tentativa de expressar a necessidade de uma aplicação coerente das leis de
direito privado, co-existentes no sistema. É a denominada ‘coexistência derivada ou restaurada’
(cohérence dérivée ou restaurée), que, em um momento posterior à descodificação, à tópica e
à microrrecodificação, procura uma eficiência não só hierárquica, mas funcional do sistema
plural e complexo de nosso direito contemporâneo, a evitar a ‘antinomia’, a ‘incompatibilidade’
ou a ‘não-coerência’”.
O princípio em foco tem uma série de desdobramentos, vertentes ou sub-princípios que foram
sendo desenvolvidos ao longo do tempo por doutrina e jurisprudência estrangeiras e que foram
incorporados ao direito pátrio.
A primeira noção que pode ser mencionada é a de duty to mitigate the loss. Flávio Tartuce
(2007, p. 117), leciona: "Uma dessas construções inovadoras, relacionada diretamente com a
boa-fé objetiva é justamente o duty to mitigate the loss, ou mitigação do prejuízo pelo próprio
credor. Sobre essa tese foi aprovado o Enunciado 169 da III Jornada de Direito Civil: 'o
princípio da boa-fé objetiva deve levar o credor a evitar o agravamento do próprio dano'".
2. Relações obrigacionais. Atuação das partes. Preservação dos direitos dos contratantes na
consecução dos fins. Impossibilidade de violação aos preceitos éticos insertos no ordenamento
jurídico.
3. Preceito decorrente da boa-fé objetiva. Duty to mitigate the loss: o dever de mitigar o próprio
prejuízo. Os contratantes devem tomar as medidas necessárias e possíveis para que o dano
não seja agravado. A parte a que a perda aproveita não pode permanecer deliberadamente
inerte diante do dano. Agravamento do prejuízo, em razão da inércia do credor. Infringência
aos deveres de cooperação e lealdade.
4. Lição da doutrinadora Véra Maria Jacob de Fradera. Descuido com o dever de mitigar o
prejuízo sofrido. O fato de ter deixado o devedor na posse do imóvel por quase 7 (sete) anos,
sem que este cumprisse com o seu dever contratual (pagamento das prestações relativas ao
contrato de compra e venda), evidencia a ausência de zelo com o patrimônio do credor, com o
consequente agravamento significativo das perdas, uma vez que a realização mais célere dos
atos de defesa possessória diminuiriam a extensão do dano.
Resta lembrar o art. 765 do CC, que declara: “O segurado e o segurador são obrigados a
guardar na conclusão e na execução do contrato, a mais estrita boa-fé e veracidade, tanto a
respeito do objeto, como das circunstâncias e declarações a ele concernentes”.
Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald (2012, p. 195) assim lecionam: “Os direitos
podem ser adquiridos sem lealdade. Avulta aqui o estudo da regra tu quoque. Importa dizer
que quem viola determinada norma jurídica não poderá exercer a situação jurídica que essa
mesma norma lhe atribui. Com efeito, fere a sensibilidade ética e jurídica que alguém
desrespeite um comando legal e posteriormente venha de forma abusiva exigir a outrem o seu
acatamento”.
2. Destarte, não pode a locadora alegar nulidade da avença (distrato), buscando manter o
contrato rompido, e ainda obstar a devolução dos valores desembolsados pela locatária, ao
argumento de que a lei exige forma para conferir validade à avença. 3. Recurso especial não
provido” (STJ, REsp 1040606 / ES).
1. É pela lente das cláusulas gerais previstas no Código Civil de 2002, sobretudo a da boa-fé
objetiva e da função social, que deve ser lido o art. 475, segundo o qual ‘[a] parte lesada pelo
inadimplemento pode pedir a resolução do contrato, se não preferir exigir-lhe o cumprimento,
cabendo, em qualquer dos casos, indenização por perdas e danos’.
4. Não se está a afirmar que a dívida não paga desaparece, o que seria um convite a toda
sorte de fraudes. Apenas se afirma que o meio de realização do crédito por que optou a
instituição financeira não se mostra consentâneo com a extensão do inadimplemento e, de
resto, com os ventos do Código Civil de 2002. Pode, certamente, o credor valer-se de meios
menos gravosos e proporcionalmente mais adequados à persecução do crédito remanescente,
como, por exemplo, a execução do título. 5. Recurso especial não conhecido” (STJ, REsp
1051270 / RS).
No Código Civil, existe o artigo 330, o qual menciona que o pagamento reiteradamente feito em
outro local faz presumir renúncia do credor relativamente ao previsto no contrato. É exemplo de
supressio.
O que ocorre na surrectio é o fato de que o exercício reiterado de uma situação jurídica de
forma diferente do previsto no contrato faz surgir direito subjetivo, passando a haver
consolidação da nova desse novo status.
1. Trata-se de situação na qual, mais do que simples renúncia do direito à correção monetária,
a recorrente abdicou do reajuste para evitar a majoração da parcela mensal paga pela
recorrida, assegurando, como isso, a manutenção do contrato. Portanto, não se cuidou
propriamente de liberalidade da recorrente, mas de uma medida que teve como contrapartida a
preservação do vínculo contratual por 06 anos. Diante desse panorama, o princípio da boa-fé
objetiva torna inviável a pretensão da recorrente, de exigir retroativamente valores a título de
correção monetária, que vinha regularmente dispensado, frustrando uma expectativa legítima,
construída e mantida ao longo de toda a relação contratual.
2. A correção monetária nada acrescenta ao valor da moeda, servindo apenas para recompor o
seu poder aquisitivo, corroído pelos efeitos da inflação. Cuida-se de fator de reajuste intrínseco
às dívidas de valor, aplicável independentemente de previsão expressa. Precedentes.
3. Nada impede o beneficiário de abrir mão da correção monetária como forma de persuadir a
parte contrária a manter o vínculo contratual. Dada a natureza disponível desse direito, sua
supressão pode perfeitamente ser aceita a qualquer tempo pelo titular.
4. O princípio da boa-fé objetiva exercer três funções: (i)instrumento hermenêutico; (ii) fonte de
direitos e deveres jurídicos; e (iii) limite ao exercício de direitos subjetivos. A essa última função
aplica-se a teoria do adimplemento substancial das obrigações e a teoria dos atos próprios,
como meio de rever a amplitude e o alcance dos deveres contratuais, daí derivando os
seguintes institutos: tu quoque, venire contra facutm proprium,surrectio e supressio.
Mais uma vertente da boa-fé objetiva seria a proibição do venire contra factum proprium, sendo
esse um dos desdobramentos mais veementes do princípio em análise. A parte, ao adotar um
determinado comportamento numa relação contratual, presume ser aquele o seu
posicionamento, segundo os deveres anexos de cooperação, informação e eticidade. Não
poderá, portanto, incorrer posteriormente em comportamento contraditório, sob pena de
caracterizar abuso de direito. Tal situação enseja reparação do dano causado.
Perceba-se que o tu quoque, supressio, surrectio e proibição do venire contra factum proprium
são institutos que se relacionam. Carlos Roberto Gonçalves (2010, p. 61), sobre o tema:
“Assim, por exemplo, o credor que concordou, durante a execução do contrato de prestações
periódicas, com o pagamento em lugar ou tempo diverso do convencionado não pode
surpreender o devedor com a exigência literal do contrato. Igualmente, aquele que vene um
estabelecimento comercial e auxilia, por alguns dias, o comprador, inclusive preenchendo
pedidos e novas encomendas com seu próprio número de inscrição fiscal, não pode
posteriormente cancelar tais pedidos, sob a alegação de uso indevido de sua inscrição”.
Prosseguindo no estudo dos institutos, resta analisar a exceptio non adimpleti contractus.
Traduz a ideia segundo a qual ninguém pode exigir que outrem cumpra com a sua obrigação
no contrato, sem antes eximir-se de sua própria. É o que dispõe o artigo 476 do Código Civil:
“Nos contratos bilaterais, nenhum dos contratantes, antes de cumprida a sua obrigação, pode
exigir o implemento da do outro”. Outra manifestação da boa-fé objetiva.
Nas obrigações de prestações recíprocas, o não cumprimento de uma das partes permite à
outra a opção de resolver o contrato ou opor a exceção do contrato não cumprido, deixando de
efetuar a sua prestação até o momento em que o outro contratante não efetue a respectiva
contraprestação.
A compensação está prevista no art. 368 do CC: “Se duas pessoas forem ao mesmo tempo
credor e devedor uma da outra, as duas obrigações extinguem-se, até onde se compensarem”.
A exceção do contrato não cumprido requer a presença de uma única relação jurídica,
enquanto a compensação exige, pelo menos, duas relações, que se serão reciprocamente
compensadas.
CONCLUSÃO
Como visto, diante da nova principiologia contratual, a boa-fé objetiva vem assumir papel de
extrema relevância em todas as fases do contrato. O alicerce para o estudo da gama de seus
desdobramentos é a dignidade da pessoa humana, atributo do ser humano que informa tanto o
direito público, como o direito privado.
Os contratos passaram a ser enxergados sob essa ótica com o CC02. E traga-se à tona
apenas mais um princípio: o de conservação dos contratos, que sempre propugna uma
interpretação racional que permita ao contrato produzir os seus efeitos mais úteis. Todas essas
características são fruto de um direito civil constitucional que se constrói, dia-a-dia, sob
fundamentos e objetivos de uma República Federativa, de modo a fazer valer a finalidade
maior de um Estado Democrático de Direito: garantir os direitos do ser humano.