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Casos práticos resolvidos- imputação objetiva

Direito Penal II (Universidade de Lisboa)

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FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA


ANO LECTIVO 2019/2020
DIREITO PENAL II – SUBTURMAS 4, 5, 11 E 14

Resolução de Casos Práticos – Proposta(1)

A tipicidade
A imputação objectiva do facto
O desvalor objectivo da acção e a imputação objectiva do resultado
I
Criação de um risco proibido

1. A, convencido da eficácia mortal das aspirinas, deita, com intenção de matar, um


aspegic no café de B, que vem a morrer por padecer de uma rara alergia ao
acetilsalicilato de lisina que A desconhecia.
A morte de B é objectivamente imputável a A?

Questionar se a morte de B é objectivamente imputável à conduta de A equivale a


perguntar se podemos atribuir o resultado morte à conduta de A. Para isso, teremos que
confrontar a situação descrita com as diferentes teorias que ao longo do tempo
procuraram dar resposta a este problema.
A primeira teoria, chamada teoria das condições equivalentes, baseia-se numa ideia de
causalidade reconduzível à formulação da conditio sine qua non. Assim, importaria
verificar, através de um juízo de supressão mental da conduta do agente, se o resultado
típico continuaria a ocorrer. A partir daqui, dir-se-ia que, se removendo tal evento o
resultado não mais ocorresse, a conduta de A seria a causa da morte de B. Nestes termos,
impõe-se perguntar, em concreto: se A não tivesse colocado o aspegic no copo de B, teria
B morrido? A este respeito, concluiríamos que, tendo a morte de B sido causada pela
reacção alérgica a um componente do aspegic, caso A não tivesse actuado, B não teria
morrido. Assim, A teria causado a morte de B.

O presente documento apresenta meras propostas de resolução das hipóteses tratadas nas aulas práticas, e
(1)

não dispensa a frequência às aulas teóricas e a consulta dos manuais de referência.

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Contudo, e como facilmente se intui, a formulação pura da teoria da conditio sine qua
non conduz necessariamente a resultados pouco razoáveis. De facto, para tal construção,
seriam igualmente causa deste resultado a venda da aspirina a A e o próprio fabrico do
medicamento. Por esse motivo, introduziu-se uma restrição à teoria das condições
equivalentes, conhecida como teoria da causalidade conforme às leis da natureza, que
determina que apenas à luz de um juízo científico / natural / pericial se poderá estabelecer
a necessária relação de causalidade entre a conduta do agente e o resultado produzido.
Entende-se igualmente que, não ficando por esta via demonstrado o nexo entre a acção e
o resultado, se deverá fazer valer o princípio constitucional in dubio pro reo, não
imputando objectivamente o resultado à actuação do agente.
Apesar de tal restrição, esta teoria continua a abarcar soluções intoleráveis no que
respeita à imputação objectiva. De facto, nesta concepção, os casos de interrupção do
nexo causal – ou, nas palavras de ROXIN, de interrupção do nexo de imputação objectiva
–, seriam ainda considerados como objectivamente imputáveis ao comportamento do
agente inicial.
Nesta sequência, surge a teoria da causalidade adequada, que se propõe, de certo
modo, a filtrar as causas relevantes para a produção do resultado, através de um juízo de
previsibilidade. Tal previsibilidade seria aferida a partir de um juízo de prognose
póstuma, que consiste na necessidade de o juiz se colocar na situação do agente, no
momento da acção, e indagar da previsibilidade de produção do resultado, a partir daquela
acção. Nesta situação, teríamos então que perguntar se qualquer homem médio, colocado
na posição do agente, consideraria previsível, ex ante, que se viesse a produzir a morte
de B em consequência da ingestão de um aspegic. Como facilmente se compreende, as
potencialidades fatais de uma aspegic são inexistentes para a maioria dos seres humanos,
o que significa que não seria previsível que B falecesse na sequência daquele
comportamento.
Outra questão que ainda se colocou no seio desta discussão prende-se com a
problemática dos conhecimentos especiais do agente, e da sua relevância para o referido

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juízo de prognose póstuma e para a configuração da questão da imputação objectiva. Na


situação que nos foi apresentada, justificar-se-ia analisar a problemática dos
conhecimentos especiais do agente se A conhecesse a alergia de B. A este respeito,
doutrina se afirmava no sentido de considerar que o facto de se introduzir os dados
específicos que o concreto agente possuía à data da prática do facto prejudicaria o carácter
objectivo do juízo pretendido. Para esta concepção, tal juízo deveria ser despido de
quaisquer elementos que o agente possuísse na sua tomada de decisão, mas que não
estivessem, tipicamente, na posse do homem médio.
No entanto, tal orientação foi prontamente rebatida pela argumentação de que os
especiais conhecimentos do agente interferem objectivamente na realidade, e constituem
elemento fundamental no processo de motivação criminosa. Em rigor, a necessidade de
ponderação de conhecimentos especiais não é tanto subjectiva, mas individualizadora.
De facto, a circunstância de, por exemplo, A saber que B era alérgico a aspegic deve
poder constar do juízo de prognose póstuma que caberá ao juiz levar a cabo, já que tal
circunstância terá sido efectivamente considerada por A. Ou seja, tal dado integrou
objectivamente a realidade, não obstando de forma alguma ao carácter objectivo do juízo
a empreender.
Até agora vimos que, segundo a teoria das condições equivalentes, a morte de B teria
sido causada por A, enquanto para a teoria da causalidade adequada, na formulação
originária, haveria que concluir em sentido contrário. Porém, a teoria actualmente aceite
nesta sede é, de facto, uma teoria da imputação objectiva, que se desprende da ideia
central de causalidade entre acção e resultado.
Assim, a teoria do risco coloca o seu foco em três pontos fundamentais: a) criação
ou aumento de um risco para o bem jurídico; b) o risco criado deverá constituir um risco
proibido; e c) o risco criado ou aumentado deverá ter concretização no resultado típico.
Neste sentido, costuma afirmar-se que a teoria do risco parte da função de protecção dos
bens jurídicos pelas normas, prevendo que a conduta concreta tenha que corresponder ao
comportamento que a norma pretende evitar.

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Na situação em causa, o segundo pressuposto não se encontra verificado, já que dar


aspegic a pessoas não constitui um risco proibido. Por outras palavras, diremos que,
tipicamente, a acção de colocar aspegics na bebida das pessoas não representa a criação
de um perigo proibido para bens jurídicos, o que nos impede de imputar objectivamente
o resultado morte à conduta de A.

ALTERNATIVA DE RESOLUÇÃO PROPOSTA PELO ALUNO FÁBIO FERNANDES:

Neste caso temos de averiguar se podemos atribuir o resultado morte à conduta de A,


ou seja, se o resultado deriva da atuação do agente. Tradicionalmente, este problema foi
encarado como problema de nexo causal entre o resultado e o comportamento do agente,
sendo que o resultado produzido deve ser controlável e evitável pela ação ou omissão do
agente. É a teoria das condições equivalentes, a conditio sine qua non.
No caso prático, temos de averiguar, com base num juízo de supressão mental da
conduta do agente, se o resultado típico continuaria a ocorrer, isto é, se a conduta é causa
desse resultado. No presente caso, como B sofria reações alérgicas a um componente do
aspegic, se A não tivesse colocado o aspegic no copo, B não teria morrido. Posto isto,
seria possível imputar objetivamente o resultado morte à conduta de A.
No entanto, esta teoria tem levado a resultados inaceitáveis. Para esta teoria, seria
também causa deste resultado a venda da aspirina a A. Ora, vivemos num mundo
complexo, cada fenómeno resulta de um conjunto de condições, mas no direito temos de
ver qual a fundamental, decisiva para o resultado. Esta teoria admite condições muito
remotas.
Assim, surgiu a teoria da causalidade adequada, segundo a qual a imputação se faz
com base em juízos de previsibilidade e experiência social, tentando-se por esta via
selecionar as causas relevantes. O juiz imagina-se na posição que o agente estava na
prática da ação, mas não se identifica com ele, e vai averiguar previsibilidade de produção
do resultado tendo em conta o critério da pessoa média.

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No cenário em estudo, com base num juízo de previsibilidade, de prognose póstuma,


temos de ver se qualquer pessoa média, colocada na posição do A, acharia previsível, em
instantes anteriores, que se viesse a produzir a morte em consequência daquela ingestão.
Dito de outra forma, temos de submeter o evento tomar aspegics ao juízo de prognose
póstuma, se seria para a pessoa média previsível, em instantes anteriores, daí decorrer o
resultado morte. Ora, do senso comum concluímos que a fatalidade de uma aspegic é
muito improvável para a maioria das pessoas. Portanto, a aspegic não seria causa
adequada para aquele resultado.
Por fim, impõe-se aludir à teoria do risco, que se desprende destas ideias de
causalidade e passa para as ideias normativas, de fim da norma (conexão entre risco e
resultado, como se adicionasse algo ao resultado). Neste contexto, para haver imputação
objetiva exigem-se três requisitos: a) criação ou aumento de um risco para o bem jurídico;
b) o risco criado deverá constituir um risco proibido para bens jurídicos; e c) o risco
criado ou aumentado deverá ter concretização no resultado típico.
No caso prático não está preenchido o segundo pressuposto, dar aspegic a pessoas
não constitui um risco proibido pela ordem jurídica Posto isto, não seria possível imputar
objetivamente o resultado morte à conduta de A.

2. C empurra D de forma a que uma pedra que foi violentamente arremessada contra
a cabeça deste apenas lhe acerte num braço.
A ofensa à integridade física de D é objectivamente imputável a C?

A hipótese descrita retrata um caso típico de diminuição do risco, em que apesar de


se verificar, de facto, uma lesão para um bem jurídico, tal lesão constitui um mal menor
relativamente àquela que teria ocorrido, não fosse a intervenção do agente. Significa isto
que o agente diminuiu um risco para um bem jurídico, sem que contudo tivesse
conseguido eliminar completamente o risco criado pela situação.

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Tanto a teoria das condições equivalentes como a teoria da causalidade adequada


afirmariam a imputação da ofensa à integridade física de D à conduta de C. Como se
intui, suprimindo a actuação de C – o empurrão – a pedra não teria atingido o braço de
D, pelo que aquela concreta lesão da integridade física não se teria produzido.
Paralelamente, poderia afirmar-se previsível, à luz de um juízo de prognose póstuma, e
atendendo às circunstâncias do caso, que a pedra arremessada atingisse o braço de D na
sequência do empurrão.
Neste âmbito, compreende-se a específica formulação do primeiro pressuposto da
teoria do risco: criação ou aumento de um risco para o bem jurídico. Em consequência,
nas hipóteses de diminuição / atenuação desse risco, o resultado não será objectivamente
imputável ao agente e, como tal, não se indagará da respectiva responsabilidade penal.
Segundo ROXIN, nas hipóteses de diminuição do risco não fará sequer sentido afirmar
que a acção é típica, isto é, que reclama o juízo de desvalor associado à ideia de ilícito
típico. Segundo tal perspectiva, a ofensa à integridade física de D não será objectivamente
imputável à conduta de C, pelo facto de C ter, efectivamente, diminuído o risco
anteriormente criado.
No entanto, o autor sublinha a relevância da distinção entre os casos de diminuição e
substituição de riscos, explicitando que naquelas hipóteses o agente diminui um risco que
está em curso, revelando um comportamento conforme à tutela do bem jurídico
inicialmente ameaçado.
Para HELENA MORÃO, as situações tipicamente reconduzidas aos casos de diminuição
do risco reflectem hipóteses de menor gravidade da lesão, discernível apenas ex post.
Assim, afirma-se o desvalor objectivo da conduta, remetendo a ponderação entre a lesão
ocorrida e a lesão potencial para a análise da justificação(2).

A propósito dos casos de diminuição do risco, ver ainda PAULO SOUSA MENDES, Sobre a Capacidade de
(2)

Rendimento da Ideia de Diminuição do Risco – Contributo para uma crítica à moderna teoria da imputação
objectiva em Direito Penal, Lisboa, 2007.

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3. E, observando todas as regras de trânsito aplicáveis, conduz numa zona propícia a


acidentes, quando F, que corre para apanhar o autocarro, se atravessa na sua frente
e é atropelado, acabando por não resistir aos ferimentos.
A morte de F é objectivamente imputável a E?

Com o intuito de verificarmos se a morte de F é objectivamente imputável à conduta


de E poderemos socorrer-nos, uma vez mais, da teoria das condições equivalentes e da
teoria da causalidade adequada. No entanto, a aplicação de tais propostas à situação
descrita não se fará sem algumas dificuldades. Desde logo, e no que respeita ao juízo de
supressão mental sugerido pela teoria da conditio sine qua non, impõe-se determinar a
concreta conduta a suprimir. Isto é, deveremos perguntar o que ocorreria se E não tivesse,
de todo, conduzido, ou mais especificamente, o que teria acontecido se E não tivesse
conduzido numa zona propícia a acidentes? De qualquer forma, a resposta sempre seria
que F não teria sido atropelado, pelo que a morte seria objectivamente imputável a E.
Paralelamente, impõe-se determinar sobre que evento deveria recair o juízo de prognose
póstuma característico da teoria da causalidade adequada. Explicitando: deveremos
indagar da previsibilidade de atropelar uma pessoa numa zona propícia a acidentes? Ou
da previsibilidade de F se atravessar à frente de E? Conforme se adivinha, as soluções
poderão ser bastante distintas, consoante a questão formulada.
Aqui, a circunstância de E conduzir com observância de todas as regras de trânsito
constitui elemento relevante da hipótese, já que o primeiro pressuposto da imputação
objectiva, segundo a teoria do risco, se reconduz à criação ou aumento de um risco
proibido. Deste modo, seria necessário que E tivesse criado um risco ilícito para a vida
de F – o que não foi o caso – já que o risco de atropelar alguém quando se conduz dentro
da velocidade permitida constitui um risco permitido, tolerado pela ordem jurídica.
Corresponde isto a afirmar que E não poderá ser jurídico-penalmente responsável pela
morte de F, já que o resultado que se verificou não emerge da criação de um risco

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proibido, por actuação de E. Não haverá, por isso, imputação objectiva do resultado morte
a E.
II
Concretização do risco proibido
a) Causalidade

4. G mata H a tiro no aeroporto, antes de este poder entrar num avião que veio a
explodir 30 minutos mais tarde devido a um ataque de um bombista-suicida.
Quid juris?

A possibilidade de considerar objectivamente imputável o resultado ao


comportamento de G poderia encontrar-se inquinada pela circunstância de, a posteriori,
H vir a falecer, já que o avião em que planeava entrar explodiria na sequência de um
ataque. Importa aqui atender à relevância desta causa virtual, no sentido de determinar se
a responsabilidade jurídico-penal de G poderá ser afastada por essa via.
Para isso, urge sujeitar este caso aos pressupostos da teoria do risco, e indagar da
criação de um risco para o bem jurídico, do carácter proibido do risco criado, e da
respectiva concretização no resultado. Especificando: quanto ao primeiro requisito, não
haverá dúvida que G criou um risco para a vida de H, tratando-se de um risco proibido
que, a final, se concretizou no resultado. De facto, foi o tiro disparado por G que matou
H, e não o dito avião que viria a explodir. Como se intui, a tutela dos bens jurídicos não
pode ser diferente em função de um qualquer “prazo” que tais interesses possam ter, isso
impõe o princípio da igualdade. O Direito Penal não abandona bens jurídicos à sua sorte.
Se assim fosse a vida não valeria nada, porque um dia vamos todos acabar por morrer.
Ademais, se quisermos dissuadir a comunidade da prática de crimes, importará
demonstrar que o agente não se furta à responsabilidade penal pela circunstância – que
não domina – de um bem jurídico estar irremediavelmente perdido.

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Em casos como o descrito, não se poderá atribui qualquer relevância à causa virtual
para afastar a imputação objectiva do resultado, já que se verifica tanto o desvalor da
acção, quanto o do resultado. Nestes termos, a morte de H é objectivamente imputável a
G.

5. I atropela mortalmente J, que vem a morrer num incêndio que deflagra nas
urgências para onde teve de ser imediatamente transportado.
Quid juris?

A hipótese descrita demonstra nitidamente a melhor adequação da teoria do risco para


a resolução dos problemas de imputação objectiva, quando confrontada com a proposta
da teoria da conditio sine qua non. De facto, de acordo com a teoria das condições
equivalentes, num caso como este haveria causalidade, já que se I não tivesse atropelado
J este não teria dado entrada nas urgências e, não seria, com toda a probabilidade, vítima
do incêndio.
Contudo, urge sublinhar que o risco proibido criado por I, no atropelamento, não é
aquele que se revela como causa da morte de J. Com efeito, J vem a falecer do risco
criado pelo incêndio, observando-se uma interrupção do nexo de imputação objectiva
entre o atropelamento – da responsabilidade de I – e o incêndio.
Nestes cenários, e até com a valoração exigida pela causalidade científico-natural,
tende a afastar-se a imputação objectiva do resultado à conduta do agente, visto que esse
resultado surge por força de um evento alheio ao seu comportamento. Efectivamente, só
é legítimo atribuir resultados a agentes quando estes possam controlar o processo causal
que conduziu a esses resultados.
A morte de J não seria, por isso, objectivamente imputável a I.

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6. L e M, sem conhecimento um do outro, deitam, cada um, uma dose de veneno mortal
e de eficácia rápida no chá de N, que, ao bebê-lo, tem morte instantânea. Quid juris?

O caso descrito constitui uma das hipóteses de cumulação de causas que, na concreta
situação, se apresentam como alternativas. Com efeito, qualquer uma das causas que
concorreram para a produção do resultado surgem, ab initio, como idóneas a produzi-lo.
Isto é, tanto a acção de L, como de M, seriam suficientes, por si só, para produzir o
resultado morte de N, o que significa que mesmo que apenas um deles tivesse actuado, N
morreria pela actuação do outro.
Assim, poderemos afirmar que em relação a ambos os comportamentos se verificou
um aumento/criação de um risco para um bem jurídico, sendo esse risco proibido.
Conforme vimos, L e M colocaram em risco a vida de N. Ulteriormente, este risco
proibido ter-se-á concretizado no resultado, visto que N bebeu o chá que continha as duas
doses. Observou-se, assim, uma “sobreintensificação” do risco: se a vítima tivesse duas
vidas, teria morrido duas vezes.
Por esse motivo, concluiremos pela imputação objectiva do resultado morte a ambos
os agentes, recordando que se trata de um cenário de causas paralelas.

Imagine agora que L e M, escondidos atrás de arbustos e sem conhecimento um do


outro, disparam simultaneamente sobre N. No decurso da autópsia, apenas uma das
balas é encontrada no coração de N, e a perícia balística às armas de L e M é
inconclusiva. Quid juris?

A situação descrita nesta hipótese não é inteiramente coincidente com a atrás


considerada, uma vez que neste cenário não se consegue determinar qual das balas
produziu a morte de N. Desta maneira, ainda que não se duvide que L e M criaram um
risco para a vida de N – traduzido na circunstância de ambos terem disparado sobre N –,
sendo esse risco inequivocamente proibido, terá que se negar a existência de uma conexão

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de risco entre a conduta e o resultado. Na verdade, trata-se de um problema de prova e


não de causalidade.
Conforme se indicou, subsiste a dúvida acerca da proveniência da bala que, em
concreto, provocou o resultado típico. Nestes casos, impõe-se considerar o princípio
constitucional in dubio pro reo, o que implica que se valore a dúvida persistente a favor
do arguido. Isto é, concluindo pela não imputação do resultado à conduta. Em
consequência, afirma-se a punibilidade a título de tentativa (possível).

Noutra hipótese, L e M, sem conhecimento um do outro e convencidos da eficácia


letal dos seus actos, deitam, cada um, uma dose não mortal de veneno no chá de N,
que, ao bebê-lo, vem a morrer apenas pela conjugação das duas doses. Quid juris?

Na situação de causas cumulativas, observa-se que, individualmente consideradas, as


condutas dos agentes são insuficientes para produzir o resultado típico.
Consequentemente, a verificação deste resultado fica a dever-se à conjugação dos
comportamentos.
Nestas circunstâncias, poderíamos eventualmente ser levados a pensar que há, de
facto, uma concretização do risco criado no resultado típico. Na verdade, e como já se
disse, se pelo menos um dos agentes tivesse omitido a sua conduta, o resultado não se
verificaria. Equivale tal a afirmar que, pelo menos, a quota-parte em que cada um
participou se concretizou no resultado, causando aqui a morte de N.
No entanto, importa não esquecer que nenhum deles criou um risco idóneo a provocar
a morte, ainda que disso estivessem ambos convencidos. Por essa razão, poderá desde
logo obstar à afirmação da imputação objectiva do resultado, nestes casos, o facto de nem
se ter aumentado o risco, já que apesar de ambos o terem criado, o específico risco criado
por um era equivalente ao risco criado pelo outro.
Parece, nesta sede, conveniente, fazer alusão ao juízo de prognose póstuma veiculado
pela teoria da causalidade adequada, no sentido de indagar se seria previsível, por

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exemplo, que outra pessoa tivesse colocado veneno no chá de N. Não sendo essa a
situação, impõe-se a decisão pela não imputação do resultado morte às condutas de L e
M, já que o risco por eles criado, na exacta medida em que o criaram, acaba por só de
concretizar com o auxílio de um elemento externo, fora das suas esferas de acção.
Não haveria, assim, imputação objectiva do resultado morte de N nem a L nem a M.
Os dois agentes seriam eventualmente punidos por tentativa impossível, nos termos do
artigo 23.º do Código Penal (inidoneidade relativa do meio).

b) Esfera de protecção da norma

7. O conduz o automóvel pelo lado esquerdo de uma estrada ladeada de árvores,


quando P, que andava aos ninhos, cai de cima de uma das árvores, é atropelado por
O e morre.
Quid juris?

A hipótese retratada parece referir-se, em sede de imputação objectiva, ao problema


da esfera de protecção da norma de cuidado. Tal questão é suscitada com relevância pela
teoria do risco, exactamente porque tal teoria parte da função de protecção de bens
jurídicos atribuída ao direito penal. Como sabemos, tal função protectora de bens
jurídicos é concretizada pelo espectro de projecções em que a norma se manifesta,
visando abarcar um certo número de casos, que se referem a bens jurídicos identificados
e identificáveis.
No nosso caso, tal problema deverá ser discutido visto que a norma que impõe a
circulação pela direita (artigo 13.º, número 3 do Código da Estrada(3)) prossegue o

(3)
1 - A posição de marcha dos veículos deve fazer-se pelo lado direito da faixa de rodagem, conservando das
bermas ou passeios uma distância suficiente que permita evitar acidentes.
2 - Quando necessário, pode ser utilizado o lado esquerdo da faixa de rodagem para ultrapassar ou mudar de
direcção.

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objectivo de evitar colisões entre os veículos e não o de garantir que não se verificam
atropelamentos de pessoas que caem das árvores. Equivale isto a afirmar que a norma em
causa não está pensada para evitar tais situações, pelo que imputar o resultado num caso
como este redundaria, de certo modo, em ampliar a esfera de protecção da norma de
forma desfavorável.
No que concerne à própria verificação dos pressupostos da teoria do risco, houve
efectivamente a criação de um risco, afirmando-se esse risco como proibido – a conduta
do agente revelou-se perigosa para a vida/integridade física dos demais condutores e
transeuntes. Contudo, o risco concretizado na morte de O não corresponde ao risco que
aquela concreta incriminação visa acautelar. Em suma, dir-se-á que o risco que se
produziu, ex post, não corresponde ao risco que se visava proteger, ex ante. Assim, não
haverá imputação objectiva do resultado morte à conduta de O, na sequência do dito
atropelamento.

8. Q circulava à noite, embriagado, conduzindo o seu automóvel, quando atropelou R


que se encontrava no passeio à beira de uma curva que Q não conseguiu fazer. R foi
transportado ao hospital, onde veio a morrer por não ter sido assistido por S, médico
de serviço.
A quem é objectivamente imputável a morte de R?

A imputação objectiva da morte de R a Q ou a S dependerá de saber se a actuação de


S, médico, constitui uma verdadeira interrupção do nexo de imputação objectiva iniciado
pelo atropelamento. Em caso afirmativo, deverá excluir-se a responsabilidade do agente

3 - Sempre que, no mesmo sentido, existam duas ou mais vias de trânsito, este deve fazer-se pela via mais à
direita, podendo, no entanto, utilizar-se outra se não houver lugar naquela e, bem assim, para ultrapassar ou
mudar de direcção.
4 - Quem infringir o disposto nos n.os 1 e 3 é sancionado com coima de (euro) 60 a (euro) 300, salvo o disposto
no número seguinte.
5 - Quem circular em sentido oposto ao estabelecido é sancionado com coima de (euro) 250 a (euro) 1250.

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inicial; em caso negativo, afirmar-se-á que o risco concretizado no resultado será ainda
imputável à conduta do primeiro agente. Estamos, assim, perante um caso em que se
impõe discutir o concreto alcance do tipo, quer dizer, o fim da proibição, em virtude da
possível imputação a um âmbito de responsabilidade alheio.
O cenário relatado obriga-nos a considerar os critérios sugeridos por ROXIN a
propósito dos tratamentos médicos pós-acidente, distinguindo as situações de acção e
omissão. No que se refere à acção médica, importa desde logo considerar o critério de
substituição dos riscos. Neste caso, se a conduta médica substitui o perigo criado pelo
agente inicial, criando um novo risco originário, deverá o médico responder pela
produção do resultado típico. Ao invés, quando a conduta médica não evita a
concretização do risco inicialmente criado, o risco deve correr pelo agente originário.
Retomando os factos descritos, poderá defender-se que S não diminuiu o risco
anteriormente criado para o bem jurídico, pelo que a sua conduta será configurável como
uma omissão. Aqui chegados, e de acordo com a construção de ROXIN, haveria que
determinar se o médico actuara com negligência grosseira. Em caso afirmativo, cumpriria
excluir a imputação do resultado morte à actuação de Q. Sumariamente, defender-se-ia
que a gravidade da actuação de S – que, de forma grosseira, omitiu a prestação dos
cuidados devidos – impossibilitaria a responsabilização de Q, por constituir uma
intensificação do risco inicialmente criado, não atribuível a Q. No fundo, a existência de
negligência grosseira interromperia a cadeia de eventos desencadeada pela actuação de
Q. Caso contrário – i.e., se S não tivesse actuado com negligência grosseira – argumentar-
se-ia que o risco gerado por Q continuaria a correr em parte por conta dele, a não ser que
houvesse interposição de um risco novo. Nesta sede, justificar-se-ia, em princípio, a
punição dos dois agentes a título negligente. Centrando-nos novamente na hipótese
descrita, não existem elementos para concluir se se verificou uma situação de negligência
grosseira ou leve, pelo que se revela difícil aplicar o critério sugerido.
Tanto quanto nos parece, mais relevaria discernir o carácter lícito ou ilícito da omissão
identificada. Com efeito, se S não atendeu R porque não teve meios para tal, observa-se

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uma situação de incapacidade de agir. Nesse pressuposto, o resultado seria


objectivamente imputável a Q, uma vez que a omissão de S não seria ilícita.
Diferentemente, se S não prestou cuidados a R por mera incompetência ou falta de
profissionalismo, haverá que determinar se estamos perante uma omissão pura ou impura.
À partida, e com os elementos que o enunciado nos fornece, seria possível afirmar que S
detinha uma posição de garante face a R, atendendo desde logo aos deveres que lhe são
legalmente impostos. Assim, apenas se excluiria a punição de S a título de homicídio por
omissão (artigo 131.º e 10.º, número 2 do Código Penal) se se entendesse inviável a
afirmação de um nexo de imputação objectiva entre a respectiva omissão e a produção
do resultado típico.
Aqui, urge novamente questionar se a acção omitida teria que ter evitado a morte de
R, ou se bastaria que tivesse diminuído o risco de verificação desse resultado.
Concluindo-se pela existência de uma conexão de risco entre a omissão de S e a morte de
R, punir-se-ia o médico por homicídio por omissão, excluindo a responsabilidade de Q.
Atendendo ao enunciado da hipótese, afigura-se claro que a adopção do comportamento
devido por parte de S teria evitado a produção daquele resultado. Isto é, se S tivesse
prestado os cuidados médicos impostos, R não teria morrido. Equivale isto a afirmar que
foi S quem “provocou” a morte de R. Assim, a punição de S a título de homicídio por
omissão, neste concreto cenário, prejudicaria a atribuição do mesmo resultado morte ao
risco causado pela actuação inicial de Q. Com efeito, o agente que tem um
comportamento arriscado para o bem jurídico não pode contar com o comportamento
ilícito de terceiros, e muito menos por ele ser responsabilizado. Em suma, conclui-se que
a morte de R será atribuível à omissão de S, a título de homicídio por omissão (artigo
131.º e 10.º, número 2 do Código Penal).
Se, ao invés, se entendesse que a actuação devida do médico não teria impedido a
produção do resultado morte e, portanto, se negasse a imputação objectiva a título de
homicídio por omissão, sempre haveria que considerar as previsões dos artigos 200.º e
284.º do Código Penal. Neste ponto, concluir-se-ia que a omissão do médico se limitara

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a não impedir a materialização do primeiro curso causal, o que indiciaria que, em


princípio, a produção do resultado morte seria objectivamente imputável a Q.

c) Comportamento lícito alternativo

9. T, vítima de um acidente rodoviário, foi transportado para o hospital mais próximo,


onde os médicos rapidamente constataram a necessidade de o submeter a uma
cirurgia de carácter urgente. U, médico anestesista, com a pressa e sem se aperceber,
trocou o frasco da anestesia por um outro similar que continha uma substância
venenosa e ministrou-a a T, que veio, por isso, a morrer, ainda antes de dar entrada
na sala de operações.
Todavia, T padecia de uma rara alergia ao excipiente anestésico ministrado naquele
estabelecimento de saúde que nunca poderia ter sido detectada em tempo útil, pelo
que este teria morrido de qualquer forma, ainda que U não se tivesse enganado.
Quid juris?

O problema suscitado pela hipótese reconduz-se às situações de comportamento lícito


alternativo, em que, no caso, mesmo que o agente tivesse observado o dever de motivação
pela norma, o resultado típico verificar-se-ia inevitavelmente. De facto, no cenário
descrito, a circunstância de T ser alérgico à anestesia leva a crer que mesmo que U não
se tivesse enganado, T acabaria sempre por morrer. É neste sentido que se afirma que nas
situações de comportamento lícito alternativo o resultado é inevitável para o próprio
agente, pelo que concluir pela imputação objectiva, nestes casos, equivaleria a impor um
dever cuja observância seria, de certo modo, inútil, atendendo a que o resultado acabaria,
de qualquer modo, por se produzir.
Com base nesta construção, tem entendido a doutrina que, nos casos de
comportamento lícito alternativo, não haverá lugar, em regra, à imputação objectiva do
resultado. Efectivamente, afirmar a imputação corresponderia a impor o cumprimento de

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um dever que não evitaria, em concreto, aquele resultado. Não implica isto que o próprio
conteúdo da norma seja totalmente inútil, visto que será operativo, sem qualquer dúvida,
nas situações em que o dever de evitar o resultado surja como perfeitamente exigível e
possível.
A este propósito, cumpre notar que o problema colocado nas situações de
comportamento lícito alternativo se assemelha à questão da imputação objectiva na
omissão. De facto, em ambos os casos haverá que recorrer um juízo de causalidade
hipotética: na omissão, indagamos da relevância da acção omitida, aqui, perguntamos se
o comportamento lícito alternativo teria evitado a produção do resultado. Por essa razão,
revela-se pertinente recordar que, para ROXIN e FIGUEIREDO DIAS, basta demonstrar que
o agente aumentou o risco de verificação do resultado para que esse resultado seja
objectivamente imputável ao agente. Dito de outra forma, a imputação só será excluída
quando se demonstre, com certeza, que o comportamento lícito alternativo não evitaria o
resultado típico.
Diferentemente, MARIA FERNANDA PALMA considera que estamos perante um
problema probatório, invocando o princípio in dubio pro reo. Em consequência, entende
a autora que, havendo dúvida razoável sobre se o cumprimento do dever evitaria a
produção do resultado, impõe-se excluir a imputação. Assim, esta segunda perspectiva
exige que se demonstre, para além de qualquer dúvida razoável, que o comportamento
lícito alternativo teria evitado a produção do resultado, para concluir pela imputação.

10. V monta uma emboscada a X para o matar. Perante a aproximação da vítima, V


dispara, abatendo-a.
Em seguida, V foge do local e alguns quilómetros adiante ultrapassa um ciclista a
uma distância muito curta. O ciclista, que conduzia embriagado e de forma
oscilante, tombou quando o automóvel passava por ele, vindo a ser esmagado por
uma roda traseira e sofrendo morte imediata.

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Determine a imputação objectiva da morte de X e do ciclista aos comportamentos


de V, tendo em conta que:

a) A poucos metros do local onde X foi abatido, Z aguardava, emboscado, a sua


passagem para o matar.

A hipótese descrita configura uma situação de causalidade virtual,


considerando que, em concreto, o resultado se teria produzido em tempo e
condições semelhantes, por acção de terceiro. De facto, mesmo que V não tivesse
disparado e provocado a morte de X, Z tê-lo-ia feito, pelo que X viria sempre a
falecer.
Estas situações não se podem equiparar aos casos de comportamento lícito
alternativo, uma vez que tal equiparação equivaleria a negar a imputação
objectiva à conduta de V, valorando o putativo comportamento ilícito de Z, para
entender que o bem jurídico estaria, em qualquer caso, perdido.
Como já se viu, as situações de causalidade hipotética não poderão legitimar
estas conclusões pelo simples facto de os bens jurídicos serem protegidos
independentemente da sua esperança de vida, em observância do princípio da
igualdade. A vida de X não deixa de merecer tutela penal pelo facto de se encontrar
“duplamente” em risco. Nestes termos, e recorrendo à formulação da teoria do
risco, diremos que V criou um risco para a vida de X, tratando-se,
inequivocamente, de um risco proibido, tendo esse risco conhecido concretização
no resultado observado. Consequentemente, poderá afirmar-se a imputação do
resultado morte de X ao comportamento de V.

b) Medições feitas no local do acidente indicam que mesmo que V tivesse


mantido uma distância prudente na ultrapassagem, o ciclista dificilmente
evitaria ter sido apanhado pela roda do automóvel na queda.

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Por seu turno, esta segunda hipótese configura um caso de comportamento


lícito alternativo. Segundo o descrito, mesmo que o agente tivesse observado as
imposições normativas, não conseguiria evitar a produção daquele concreto
resultado. Questão complicada nesta sede será então a de discernir a solução para
os casos em que não existe certeza que o comportamento lícito evitaria o
resultado. É neste contexto que ROXIN desenvolve a teoria do aumento do risco,
sugerindo que a constatação destas dúvidas indica, pelo menos, um aumento ou
potenciação do risco e que, portanto, o resultado deverá ser objectivamente
imputável à actuação do agente.
Tem-se entendido, no entanto, que esta posição enferma de duas dificuldades,
reconduzíveis, por um lado, à circunstância de propor que se resolva
normativamente um problema que, em boa verdade, se refere à prova (porque
respeitante a dúvidas na matéria de facto); e por outro, ao facto de se estar a
valorar a dúvida contra o arguido, o que choca com o princípio constitucional in
dubio pro reo.
De facto, nas situações de comportamento lícito alternativo observa-se,
tipicamente, uma impossibilidade de controlo da produção do resultado. Isto é,
para o concreto agente não existe maneira de não provocar esse resultado, o que
inviabiliza, desde logo, a liberdade para decidir nesse sentido. Assim sendo,
afigura-se mais sensato negar o nexo de imputação objectiva em casos como este,
em que nem o comportamento conforme à ordem jurídica teria sido idóneo a
evitar a produção do resultado típico. Como propõe MARIA FERNANDA PALMA,
havendo dúvida razoável sobre se o cumprimento do dever evitaria a produção do
resultado, impõe-se excluir a imputação.

Abril 2020.

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