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A tipicidade
A imputação objectiva do facto
O desvalor objectivo da acção e a imputação objectiva do resultado
I
Criação de um risco proibido
O presente documento apresenta meras propostas de resolução das hipóteses tratadas nas aulas práticas, e
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Contudo, e como facilmente se intui, a formulação pura da teoria da conditio sine qua
non conduz necessariamente a resultados pouco razoáveis. De facto, para tal construção,
seriam igualmente causa deste resultado a venda da aspirina a A e o próprio fabrico do
medicamento. Por esse motivo, introduziu-se uma restrição à teoria das condições
equivalentes, conhecida como teoria da causalidade conforme às leis da natureza, que
determina que apenas à luz de um juízo científico / natural / pericial se poderá estabelecer
a necessária relação de causalidade entre a conduta do agente e o resultado produzido.
Entende-se igualmente que, não ficando por esta via demonstrado o nexo entre a acção e
o resultado, se deverá fazer valer o princípio constitucional in dubio pro reo, não
imputando objectivamente o resultado à actuação do agente.
Apesar de tal restrição, esta teoria continua a abarcar soluções intoleráveis no que
respeita à imputação objectiva. De facto, nesta concepção, os casos de interrupção do
nexo causal – ou, nas palavras de ROXIN, de interrupção do nexo de imputação objectiva
–, seriam ainda considerados como objectivamente imputáveis ao comportamento do
agente inicial.
Nesta sequência, surge a teoria da causalidade adequada, que se propõe, de certo
modo, a filtrar as causas relevantes para a produção do resultado, através de um juízo de
previsibilidade. Tal previsibilidade seria aferida a partir de um juízo de prognose
póstuma, que consiste na necessidade de o juiz se colocar na situação do agente, no
momento da acção, e indagar da previsibilidade de produção do resultado, a partir daquela
acção. Nesta situação, teríamos então que perguntar se qualquer homem médio, colocado
na posição do agente, consideraria previsível, ex ante, que se viesse a produzir a morte
de B em consequência da ingestão de um aspegic. Como facilmente se compreende, as
potencialidades fatais de uma aspegic são inexistentes para a maioria dos seres humanos,
o que significa que não seria previsível que B falecesse na sequência daquele
comportamento.
Outra questão que ainda se colocou no seio desta discussão prende-se com a
problemática dos conhecimentos especiais do agente, e da sua relevância para o referido
2. C empurra D de forma a que uma pedra que foi violentamente arremessada contra
a cabeça deste apenas lhe acerte num braço.
A ofensa à integridade física de D é objectivamente imputável a C?
A propósito dos casos de diminuição do risco, ver ainda PAULO SOUSA MENDES, Sobre a Capacidade de
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Rendimento da Ideia de Diminuição do Risco – Contributo para uma crítica à moderna teoria da imputação
objectiva em Direito Penal, Lisboa, 2007.
proibido, por actuação de E. Não haverá, por isso, imputação objectiva do resultado morte
a E.
II
Concretização do risco proibido
a) Causalidade
4. G mata H a tiro no aeroporto, antes de este poder entrar num avião que veio a
explodir 30 minutos mais tarde devido a um ataque de um bombista-suicida.
Quid juris?
Em casos como o descrito, não se poderá atribui qualquer relevância à causa virtual
para afastar a imputação objectiva do resultado, já que se verifica tanto o desvalor da
acção, quanto o do resultado. Nestes termos, a morte de H é objectivamente imputável a
G.
5. I atropela mortalmente J, que vem a morrer num incêndio que deflagra nas
urgências para onde teve de ser imediatamente transportado.
Quid juris?
6. L e M, sem conhecimento um do outro, deitam, cada um, uma dose de veneno mortal
e de eficácia rápida no chá de N, que, ao bebê-lo, tem morte instantânea. Quid juris?
O caso descrito constitui uma das hipóteses de cumulação de causas que, na concreta
situação, se apresentam como alternativas. Com efeito, qualquer uma das causas que
concorreram para a produção do resultado surgem, ab initio, como idóneas a produzi-lo.
Isto é, tanto a acção de L, como de M, seriam suficientes, por si só, para produzir o
resultado morte de N, o que significa que mesmo que apenas um deles tivesse actuado, N
morreria pela actuação do outro.
Assim, poderemos afirmar que em relação a ambos os comportamentos se verificou
um aumento/criação de um risco para um bem jurídico, sendo esse risco proibido.
Conforme vimos, L e M colocaram em risco a vida de N. Ulteriormente, este risco
proibido ter-se-á concretizado no resultado, visto que N bebeu o chá que continha as duas
doses. Observou-se, assim, uma “sobreintensificação” do risco: se a vítima tivesse duas
vidas, teria morrido duas vezes.
Por esse motivo, concluiremos pela imputação objectiva do resultado morte a ambos
os agentes, recordando que se trata de um cenário de causas paralelas.
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exemplo, que outra pessoa tivesse colocado veneno no chá de N. Não sendo essa a
situação, impõe-se a decisão pela não imputação do resultado morte às condutas de L e
M, já que o risco por eles criado, na exacta medida em que o criaram, acaba por só de
concretizar com o auxílio de um elemento externo, fora das suas esferas de acção.
Não haveria, assim, imputação objectiva do resultado morte de N nem a L nem a M.
Os dois agentes seriam eventualmente punidos por tentativa impossível, nos termos do
artigo 23.º do Código Penal (inidoneidade relativa do meio).
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1 - A posição de marcha dos veículos deve fazer-se pelo lado direito da faixa de rodagem, conservando das
bermas ou passeios uma distância suficiente que permita evitar acidentes.
2 - Quando necessário, pode ser utilizado o lado esquerdo da faixa de rodagem para ultrapassar ou mudar de
direcção.
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objectivo de evitar colisões entre os veículos e não o de garantir que não se verificam
atropelamentos de pessoas que caem das árvores. Equivale isto a afirmar que a norma em
causa não está pensada para evitar tais situações, pelo que imputar o resultado num caso
como este redundaria, de certo modo, em ampliar a esfera de protecção da norma de
forma desfavorável.
No que concerne à própria verificação dos pressupostos da teoria do risco, houve
efectivamente a criação de um risco, afirmando-se esse risco como proibido – a conduta
do agente revelou-se perigosa para a vida/integridade física dos demais condutores e
transeuntes. Contudo, o risco concretizado na morte de O não corresponde ao risco que
aquela concreta incriminação visa acautelar. Em suma, dir-se-á que o risco que se
produziu, ex post, não corresponde ao risco que se visava proteger, ex ante. Assim, não
haverá imputação objectiva do resultado morte à conduta de O, na sequência do dito
atropelamento.
3 - Sempre que, no mesmo sentido, existam duas ou mais vias de trânsito, este deve fazer-se pela via mais à
direita, podendo, no entanto, utilizar-se outra se não houver lugar naquela e, bem assim, para ultrapassar ou
mudar de direcção.
4 - Quem infringir o disposto nos n.os 1 e 3 é sancionado com coima de (euro) 60 a (euro) 300, salvo o disposto
no número seguinte.
5 - Quem circular em sentido oposto ao estabelecido é sancionado com coima de (euro) 250 a (euro) 1250.
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inicial; em caso negativo, afirmar-se-á que o risco concretizado no resultado será ainda
imputável à conduta do primeiro agente. Estamos, assim, perante um caso em que se
impõe discutir o concreto alcance do tipo, quer dizer, o fim da proibição, em virtude da
possível imputação a um âmbito de responsabilidade alheio.
O cenário relatado obriga-nos a considerar os critérios sugeridos por ROXIN a
propósito dos tratamentos médicos pós-acidente, distinguindo as situações de acção e
omissão. No que se refere à acção médica, importa desde logo considerar o critério de
substituição dos riscos. Neste caso, se a conduta médica substitui o perigo criado pelo
agente inicial, criando um novo risco originário, deverá o médico responder pela
produção do resultado típico. Ao invés, quando a conduta médica não evita a
concretização do risco inicialmente criado, o risco deve correr pelo agente originário.
Retomando os factos descritos, poderá defender-se que S não diminuiu o risco
anteriormente criado para o bem jurídico, pelo que a sua conduta será configurável como
uma omissão. Aqui chegados, e de acordo com a construção de ROXIN, haveria que
determinar se o médico actuara com negligência grosseira. Em caso afirmativo, cumpriria
excluir a imputação do resultado morte à actuação de Q. Sumariamente, defender-se-ia
que a gravidade da actuação de S – que, de forma grosseira, omitiu a prestação dos
cuidados devidos – impossibilitaria a responsabilização de Q, por constituir uma
intensificação do risco inicialmente criado, não atribuível a Q. No fundo, a existência de
negligência grosseira interromperia a cadeia de eventos desencadeada pela actuação de
Q. Caso contrário – i.e., se S não tivesse actuado com negligência grosseira – argumentar-
se-ia que o risco gerado por Q continuaria a correr em parte por conta dele, a não ser que
houvesse interposição de um risco novo. Nesta sede, justificar-se-ia, em princípio, a
punição dos dois agentes a título negligente. Centrando-nos novamente na hipótese
descrita, não existem elementos para concluir se se verificou uma situação de negligência
grosseira ou leve, pelo que se revela difícil aplicar o critério sugerido.
Tanto quanto nos parece, mais relevaria discernir o carácter lícito ou ilícito da omissão
identificada. Com efeito, se S não atendeu R porque não teve meios para tal, observa-se
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um dever que não evitaria, em concreto, aquele resultado. Não implica isto que o próprio
conteúdo da norma seja totalmente inútil, visto que será operativo, sem qualquer dúvida,
nas situações em que o dever de evitar o resultado surja como perfeitamente exigível e
possível.
A este propósito, cumpre notar que o problema colocado nas situações de
comportamento lícito alternativo se assemelha à questão da imputação objectiva na
omissão. De facto, em ambos os casos haverá que recorrer um juízo de causalidade
hipotética: na omissão, indagamos da relevância da acção omitida, aqui, perguntamos se
o comportamento lícito alternativo teria evitado a produção do resultado. Por essa razão,
revela-se pertinente recordar que, para ROXIN e FIGUEIREDO DIAS, basta demonstrar que
o agente aumentou o risco de verificação do resultado para que esse resultado seja
objectivamente imputável ao agente. Dito de outra forma, a imputação só será excluída
quando se demonstre, com certeza, que o comportamento lícito alternativo não evitaria o
resultado típico.
Diferentemente, MARIA FERNANDA PALMA considera que estamos perante um
problema probatório, invocando o princípio in dubio pro reo. Em consequência, entende
a autora que, havendo dúvida razoável sobre se o cumprimento do dever evitaria a
produção do resultado, impõe-se excluir a imputação. Assim, esta segunda perspectiva
exige que se demonstre, para além de qualquer dúvida razoável, que o comportamento
lícito alternativo teria evitado a produção do resultado, para concluir pela imputação.
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