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Casos práticos resolvidos (acção, omissão) - direito penal

Direito das Sociedades Comerciais (Universidade de Lisboa)

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FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA


ANO LECTIVO 2019/2020
DIREITO PENAL II – SUBTURMAS 4,5 E 11

Resolução de Casos Práticos – Proposta(1)

O comportamento penalmente relevante como pressuposto e limite da


responsabilidade

Num belo dia de Verão, A e B encontravam-se a conversar à beira da piscina, quando,


subitamente, uma vespa picou A num braço.
A sacudiu bruscamente o braço, empurrando B.
Esta (B) caiu na água em cima de um banhista (C), causando-lhe uma lesão na coluna
que o deixou paralítico (v. artigos 144.º e 148.º do CP).
B praticou um comportamento jurídico-penalmente relevante? E A?

De maneira a determinar se A e B realizaram comportamentos penalmente relevantes,


importa desde logo indagar se as actuações de ambos consubstanciam uma acção
juridicamente valorada. Como sabemos, reconduz-se a noção de acção a um comportamento
humano voluntário, exigindo-se a sua real projecção no exterior, no mundo fáctico. Tal
exteriorização deverá resultar de um comportamento humano, tendo em conta que só as
pessoas se orientam pelas normas e, como tal, só as pessoas são sujeitos de direito. Para além
disso, afigura-se necessária a voluntariedade do comportamento, requisito que se
compreende facilmente quando articulado com o princípio da culpa. Neste sentido,
assentando o nosso sistema na ideia de direito penal do facto, balizado pelo princípio da
necessidade da pena (artigo 18.º, número 2 da Constituição da República Portuguesa),
analisaremos se as atitudes de A e B revelam o substrato mínimo da responsabilidade penal,
traduzido no conceito de acção.
Num primeiro momento, analisaremos a responsabilidade penal de B, relativamente a
C, pela circunstância de ter caído em cima deste, causando-lhe uma lesão na coluna,

O presente documento apresenta meras propostas de resolução das hipóteses tratadas nas aulas práticas, e
(1)

não dispensa a frequência às aulas teóricas e a consulta dos manuais de referência.

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encontrando-se por isso indiciada a prática de um crime de ofensa à integridade física (artigo
143.º do Código Penal). Segundo os dados da hipótese, B não teve qualquer controlo sobre a
sua actuação, já que se encontra numa situação de coacção absoluta. Podemos, de certo modo,
afirmar que todo o processo que desembocou na sua queda lhe foi completamente alheio. Por
essa razão, dir-se-á em falta a voluntariedade exigida para a afirmação de uma acção. Como
vimos, em momento algum B teve domínio do processo causal que resultou no facto lesivo,
pelo que não poderá ter realizado um comportamento penalmente relevante.
Debruçando-nos agora sobre a conduta de A, relativamente a B, no que respeita ao
movimento do braço, estará uma vez mais indiciada a prática de um crime de ofensa à
integridade física (artigo 143.º do Código Penal). A este respeito, releva caracterizar a sua
reacção como um acto reflexo ou um automatismo. Em princípio, os actos reflexos não
constituem qualquer acção, no sentido anteriormente referido, enquanto os automatismos
podem ou não assumir-se como comportamentos penalmente relevantes.
Neste caso, A foi picado por uma abelha; nessa sequência, sacudiu o braço e,
finalmente, empurrou B contra C. Relativamente a este primeiro problema, importa recordar
as linhas de distinção entre actos reflexos e automatismos, que se traduzem
fundamentalmente na circunstância de os actos reflexos constituírem uma reacção endógena,
característica do ser humano e, como tal, comum a todas as pessoas. Configura um acto
reflexo a situação em que se levanta a perna na decorrência do estímulo, pelo médico, com
um martelo na rótula. Os automatismos, por seu turno, representam formas de reacção a
circunstâncias externas, que variam de acordo com a própria personalidade do agente. Assim,
o padrão de reacção não é universal, divergindo de acordo com as características específicas
do indivíduo.
A hipótese descrita parece aproximar-se à figura dos automatismos, uma vez que nem
todos sacudimos o braço quando somos picados por uma abelha. Ainda assim, dentro da
categoria dos automatismos vale a pena destrinçar os automatismos rotineiros (por exemplo,
conduzir) e os automatismos instintivos (tipicamente, reacções defensivas instintivas). De

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qualquer modo, importará indagar da relevância dos automatismos enquanto comportamento


penalmente relevante, o que nos obriga a considerar diferentes perspectivas doutrinárias.
Na opinião de ROXIN, constitui acção todo o comportamento que traduza uma
manifestação da personalidade do agente, assentando tal manifestação no carácter voluntário
da conduta. De acordo com tal concepção, serão voluntárias aquelas acções que emanem do
sistema nervoso central, quer dizer, em que haja um efectivo domínio neurológico (volitivo)
do comportamento. No caso dos automatismos, é possível aferir tal domínio pelo facto de a
reacção concreta de cada um depender da sua própria estrutura pessoal. Assim, ao contrário
do que ocorre nos actos reflexos, nos automatismos o processo volitivo que desemboca na
acção ultrapassa a esfera do sistema nervoso periférico, e atinge o sistema nervoso central.
Equivale isto a constatar, através das asserções anteriormente proferidas, que os
automatismos serão sempre, para ROXIN, comportamentos relevantes, uma vez que
configuram – pela sua própria definição – manifestações da personalidade. Em síntese,
diremos que para ROXIN, A teria praticado um comportamento penalmente significativo.
De acordo com MARIA FERNANDA PALMA, o critério a empregar para aferir da
existência de acção no caso dos automatismos prende-se com a própria previsibilidade do
estímulo externo que provoca a reacção. Com efeito, para esta autora, estaremos perante uma
acção quando o comportamento em causa se coadunar com a própria capacidade de o agente
prever o estímulo externo, configurando assim o acto automático como elemento integrado
de um comportamento complexo. Neste sentido, importa pensar se será previsível que, “num
belo dia de Verão”, surja uma abelha à beira da piscina. E, efectivamente, não surge tal
possibilidade como inverosímil, à maioria das concepções. Assim sendo, poder-se-á afirmar
que A teria praticado um comportamento penalmente relevante.
Igualmente interessante será considerar o critério de JAKOBS, traduzido pela ideia de
eficácia previsível das normas. Para este autor, seria necessário que a produção do resultado
fosse evitável individualmente para que se pudesse afirmar que haveria acção. Por outras
palavras, seria imprescindível que o agente tivesse tido o tempo necessário para reconhecer
o perigo e adaptar o seu comportamento à norma. De forma sintética, diremos que teria que

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se verificar a possibilidade de um controlo do automatismo pela consciência, no sentido de o


agente se conseguir motivar pela norma. A aplicação do presente critério à situação em
análise não se assume muito linear. Na verdade, apesar de, como vimos, ter havido um
controlo do automatismo pela consciência, não parece poder afirmar-se que o agente tenha
tido tempo para se motivar pelas incriminações correspondentes às ofensas à integridade
física. Deste modo, não se revela impensável conceber duas soluções distintas à luz desta
proposta: por um lado, a produção do resultado seria, até certo ponto, evitável
individualmente – de facto, o automatismo integrou a consciência do agente; no entanto,
parece forçoso afirmar que A tenha tido tempo para se motivar pela norma, isto é, que tenha
havido efectiva oportunidade para intervenção da consciência, de maneira a evitar a
realização dessa acção. Como se compreende, trata-se sobretudo de um problema de prova,
que poderá conduzir à negação deste comportamento como penalmente relevante.

A tipicidade
Desvalor e tipificação da omissão

C e D, amigos de curta data, combinaram ir praticar montanhismo para a Arrábida.


Antes de iniciarem uma escalada livre, C inalou uma dose considerável de cocaína; por
isso, ficou num estado extremo de entusiasmo e começou a escalada em grande
velocidade, apesar dos protestos de D, que não conseguia acompanhá-lo. A certa altura
da escalada, D deu um passo em falso, perdeu o equilíbrio e caiu numa ravina, sofrendo,
em consequência disso, ferimentos graves que lhe provocaram uma intensa hemorragia.
C, que já ia bastante mais acima, apercebeu-se da queda de D mas, no seu estado de
euforia, decidiu prosseguir a escalada e acudir à amiga apenas quando descesse.
Quando, no regresso, se aproximou de D, era já tarde demais: D morrera em
consequência da hemorragia.
Pode C ser responsabilizado penalmente? Por que crime?

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Indagar da responsabilidade penal de C, a título de homicídio (artigo 131.º do Código


Penal) obriga-nos, desde logo, a determinar se o seu comportamento consubstancia uma
acção ou uma omissão. De facto, e de acordo com os dados da hipótese, C não socorreu D,
quando ambos praticavam montanhismo na Arrábida, o que parece remeter-nos para a figura
da omissão. Preocupação cimeira será então a de distinguir a acção da omissão.
Com esse intuito, começou a doutrina por enunciar critérios naturalísticos que, na
formulação de ENGISCH, se traduziam no facto de a acção implicar um dispêndio de energia
num certo sentido, nomeadamente o de evitar o resultado. Simetricamente, a omissão
consistiria na não aplicação de energia com o intuito de impedir a produção desse mesmo
resultado. Como se compreende, apesar de ser um critério pertinente, tal orientação não
resolve alguns casos. Pense-se, por exemplo, nas situações em que o agente atropela a vítima.
Em abstracto, e atendendo a este critério, este cenário tanto poderá ser encarado como uma
acção – o agente atropela a vítima por empregar energia ao acelerar –, como reconduzido à
noção de omissão – o agente atropela a vítima por não despender energia para travar. Neste
contexto, não parece justificar-se uma tão acentuada distinção entre acção e omissão,
especialmente em termos de exigência para a punibilidade.
Em alternativa, formulou-se o critério da censurabilidade jurídico-penal, que pretende
fazer distinguir a acção da omissão consoante tal juízo de censura se refira a um
comportamento activo ou omissivo. Apesar de assumir uma natureza normativa, esta opção
possui a dificuldade de não ser facilmente demonstrável, e de exigir uma indagação profunda
acerca do juízo subjacente à incriminação.
Por isso, surgiram critérios que reconduzem esta problemática à do concurso de normas
(KAUFMANN), prevendo que uma omissão só será relevante quando o comportamento em

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causa não puder ser configurado como uma acção. Noutro sentido, sugeriu ROXIN que, em
algumas situações, possa prevalecer o crime omissivo(2).
Corrida toda esta tinta, o critério que se impôs, por surgir como o mais razoável, foi o
critério da ilicitude típica e de imputação objectiva. Esta proposta assenta num juízo acerca
da forma de criação do perigo para o bem jurídico protegido pela incriminação, e identifica
a acção como a criação/aumento de um risco para o bem jurídico – ou bem assim, quando o
comportamento piora a situação do bem jurídico –, e a omissão como a não diminuição de
um risco pré-existente – ou, paralelamente, quando não se melhora a situação (previamente
má) de risco para o bem jurídico.
Desta forma, haverá que considerar se o comportamento de C criou ou aumentou o
risco que se concretizou na morte de D ou se, ao invés, a atitude de C traduz a não diminuição
desse risco. Como sugerem os dados da hipótese, o que parece ter ocorrido é uma não
diminuição do risco que já tinha sido autonomamente criado pelo contexto. Nesta medida,
diremos que a actuação de C consubstancia uma omissão.
Tendo já determinado o carácter omissivo da conduta de C, importa antes de mais
analisar se existia capacidade humana de agir. Significa isto perguntar se no caso concreto,
C teria possibilidade de evitar o resultado, tal como o teria qualquer outro ser humano,
colocado na situação.
É nesta sede que a circunstância de C ter inalado cocaína poderá ter relevância, já que
poderia levar-nos a concluir que C não tinha capacidade para agir. Contudo, resulta do
enunciado da hipótese que o agente se colocou voluntariamente na situação, o que nos
legitimará a equacionar um paralelismo entre a figura da actio libera in causa e a omissio
libera in causa. De facto, a colocação neste estado configura uma omissão ilícita na causa,
pelo que não podemos afirmar que haveria uma incapacidade humana de agir.
Eventualmente, poderia discernir-se uma incapacidade individual de agir que, como vimos,

(2)
Pensamos aqui nos casos de comparticipação activa em crime omissivo, omissão livre na causa, tentativa
interrompida de salvamento (quando o processo salvador ainda não atingiu a esfera jurídica da vítima, há
omissão; caso contrário, haverá acção, aplicando o critério do risco), e interrupção técnica de tratamento.

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não seria relevante para afastar a responsabilidade penal, já que o agente se tinha colocado
voluntariamente em tal situação.
Chegados à conclusão de que não se verificava qualquer circunstância que obstasse à
afirmação da capacidade humana de agir, importa averiguar se nos encontramos perante uma
omissão pura (p.e., artigo 200.º do Código Penal) ou impura (artigo 10.º do Código Penal,
conjugado com o correspondente preceito da parte especial).
Como se sabe, as omissões puras encontram uma previsão de tipicidade directa,
reconduzível a um concreto preceito da parte especial (p.e., artigo 200.º do Código Penal), e
referem-se, na maioria dos casos, a crimes formais. Aqui, ao agente impõe-se um mero dever
de agir, sem vinculação a evitar o resultado. Diferentemente, as omissões impuras conhecem
um processo de tipificação indirecta (artigo 10.º do Código Penal, conjugado com a norma
da parte especial), reflectindo os crimes materiais ou de resultado. Nestes casos, sobre o
agente recai o dever de evitar o resultado típico, na decorrência de assumir uma posição de
garante sobre o bem jurídico em causa. Deste modo, estabelece-se entre os dois tipos de
omissão uma relação de subsidiariedade, prevalecendo, porque mais grave, o regime da
omissão impura.
Importa então verificar se estamos perante uma omissão impura. Para tal, revela-se
conveniente recordar os tipos de crime em causa. Tendo em atenção que da queda resultou a
morte de C, poderemos estar perante um homicídio por omissão (artigos 131.º e 10.º do
Código Penal) ou, simplesmente, tratando-se de uma omissão pura, perante a violação do
dever de auxílio configurado pelo artigo 200.º do Código Penal. Verifiquemos, então, se C
detinha alguma posição de garante em relação a D, de forma a determinar a que título poderá
ser punido.
A este respeito, inicialmente propugnava-se a chamada tese formal das fontes de
posição de garante, de acordo com a qual se configuravam como fontes apenas a lei, o
contrato e a ingerência. Tal concepção preocupava-se sobretudo com a imposição de certeza
decorrente do princípio da legalidade, esquecendo algumas situações em que materialmente
se justificava a afirmação de uma posição de garante. Mesmo no que respeita à lei enquanto

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fonte de posição de garante, obstava-se a tal concepção afirmando que o Código Civil – de
onde se retiravam os deveres de garante no seio familiar – não se assume como lei penal,
sendo tal responsabilidade meramente civil. Em relação ao contrato, compreende-se a
respectiva configuração enquanto fonte de posição de garante, já que tal assunção de
protecção de bens jurídicos resultaria de um consenso entre as partes, manifestação da
vontade daqueles que se vinculavam. No entanto, se interpretada rigidamente, tal perspectiva
sustentaria soluções inexplicáveis: pense-se no caso da baby sitter contratada para vigiar a
criança entre as 9h e as 12h, e que não evita que a criança caia da janela porque o acidente
ocorreu às 12h30. No que concerne à ingerência, tal figura permaneceu nas agora chamadas
teorias materiais, já que assenta na ideia de que quem cria um perigo para um bem jurídico
deve ficar vinculado a evitar posteriores agravações do perigo criado. Deste modo, faz
sentido que quem tenha interferido ilegitimamente na esfera de liberdade de outrem se
assuma responsável pelas consequências de tal intervenção.
Como se disse, tal concepção esquecia a vinculação pessoal e a materialidade inerente
a cada situação, conduzindo a resultados insatisfatórios. Por esse motivo, surge a chamada
teoria das funções, que considera que os deveres de garantia se distinguem em duas funções:
função de guarda de um bem jurídico concreto, gerando deveres de protecção e de
assistência – enquadrando-se neste grupo as situações de protecção familiar ou análogas;
comunidade de risco e o próprio contrato, de uma forma imaterializada –; e a função de
vigilância de uma fonte de perigo, gerando deveres de segurança e de controlo –
enquadrando-se aqui as situações de garantia face à actuação de terceiros, a ingerência e o
dever de fiscalização de fontes de perigo no âmbito de domínio próprio.
No caso em estudo, releva apenas considerar a comunidade de risco, já que C e D se
propuseram a encetar o que à partida se apresenta como uma actividade arriscada. O
fundamento desta figura como fonte de posição de garante reconduz-se às relações de
confiança e dependência mútuas que se estabelecem entre os participantes, e ao próprio
carácter perigoso do empreendimento conjuntamente reconhecido e aceite, que funda em
cada um dos intervenientes um dever de garantia face a todos os restantes. De acordo com

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FIGUEIREDO DIAS, só se verificará uma posição de garante nas situações em que se


completem estes três pressupostos: a) relações estreitas e efectivas, diferentes daquelas que
seriam fundadas por um mero código social ou moral; b) ocorrência, de facto, da comunidade
de perigos; e c) o perigo tem que atingir o bem jurídico concreto, representando um perigo
real para a potencial vítima, devendo o agente actuar no sentido de o evitar ou diminuir.
A hipótese em estudo poderá não respeitar todos os requisitos, desde logo porque C e
D são “amigos de curta data”. Isto significa que, muito provavelmente, ainda não haverá
uma relação de amizade forte o suficiente para justificar a expectativa de D quanto ao dever
de salvamento que recairia sobre C. Como se referiu, o fundamento desta figura – mais do
que a própria partilha de perigo – reconduz-se à confiança e dependência mútuas que se
estabelecem entre os participantes. Deste modo, parece duvidoso poder afirmar, sem mais,
que C detinha uma posição de garante face a D, nos termos da comunidade de risco.
No entanto, seria ainda possível equacionar tal posição de garante com recurso à
figura do monopólio, o que nos obriga a escrutinar os casos em que se poderá admitir que o
monopólio é fonte de posição de garante.
O monopólio caracteriza-se pelo facto de, numa dada situação, apenas uma pessoa
dispor das condições necessárias para afastar o perigo que ameaça um determinado bem
jurídico. Por esse motivo, FIGUEIREDO DIAS inclui o monopólio nos casos de domínio de uma
fonte de perigo, acrescentando, contudo, que só em algumas hipóteses surgirá o monopólio
como fonte de posição de garante. Segundo tal orientação, seria indispensável que se
verificasse um domínio fáctico absoluto da fonte de perigo – o que implica que, no momento
em que o perigo se manifesta, o agente tivesse capacidade e meios para o afastar; esse perigo
teria que ser agudo e iminente para o bem jurídico em causa – significando tal afirmação que
o perigo deverá ser actual e assumir dimensões consideráveis, não se podendo tratar apenas
de um perigo eventual; podendo o agente levar a cabo uma acção de salvamento sem ter que
incorrer numa situação danosa para si mesmo – o que requer uma análise de
proporcionalidade entre o bem jurídico em perigo e o esforço exigido para o competente
salvamento.

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Olhando à situação de C e D, diremos que, em princípio, todos os requisitos se


verificam, já que o perigo que se concretizou no resultado era iminente e gravoso, não
exigindo a acção de salvamento a empreender qualquer esforço potencialmente arriscado
para C. Segundo a posição de FIGUEIREDO DIAS, encontravam-se preenchidos os requisitos
do monopólio enquanto fonte de posição de garante, o que implica que C poderia ser punido
por homicídio por omissão, nos termos dos artigos 131.ºe 10.º do Código Penal.
No entanto, releva olhar a uma outra orientação doutrinária respeitante à configuração
das fontes de posição de garante, em geral, mas que assume especial pertinência nos casos
de monopólio. Para MARIA FERNANDA PALMA, afirmam-se princípios unificadores das
posições de garante, que nos permitiriam compreender o fundamento de tais deveres, e que
se devem verificar em todas as situações em que se afirme que o omitente detinha uma
posição de garante sobre a vítima. Desde logo, importa que se observe um equilíbrio entre
uma ideia de presunção legítima da aceitação da responsabilidade pela protecção de bens
jurídicos – que fundaria os chamados deveres de protecção – e a responsabilidade inerente à
função de conformação do mundo (JAKOBS) – que fundaria os deveres de vigilância e
legitimaria a punibilidade das situações de ingerência. Assim, esta ideia de JAKOBS
corresponderia aos âmbitos que se inserem na esfera de organização, liberdade de
conformação e competência (geral) do agente, pelos quais ele deverá ser responsável.
Todavia, uma restrição se impõe quando estes deveres de protecção decorrem de uma
competência ou responsabilidade específicas.
Consequentemente, a legítima atribuição desta aceitação residiria na determinação da
auto-vinculação do agente, implícita na relação social. Neste sentido, nos casos de
monopólio não se poderá ficcionar, sem mais, uma qualquer aceitação ou auto-vinculação do
agente, sobretudo nas hipóteses de monopólio acidental. Impõe-se demonstrar, com recurso
aos dados disponíveis, que ao decidir tomar parte naquela concreta relação social, o agente
assumiu, ainda que implicitamente, a responsabilidade pela protecção do bem jurídico.
Especificando, importa perguntar se será justificado entender que, ao aceitar ir fazer
montanhismo para a Arrábida com D, C aceitou implicitamente a responsabilidade de evitar

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a morte do seu companheiro, vinculando-se a tal dever. Como se compreende, tal conclusão
afigura-se excessiva, desde já porque C e D eram amigos recentes. Para além disso, afirmar
que alguém se vincula a evitar a morte de quem com ele faz montanhismo equivale a impor,
sem substrato fáctico bastante, e de forma implícita, uma excessiva oneração a quem apenas
se dispôs a fazer montanhismo. Por este motivo, dir-se-á que para MARIA FERNANDA PALMA
não haveria uma posição de garante e, como tal, C só seria punido por omissão de auxílio,
nos termos do artigo 200.º do Código Penal.
Março 2020.

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