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A TEORIA DOS ATOS PRÓPRIOS E OS CONTRATOS – BOA-FÉ OBJETIVA

Supressio, surrectio, duty to mitigate the loss, tu quoque, adimplemento substancial, proibição
do venire contra factum proprium e os demais desdobramentos da boa-fé objetiva nos
contratos.

Sub-princípios – confiança, lealdade, verdade. Os quais, inclusive, mitigam a aplicação do


princípio da legalidade restrita.

INTRODUÇÃO

O contrato traduz um negócio jurídico por meio do qual os negociantes, de acordo com sua
vontade/autonomia, visam a atingir determinados interesses segundo princípios superiores de
natureza constitucional.

A figura contratual segue, hoje, uma principiologia que outrora não era observada nos tempos
do estrito pacta sunt servanda. Os princípios sociais dos contratos – equivalência material, boa-
fé objetiva e função social (Eticidade, Sociabilidade, Operabilidade ou concretude) – fazem-se
presentes na globalidade das figuras contratuais, inclusive nas hipóteses em que não se faça
evidente de maneira precisa a preponderância do poder negocial de algum dos contratantes.

Faça-se a observação de que os princípios sociais não eliminaram a autonomia privada e a


força obrigatória do contrato. O que aconteceu, com o advento do Código Civil de 2002, foi o
condicionamento da liberdade contratual nos termos do art. 421 do CC: “A liberdade de
contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato”.

A equivalência material tem o objetivo de garantir o equilíbrio entre os contratantes, em


qualquer fase do vínculo negocial, assegurando a justiça contratual e associando a ideia de
segurança ao pacta sunt servanda.

A função social do contrato significa atender a valores da sociedade e não a interesses do


Estado. Esse princípio, baseado no art. 170 da CF, consubstancia uma cláusula geral de
natureza principiológica, que limita a autonomia contratual. Tem por escopo proteger a parte
vulnerável na relação negocial. Também o art. 2035, parágrafo único do CC traz previsão
desse princípio. Lembre-se: a função social dos contratos é uma cláusula geral.

Existe diferença entre conceito aberto e cláusula geral. Um conceito aberto significa
simplesmente um preceito normativo vago ou indeterminado a ser preenchido pelo juiz no caso
concreto (exemplo: justa causa). A cláusula geral, apesar de conter um conceito aberto, é uma
disposição normativa impositiva ao juiz. A carga normativa é maior.

Quanto à boa-fé objetiva, será objeto de análise deste estudo.

1 - PRINCÍPIO DA BOA-FÉ OBJETIVA

Para o estudo do direito contratual, ingressando na seara dos princípios, interessante fazer
uma imersão conceitual a respeito destes. No entendimento de Humberto Ávila (2004, p. 70):
“Os princípios são normas imediatamente finalísticas, primariamente prospectivas e com
pretensão de complementaridade e de parcialidade, para cuja aplicação se demanda uma
avaliação da correlação entre o estado de coisas a ser promovido e os efeitos decorrentes da
conduta havida como necessária à sua promoção”.

Desse conceito é possível depreender que os princípios não se constituem em meros valores
cuja realização depende de vontades individuais, mas sim impõem o dever de adoção de
comportamentos necessários à viabilização de um estado de coisas. A boa-fé objetiva não é
nada mais do que uma regra de comportamento, que goza de exigibilidade jurídica e tem
alicerce na dignidade da pessoa humana.

Sendo a dignidade da pessoa humana um valor-fonte que norteia outros valores dentro do
ordenamento jurídico, inspira-se o próprio legislador na sua técnica de elaboração de cláusulas
gerais, que são textos dos quais se extraem normas, sendo muitas delas princípios
informadores de um determinado ramo do Direito. No caso do direito dos contratos, pode-se
mencionar justamente a boa-fé objetiva. O art. 422 do CC assim dispõe: “Os contratantes são
obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios da
probidade e da boa-fé”.

O art. 113, por sua vez: “Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os
usos do lugar de sua celebração”.

O BGB alemão abandonou a noção de boa-fé como sendo apenas uma ética individual,
passando a consagrar esse princípio como um valor ou como uma cláusula objetiva.

A boa-fé subjetiva consistiria apenas num estado psicológico de desconhecimento ou


inocência, ao passo que a boa-fé objetiva, prevista no art. 422 do CC, traduz uma cláusula
geral principiológica de conteúdo ético e exigibilidade jurídica implícita.

Esse princípio tem a função de resguardar a eticidade e a cooperação entre as partes, bem
como o cumprimento dos deveres anexos em todas as fases do contrato, a exemplo do dever
de informação que os contratantes têm entre si. O desrespeito aos deveres de informação,
cooperação, comportamento ético – deveres anexos – enseja violação positiva da relação
contratual, gerando direito à indenização pelos danos materiais ou morais sofridos.

Assim dispõe o Enunciado 24 do Conselho de Justiça Federal: “Em virtude do princípio da boa-
fé, positivado no art. 422, a violação dos deveres anexos constitui espécie de inadimplemento,
independentemente de culpa”.

Resta lembrar que a doutrina identifica na boa-fé objetiva três funções: diretriz ou critério
hermenêutico; criação de deveres jurídicos denominados anexos, conexos ou acessórios;
limitação do exercício de direitos subjetivos.

2 - EXEMPLIFICANDO A REPERCUSSÃO DA BOA-FÉ OBJETIVA EM TERMOS DE


DEVERES ANEXOS

Veja-se um exemplo nítido no que concerne ao dever anexo de informação: a relação médico-
paciente. O art. 6º, III, do CDC, prevê que é direito do consumidor “(...) a informação adequada
e clara sobre os diferentes produtos e serviços, com especificação correta de quantidade,
características, composição, qualidade, tributos incidentes e preço, bem como sobre os riscos
que apresentem”.

É vedado ao médico deixar de informar ao paciente o diagnóstico, o prognóstico, os riscos e


objetivos do tratamento, salvo quando essa comunicação provocar dano àquele que está
sendo tratado - a exemplo do induzimento à ansiedade, devendo, nesse caso, a comunicação
ser feita ao seu responsável legal.

A informação tem por finalidade deixar o paciente ciente de elementos objetivos de realidade,
para que dê, ou não, o consentimento para tratamento. O consentimento informado é
fundamental nessa relação contratual – afinal, a atividade médica é dotada do chamado risco
inerente. Embora médicos e hospitais, em princípio, não respondam pelos riscos inerentes da
atividade que exercem, pode, porventura, haver responsabilidade, se acontecer alguma
omissão de informação aos pacientes sobre as consequências possíveis do tratamento a que
serão submetidos.
Nesse mesmo contexto, Ávila (2004, p.44) traz lição sobre a possibilidade de regras, assim
como os princípios, comportarem ponderação. São casos em que as regras entram em conflito
sem que uma delas perca validade, ocorrendo a solução pela atribuição de peso maior a uma
delas: "(...) uma regra do Código de Ética Médica determina que o médico deve dizer para seu
paciente toda a verdade sobre sua doença, e outra estabelece que o médico deve utilizar de
todos os meios disponíveis para curar seu paciente. Mas como deliberar o que fazer no caso
em que dizer a verdade ao paciente sobre sua doença irá diminuir as chances de cura, em
razão do abalo emocional daí decorrente? O médico deve dizer ou omitir a verdade? Casos
hipotéticos como esse não só demonstram que o conflito entre regras não é necessariamente
estabelecido em nível abstrato, mas pode surgir no plano concreto, como ocorre normalmente
como os princípios. Esses casos também indicam que a decisão envolve uma atividade de
sopesamento de razões".

Esse exemplo da relação médico/paciente serve para colocar em evidência a relação dialógica
existente entre Código Civil e Código de Defesa do Consumidor. O alemão Eric Jayme criou a
TEORIA DO DIÁLOGO DAS FONTES NORMATIVAS, muito bem explicada em nossa doutrina
pátria por Cláudia Lima Marques (2008, p. 87): “O uso da expressão do mestre, ‘diálogo das
fontes’, é uma tentativa de expressar a necessidade de uma aplicação coerente das leis de
direito privado, co-existentes no sistema. É a denominada ‘coexistência derivada ou restaurada’
(cohérence dérivée ou restaurée), que, em um momento posterior à descodificação, à tópica e
à microrrecodificação, procura uma eficiência não só hierárquica, mas funcional do sistema
plural e complexo de nosso direito contemporâneo, a evitar a ‘antinomia’, a ‘incompatibilidade’
ou a ‘não-coerência’”.

3 - AS VERTENTES DA BOA-FÉ OBJETIVA NOS CONTRATOS

O princípio em foco tem uma série de desdobramentos, vertentes ou sub-princípios que foram
sendo desenvolvidos ao longo do tempo por doutrina e jurisprudência estrangeiras e que foram
incorporados ao direito pátrio.

A primeira noção que pode ser mencionada é a de duty to mitigate the loss. Flávio Tartuce
(2007, p. 117), leciona: "Uma dessas construções inovadoras, relacionada diretamente com a
boa-fé objetiva é justamente o duty to mitigate the loss, ou mitigação do prejuízo pelo próprio
credor. Sobre essa tese foi aprovado o Enunciado 169 da III Jornada de Direito Civil: 'o
princípio da boa-fé objetiva deve levar o credor a evitar o agravamento do próprio dano'".

O instituto, segundo Tartuce, é facilmente identificável no contrato de seguro. O Código Civil


prevê que, nessa modalidade contratual, o segurado tem o dever de informar, o mais rápido
possível, a ocorrência do sinistro ao segurador, e tem também de tomar todas as providências
para minimizar os prejuízos que suporta em decorrência do sinistro. Eis aqui, como se pode
perceber, um dever relacionado com a boa-fé objetiva. O contratante, no lugar de agravar a
situação de seu prejuízo, deve mitigá-lo, sob pena de perder a própria garantia.

O Superior Tribunal de Justiça, sobre o duty to mitigate the loss:

“DIREITO CIVIL. CONTRATOS. BOA-FÉ OBJETIVA. STANDARD ÉTICO-JURÍDICO.


OBSERVÂNCIA PELAS PARTES CONTRATANTES. DEVERES ANEXOS. DUTY TO
MITIGATE THE LOSS. DEVER DE MITIGAR O PRÓPRIO PREJUÍZO. INÉRCIA DO CREDOR.
AGRAVAMENTO DO DANO. INADIMPLEMENTO CONTRATUAL. RECURSO IMPROVIDO.

1. Boa-fé objetiva. Standard ético-jurídico. Observância pelos contratantes em todas as fases.


Condutas pautadas pela probidade, cooperação e lealdade.

2. Relações obrigacionais. Atuação das partes. Preservação dos direitos dos contratantes na
consecução dos fins. Impossibilidade de violação aos preceitos éticos insertos no ordenamento
jurídico.
3. Preceito decorrente da boa-fé objetiva. Duty to mitigate the loss: o dever de mitigar o próprio
prejuízo. Os contratantes devem tomar as medidas necessárias e possíveis para que o dano
não seja agravado. A parte a que a perda aproveita não pode permanecer deliberadamente
inerte diante do dano. Agravamento do prejuízo, em razão da inércia do credor. Infringência
aos deveres de cooperação e lealdade.

4. Lição da doutrinadora Véra Maria Jacob de Fradera. Descuido com o dever de mitigar o
prejuízo sofrido. O fato de ter deixado o devedor na posse do imóvel por quase 7 (sete) anos,
sem que este cumprisse com o seu dever contratual (pagamento das prestações relativas ao
contrato de compra e venda), evidencia a ausência de zelo com o patrimônio do credor, com o
consequente agravamento significativo das perdas, uma vez que a realização mais célere dos
atos de defesa possessória diminuiriam a extensão do dano.

5. Violação ao princípio da boa-fé objetiva. Caracterização de inadimplemento contratual a


justificar a penalidade imposta pela Corte originária, (exclusão de um ano de ressarcimento).6.
Recurso improvido” (STJ, REsp 758518/PR).

Resta lembrar o art. 765 do CC, que declara: “O segurado e o segurador são obrigados a
guardar na conclusão e na execução do contrato, a mais estrita boa-fé e veracidade, tanto a
respeito do objeto, como das circunstâncias e declarações a ele concernentes”.

Outro instituto que se pode mencionar é o tu quoque, ou comportamento inadequado da parte


do qual não se poderá extrair posterior proveito, em razão da própria eticidade. Exemplo de tu
quoque: art. 457 do CC, segundo o qual não pode o adquirente demandar pela evicção, se
sabia que a coisa era alheia ou litigiosa.

Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald (2012, p. 195) assim lecionam: “Os direitos
podem ser adquiridos sem lealdade. Avulta aqui o estudo da regra tu quoque. Importa dizer
que quem viola determinada norma jurídica não poderá exercer a situação jurídica que essa
mesma norma lhe atribui. Com efeito, fere a sensibilidade ética e jurídica que alguém
desrespeite um comando legal e posteriormente venha de forma abusiva exigir a outrem o seu
acatamento”.

A respeito do assunto, o STJ assim se manifesta:

“DIREITO CIVIL. RECURSO ESPECIAL. PACTUAÇÃO, POR ACORDO DE VONTADES, DE


DISTRATO. RECALCITRÂNCIA DA DEVEDORA EM ASSINAR O INSTRUMENTO
CONTRATUAL. ARGUIÇAO DE VÍCIO DE FORMA PELA PARTE QUE DEU CAUSA AO
VÍCIO. IMPOSSIBILIDADE. AUFERIMENTO DE VANTAGEM IGNORANDO A EXTINÇÃO DO
CONTRATO. DESCABIMENTO.

1. É incontroverso que o imóvel não estava na posse da locatária e as partes pactuaram


distrato, tendo sido redigido o instrumento, todavia a ré locadora se recusou a assiná-lo, não
podendo suscitar depois a inobservância ao paralelismo das formas para a extinção contratual.
É que os institutos ligados à boa-fé objetiva, notadamente a proibição do venire contra factum
proprium, a supressio, a surrectio e o tu quoque, repelem atos que atentem contra a boa-fé
objetiva.

2. Destarte, não pode a locadora alegar nulidade da avença (distrato), buscando manter o
contrato rompido, e ainda obstar a devolução dos valores desembolsados pela locatária, ao
argumento de que a lei exige forma para conferir validade à avença. 3. Recurso especial não
provido” (STJ, REsp 1040606 / ES).

Como manifestação da boa-fé objetiva, também se desenvolveu a teoria do adimplemento


substancial (substancial performance), no que tange ao atraso no pagamento. Segundo essa
linha doutrinária, há situações em que o cumprimento do devedor já se deu de uma forma tal,
que uma inadimplência mínima não poderia ensejar a recusa da outra parte em cumprir a sua
prestação no sinalagma. Isso atende ao princípio da conservação dos contratos. O credor
deverá contentar-se com a reparação financeira dos danos (pedido de indenização pelos
prejuízos verificados).

O Enunciado 361 da IV Jornada de Direito Civil contém a seguinte redação: “O adimplemento


substancial decorre dos princípios gerais contratuais, de modo a fazer preponderar a função
social do contrato e o princípio da boa-fé objetiva, balizando a aplicação do art. 475”.

O STJ, sobre a referida teoria:

DIREITO CIVIL. CONTRATO DE ARRENDAMENTO MERCANTIL PARA AQUISIÇÃO DE


VEÍCULO (LEASING). PAGAMENTO DE TRINTA E UMA DAS TRINTA E SEIS PARCELAS
DEVIDAS. RESOLUÇÃO DO CONTRATO. AÇÃO DE REINTEGRAÇÃO DE POSSE.
DESCABIMENTO. MEDIDAS DESPROPORCIONAIS DIANTE DO DÉBITO REMANESCENTE.
APLICAÇÃO DA TEORIA DO ADIMPLEMENTO SUBSTANCIAL.

1. É pela lente das cláusulas gerais previstas no Código Civil de 2002, sobretudo a da boa-fé
objetiva e da função social, que deve ser lido o art. 475, segundo o qual ‘[a] parte lesada pelo
inadimplemento pode pedir a resolução do contrato, se não preferir exigir-lhe o cumprimento,
cabendo, em qualquer dos casos, indenização por perdas e danos’.

2. Nessa linha de entendimento, a teoria do substancial adimplemento visa a impedir o uso


desequilibrado do direito de resolução por parte do credor, preterindo desfazimentos
desnecessários em prol da preservação da avença, com vistas à realização dos princípios da
boa-fé e da função social do contrato.

3. No caso em apreço, é de se aplicar a da teoria do adimplemento substancial dos contratos,


porquanto o réu pagou: ‘31 das 36 prestações contratadas, 86% da obrigação total
(contraprestação e VRG parcelado) e mais R$10.500,44 de valor residual garantido’. O
mencionado descumprimento contratual é inapto a ensejar a reintegração de posse pretendida
e, consequentemente, a resolução do contrato de arrendamento mercantil, medidas
desproporcionais diante do substancial adimplemento da avença.

4. Não se está a afirmar que a dívida não paga desaparece, o que seria um convite a toda
sorte de fraudes. Apenas se afirma que o meio de realização do crédito por que optou a
instituição financeira não se mostra consentâneo com a extensão do inadimplemento e, de
resto, com os ventos do Código Civil de 2002. Pode, certamente, o credor valer-se de meios
menos gravosos e proporcionalmente mais adequados à persecução do crédito remanescente,
como, por exemplo, a execução do título. 5. Recurso especial não conhecido” (STJ, REsp
1051270 / RS).

Outros desdobramentos da boa-fé objetiva são a Verwirkung (supressio) e a Erwirkung


(surrectio). A doutrina alemã define a primeira como sendo o desaparecimento de um direito
pelo seu não exercício ao longo do tempo. A consequência disso é o nascimento de outro
direito – Erwirkung (surrectio).

Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald (2012, p. 193) afirmam: “A supressio é a


situação do direito que deixou de ser exercitado em determinada circunstância e não mais
possa sê-lo por, de outra forma, contrariar a boa-fé. Seria um retardamento desleal no exercício
do direito, que, caso exercitado, geraria uma situação de desequilíbrio inadmissível entre as
partes, pois a abstenção na realização do negócio cria na contraparte a representação de que
esse direito não mais será atuado. Em suma, a chave da supressio está na tutela da confiança
da contraparte e na situação de aparência que a iludiu perante o não exercício do direito”.

No Código Civil, existe o artigo 330, o qual menciona que o pagamento reiteradamente feito em
outro local faz presumir renúncia do credor relativamente ao previsto no contrato. É exemplo de
supressio.
O que ocorre na surrectio é o fato de que o exercício reiterado de uma situação jurídica de
forma diferente do previsto no contrato faz surgir direito subjetivo, passando a haver
consolidação da nova desse novo status.

Jurisprudência do STJ sobre a supressio:

“CIVIL. CONTRATOS. DÍVIDAS DE VALOR. CORREÇÃO MONETÁRIA.


OBRIGATORIEDADE. RECOMPOSIÇÃO DO PODER AQUISITIVO DA MOEDA. RENÚNCIA
AO DIREITO. POSSIBILIDADE. COBRANÇA RETROATIVA APÓS A RESCISÃO DO
CONTRATO. NÃO-CABIMENTO. PRINCÍPIO DA BOA-FÉ OBJETIVA. TEORIA DOS ATOS
PRÓPRIOS. SUPRESSIO.

1. Trata-se de situação na qual, mais do que simples renúncia do direito à correção monetária,
a recorrente abdicou do reajuste para evitar a majoração da parcela mensal paga pela
recorrida, assegurando, como isso, a manutenção do contrato. Portanto, não se cuidou
propriamente de liberalidade da recorrente, mas de uma medida que teve como contrapartida a
preservação do vínculo contratual por 06 anos. Diante desse panorama, o princípio da boa-fé
objetiva torna inviável a pretensão da recorrente, de exigir retroativamente valores a título de
correção monetária, que vinha regularmente dispensado, frustrando uma expectativa legítima,
construída e mantida ao longo de toda a relação contratual.

2. A correção monetária nada acrescenta ao valor da moeda, servindo apenas para recompor o
seu poder aquisitivo, corroído pelos efeitos da inflação. Cuida-se de fator de reajuste intrínseco
às dívidas de valor, aplicável independentemente de previsão expressa. Precedentes.

3. Nada impede o beneficiário de abrir mão da correção monetária como forma de persuadir a
parte contrária a manter o vínculo contratual. Dada a natureza disponível desse direito, sua
supressão pode perfeitamente ser aceita a qualquer tempo pelo titular.

4. O princípio da boa-fé objetiva exercer três funções: (i)instrumento hermenêutico; (ii) fonte de
direitos e deveres jurídicos; e (iii) limite ao exercício de direitos subjetivos. A essa última função
aplica-se a teoria do adimplemento substancial das obrigações e a teoria dos atos próprios,
como meio de rever a amplitude e o alcance dos deveres contratuais, daí derivando os
seguintes institutos: tu quoque, venire contra facutm proprium,surrectio e supressio.

5. A supressio indica a possibilidade de redução do conteúdo obrigacional pela inércia


qualificada de uma das partes, ao longo da execução do contrato, em exercer direito ou
faculdade, criando para a outra a legítima expectativa de ter havido a renúncia àquela
prerrogativa.

6. Recurso especial a que se nega provimento” (STJ, REsp 1202514 / RS).

Lembre-se: supressio e surrectio estão umbilicalmente relacionadas.

Mais uma vertente da boa-fé objetiva seria a proibição do venire contra factum proprium, sendo
esse um dos desdobramentos mais veementes do princípio em análise. A parte, ao adotar um
determinado comportamento numa relação contratual, presume ser aquele o seu
posicionamento, segundo os deveres anexos de cooperação, informação e eticidade. Não
poderá, portanto, incorrer posteriormente em comportamento contraditório, sob pena de
caracterizar abuso de direito. Tal situação enseja reparação do dano causado.

Perceba-se que o tu quoque, supressio, surrectio e proibição do venire contra factum proprium
são institutos que se relacionam. Carlos Roberto Gonçalves (2010, p. 61), sobre o tema:
“Assim, por exemplo, o credor que concordou, durante a execução do contrato de prestações
periódicas, com o pagamento em lugar ou tempo diverso do convencionado não pode
surpreender o devedor com a exigência literal do contrato. Igualmente, aquele que vene um
estabelecimento comercial e auxilia, por alguns dias, o comprador, inclusive preenchendo
pedidos e novas encomendas com seu próprio número de inscrição fiscal, não pode
posteriormente cancelar tais pedidos, sob a alegação de uso indevido de sua inscrição”.

Prosseguindo no estudo dos institutos, resta analisar a exceptio non adimpleti contractus.
Traduz a ideia segundo a qual ninguém pode exigir que outrem cumpra com a sua obrigação
no contrato, sem antes eximir-se de sua própria. É o que dispõe o artigo 476 do Código Civil:
“Nos contratos bilaterais, nenhum dos contratantes, antes de cumprida a sua obrigação, pode
exigir o implemento da do outro”. Outra manifestação da boa-fé objetiva.

Nas obrigações de prestações recíprocas, o não cumprimento de uma das partes permite à
outra a opção de resolver o contrato ou opor a exceção do contrato não cumprido, deixando de
efetuar a sua prestação até o momento em que o outro contratante não efetue a respectiva
contraprestação.

É importante não confundir a COMPENSAÇÃO com a EXCEÇÃO DO CONTRATO NÃO


CUMPRIDO.

A compensação está prevista no art. 368 do CC: “Se duas pessoas forem ao mesmo tempo
credor e devedor uma da outra, as duas obrigações extinguem-se, até onde se compensarem”.
A exceção do contrato não cumprido requer a presença de uma única relação jurídica,
enquanto a compensação exige, pelo menos, duas relações, que se serão reciprocamente
compensadas.

Importante lembrar a lição de Orlando Gomes (1997, p.92): "Admite-se, ao lado da


exceptio non adimpleti contractus, a exceptio non rite adimpleti contractus. A primeira para o
caso de inadimplemento da obrigação. A segunda para a hipótese do cumprimento
incompleto, seja porque o devedor somente tenha satisfeito em parte a prestação, seja porque
a cumpriu de modo defeituoso".

CONCLUSÃO

Como visto, diante da nova principiologia contratual, a boa-fé objetiva vem assumir papel de
extrema relevância em todas as fases do contrato. O alicerce para o estudo da gama de seus
desdobramentos é a dignidade da pessoa humana, atributo do ser humano que informa tanto o
direito público, como o direito privado.

Eticidade, socialidade e operabilidade foram marcas imprimidas no Código Civil de 2002,


visando à valorização do ser humano por meio de comportamentos éticos, trazendo à tona a
noção de coletividade e abandonando o conceito de uma propriedade privada egoisticamente
trabalhada. A operabilidade veio trazer o juiz como ator de elaboração do direito nos casos
concretos.

Os contratos passaram a ser enxergados sob essa ótica com o CC02. E traga-se à tona
apenas mais um princípio: o de conservação dos contratos, que sempre propugna uma
interpretação racional que permita ao contrato produzir os seus efeitos mais úteis. Todas essas
características são fruto de um direito civil constitucional que se constrói, dia-a-dia, sob
fundamentos e objetivos de uma República Federativa, de modo a fazer valer a finalidade
maior de um Estado Democrático de Direito: garantir os direitos do ser humano.

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