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Partindo destas premissas, é possível constatar que na presente hipótese encontramo-nos diante
de um comportamento automático – a condução. Isto porque a condução está associada a um
comportamento mais complexo, fruto da aprendizagem, que corresponde a uma reação preparada
do agente, no qual este age segundo guiões de ação (scripts), em que cada passo do comportamento
se vai desencadeando como resposta imediata, associada a um comportamento rotineiro, no qual
não tem de intervir de forma penosa a consciência. Os comportamentos automáticos estão
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No caso vertente, apesar de estar um dia de chuva e de, nesse caso, ser recomendável aos
condutores que moderem a velocidade na estrada, a hipótese não nos fornece nenhum dado sobre
a velocidade a que A conduzia.
Para além disso, apesar de ser previsível que num dia de chuva um condutor se depare com a
formação de lençóis de água na estrada – e, portanto, apesar de existir um sinal de perigo associado
à natureza da ação da condução perante condições meteorológicas adversas, o que podia gerar o
alerta de A quanto à necessidade de interrupção do automatismo – certo é que A não conseguiu
parar o automóvel devido à sua pouca experiência de condução. Deste modo, se mesmo segundo
um padrão de uma pessoa média é difícil desde já admitir que existia uma previsibilidade que
possibilitasse a interrupção do automatismo, segundo uma avaliação à luz das características
individuais do sujeito, somos levados a concluir que devido à sua pouca experiência de condução
era muito difícil para A conseguir interromper o automatismo e ter tempo de reação para o fazer,
perante uma situação de perda de aderência dos pneus à estrada, o que leva à perda do controlo do
veículo. Deste modo, não conseguimos identificar no caso vertente características de evitabilidade
concreta do comportamento que nos permitam concluir pela existência de uma ação penalmente
relevante.
2 - B bebeu excessivamente num bar com desgosto por a sua equipa ter perdido e
agrediu a mulher violentamente quando ela o censurou por chegar a casa
embriagado.
• Para a escola clássica, partindo de uma tese naturalista, a existência de uma ação dependerá
da verificação de um movimento corporal “animado por uma vontade” (BELING). Esta
proposta parece, pois, subscrever uma ideia de vontade como impulso consciente que se
deparará com dificuldades na resolução de situações de embriaguez.
• Para a escola finalista, que vê a ação penalmente relevante como comportamento exterior
racionalmente orientado para um fim, o requisito da voluntariedade surge condicionado à
exigência de um controlo consciente da ação como forma de a orientar para a finalidade.
Esta ideia de seleção de meios para realizar um fim também suscita dificuldades na valoração
de comportamentos em estado de embriaguez. No entanto, caso se entenda que essa
finalidade abrange a designada “finalidade/dirigibilidade inconsciente” (STRATENWERTH),
isto é, o controlo inconsciente do próprio comportamento, poderá ser mais facilmente
sustentada a sua relevância.
• Partindo do que chama conceito pessoal, ROXIN identifica uma ação penalmente relevante
onde se verifique uma manifestação da personalidade através da intermediação da esfera
anímico-espiritual da pessoa. Nestes termos, a atuação sob estado de embriaguez configurará
uma acção penalmente relevante quando seja ainda identificável uma capacidade de relação
com o meio circundante, desde logo quando se reconheça uma finalidade, mesmo que
inconsciente.
• Para MARIA FERNANDA PALMA, o problema da voluntariedade deve ser colocado a partir da
ponderação da reconhecibilidade do ato no contexto do comportamento global do agente,
aliado também à sua previsibilidade. Nos estados de inconsciência, em que falta essa
reconhecibilidade, o juízo deverá ser aferido por referência ao ato de autocolocação naquele
estado, examinando-se se seria previsível que a situação ocorresse.
conscientemente por B, num contexto global também identificável e que indicia socialmente essa
vontade orientada para o ato, isto é, na sequência de um desgosto desportivo.
Relativamente à agressão doméstica, teremos de abrir duas subhipóteses.
Caso o estado de embriaguez em que B se coloca não tenha causado uma perturbação total do
controlo sobre o seu corpo, da sua capacidade de aceitação da vontade e de reconhecimento dos
seus atos — isto é, se não gerou um estado de inconsciência —, estaremos perante uma ação
penalmente relevante, não se suscitando qualquer necessidade de problematização adicional.
Caso B tenha agido já num estado de inconsciência, emerge a questão de saber se ainda o
podemos responsabilizar penalmente:
(a) À luz das acima referidas teses de “dirigibilidade inconsciente” e de afirmação de uma
manifestação de personalidade em face da capacidade de se relacionar com o meio circundante, é
sustentável que o ato de agressão tem relevância penal, sem necessidade de outras considerações
ou sequer de análise do ato de colocação em estado de embriaguez. A agressão de B será, pois,
reconduzível a uma ação penalmente relevante.
(b) Mas importa ponderar se, para diferentes conceções, ou onde aquelas falhem, poderá ainda
assim afirmar-se a relevância penal de uma ação inconsciente. Como se viu, algumas propostas
fazem depender a relevância penal da ação da previsibilidade, reconhecimento ou evitabilidade do
comportamento, o que nos levará a questionar se o momento anterior ao estado de inconsciência,
concretamente o ato de colocação nesse estado, pode ainda fundamentar a relevância penal do ato
posterior de agressão doméstica — e, em especial, se será possível fazê-lo em termos conciliáveis
com o direito penal do facto e com o princípio da culpa.
Como ensina MARIA FERNANDA PALMA, a atribuição de relevância penal por apelo a atos
anteriores ao ato inconsciente depende, desde logo, do estabelecimento de uma relação
juridicamente relevante entre esse comportamento e o subsequente ato inconsciente. Essa relação
juridicamente relevante existirá sempre que ocorra a violação de deveres cognoscíveis pelo agente
— neste caso, a ingestão imoderada de bebidas alcoólicas. E existirá também sempre que fosse ao
menos previsível para o agente, quando se colocou no estado de inconsciência, que a situação
posterior se verificaria — o que também neste caso acontece, uma vez que era previsível, quando
o agente se decidiu embriagar após uma desilusão desportiva, que esse seu estado suscitaria a
censura da mulher e uma sua possível e consequente reação violenta. Aliás, até pela sua frequência,
é facilmente defensável, tanto num plano social, como em relação ao próprio B, que o contacto
apaixonado com o mundo desportivo se presta a reações violentas, o que reforça as exigências de
responsabilidade na prevenção de riscos para bens jurídicos.
Assim, seguindo esta formulação, o ato de B será penalmente relevante.
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comportamento que traduza ainda uma manifestação da personalidade, incluindo aqui tudo o que
possa ser imputado a um homem como centro de ação anímico-espiritual.
Enunciadas tais conceções, haverá então que discernir se os comportamentos de C revelam esse
conteúdo mínimo que permitirá identificá-los como ações penalmente relevantes.
Sobre a colocação no estado de privação, poderá equacionar-se que teria resultado de uma
impossibilidade de o agente aceder às substâncias que lhe teriam permitido evitar uma situação
extrema, o que, de certo modo, constituiria uma contingência imposta. Ainda assim, numa
sociedade norteada pelo princípio da liberdade e responsabilidade, guiada pela prevenção de riscos
para os bens jurídicos, sempre se afirmaria que competiria ao agente, conhecendo o seu estado de
dependência, alhear-se dos contextos que favorecessem a prática de crimes e a colocação em
perigo de outros cidadãos.
Num cenário alternativo, poderá admitir-se que existe um comportamento humano, externamente
identificável, ainda controlado pelo agente: C teria domínio dos efeitos potenciais da sua atuação,
conhecendo as consequências de não aceder ao seu vício. Paralelamente, não resulta inconcebível
considerar que existiria ainda uma finalidade inconsciente subjacente ao comportamento de C: o
agente não dirige a atuação àquele resultado, mas age ciente de que tal finalidade é atingível por
aquele meio. Ademais, afigurava-se plenamente evitável e previsível que a situação de privação
se verificasse, atendendo à sua condição. Finalmente, socorrendo-nos do conceito proposto por
ROXIN, consideraremos, sem grandes hesitações, que se trata ainda de uma expressão da
personalidade do agente.
Neste ponto, concluímos por isso, pela existência de uma ação penalmente relevante, no que
respeita à colocação no estado de privação, por parte de C.
Relativamente ao facto de ter esfaqueado D para subtrair o dinheiro, o problema centra-se na
circunstância de, nesse momento, C estar “completamente descontrolado”. Quer dizer, haverá que
discutir, primeiramente, se esse descontrolo assume proporções tais que determinem a
impossibilidade de caracterizar o comportamento empreendido como uma ação, para efeitos
penais(1).
O passo inicial consiste em averiguar a existência de uma capacidade decisiva de controlo do
comportamento, por parte do agente, ou, ao invés, da comprovação de um funcionamento soberano
do corpo que comanda a vontade do agente.
(1)
O que não impede que, num momento ulterior, se afira da relevância deste estado de perturbação para efeitos de
determinação da capacidade de culpa do agente, e delimitação entre a aplicação dos regimes dos artigos 20.º, n.º 4, e
295.º do CP.
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1 - A, que vivia num sítio isolado, não permitiu que B, que pretendia auxiliar C,
vítima de um acidente rodoviário, utilizasse o telefone da sua casa para chamar a
assistência médica e o sinistrado veio a morrer no local devido à falta de
assistência médica atempada.
a) Pretende-se aferir se A cometeu um crime de homicídio por ação (matar) ou por omissão
(deixar morrer), estando em questão um crime de resultado (art. 131.º do CP).
De acordo com o critério naturalístico-causal, avançado, entre outros, por KARL ENGISCH, há
comissão por ação se (e só se) há uma introdução de energia, por parte do agente, causalmente
apta a produzir o resultado típico e há comissão por omissão se (e só se) não existir perda de
energia, por parte do agente, no sentido de evitar o resultado típico.
É de notar (CAVALEIRO DE FERREIRA) que as omissões não produzem efeitos, pelo que só
figurativamente se fala, aí, em ‘resultado típico’, e que o nexo causal envolvendo a ação (produção
do resultado típico: por exemplo, a morte) não é o nexo causal envolvendo a ação omitida, que é
a evitação de um determinado acontecimento (novamente, a morte).
Critica-se este critério, entre outras razões, com base nos casos de (assim chamados por ROXIN)
‘omissão através de um fazer’: teremos, defende-se, ações de um ponto de vista naturalístico mas
que têm de ser tratadas, de um ponto de vista normativo-jurídico, como omissões. Como exemplo,
teremos o caso de A atirar uma boia para salvar B, que se está a afogar, e de, antes que a boia
chegue a B, A a recolher. Este exemplo pertence a uma das três constelações de casos de ‘omissão
através de um fazer’ agrupados por ROXIN, a das ruturas de um processo causal salvador colocado
em marcha pelo próprio.
b) Já STRATENWERTH avança com um critério normativo (ou de ilicitude típica): há comissão por
ação se (e só se) há aumento ou criação de perigo para bens jurídicos e há comissão por omissão
se (e só se) não tiver havido diminuição de perigo (pré-existente) para bens jurídicos. Seguindo
este critério, o caso anterior seria qualificado como um caso de omissão porque A não diminuiu o
perigo de morte em que se encontrava B.
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c) Porém, o caso da hipótese é diferente. Desde logo, há que ponderar a possibilidade de constituir
um caso de ‘omissão através de um fazer’ pertence a uma segunda constelação de casos. Neste
grupo, cabem casos mais simples, como os de omissio libera in causa, englobando os casos de
destruição dos meios de salvamento pelo próprio, como a destruição do próprio barco salva-vidas
para impedir o salvamento que era exigido; ou, adaptando o caso de modo a ter semelhanças com
a hipótese, há uma omissão (através de uma ação) caso A simplesmente destrua o seu telefone para
impedir que o próprio o use para solicitar assistência médica para C.
Mas há casos mais complexos, como o de A se agarrar ao seu telefone e, com isso, impedir que
B peça assistência médica. Considera ROXIN (não discute especificamente este exemplo mas o
exemplo análogo do barco) que estes estão a meio caminho entre dois cuja solução surge, para o
autor, como indiscutível: A impede B de telefonar a partir da sua própria (de B) casa; A marca o
número de telefone para pedir assistência médica mas, enquanto fala e antes de fornecer
pormenores, arrepende-se e desliga. No primeiro caso, considera ROXIN que há uma ação, pois é
interrompida uma cadeia causal exclusivamente alheia e que evitaria a morte de C (o salvamento
de C não estava dependente de qualquer intervenção de A, pelo que este nada omite: parece ser
este o critério de distinção adotado por ROXIN, o da consumação do salvamento – na ótica de A –
, mais do que o da entrada na esfera da vítima dos meios de salvamento). No segundo caso, há uma
omissão, mesmo que por intermédio da ação de desligar o telefone.
ROXIN conclui que, em tais casos “híbridos”, há uma ação (se não há mais algum telefone a que
B possa recorrer, o que parece ser o caso, de acordo com o enunciado: A vivia num sítio isolado),
numa argumentação a dois tempos: i) é completamente irrelevante que A impeça B de telefonar
destruindo o telefone de B ou destruindo o seu próprio (de A) telefone; ii) também é irrelevante se
A interrompe um processo causal de salvamento já iniciado ou se, num momento anterior, impede
que se inicie um.
d) Mas o enunciado não é explícito quanto ao modo como A impede B de telefonar de modo a
salvar C. Poder-se-á dar o caso de A nem sequer ter deixado B entrar em sua casa. Ora, defende
ROXIN, neste último caso, que há uma omissão: não há, aí, qualquer fazer.
e) Se este for o caso, há que aferir se a omissão é penalmente relevante, o que implica aferir se A
se encontrava investido numa posição de garante relativamente a C e, consequentemente, se se
encontrava sujeito a um dever de garante, nos termos da extensão da tipicidade operada pelo art.
10.º/2 do CP (faz-se equivaler as omissões impuras às ações, se bem que com a possibilidade uma
atenuação especial da pena, conforme determina o n.º 3 do mesmo preceito). O enunciado nada
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refere a este respeito, pelo que se pressupõe que não há posição/dever de garante. Resta a
possibilidade de A responder pela omissão (pura) de auxílio, nos termos do art. 200.º do CP.
2 - B, sabendo que estava infetado por Covid-19, não disse nada a uma amiga, a
qual ficou contagiada depois de ter passado com ele um fim de semana.
Não se esclarecendo o estado de saúde de B, o caso será resolvido tomando por referência o tipo
de propagação de doença: art. 283.º, n.º 1, al. a), do CP.
À luz de uma perspetiva de base naturalista, a configuração do comportamento como ação exige
que se identifique um fazer, traduzido num dispêndio de energia por intermédio de movimentos
corporais, causal (ao menos segundo intuições imediatas) para o resultado em análise. Nesta linha,
enquadrar a (possível) propagação de doença como realizada por ação exigiria encontrar o concreto
ou concretos gestos que teriam originado o contágio: o espirro ou a tosse na direção da vítima, por
exemplo. Não sendo possível tal identificação, teria de se concluir que o contágio se teria dado
pela mera proximidade, possivelmente provocada pela aproximação levada a cabo pela própria
amiga. Ocorrendo então o resultado numa situação de imobilidade do agente, estaríamos perante
uma omissão.
Sendo tão ténue e difícil de descortinar a fronteira entre o fazer e o não fazer traduzíveis em ações
e omissões penalmente relevantes, e tendo em conta as consequências que tal implica para a análise
da responsabilidade do agente, autores como JAKOBS preferem situar a linha de distinção noutros
pontos. Partindo de uma ideia de delimitação de esferas de competência para organização da
própria liberdade, defende este autor que a cada um caberá dispor dos meios para a sua realização
como bem entender, desde que não interfira com a competência que, em relação à liberdade dos
demais, a eles cabe, numa lógica de igualdade. Gera-se então o dever negativo básico, vinculativo
para todos os cidadãos, de conformar a organização da sua esfera de competência de modo que
respeite o igual espaço de discricionariedade que aos outros deve ser reconhecido. Os meios aí
incluídos serão todos aqueles sobre os quais o agente exerça domínio na realização da sua
liberdade, como o próprio corpo, animais domésticos, máquinas de que seja proprietário, etc.
Sempre que essa utilização se revele indevida, por violação do dever negativo referido, teremos a
base (de um comportamento penalmente relevante) para o posterior juízo de imputação
propriamente dito da tipicidade. Para lá deste âmbito, tal base só poderá ser encontrada quando se
comprove a violação de algum dever positivo, resultante de um estatuto especial atribuído ao
agente, do qual derivem regras especiais de competência. Em relação a todos estes deveres, o juízo
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sobre a sua violação ou incumprimento não estará dependente de esta ter tido lugar por meio de
ação ou omissão em termos naturalísticos.
Desta perspetiva, saber se B, no presente caso, provocou o contágio por intermédio de um fazer
ou de um omitir perde relevância, devendo somente salientar-se que, consciente de se encontrar
num estado de saúde que torna o seu corpo fonte de perigo para terceiros que se aproximem, cabe-
lhe reorganizar os seus movimentos, deslocações, conversações, etc., de modo que os demais, sem
razões aparentes para suspeitar de perigo, não prossigam o que seriam interações normais em
perfeitas condições de saúde, mas se tornam opções arriscadas na proximidade de alguém infetado.
Em suma, B violou o seu dever negativo, podendo prosseguir-se na análise da tipicidade.
Optando-se por privilegiar a linha de análise de base naturalista, e no caso de não ser possível
descortinar qualquer fazer – concluindo-se então pela existência de omissão –, deve indagar-se
pela existência de um dever de garante atribuível a B. Com efeito, parecendo o tipo em questão
pensado primacialmente para ações, a cláusula de equiparação do art. 10.º, n.ºs 1 e 2, exige que se
descortine tal dever para sustentar a responsabilidade por omissão (impura). Ora, atendendo a que
o corpo de B, neste estado, constitui, pela facilidade de contágio, fonte de perigo imediato para
quem quer se encontre nas proximidades sem proteção devida, podemos atribuir-lhe um dever de
fiscalização sobre os seus movimentos, interações, etc., plenamente enquadrável nos termos
referidos. Em conclusão, teríamos uma omissão de cumprimento de dever de garante, cabendo de
seguida analisar a tipicidade da violação.
No caso, C praticou uma omissão, pois não socorreu D: não diminuindo o risco existente para o
bem jurídico vida. A questão colocada respeita à possibilidade de equiparar esta omissão a uma
acção para efeitos de punir C pelo crime de homicídio, nos termos do art. 131.º conjugado com o
art. 10.º, n.ºs 1 e 2 do CP (crime de omissão impura), dado que C não tenta, sequer, evitar a morte
de D. É, assim, necessário que se verifique a existência de um “dever jurídico que pessoalmente o
obrigue” a socorrer D (art. 10.º, n.º 2), constituindo-o numa posição de garante. Os princípios da
legalidade, da liberdade, e, em geral, do Estado de Direito democrático impõem uma
fundamentação exigente e previsível da imposição de tal dever.
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Várias foram as teorias que procuraram estabelecer os vínculos jurídicos referidos, como é o caso
da teoria formal (que apenas considerava como fonte de dever de garante a lei, o contrato e a
ingerência) e das várias modalidades de teorias de funções, como as preconizadas por ARMIN
KAUFMANN, ou, numa formulação diferente, JAKOBS. A maioria da doutrina portuguesa acolhe,
hoje, uma teoria formal-material, como é o caso de FIGUEIREDO DIAS, que defende um método
tipológico de concretização de deveres resultantes da conjugação das teorias formal e material,
assente numa lógica de relações concretas de solidariedade juridicamente concretizável em:
deveres de proteção e assistência a determinados bens jurídicos (i); deveres de vigilância de fontes
de perigo (ii); e deveres impostos por uma situação de monopólio dos meios de salvamento (iii).
No caso analisado, apenas se poderá considerar como fonte do dever o monopólio acidental, isto
é, a circunstância de C se deparar com uma situação em que tem o domínio fáctico sobre o perigo
em que incorre o bem jurídico: com efeito, está numa praia sem nadador salvador, perante um caso
de perigo agudo e iminente para a vida de D, o qual poderá minorar consideravelmente sem que
incorra numa situação perigosa para si mesmo, uma vez que, sendo C nadador exímio, não correrá,
em princípio, riscos significativos. Por conseguinte, revela-se uma grave desproporção entre o
esforço e perigo que lhe são impostos e o bem jurídico cuja lesão deve evitar, tendo, assim, o dever
de evitar a morte de D.
Por outro lado, a adoção de um critério de autovinculação do agente implícita na relação social,
defendido por MARIA FERNANDA PALMA, impede aquela solução, uma vez que, de acordo com os
dados fornecidos na hipótese, C e D são desconhecidos e entre os quais não existe qualquer
vínculo, ainda que implícito, não se podendo admitir qualquer fundamento jurídico do dever
independente da mera relevância ética. Com efeito, C não pode contar com a obrigação de evitar
a morte de D, pois não tem qualquer “delimitação estável e previsível do âmbito da
responsabilidade do agente em relação aos bens jurídicos alheios”, necessária para que possa
aceitar implicitamente o dever de evitar a verificação daquele resultado (MARIA FERNANDA
PALMA). Assim sendo, esta omissão não pode ser equiparada à omissão para efeitos da punição
pelo crime de homicídio, restando a possibilidade de punir C pela violação de um dever legal de
auxílio, no caso, consagrado através do crime previsto e punido no art. 200.º do CP. Está em causa
um mero dever de solidariedade que cabe, em princípio, a qualquer cidadão, desde que verificados
os pressupostos referidos no tipo, o qual está configurado na forma omissiva (omissão pura). São
tutelados bens jurídicos pessoais – no caso concreto, a vida – em situação de risco iminente de
grave lesão. Uma vez que C é um nadador exímio, parece estar verificada, ainda, a possibilidade
fáctica de realizar a ação devida, ou seja, de prestar o auxílio necessário a D, sem que tal represente
para si um risco de lesão corporal grave.