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3º ano, Turma A

Patrícia Carneiro da Silva

DIREITO PENAL II
Professora Doutor Maria Fernanda Palma

I – A TEORIA GERAL DA INFRACÇÃO COMO TEORIA DA DECISÃO PENAL


1 – O conceito de crime e a responsabilidade criminal
A aplicação do Direito Penal exige, para a sua aplicação prática, um método
disciplinador do juízo valorativo para aplicação da responsabilidade criminal – a mesma
não pode ser intuitiva. É este o conteúdo que se procura na teoria da infracção penal
ou teoria do crime. Propõe-se, através dessa, uma organização lógico-valorativa da
determinação da responsabilidade penal, feita a partir do confronto do facto concreto
com os tipos de crime.
Esta teoria surge como teoria da definição do crime, sendo o estudo é feito através da
análise das características comuns a todas as figuras de crime – assume-se que todas
as figuras previstas no Código Penal como crimes são espécies de um mesmo género:
todas são acções dominadas ou domináveis pela vontade, não justificadas
excepcionalmente pela realização de valores juridicamente relevantes (como a
legítima defesa), nem desculpáveis por um qualquer estado psicológico de
enfraquecimento da liberdade de determinação.
Assim, pode dizer-se que o crime é um facto típico, ilícito, culposo e punível.

II – O CONCEITO DE ACÇÃO
1 – A acção enquanto comportamento activo
Pode avançar-se, desde já, que a acção representa um comportamento voluntário,
dominado ou dominável pela vontade. No entanto, torna-se pertinente, para este e
para todos os demais pressupostos da responsabilidade penal, a análise da posição das
Escolas:
o Escola Clássica – adopta um conceito naturalista de acção, exigindo uma
modificação objectiva do mundo exterior, através de um movimento corporal
voluntário. Não é relevante o conteúdo ou objecto da vontade (não se analisa
aqui a dicotomia dolo/negligência), tal como não é relevante saber se a acção
era destinada à acção produzida. A acção é, no fundo, um dado empírico
observável.
o Escola Neoclássica – a acção representa um comportamento significativo,
exigindo-se uma negação de valores através de uma actuação da vontade no
mundo exterior;
o Escola Finalista – a acção corresponde a um comportamento ou processo
orientado, pelo agente, para a modificação do mundo exterior. A acção tem em
vista um certo objectivo ou resultado, sendo um conceito pré-jurídico,
ontologicamente determinado.

Diz-nos o Professor Figueiredo Dias que o conceito de acção ainda subsiste como a base
autónoma e unitária de construção do sistema de responsabilidade penal, sendo, no

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fundo, o seu substrato mínimo. A Professora Fernanda Palma segue, neste contexto, a
mesma linha de pensamento – a acção tem sido o conceito que exprime o pressuposto
básico da responsabilidade por culpa, condicionando o tipo de comportamento que em
geral pode ser designado como crime.
Para Jakobs, só haverá acção quando o agente causa um resultado que era
individualmente evitável. Note-se que esse resultado – um efeito objectivamente
autonomizável da acção – pode ser de perigo (o perigo que se exige que exista para um
bem jurídico é, em si mesmo, um resultado – p.e. condução perigosa) ou de dano (exige-
se a lesão de um bem jurídico – p.e. homicídio). Quanto ao facto de este ser
“individualmente evitável”, tem de estar em causa um resultado que o agente, tendo
em conta a sua capacidade em concreto, pudesse ter evitado, no sentido de permitir
que se mantivessem as expectativas da sociedade quanto à vigência da norma.
Já segundo a linha de Roxin, que adopta um conceito pessoal de acção, esta é vista
como expressão da personalidade, ou seja, tudo aquilo que pode ser imputado a um
homem como centro de ação anímicoespiritual. A ação é controlo do eu – algo que
ainda seja uma manifestação do agente.

2 – Casos de dúvida: movimentos reflexos, automatismos e hipnose


A discussão sobre a extensão do conceito de acção é pertinente, desde logo, para
análise dos casos de dúvida: automatismos e movimentos reflexos.
o Movimentos reflexos – situações em que o agente reage por meio de uma
reacção corporal, não sendo capaz de dirigir o seu corpo à acção (convocação do
sistema nervoso periférico). Seguindo a Professora Maria Fernanda Palma,
entender-se-á que o agente não pratica uma verdadeira acção penalmente
relevante, pois que não existe qualquer dirigibilidade ou poder de controlo por
parte do mesmo. É uma reacção puramente biológica, pelo que todas as
pessoas, em princípio, teriam a mesma reacção.
o Automatismos – são movimentos de tal forma interiorizados e motorizados que
determinam reacções imediatas, sem que haja ponderabilidade da decisão. Aqui,
ao contrário do que acontece com os movimentos reflexos, há a convocação do
sistema nervoso central. A Professora Maria Fernanda Palma utiliza, para
resolver estas situações, o critério da previsibilidade e da evitabilidade da
acção, dizendo-nos que haverá acção penalmente relevante quando houver
previsibilidade e evitabilidade da situação e do estímulo que suscita o facto
(por exemplo, no caso da mosca que entra pela janela do carro no meio do
campo e leva a que o condutor desvie o carro e atropele uma pessoa, era
previsível que conduzir com as janelas abertas, no meio do campo, pudesse levar
à entrada de insectos, pelo que haveria possibilidade de considerar a existência
de uma acção).
A consciência do acto no sentido mais racionalizado não é critério de voluntariedade
nos comportamentos automáticos, embora seja sustentável a permanência de um nível
baixo de consciência em actos que se integram num processo dirigido para fins
escolhidos pelo agente (por exemplo, a condução).

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Assim, e em suma, a Professora Maria Fernanda Palma nega a classificação dos actos
reflexos como acções penalmente relevantes e, quanto aos automatismos, diz tudo
depender da previsibilidade e evitabilidade da situação que provoca o estímulo.
Entende que pode haver um ponto de apoio para qualificar o comportamento como
acção se houve possibilidade de o agente dirigir o comportamento de forma
consciente. Já Stratenwerth entende que, nos automatismos, haverá acção
independentemente de se poder identificar qualquer estado de consciência ou de ser
possível uma intervenção controladora da consciência, desde que seja identificável
que o processo global esteja determinado ou seja explicável pela experiência.
Diferentemente, Jakobs vem dizer-nos que é decisiva a possibilidade de afirmar a
concreta evitabilidade individual do comportamento, ou seja, a possibilidade de
controlo, reconhecível pelo agente, do automatismo pela consciência. Está em causa o
critério da existência (ou inexistência) de tempo para a intervenção da consciência,
critério esse que é afastado pela Professora Regente.
Outro conjunto de casos que levanta algumas dúvidas é o de casos de hipnose. Para a
Professora Maria Fernanda Palma, mantendo a coerência relativamente às anteriores
posições, os comportamentos praticados sob efeito de hipnose não constituem
acções. Não estamos, sequer, perante comportamentos domináveis pela vontade.
Diferente é a posição de Roxin, que entende que a prática de certos factos criminosos
sob hipnose é impossível para certas pessoas, pois que só seria possível para agentes
capazes de cometerem esses actos em estado consciente – teoria da barreira do
carácter. O Professor adopta o mesmo critério para os casos de sonambulismo,
entendo que também nesses está ainda em causa uma manifestação da personalidade
do agente. A teoria é bastante criticada, desde logo considerando-se que viola o
princípio da igualdade, ao equiparar estados de consciência a estados de
hipnose/sonambulismo.
Diferente será, contudo, a solução para um caso em que o próprio agente se quer
colocar no estado de hipnose, para que seja capaz de praticar um certo crime. Estes são
os casos das chamadas acções livres na causa (accio liberae in causa) – casos em que o
agente se coloca num estado de inimputabilidade (como hipnose ou embriaguez), com
o propósito de conseguir praticar o facto. Nesses casos, como faz sentido, não há
exclusão da imputabilidade (art 20º, nº 4 CP), pelo que haverá acção penalmente
relevante. São considerados comportamentos penalmente relevantes porque há
expressão da vontade e porque há intencionalidade anterior. O juízo, como relembra o
Professor Figueiredo Dias, é antecipado para o momento anterior à criação da situação
de inimputabilidade, fugindo ao que normalmente acontece (análise é feita segundo
juízo que se reporta ao momento da prática do facto).
Também nos casos em que o estado de sonambulismo (por exemplo) é resultado,
imagine-se, da falta de toma de medicamentos (caso do agente que não toma os
medicamentos e deixa uma arma na mesa de cabeceira, acabando por ter uma crise e
matar alguém durante a noite), a Professora Maria Fernanda Palma entende que a
solução terá de ser diversa – haverá espaço para punibilidade, se verificados os demais
pressupostos. Diz-nos, nestes casos, Helena Mourão, que se não há historial de
violência, ainda que o agente deixe intencionalmente de tomar a medicação e coloque

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a arma na cabeceira, dificilmente se pode dizer que haja ação, uma vez que a ideia de
danosidade social dificilmente se poderia provar; dificilmente o princípio da culpa seria
observado numa situação destas de inconsciência do agente – já não era assim,
naturalmente, se houvesse já historial de violência durante ataques de sonambulismo.

3 – A omissão enquanto comportamento penalmente relevante


A acção e a omissão são estruturalmente diversas. Ainda assim, é possível conceber
uma omissão penalmente relevante, se houver omissão de um comportamento
juridicamente exigido.
Autores como Eduardo Correia entendem que o tipo legal de crime já comporta
comandos de ação e comandos de omissão. Assim, quando a norma configura um certo
comportamento (p.e. é proibido matar), ao mesmo tempo indica ao agente que este
tem o dever de evitar certo resultado (p.e. evitar a morte de outrem). Considerando
esta perspectiva, o art 10º CP representa um restringir da tipicidade, explicitando
condições sem as quais aquelas normas, que estatuem certa omissão,
De acordo com a Professora Maria Fernanda Palma, porém, a relevância penal da
omissão surge essencialmente como problema a partir da exigência de um requisito
comportamental geral, comum a toda a responsabilidade penal. A questão
fundamental será a determinação do quid comportamental exigível para que a
omissão seja penalmente relevante. Não pode comparar-se a omissão à ação, pois
que, em termos naturalísticos, fazer e não fazer são realidades diametralmente
distintas. Assim sendo, sem o art 10º, não haveria, em princípio, punibilidade, se não
nos casos de omissões puras, ou seja, em que o próprio tipo legal prevê a omissão como
crime. O art 10º, portanto, surge como uma cláusula extensiva da tipicidade,
permitindo que, preenchidos os seus requisitos, se puna o agente por um
comportamento omissivo.
A delimitação entre acção e omissão, entre comportamentos activos e omissivos, não
levantaria, em princípio, grandes dificuldades – é activo o comportamento da mãe que
mata o filho e omissivo o comportamento da mãe que deixa o filho morrer por não o
alimentar.
o Figueiredo Dias, na linha de Stratenwerth – o critério determinante deverá ser
o da criação do perigo. Deve entender-se que há ação sempre que o agente
criou (ou aumentou) o perigo que vem a concretizar-se no resultado; deve
entender-se que há omissão sempre que o agente não diminuiu o perigo já
existente.
o Maria Fernanda Palma, no seguimento da posição de Jakobs – há que atender
a dois níveis distintos: primeiro que tudo, sempre que o agente vai além da sua
competência e ultrapassa a sua esfera, ao bulir com outra esfera de outrem, cria
responsabilidade. Tanto é responsável quem pratica uma ação proibida, como
aquele que não pratica uma ação a que está obrigado: daí dizer ser indiferente
estarmos perante uma ação ou uma omissão. No entanto, num segundo nível,
encontra-se o indivíduo que está numa posição de assunção de um dever (ex:
se

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alguém fica responsável por um armazém pirotécnico), domínio em que


assumimos uma posição de garante.
o Arthur Kaufmann – aplica o critério da subsidiariedade, do qual resulta que,
sendo as acções mais gravosas que as omissões, sempre que o caso seja
configurável como acção, deverá ser considerado como tal.
o Claus Roxin – se já entrámos na esfera jurídica da vítima, então há acção; se
não, há omissão. O autor sistematiza quatro grupos de casos, que são no fundo
casos de omissões através do fazer (pune-se uma acção como omissão, por
imposição de razões normativas):
1. Comparticipação ativa em delito omissivo – A aconselha B a deixar de
prestar o auxílio necessário;
2. Omissão libera in causa – nadador salvador que se embriaga para não
ter de acudir em socorro;
3. Tentativa interrompida de cumprimento de uma imposição legal – pai
de criança que se está a afogar corre para ir buscar um bote salva-vidas,
mas quando chega com o bote à praia interrompe os seus esforços,
acabando a criança por se afogar;
4. Interrupção técnica de um tratamento – médico desliga a máquina de
suporte de vida, deixando o paciente morrer
Quanto a isto, diz-nos o Professor Figueiredo Dias que os casos 1 e 2 parecem,
à partida, tratar-se de omissões – o agente limita-se a não diminuir um perigo
que, independentemente dele, afetava um bem jurídico. O problema está nos
casos de interrupção de um processo de salvação em curso de um bem jurídico
ameaçado. Se o processo de salvamento ainda não atingiu a esfera da vítima,
o caso deve ser tratado como uma omissão – sempre que alcance a esfera
jurídica da vítima e tenha diminuído nesse momento o perigo, para depois se
voltar a aumentar, então já estamos perante um caso de ação. Não há
diferenciação entre aquele que interrompe o processo e aquele que, ab initio,
decide contra o dever e não tenta sequer salvar.

4 – Omissões puras e impuras – posições de garante


São omissões puras as que resultam directamente da parte especial do Código,
estando aí reguladas como tal. Os crimes puros de omissão são crimes de mera
actividade, na medida em que não é necessário que haja um resultado, bastando a
execução de determinado comportamento. São, por exemplo, os casos do art 190º, nº
1 CP, do art 200º ou ainda do art 284º CP. Diferentemente, são omissões impuras as
que exigem aplicação de um artigo da parte especial, conjugado com a cláusula geral
do art 10º do Código Penal – há um resultado que o agente tinha o dever de evitar, por
sobre ele recair um dever de garante (art 10º, nº 2 CP). O dever de garante representa
um dever jurídico, que onera o agente a evitar esse resultado típico.
A punição de omissões impuras não pode ser ilimitada. O problema do dever de
garante, ou posição de garante, coloca-se no âmbito da imputação objetiva do
resultado. Esta, no caso da omissão, só pode ser feita àquele sobre o qual recaia um
dever jurídico que pessoalmente o obriga a evitar esse resultado (artigo 10º/2) e,

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assim, se encontre por força de um tal dever constituído na posição de garante da não
verificação do resultado típico.

Questão: como se determinam os deveres de garante, neste âmbito, de forma a


responder às exigências jurídico-constitucionais do princípio legal nullum crimen sine
lege?
Para responder a isso, surgem desde logo duas teorias nucleares:
o Teoria formal do dever jurídico e das posições de garante – o crime de omissão
pressupõe um especial fundamento jurídico (lei ou contrato), daí se extraindo a
base da obrigatoriedade. Uma terceira fonte é acrescentada – a ingerência
(situação de perigo anterior criada pelo omitente).
o Teoria material (teoria das funções) – os deveres de garante fundam-se numa
função de guarda de um bem jurídico concreto, ou numa função de vigilância de
uma fonte de perigo.
Mostrando-se ambas insuficientes, cumpre adoptar, nesta matéria, a posição do
Professor Figueiredo Dias – teoria material-formal: o desvalor da ação tem de
corresponder ao desvalor da omissão, caso contrário, se a censura não for equiparável,
estamos a violar o princípio da legalidade, na sua dimensão da tipicidade. Existem seis
deveres de garante, que se agrupam em duas modalidades: obrigação de proteger um
bem jurídico e dever de prevenir/controlar fontes de perigo.
A. Obrigação de proteger um bem jurídico: o garante está vinculado à tutela do
bem jurídico:
1. Relações familiares ou análogas (implica uma relação de particular
proximidade e uma relação de dependência), abarcando cônjuges e quem viva
em situação análoga (comunidade em vida como aspeto fulcral). Este dever
subsiste em relação a cada um dos mais, mesmo quando o perigo provém do
outro, cessando ou atenuando quando o filho abandona o âmbito de protecção
dos pais. As relações familiares deverão ser medidas pela proximidade, definida
por coabitação ou dependência;
2. Assunção de funções de guarda e assistência (assunção fáctica de uma função
de proteção, baseada numa relação de confiança e não simplesmente dos
deveres emergentes do contrato). São casos em que o carente se sujeita a riscos
acrescidos ou dispensa de outra protecção, precisamente por ser estabelecida
essa relação de confiança – exemplos: instrutor de natação, alpinista que se
prontifica a organizar uma excursão à montanha, médico em relação aos seus
pacientes;
3. Comunidade de vida e de perigos (base em relações de confiança e
dependência mútuas). As relações em causa resultam de se frequentar uma
actividade de com riscos, onde recairão deveres nas relações estreitas e efectivas
entre agentes. Para que seja aplicável, o Professor Figueiredo Dias exige, na linha
de Stratenwerth, (1) relações estreitas e efetivas; (2) que a comunidade de
perigos exista realmente; (3) apenas em questão quando o perigo já pesa sobre
a vítima potencial, devendo o agente atuar no sentido de o evitar o diminuir.

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B. Dever de prevenir/controlar fontes de perigo – o garante apenas está


vinculado ao controlo da fonte de perigos:
4. Obstar a um resultado por força de uma ação anterior perigosa (ingerência):
quem cria o perigo que pode afetar terceiros deve cuidar de que ele não venha
a concretizar-se num resultado típico (requisitos: o resultado deve ser
objetivamente imputável ao incumprimento do dever de garante e a criação de
perigo tem de ter sido ilícita);
5. Fiscalização de fontes de perigo no âmbito de domínio próprio: são exemplos
empresários, industriais, comerciantes e, em geral, possuidores de
estabelecimentos e instalações, que devem conservar em condições de
segurança, para trabalhadores e para a generalidade das pessoas, evitando
acidentes. O critério só vale para actividades duradouras, apenas se exigindo que
o agente tome as devidas precauções, por via da aplicação do princípio da
autorresponsabilidade;
6. Dever de garante face à atuação de terceiros: casos em que o terceiro ou não
é responsável ou tem a sua responsabilidade limitada ou diminuída, em relação
aos quais propende um dever de vigilância por outrem; ainda, relações de supra
e infra ordenação, ou seja, pessoas que atuam no seio de um serviço/atividade
organizada – exemplos: elementos das forças armadas com poderes de direção.
Há um caso particular, afastado pela Professora Maria Fernanda Palma como sendo
posição de garante. É o caso dos monopólios acidentais. A posição de monopólio abarca
situações que ficam de fora da categoria do domínio próprio. Nas posições de
monopólio, encontramos situações diversas e instantâneas. Exige-se, desde logo, que
o agente: (1) esteja efectivamente investido, mesmo que fortuitamente, numa posição
de domínio fáctico absoluta e próxima da situação; (2) que o perigo em que incorre o
bem jurídico seja agudo e iminente; (3) que o agente possa levar a cabo a acção
esperada, como numa acção de salvamento, sem ter de incorrer numa situação perigosa
ou danosa para si mesmo.
Em termos gerais, no que toca à matéria das posições de garante, a Professora Maria
Fernanda Palma parte de três princípios fundamentais – princípio da liberdade, da
igualdade e da responsabilidade. A construção da posição de garante (fontes de dever)
tem que ter uma dimensão jurídica assertiva – art 10º/2: dever jurídico de agir. Tem
que haver elementos, naquela relação social, que permitam concluir que o omitente se
tinha vinculado, ainda que implicitamente (não é necessário que o reconheça
conscientemente), a evitar o resultado. Mais, tem de ser previsível, para o omitente,
que naquela relação social ele se está a autovincular a proteger determinado bem
jurídico, ou a evitar que o bem jurídico sofra um dano. A Professora, como dito, nega os
monopólios acidentais como sendo posições de garante, dizendo-nos que o agente não
pode contar com a investidura numa obrigação de evitar os resultados nem poderia
ter evitado a situação. Outra das críticas que faz é dirigida aos casos de comunidade de
vida e de perigo, dizendo-nos que há apenas um dever ético e não há relevância
jurídica desse comportamento. A estes casos, por isso, a Professora entende aplicar-se
antes o art 200º CP (omissão de auxílio) – considera-os, portanto, casos de omissões
puras.

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III – A TIPICIDADE
1 – Noção e evolução do conceito – pensamento das Escolas
O tipo de ilícito penal contempla duas dimensões: o tipo de ilícito objetivo e o tipo de
ilícito subjetivo.
o Tipo objetivo: engloba todos os aspetos que se têm de verificar
independentemente da vontade do sujeito, ou seja, o sujeito, o objeto da ação,
das modalidades de execução do facto, o processo causal e o resultado.
o Tipo subjetivo: corresponde aos aspetos da direção da vontade do sujeito que
revelem as espécies de dolo ou as especiais intencionalidades exigidas pelo tipo
legal de crime.
Cumpre, antes de mais, analisar a evolução do pressuposto, por via da análise do
pensamento das Escolas quanto a esta matéria:
o Escola Clássica – o tipo é objectivo e descritivo. A tarefa de enquadramento do
facto concreto no facto legal é neutra, não sendo aqui feito qualquer tipo de
juízo de valor. A tipicidade traduz apenas a verificação de um indício de crime;
o Escola Neoclássica – o tipo é objectivo, pelo que não inclui ainda o momento de
avaliação do dolo ou da negligência (a menos que haja uma situação de especial
intenção). A tipicidade é o fundamento da ilicitude, não sendo apenas um mero
indício. Esta é, no fundo, a fonte da antinormatividade.
o Escola Finalista – o tipo é indiciador e descritivo. É um juízo prévio à ilicitude,
sendo que só da conjugação das vertentes objectiva e subjectiva pode resultar o
juízo de contrariedade da acção à ordem jurídica. O elemento objectivo
corresponde a elementos descritivos do agente; o elemento subjectivo traduz-
se na avaliação de dolo ou negligência.

2 – Imputação objectiva
O Direito Penal só intervém perante comportamentos humanos (de pessoas singulares
ou colectivas). Assim sendo, a responsabilidade criminal exige a imputação do
resultado à conduta do agente. Trata-se, no fundo, de identificar a ligação do
comportamento humano ao resultado. A grande questão que se coloca é a de saber até
onde vai essa imputação. A esse propósito, surgem as teorias das condições
equivalentes, da causalidade adequada e do risco.

A. TEORIA DAS CONDIÇÕES EQUIVALENTES – conditio sine qua non


Adopta a fórmula da conditio sine qua non. A(s) causa(s) são todas as que contribuem
para a verificação do resultado, ou seja, todas aquelas sem as quais o resultado não se
verificaria. De acordo com esta, todas essas contribuem para o resultado em igual
proporção. Para apurar quais as condições que deram causa a um certo resultado, deve
fazer- se uma supressão mental de cada uma delas: se o resultado se mantiver, então
não há nexo de causalidade; se o resultado não se mantém, pode então afirmar-se a
causalidade.

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O problema desta teoria é que esta é demasiado ampla (argumento do regressus ad


infinitum), levando a resultados pouco satisfatórios (como o de incriminar os pais do
assassino por o terem concebido). Para além disso, esta teoria não resolve vários casos:
o Causalidade hipotética – A morre pelo disparo de B quando já estava prestes a
morrer por ter ingerido veneno;
o Interrupção do nexo causal – A sobre disparo de B e morre a caminho do hospital
porque a ambulância em que ia se despistou;
o Características especiais da vítima – A morre ao ser empurrado por B, mas
apenas morre por ter ossos frágeis;
o Causas paralelas – caso em que duas pessoas diferentes colocam, sem saber
uma da outra, doses letais de veneno na bebida de alguém;
o Causas imprevisíveis – A convida B para um passeio de mota e têm um acidente;
o Causas de intervenção dolosa de outrem – A é ferido por B e C interrompe o
salvamento, acabando A por morrer.

B. TEORIA DA CAUSALIDADE ADEQUADA


Surge numa tentativa de colmatar as falhas da teoria anterior, recorrendo ainda a
regras da experiência, estatísticas e probabilidades. A teoria parte da ideia contrária à
anteriormente adoptada, considerando-se que nem todas as condições merecem a
mesma valoração para um resultado. Para determinar as condições relevantes parte-
se da figura do homem médio e faz-se um juízo de prognose póstuma: a condição é
juridicamente relevante como causa do resultado sempre que, colocada uma pessoa
média no lugar do agente, antes da prática do crime, seja previsível aquele resultado.
No fundo, pergunta-se: seria expectável que o agente, com os conhecimentos gerais
do tráfego e os conhecimentos especiais do agente, soubesse ou calculasse que o
resultado se poderia produzir?
A teoria resolve os casos de interrupção do nexo causal e das características especiais
da vítima, mas encontra ainda algumas dificuldades. Desde logo, deixa nas mãos do
julgador a definição do grau de conhecimento do observador médio e não resolve
concretamente os casos de diminuição do risco.

C. TEORIA DO RISCO (Roxin)


Parte da ideia de que o Direito Penal tem em última análise, uma função preventiva
relativamente aos bens jurídicos, não sendo, por isso, de sustentar a imputação
objectiva senão em face de perigosidade efectiva da conduta para o concreto
resultado. Assim, decisiva seria a criação ou o aumento do risco proibido, sempre que
houvesse conexão entre esse e o resultado. Note-se que, para o Professor Figueiredo
Dias, esta teoria do risco não exclui a necessidade de recorrer às teorias da causalidade.
A Professora Maria Fernanda Palma relembra que a teoria do risco serve apenas para
correcção da causalidade adequada, devendo esta ser ainda assim o ponto de partida
da análise. Já no caso das omissões, há que avaliar se não houve actuação que
diminuísse o risco/perigo para o bem jurídico – se houver posição de garante, há risco
para o bem jurídico. Em caso de dúvida, Roxin entende que se deve manter a imputação
objectiva. Já a Professora Maria Fernanda Palma entende que tal é uma violação do

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princípio in dubio pro reu (art 32º, nº 2 CP) e do próprio princípio da legalidade. Note-
se, contudo que, para ambos os Autores, se deve ter sempre uma certeza razoável
(“probabilidade próxima da certeza”).Exige-se aqui, então:

i. Criação ou potenciação de um risco proibido


Há que proceder à delimitação do risco, fazendo a delimitação do círculo de riscos
permitidos e, por via dessa, a definição dos riscos proibidos. Claras são, desde logo, as
situações em que o agente diminui ou atenua o risco de lesão do bem jurídico. Nesses
casos, não deve ser-lhe imputado o resultado (por exemplo: A empurra B para o chão,
desviando-o de uma bala. Quando B cai ao chão, parte um braço). Aqui, exclui-se a
imputação objectiva porque houve a criação de um risco permitido, que colocou o bem
jurídico em melhor situação. São também resolvidos os casos em que o resultado tenha
sido produzido por uma acção que não ultrapassou o limite do risco juridicamente
permitido, pois que o Direito Penal não se pode, tendo em conta a sociedade em que
vivemos, preocupar com todos os riscos existentes. É, por exemplo, o caso da circulação
rodoviária ou da utilização de explosivos em pedreiras. Estas actividades, embora de
risco, são permitidas e socialmente aceites. Há que ter em conta o chamado risco geral
da vida, no qual se integram os riscos socialmente adequados.

ii. Concretização do risco não permitido no resultado típico


Não basta comprovar que o risco foi criado ou potenciado, pois que se exige que esse
risco se manifeste no resultado típico. O juízo é, pois, realizado ex ante e ex post. A
análise torna-se difícil quando estamos perante um concurso de riscos, situação que
continua a gerar dúvidas na Doutrina:
o Comportamento lícito alternativo – representa o caso em que, se o agente
tivesse agido licitamente (caso no qual não teria criado ou potenciado um risco
proibido), era provável que o resultado se tivesse ainda assim verificado. Estes
são casos em que, pelas teorias da causalidade, haveria imputação. Mais que
isso, há efectivamente uma potenciação do risco. Para resolver o impasse, o
Professor Figueiredo Dias entende que há que demonstrar que o resultado teria
seguramente lugar ainda que a acção ilícita não tivesse sido levada a cabo,
negando-se dessa forma a imputação objectiva e evitando a violação do princípio
da igualdade. No fundo, estas são situações em que não faz sentido a punição,
pois que a norma se mostra inútil – mesmo que esta tivesse sigo respeitada, o
resultado acabaria por ocorrer. EXEMPLO: agente não para no STOP antes do
cruzamento e atropela alguém que estava a atravessar a estrada. No entanto,
conclui-se que, mesmo que tivesse parado no STOP – ou seja, mesmo que tivesse
agido licitamente – é quase certo que o atropelamento aconteceria.
o Causalidade virtual – são situações em que, ainda que o agente, com a sua
acção, tenha criado um perigo não permitido e este se tenha materializado no
resultado típico, há razões para duvidar da imputação objectiva do resultado ao
agente. Nos casos de causalidade virtual, o agente pratica um facto que leva a
um resultado que, caso o agente não tivesse actuado, surgiria em tempo e sob
condições tipicamente semelhantes. De acordo com o Professor Figueiredo Dias,

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a causa virtual ou hipotética é irrelevante pois que, à luz da função de tutela


subsidiária dos bens jurídicos, continua a ter sentido não abandonar o bem
jurídico à agressão do agente só porque aquele já não pode, em definitivo, ser
salvo. EXEMPLO: A é condenado à morte e, momentos antes de morrer, B
dispara sobre este, causando a sua morte.
DISTINÇÃO CAUSALIDADE VIRTUAL/COMPORTAMENTO LÍCITO ALTERNATIVO: no
caso da causalidade virtual, o comportamento é de terceiro ou representa um evento
da natureza; no caso do comportamento lícito alternativo, verifica-se simplesmente
que, mesmo que o agente tivesse respeitado a norma, o resultado seria idêntico, na
mesma por via da conduta do agente.
o Causas cumulativas – verificam-se quando um facto só se produziu em virtude
de um conjunto ed causas. EXEMPLO: dois irmãos colocam doses não letais de
veneno no chá da mãe. Mãe morre pela cumulação das duas doses. Se ambos
desconhecerem a acção um do outro, aplica-se a ambos o regime da tentativa;
se um souber, a esse faz-se imputação objectiva do facto; se ambos souberem,
a imputação faz-se perante ambos. Não há imputação, porque cada uma das
condutas não era apta a produzir o resultado.
o Causas alternativas – existem duas causas e cada uma, isoladamente, pode
produzir o resultado. EXEMPLO: dois irmãos colocam doses letais de veneno no
chá da mãe. O facto é imputado a ambos, pois que ambos criaram um risco
proibido e a dose colocada por cada um é suficiente para explicar a morte.
o Interrupção do nexo causal – à partida, não há conexão de risco.

A EXCLUSÃO DA CAUSALIDADE NÃO EXCLUI A NECESSIDADE DE ANALISAR A


IMPUTAÇÃO SUBJECTIVA, POIS QUE SE HOUVER DOLO, PODERÁ HAVER PUNIÇÃO
POR TENTATIVA.

3 – Imputação subjectiva
É no momento da imputação subjectiva que se olha para o tipo subjectivo de ilícito,
avaliando-se a intenção do agente que praticou o facto e concluindo pela presença de
dolo ou negligência. Este dolo é, no entanto, o dolo do tipo (dolo do facto, dolo natural
ou dolo do ilícito), que difere do dolo da culpa.
O Código Penal não define o dolo do tipo, limitando-se o art 14º CP a tratar de cada
uma das suas formas. Ainda assim pode dizer-se que a Doutrina entende o dolo como
sendo o conhecimento e a vontade de realização do tipo subjectivo de ilícito. Mais,
pode avançar-se que o dolo comporta dois elementos:

i. Elemento intelectual do dolo


Corresponde ao conhecimento do agente – procura saber-se se o agente conhecia,
sabia, representou correctamente ou tinha consciência das circunstâncias do facto. O
objectivo é garantir que o agente conhece tudo quanto é necessário para orientar a
sua consciência ética para o desvalor jurídico que concretamente se liga à ação
intentada. Exige-se, portanto:

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3º ano, Turma A
Patrícia Carneiro da Silva

o Conhecimento das circunstâncias de facto – exige-se o conhecimento da


factualidade típica, ou seja, dos factos valorados negativamente pela norma
penal (desvalor penal). A sua falta determina a existência de erro sobre a
factualidade típica, nos termos do art 16º, nº 1 CP, impedindo tal circunstância
de que se afirme o dolo do tipo (por exemplo, A mata B achando tratar-se de um
espantalho. O agente A não representou a pessoa, que é um elemento
constitutivo do tipo – há erro). O erro sobre a factualidade típica representa,
portanto, um conjunto de situações em que o dolo não se pode afirmar – art
16º, nº 1 CP. Note-se que este comporta tanto a falsa representação como a
falta de representação.
o Atualização na consciência psicológica ou intencional no momento da ação – a
consciência, no dolo, é uma consciência atual. É necessário que represente que
o comportamento, naquelas circunstâncias e naquele momento, represente um
perigo para o bem jurídico.
o Conhecimento da proibição legal – se o agente não tem conhecimento sobre a
proibição legal de que depende o ilícito, não pode estar nas devidas condições
de motivação pela norma.
Uma das principais distinções a fazer nesta matéria é a que se impõe entre os arts 16º
e 17º CP: distinção entre erro sobre a factualidade típica e erro sobre a ilicitude.
o Professor Figueiredo Dias – o art 16º representa erro de perceção, ou seja, é um
erro que impede o agente de tomar conhecimento sobre os elementos de facto
e de direito que devem orientar a sua conduta. Reconduz-se à oportunidade de
motivação pela norma: o objetivo do conhecimento destes elementos é que o
agente possa orientar a sua consciência ética, o que não pode fazer se não
conhece todos os elementos de facto e de direito. Estão em causa condutas
axiologicamente neutras, na medida em que não são apreensíveis pelo cidadão
médio e apenas o conhecimento da proibição legal pode orientar/motivar a
conduta do agente. // Já o art 17º CP comporta casos de erro de valoração (fala-
se muitas vezes em erro moral), ou seja, trata-se de um desfasamento de
valorações; não decorre de um não conhecimento dos elementos de facto/de
direito, mas de uma atribuição de sentido/valoração distinta. Reconduz-se a
condutas axiologicamente relevantes: aquelas cujo significado social/axiológico
da proibição o cidadão médio já tem apreendido, razão pela qual não é
necessário o conhecimento da proibição legal para se efetivar a punição.
o Professora Maria Fernanda Palma – não rejeita o pensamento de Figueiredo
Dias, mas tece-lhe algumas críticas. Desde logo, assinala a subjectividade do
critério. Para além disso, não é o critério ideal, porque nem sempre resolve
todos os problemas, como os casos de pessoas que trabalham em certa área e
às quais é exigido um conhecimento especial. Para tentar resolver estes
problemas, adopta uma concepção distinta. Parte da concepção de Kindhäuser,
que distingue entre erro de verdade (art 16º) e erro de sentido (art 17º). No
fundo, aplica-se o art 16º quando o agente não tem possibilidade de se motivar
pela norma e aplica-se o art 17º CP quando, diferentemente, o agente teve

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3º ano, Turma A
Patrícia Carneiro da Silva

oportunidade de se motivar pela norma, mas o processo de motivação foi


errado.

SITUAÇÕES DE ERRO
O erro pode, desde logo, ser um erro-suposição ou um erro-ignorância. O erro-
suposição é aquele em que há motivação para a prática do crime, mas o agente está
em erro sobre um elemento do tipo que o impede materialmente de praticar o crime.
É no erro-suposição que se integra a tentativa impossível (art 22º, nº 3 CP). Nestes casos,
há desvalor da acção, mas não há desvalor do resultado, pois que não se verifica o
resultado típico. Já o erro-ignorância é aquele em que o agente não representa um
elemento essencial à prática do tipo objectivo. Nestes casos, não pode o agente querer
praticar o crime, pois que ele não representa sequer um ou mais elementos do facto
típico.
o Erro sobre o processo causal – ocorre uma divergência entre o risco
conscientemente criado e aquele do qual deriva efectivamente o resultado.
Para alguns Autores, a solução passa pela aplicação do regime da tentativa; para
outros, passa pela punição pelo crime consumado. O Professor Figueiredo Dias
entende que, quando o erro sobre o processo causal for um erro sobre a
factualidade típica, deve-se punir pela tentativa, pois que não se exclui o dolo.
o Dolus generalis – o agente pratica mais que um acto e erra quanto ao que
efectivamente produziu o resultado. O agente pensa, num primeiro momento,
ter produzido um determinado resultado (erroneamente); num segundo
momento, fruto de nova actuação do agente, o resultado vem efectivamente a
concretizar-se. Estes são os casos em que, na sua maioria, o agente tenta
encobrir o facto praticado em primeira linha. Por exemplo, A envenena B,
achando que o matou, mas deixando-o meramente inconsciente. Num segundo
momento, para tentar encobrir esse facto, A enterra B, que morre então
asfixiado por ter sido enterrado vivo. O Professor Figueiredo Dias entende que
estamos ainda perante o mesmo tipo de casos nas situações em que haja uma
inversão temporal dos acontecimentos (por exemplo, A anestesia B para num
segundo momento o matar, mas B morre logo com a anestesia), sendo estes
casos em que a maioria da Doutrina tende a aceitar a punição por crime
consumado – no momento em que se produz o resultado há prática de actos de
execução. A Professora Maria Fernanda Palma, entende, nos casos de dolus
generalis, que estamos perante um crime consumado, se se conseguir
identificar uma unidade da acção (agente já projetava, de antemão, o
encobrimento – há um dolo geral, que engloba toda a conduta do agente). Se há
uma decisão de encobrimento posterior à acção, a Professora entende que o
agente não representa a segunda acção como consumação do crime, pelo que
há erro sobre a percepção do objecto da acção – exclui-se o dolo.
o Aberratio ictus vel impetus – é um erro na execução, que leva a que seja
atingido um objecto diferente daquele que estava no propósito do agente. Por
exemplo, A pretende matar B, mas ao disparar, por falta de destreza, acerta
antes em C, que estava ao lado de B. Aqui, a acção falha o seu alvo. Para o

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3º ano, Turma A
Patrícia Carneiro da Silva

Professor Figueiredo Dias, que aplica a teoria da concretização1, temos uma


situação de tentativa, seguida de um crime negligente. A aberratio ictus coloca
problemas ao nível da imputação objectiva, pois que se colocará dúvida no
âmbito da previsibilidade na causalidade adequada. Se se tratar de uma
situação inesperada, em princípio, não haverá elemento cognitivo do dolo, pelo
que apenas se poderá falar numa imputação negligente do resultado não
previsto. A Professora Maria Fernanda Palma adopta a mesma solução.
o Erro sobre a identidade – o agente está em erro quanto à identidade da pessoa
ou do objecto. Não se trata de um erro na execução, mas sim na formação da
vontade. É o caso, por exemplo, de A que, pensando estar a ver B, seu inimigo,
dispara contra ele, quando na realidade quem passava era C, que acabou por
morrer. Este erro é, na maioria dos casos, irrelevante, pois que o homicídio,
crime aqui cometido, não tem como elemento do tipo a identidade do sujeito:
apenas se diz “quem matar outra pessoa é punido”. No limite, pode servir para
excluir o dolo do tipo qualificado, transferindo a responsabilidade nos termos
do tipo de ilícito fundamental. Se o agente erra também, todavia, sobre as
qualidades tipicamente relevantes do objecto por ele atingido (exemplo: acha
que é um animal, mas é uma pessoa), então há que responsabilizar por
tentativa. Diz a Professora Maria Fernanda Palma, para além disso, que haverá
concurso efectivo.
o Dolo alternativo – para atingir uma qualquer finalidade, o agente tem de realizar
o facto típico, podendo atingir um ou outro objeto: não importa qual, desde
que atinja um deles. Reporta-se ao caso em que A pretende atingir B, mas é
indiferente se atingir C porque ambos são inimigos. Segundo a Professora Maria
Fernanda Palma, há dolo directo sobre B e dolo eventual sobre C. Se A atingir
C, estando B e C presentes, a Professora entende que se deve punir o agente por
dois crimes – a tentativa (de homicídio de B) e o crime consumado (homicídio
doloso de C). A Professora Inês Ferreira Leite considera que há aqui uma
violação do princípio ne bis in idem, mas a Professora Regente entende que
estamos simplesmente perante uma acção bivalente, em que ambas as vítimas
são objectos da acção e ambos os concretos bens jurídicos (vida de cada um)
foram colocadas em perigo.

ii. Elemento volitivo do dolo


Corresponde à vontade do agente. No dolo pode existir intenção – dolo directo (art
14º, nº 1 CP). Não há elemento volitivo no dolo necessário (art 14, nº 2 CP) – ou
conformação – dolo eventual (art 14º, nº 3 CP). Já no caso da negligência, o agente age
com violação de deveres de cuidado, podendo esta ser consciente ou inconsciente (art
15º CP). No caso da negligência, o agente age sem dolo (sem intenção) e sem
conformação. Na negligência consciente, o agente percepcionava a possibilidade do

1
Tentativa + (se existir) crime negligente, uma vez que o agente apenas tem dolo relativamente a um dos
objetos da ação e não relativamente ao outro.

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3º ano, Turma A
Patrícia Carneiro da Silva

resultado, mas não se conformou com ela; na negligência inconsciente, o agente não
tem sequer essa percepção.
o Dolo directo – representa a situação em que a realização do tipo objectivo de
ilícito surge como verdadeiro fim da conduta. Mais, serão também os casos em
que a realização típica não constitui o fim último da actuação do agente, mas
surge como pressuposto intermédio necessário do seu conseguimento (casos de
dolo directo intencional);
o Dolo necessário – são cassos em que a realização do facto surge como
consequência necessária/inevitável relativamente ao fim da conduta (por
exemplo, A coloca uma bomba no avião para matar B, seu inimigo. A morte de B
ser-lhe-á imputada com dolo directo intencional; a morte de todos os outros
passageiros é imputada com dolo necessário.
o Dolo eventual – a realização do tipo de ilícito (objectivo) é representado pelo
agente apenas como “consequência possível da conduta”.
o Negligência consciência – a realização do tipo objetivo de ilícito é representada
pelo agente como consequência possível da sua conduta;
o Negligência inconsciente – a realização do tipo objetivo de ilícito não é nem
representada pelo agente.

Relevante é a distinção entre dolo eventual e negligência consciente. Para atingir um


critério distintivo satisfatório, surgiram várias teorias. Desde logo:
o Teoria da probabilidade – não basta a mera representação do facto como
possível, é necessário que a representação feita pelo agente assuma a forma da
probabilidade ou da alta probabilidade;
o Teoria da aceitação – o agente aceitou intimamente a sua verificação, ou pelo
menos revelou a sua indiferença perante ele? Se sim, há dolo eventual. Se o
agente, por contrário, repudiou a verificação do facto típico, esperando que esse
não se verificasse, temos negligência consciente.
o Teoria da conformação – há dolo eventual se o agente se conformar com a
realização do facto típico (teoria adoptada pelo nosso sistema – art 14º, nº 3 CP).
para Eduardo Correia, a conformação traduz-se na não confiança em que o
resultado não se verificaria. Para Figueiredo Dias, o agente tem de tomar o sério
risco de possível lesão do bem jurídico, decidindo independentemente disso pela
realização do facto.
Tese da Professora Maria Fernanda Palma:
Parte da teoria da unidade da acção, entendendo os comportamentos voluntários e
intencionais como uma unidade incindível entre o comportamento exterior e o
processo causal. A partir desta premissa, o objetivo é criar uma espécie de analogia
entre o dolo eventual e as outras espécies de dolo: entre o dolo direto e o dolo
necessário há algo em comum, que respeita à aceitação do resultado como
inultrapassável. No caso do dolo eventual a proximidade é relativamente distinta: está
em causa a aceitação inevitável do risco, numa lógica de homem de negócios, ou seja,

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3º ano, Turma A
Patrícia Carneiro da Silva

aceita ganhar, quer o risco se efetive, quer o risco se não efetive. Assim, no dolo
eventual, o agente apenas aceita a inevitabilidade dos riscos.
A pergunta que deve ser feita: podia ou não podia não ter considerado a
inevitabilidade dos riscos que decorriam da sua conduta? Cumpre, para responder a
isso, observar a vontade do agente numa perspetiva de linguagem social: como se
percepciona socialmente a vontade do agente. Para facilitar essa análise, a Professora
adopta o critério do homem de negócios vs. jogador inexperiente.
A EXCLUSÃO DO DOLO DO TIPO (ART 16º, Nº 1 CP) EXIGE INDAGAÇÃO SOBRE SE O
CRIME PODE SER IMPUTADO A TÍTULO DE NEGLIGÊNCIA (ART 16º, Nº 3 CP)

IV – A ILICITUDE
1 – Noção. Escolas
No pressuposto da ilicitude, em termos práticos, cumpre avaliar se a acção praticada
pelo agente foi ou não ilícita.
o Escola Clássica – a ilicitude é meramente formal, bastando a mera contradição
da norma. Faz-se um juízo objectivo e normativo, estando em causa toda a
ordem jurídica (o juízo feito implica uma avaliação do confronto do facto com
todas as proibições e permissões que o mesmo suscita). As causas de justificação
da ilicitude são situações em que, a título excepcional, a acção passa de típica a
lícita, sendo assim aceite ou permitida pelo Direito.
o Escola Neoclássica – trata-se da danosidade social, sendo feito um juízo de
desvalor. A ilicitude é a expressão da valoração específica do legislador na
incriminação das condutas. O facto é ilícito por estar em contradição com a
própria proibição penal que se deduz do tipo legal. As causas de justificação são
elementos negativos do tipo.
o Escola Finalista – a ilicitude é um juízo normativo e objectivo-subjectivo,
constituído pelo desvalor da acção e pelo desvalor do resultado.
Regra geral, verificados que estejam os requisitos da tipicidade (imputação objectiva e
subjectiva), há um indício de ilicitude. A ilicitude penal tem sempre uma dicotomia:
desvalor da ação + desvalor do resultado, pois que os comportamentos ilícitos, para
serem ilícitos, têm que comportar ambos:
o Desvalor da acção – ideia de que as condutas praticadas têm que se desvaliosas.
Temos que ter ou uma ação proibida ou uma omissão da ação imposta ou devida.
o Desvalor do resultado – é desvaliosa tanto a ação de matar como a morte em si
mesma

2 – Causas de justificação da ilicitude


As causas de exclusão intervêm como uma redefinição do valor de um facto
inicialmente desvalioso. O objetivo destas é tornar o facto lícito/permitido, o que
significa que uma causa de justificação do facto não é uma mera delimitação negativo
do desvalor da ação e do desvalor do resultado, mas em princípio uma compensação
ou neutralização da lesão do bem jurídico protegido pela norma, através da realização

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3º ano, Turma A
Patrícia Carneiro da Silva

de um outro bem ou interesse que suscita uma razão específica para não proibir uma
conduta típica.
A maioria da Doutrina entende que há uma unidade da ilicitude, ou seja, que se
determinada conduta é ilícita num ramo do Direito, seria ilícita em todos os outros. A
Doutrina aceita pacificamente a ideia segundo a qual se considera necessário o
elemento subjectivo para apreciação da causa de justificação. Releva assim o tipo
subjectivo, a par do tipo objectivo. A densidade do elemento subjectivo, diz a
Professora Maria Fernanda Palma, releva de forma distinta para cada causa de
justificação, exigindo-se um olhar caso a caso.

A. LEGÍTIMA DEFESA
O fundamento da legítima defesa reside na necessidade de protecção, e consequente
preservação, do bem jurídico ilicitamente agredido. A sua relevância decorre, desde
logo, de dois aspectos:
o Necessidade de defesa da ordem jurídica, através da qual se justifica que se
sacrifiquem bens jurídicos de valor superior aos postos em causa pela agressão;
o Necessidade de protecção dos bens jurídicos ameaçados pela agressão, do qual
resulta a possibilidade concedida à vítima de se defender.
Diz a Professora Maria Fernanda Palma que a legítima defesa é um problema de colisão
de direitos, partindo da premissa de uma ordem de bens jurídicos de valor
diferenciado, o que significa que o defendente só pode atuar sobre os bens jurídicos
do agressor, já que só o agressor está a atacar o defendente – o agente só pode bulir
com os bens jurídicos do próprio agressor. A actuação ao abrigo da causa de justificação
abarca condutas por ação ou por omissão, dolosas ou negligentes e não tem
necessariamente que existir ilicitude penal do agressor, basta que a sua conduta
considerar globalmente seja ilícita (contrária à ordem jurídica e não necessariamente
contrária ao direito penal, como decorre do princípio da unidade da ilicitude, acima
referido).

→ Pressupostos
Para que se fale em legítima defesa, exige o art 32º CP que estejamos perante uma
agressão actual e ilícita de interesses juridicamente protegidos do agente ou de
terceiro. A falta de um pressuposto leva a que a conduta seja ilícita, havendo desvalor
do resultado.
o Comportamento agressivo – o conceito de agressão corresponderá sempre a
uma ameaça derivada de um comportamento humano a um bem
juridicamente protegido. Sendo que só os seres humanos podem violar o
direito, ficam excluídas do âmbito da legítima defesa as actuações de animais.
Note-se, ainda assim, que a legítima defesa não deverá ser negada quando o
humano utiliza ou se faz valer do animal como instrumento de agressão, já que
nesses casos estamos efectivamente perante uma agressão humana. Exige-se
também que a conduta seja voluntária, ficando dessa forma excluídos os casos
de agressão por parte de um agente em estado de inconsciência ou com
vontade completamente ausente. Um comportamento omissivo também pode

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3º ano, Turma A
Patrícia Carneiro da Silva

ser considerado uma agressão, para efeitos da legítima defesa. A questão que
se coloca é a de saber se, neste contexto, se consideram agressões as omissões
puras, as omissões impuras ou ambas:
• Omissões puras – nas omissões puras não há a colocação em perigo de
bens jurídicos individuais, segundo o que refere parte da Doutrina, pelo
que, para esses, não será aceitável falar em legítima defesa. Já outros,
como o Professor Figueiredo Dias, entendem que há ainda base para
que se aja em legítima defesa nestas circunstâncias. É exemplo o caso
do agente que força o taxista a transportar a vítima de um acidente para
o hospital (omissão pura – art 200º CP). Diz o Professor que, nestes casos,
há um perigo para bens jurídicos, individuais e supra-individuais, pelo
que faz sentido admitir-se a possibilidade de legítima defesa.
• Omissões impuras – a Doutrina tende a aceitar pacificamente que estas
devem ser fundamento da legítima defesa. É exemplo o caso das
ameaças ou agressões feitas sobre a mãe que se recusa alimentar o filho
recém-nascido (omissão impura – arts 10º + 131º ou 144º CP).
o Actualidade da agressão – a agressão será actual, nos termos utilizados pelo
Professor Figueiredo Dias, quando for iminente, já se tiver iniciado ou ainda
persistir. A agressão é iminente quando o bem jurídico se encontrar
imediatamente ameaçado, no entendimento do Professor Figueiredo Dias. Para
a Professora Maria Fernanda Palma, contudo, o critério a adoptar é o de se já
foram, ou não, praticados actos de execução: se sim, a agressão será actual.
Outro momento de definição relevante é o momento a partir do qual a agressão
deixa de persistir. O Professor Figueiredo Dias entende que o momento
definitivo não é o momento da consumação – há crimes nos quais, ainda após
a consumação, deve ser aceite a legítima defesa. É o exemplo do crime de
sequestro, que se dá como consumado assim que A encerra B num certo local
contra a sua vontade, mas ainda haverá legítima defesa se este se tentar
defender durante o cativeiro. Assim sendo, o que releva para este efeito é o
momento até ao qual a defesa é susceptível de pôr fim à agressão. Note-se que
os factos praticados depois desse momento já não serão justificados ao nível
da legítima defesa, mas podê-lo-ão ser ao nível da acção directa (art 336º CC).
o Ilicitude da agressão – exige-se que a agressão seja ilícita, ilicitude essa que se
afere perante toda a ordem jurídica e não especificamente perante a ordem
penal. Isto significa, no fundo, que não estaremos perante legítima defesa se a
agressão ilícita for justificada (por exemplo, não é legítima defesa a agressão do
ladrão sobre aquele que, pela força, tenta impedi-lo de fugir com as suas coisas).
Note-se que a legítima defesa pressupõe a ilicitude da agressão, mas não a
culpa do agressor.
→ Requisitos
Para que haja legítima defesa, o facto praticado tem de ser o meio necessário para fazer
face à agressão.

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3º ano, Turma A
Patrícia Carneiro da Silva

o Necessidade do meio – os meios têm de ser os meios necessários para repelir a


agressão actual e ilícita. O meio é necessário se for idóneo para deter a agressão.
Se forem vários os meios adequados, deverá optar-se pelo meio menos gravoso
para o agressor. O juízo de necessidade reporta-se ao momento da agressão,
tem natureza ex ante, devendo ser avaliado objectivamente toda a dinâmica
do acontecimento. Na ponderação dos meios de defesa não deve ser considera
a possibilidade de fuga – a fuga não é considerada um meio de defesa, e o
agente vítima de agressão tem o direito de se defender. O uso de um meio não
necessário à defesa representa excesso, o que, por sua vez, determina a não
justificação do facto. A solução resulta do art 33º CP. NÃO ESTÁ EM CAUSA UMA
QUESTÃO DE PROPORCIONALIDADE – se a proporcionalidade fosse requisito da
legítima defesa, não seria permitido matar alguém para defender a propriedade.
A Professora Maria Fernanda Palma defende que, se estivermos perante bens
jurídicos nucleares, fundamentais, aqueles que compõe o núcleo da dignidade
da pessoa humana a defesa não tem uma limitação (princípio da
insuportabilidade da não defesa: vida, ofensas à integridade física grave,
liberdade – art 2º CEDH). Só fora destes casos é que entra o princípio da
proporcionalidade.
o Necessidade da defesa – impõe-se que a defesa seja, ela própria,
normativamente imposta para que se possa ver como reafirmação do Direito
fase ao ilícito na pessoa do agredido. O Professor Figueiredo Dias reconduz a
necessidade da defesa ao próprio fundamento da legítima defesa enquanto
causa de justificação. A Professora Maria Fernanda Palma entende que o
chamar das autoridades é um elemento implícito, pelo que não apaga a
possibilidade de agir em legítima defesa. Já não haverá necessidade de defesa
quando a agressão é causada pela própria vítima.
o Conhecimento por parte do agente da situação justificante – exige-se que o
agente conheça os pressupostos, mas não se exige animus defendendi – não é
relevante que o agente actue com intenção de proteger os bens jurídicos
ameaçados pela agressão. A Doutrina entende, hoje, que ainda que não seja a
intenção do agente proteger o bem jurídico, a verdade é que ele o faz e o Direito
tem que valorar esse factor.
EXCESSO DE LEGÍTIMA DEFESA
O excesso pode ser extensivo ou intensivo:
o Excesso intensivo – excesso de meios (art 33º CP)
o Excesso extensivo – a agressão prolonga-se para lá da ameaça, pelo que deixa
de ser actual. Há o problema de saber se se pode aplicar o art 33º CP por
analogia – entende-se que sim (analogia in bonam partem). De outra forma, a
atuação seria ilícita, pelo que o agente seria punido sem possibilidade de
atenuação.
(Excesso de defesa – falha o requisito da necessidade de defesa.)

O excesso pode ter por fundamento sentimentos diversos, permitindo esse facto
distinguir entre excesso esténico ou asténico:

19
3º ano, Turma A
Patrícia Carneiro da Silva

o Excesso esténico – funda-se em sentimentos de raiva ou vingança


o Excesso asténico – funda-se em medo, susto ou perturbação (art 33º, nº 2)

ERRO SOBRE A LEGÍTIMA DEFESA


Em caso de erro sobre os pressupostos da legítima defesa, por exemplo a situação em
que o agente pensa que está a ser agredido, quando apenas irá ser cumprimentado pelo
suposto agressor: tal erro exclui o dolo (art 16º, nº 2 CP), podendo o defendente ser
punido por crime negligente se o erro lhe for censurável, e evidentemente se o crime
negligente for punível – art 13º CP.
Em caso de erro sobre a existência ou sobre os limites da legítima defesa, caso em que
o agente pensa que a legítima defesa se configura de modo diverso ou com limites
diversos dos estabelecidos legalmente – trata-se de um erro sobre as valorações
vigentes no Direito e não de um puro erro intelectual, pelo que apenas a culpa do agente
será afetada, eventualmente excluída, no caso de este erro não lhe ser censurável (art
17º CP).

B. DIREITO DE NECESSIDADE / ESTADO DE NECESSIDADE JUSTIFICANTE


O direito de necessidade encontra-se previsto no art 34º CP. A situação de necessidade
pressupõe que um perigo actual que ameace interesses juridicamente protegidos do
agente ou de terceiro só possa ser afastado se outro bem jurídico for lesado ou posto
em perigo.
O direito de necessidade funda-se na utilidade social traduzida na maximização da
protecção de interesses ou bens jurídicos. Este permite que uma acção típica seja
considerada lícita no tocante a um conflito de bens jurídicos – é lícito que o agente
pratique um facto típico para afastar um perigo que ameaça interesses juridicamente
protegidos e houver sensível superioridade entre o bem jurídico a salvaguardar e o
sacrificado.

→ Pressupostos
o Perigo atual – o bem jurídico tem que estar objectivamente em perigo, porque
só aí se justificará um dever de suportar a acção típica a recair sobre o atingido
pela intervenção. Este, mais, tem que ser actual, actualidade essa que não exige
iminência (ainda que não se possa daqui partir para a aceitação de um estado de
necessidade preventivo). No fundo, a actualidade da agressão no direito de
necessidade acaba por se reportar ao que se identifica na legítima defesa, com
o alargamento para lá da iminência: o perigo será actual quando o
protelamento do facto salvador representar uma potenciação do perigo, ou no
caso de perigos duradouros (p.e. prédio em perigo de desmoronamento).
o Que ameace interesses juridicamente protegidos do agente ou de terceiro – o
legislador evitou a utilização da expressão “bem jurídico”, seja para evitar
lacunas ou para evitar o entendimento de que só se poderia actuar em estado
de necessidade quando em causa estivessem bens jurídico-penais. Estão
abrangidas situações em que o bem jurídico salvaguardado é o que também
pode vir a ser sacrificado (caso do cirurgião que realiza uma operação de risco

20
3º ano, Turma A
Patrícia Carneiro da Silva

sobre o paciente, colocando a sua vida em risco, mas sendo esse o único meio
de a salvaguardar).

→ Requisitos
o Adequação do meio – tem de estar em causa um “meio adequado para afastar
o perigo”. Para o Professor Figueiredo Dias, há que daqui retirar que não estará
coberto por direito de necessidade o caso em que o agente utiliza um meio que,
segundo a experiência comum, é inidóneo para salvaguardar o interesse
ameaçado.
o Não provocação do perigo – al a) – a justificação será afastada se a situação for
intencionalmente provocada pelo agente, ou seja, se ele premeditadamente
criou a situação para poder livrar-se dela à custa da lesão de bens jurídicos
alheios. Essa situação já não é exigida se estiver em causa a protecção de
terceiros, pois que não seria admissível que da provocação do agente pudesse
resultar uma lesão não justificada para bens jurídicos de terceiro posto em
perigo, se depois o provocador os salvar à custa de um outro terceiro não
implicado. EXEMPLO: A cria intencionalmente um perigo de incêndio na casa de
B; arrependendo-se mais tarde, entra sem autorização na casa de C para chamar
os bombeiros. Está excluída a ilicitude da violação de domicílio, pois ele agiu em
estado de necessidade.
o Princípio do interesse preponderante – al b) – a lei exige que se pondere o valor
dos interesses conflituantes, nomeadamente dos bens jurídicos em colisão e o
grau do perigo que os ameaça. Esta requisito gera a dúvida sobre o conceito de
interesse, problema ao qual a Professora Maria Fernanda Palma dá resposta:
interesse é uma posição de vontade sobre uma coisa de que se carece e não
pode abranger todo e qualquer valor defensável na situação de conflito, mas
não atribuível a uma vontade. A sensível superioridade dos interesses não
implica uma comparação em abstrato, nem que esta esteja fixada através de
critérios padrão (não se trata de uma verificação/comparação quantitativa). A
Professora entende que a ponderação é feita caso a caso. Podemos estar
perante dois bens jurídicos iguais e um ser superior no caso concreto. Ainda
assim, há certos indícios de hierarquia:
• Molduras penais – atende-se à medida legal da pena, partindo do
pressuposto de que se o dano ao bem A é suscetível de pena superior ao
dano do bem B, então o bem A é superior ao bem B. O critério mostra-
se, por si só, insuficiente.
• Intensidade da lesão do bem jurídico – há que verificar se está em causa
o aniquilamento completo do interesse ou só a sua lesão parcial ou
passageira. Pode acontecer, por exemplo, que a lesão de bens como a
liberdade pessoal ou a integridade física (em princípio, superiores aos
bens puramente patrimoniais) seja mínima, quando comparada com a
lesão desses bens patrimoniais.
• Grau do perigo – quando a violação do perigo não surge como
absolutamente segura, mas sim como mais ou menos provável. Nestes

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3º ano, Turma A
Patrícia Carneiro da Silva

casos, Roxin entende que quem, para evitar um dano que seguramente
se produzirá se não actuar, leva a cabo uma acção salvadora que só em
pequena medida põe em causa outro bem jurídico, estará a prosseguir o
interesse substancialmente preponderante. Já a criação de um perigo
concreto, com base num perigo meramente abstrato deverá ser
balanceada consoante o grau de probabilidade (não se justifica, por
exemplo, que uma ambulância circule de forma perigosa para transportar
um doente que apenas tem o pé partido).
• Autonomia pessoal do lesado – o bem jurídico ofendido terá que ser de
carácter eminentemente pessoal. Tem que ser “razoável impor ao lesado
o sacrifício do seu interesse em atenção à natureza ou ao valor do
interesse ameaçado”, pelo que tem de influenciar o resultado final o
facto de o facto necessitado ofender, para além do bem jurídico do
lesado, o seu direito de autodeterminação e de auto-realização.
• A imponderabilidade da vida de pessoa já nascida – sendo a vida um
bem jurídico de valor incomparável e insubstituível, não são legítimas
diferenciações qualitativas entre o valor das vidas (a vida de uma criança
vale tanto como a vida de um idoso), ou sequer quantitativas (não é
legítimo assumir que uma vida vale menos que mil vidas). Em caso de
conflito de vida(s) contra vida(s), deve assentar-se o princípio da
imponderabilidade da vida para efeito de estado de necessidade
justificante. Não é, portanto, de adoptar uma concepção utilitarista.
Alguma Doutrina constrói um conjunto de casos (“comunidade de
perigo”2) nos quais entende ser possível que o interesse na preservação
de uma ou mais vidas seja preponderante face ao sacrifício de outra ou
outras. O Professor Figueiredo Dias, contudo, afirma que a comunidade
de perigo não pode, por si mesma, justificar essa escolha.
o Em termos subjectivos, exige-se que o agente conheça a situação de conflito e
actue com a consciência de salvaguardar o interesse preponderante, ainda que
não seja exigido animus salvandi (não se exige que o agente tenha vontade de
defender o interesse preponderante).

C. CONFLITO DE DEVERES
O conflito de deveres é hoje considerado uma causa de justificação autónoma, pois que
assume certas especificidades que devem ser tidas em consideração. Desde logo, para
que haja conflito de deveres efectivo é necessário que em causa estejam deveres de
acção distintos, que colidem de tal forma que apenas um deles pode ser cumprido (por
exemplo, o caso dos irmãos A e B que estão prestes a morrer afogados, tendo C, pai de

2
Havendo várias pessoas todas elas colocadas numa situação comum de perigo para a vida, sacrifica-se
uma ou algumas delas como única e adequada forma de impedir que outra(s) pereça(m). EXEMPLO: caso
dos náufragos, em que só há espaço para um

22
3º ano, Turma A
Patrícia Carneiro da Silva

ambos, um dever de garante de salvar ambos os filhos, sob pena de responder por
omissão3).
Assim, não caem no art 36º os casos de conflito entre acção e omissão, sendo esses
casos de colisão de interesses e remetidos assim para o art 34º CP – são casos de
conflito de deveres meramente aparente. A Professora Maria Fernanda Palma defende
que, em caso de conflito acção/omissão, deverá sobrepor-se a omissão: entre deixar ir
o comboio e matar 50 pessoas ou desviar e matar 1, atendendo ao princípio da
imponderabilidade da vida humana, deve cumprir-se o dever de não matar (e não o
dever de matar) – deixando o comboio ir, ele tem comportamento justificado porque
não foi ele que matou; ao virar o comboio, cumpre o dever de salvar, mas incumpre o
dever de não matar, pelo que será responsabilizado.
Dentro de certos limites, é dada possibilidade ao agente de escolher um dos deveres,
caso estes sejam iguais. Ainda assim, deve fazer-se uma ponderação concreta dos
interesses em conflito no quadro da situação global, pelo que não basta atender-se
tão somente ao bem jurídico em causa. Mais, deve ser dada primazia às situações em
que exista um dever especial de garante, que deverá prevalecer sobre o outro (caso
do médico que tem dois pacientes em igual estado de gravidade, mas que há muitos
anos que é médico de um deles e nunca viu o outro na vida).
Então:
→ Pressupostos
o Conflito entre deveres de acção distintos, que colidem de tal forma que apenas
um deles pode ser cumprido (conflitos de acção/omissão resolvem-se pelo art
34º, consubstanciando conflitos de interesses e não verdadeiros conflitos de
deveres – são conflitos de deveres meramente aparentes)

→ Requisitos
o O valor do dever cumprido deve ser pelo menos igual ao valor do dever
sacrificado;
o O agente tem de ter cumprido um dos deveres;
o O agente deve ter ponderado corretamente qual o interesse mais relevante.
• Ponderação em caso de gravidade: exemplo, prevalece o dever
relativamente à pessoa que está em maior perigo de vida.
• Ponderação, igualmente, dos deveres de garante: prevalece o dever que
implica o cumprimento de um dever de garante (caso de socorrer o filho
e socorrer alguém desconhecido).

3
ESTÁ ABRANGIDO PELO CONFLITO DE DEVERES O CASO EM QUE O PAI ESCOLHE UM DOS FILHOS, MAS
ELE TEM QUE SALVAR UM DELES – NÃO PODE SER JUSTIFICADA A ACÇÃO DE NÃO SALVAR NENHUM – a
Professora Maria Fernanda Palma ressalva, ainda assim, que pode este tipo de casos ter solução no
pressuposto da culpa, uma vez que estamos perante situações em que há uma “imobilização sentimental
que obsta à realização de ambos os deveres”. Podemos, então, estar aqui perante uma cláusula de
desculpa atípica.

23
3º ano, Turma A
Patrícia Carneiro da Silva

D. CONSENTIMENTO DO OFENDIDO E CONSENTIMENTO PRESUMIDO


A relevância do consentimento enquanto causa de justificação depende sempre da
articulação entre este e os princípios da autonomia da pessoa e da protecção dos bens
jurídicos. O Direito Penal apenas intervém como última ratio, pelo que se deve dar,
sempre que possível, preponderância à autonomia.

→ Pressupostos
o Carácter pessoal e disponibilidade do bem jurídico lesado – ficam de fora os
bens jurídicos comunitários, que como tais se encontram protegidos. A grande
dúvida coloca-se quando à vida e à integridade física, que são os que mais valor
apresentam no nosso sistema. A Doutrina aponta para uma absoluta
indisponibilidade da vida humana. Já quanto à integridade física, esta é
considerada um bem disponível pelo seu titular, mesmo face a ataques de
terceiro.
o Não contrariedade aos bons costumes – passa pela gravidade e, sobretudo, pela
irreversibilidade da ofensa. Um consentimento que não respeita os bons
costumes é ineficaz.

→ Requisitos
o Capacidade em consentir (capacidade de exercício) – esta capacidade reporta-
se à necessidade de garantir que quem consente é capaz de avaliar o significado
do consentimento e o sentido da acção típica, supondo maturidade, certa idade
e discernimento. Em caso de incapacidade penal, admite-se a via da
representação legal. A vontade tem de ser séria, livre e esclarecida, pelo que não
pode sobre ela recair qualquer vício (seja de erro, engano ou ameaça).
o Expresso por qualquer meio
o Conhecimento do consentimento – tem de ser conhecido do agente.
Diferentes são as situações de consentimento hipotético – em que o consentimento
teria sido dado se o devido esclarecimento (art 157º CP) tivesse tido lugar – e de
consentimento presumido – casos e que o titular do bem jurídico não consentiu na
ofensa, mas nela teria presumivelmente consentido se lhe tivesse sido possível decidir
sobre a questão. O consentimento presumido só é chamado à colação quando não for
possível obter a manifestação expressa da vontade ou houve perigo sério na demora
(por exemplo, caso de emergência hospitalar, em que se presume o consentimento da
vítima para realização da cirurgia).
Discute-se se o fundamento do consentimento presumido será a vontade da pessoa
ou, antes, o seu superior interesse. A dúvida resulta, desde logo, do facto de poderem
estar em causa considerações distintas, consoante o fundamente. Para que possa falar-
se de um caso de consentimento presumido, é necessário que estejam verificados todos
os pressupostos relativos a art 38º CP – NÃO HÁ CONSENTIMENTO PRESUMIDO
RELATIVAMENTE A QUEM NÃO TEM CAPACIDADE PARA CONSENTIR (caso das
crianças).

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3º ano, Turma A
Patrícia Carneiro da Silva

3 – Justificações supra-legais
Representam causas de justificação não explícitas (não previstas na lei),
correspondendo no fundo a situações de figuras indiscutivelmente díspares das causas
de justificação legais, mas que com elas têm uma proximidade tal que, aparentemente,
realizam a mesma função.

A. LEGÍTIMA DEFESA PREVENTIVA


Discutidos são os casos de legítima defesa preventiva, ou seja, de situações nas quais
já se sabe antecipadamente, com certeza ou elevado grau de probabilidade, que a
agressão vai ter lugar. A maioria da Doutrina tende a não considerar aqui possível uma
acção em legítima defesa. No caso da Professora Maria Fernanda Palma, há que
entender que não foi ainda perturbada a ordem jurídica, pelo que assumir aqui uma
acção justificada por legítima defesa seria violador dos princípios da segurança jurídica
e da igualdade. Já o Professor Figueiredo Dias funda a mesma solução em pilares
distintos: afirma que aceitar esta possibilidade seria alargar em demasia o conceito de
autoria e tal factor poderia levar a situações de legitimação de formas privadas de
defesa, em substituição da actuação das autoridades competentes.

B. ESTADO DE NECESSIDADE DEFENSIVO


Estão em causa as situações em que o agente que actua em estado de necessidade se
defende de um perigo que tem origem na pessoa que vai ser vítima da acção
necessitada: o agente lesa o bem jurídico de terceiro porque se defende de um perigo
que tem origem nesse terceiro. Nesses casos, o agente não pode recorrer-se da legítima
defesa, pois que está em causa um perigo e não uma iminência de agressão (por
exemplo, A tem um ataque epilético e, se não for afastado à força, acabará
eventualmente por destruir um jarro de porcelana), ou até por estar em causa uma
actuação lícita (por exemplo, se A, tendo observado as regras de trânsito, perde o
controlo do carro por algo inesperado, pode B agir em estado de necessidade
defensivo?).
Nestes casos, o Professor Figueiredo Dias concorda que admitir uma causa de exclusão
supra-legal poderia trazer demasiados riscos para a segurança jurídica, pelo que só
poderá haver estado de necessidade defensivo quando se cumpram os requisitos do
estado de necessidade justificante (art 34º CP).

V – A CULPA
1 – Noção e fundamento
A culpa representa, no fundo, o juízo de censurabilidade social que o Direito faz ao
agente que praticou o facto típico. Para ter culpa é necessário:
o Não ser inimputável em razão da idade ou de anomalia psíquica
o Ter capacidade de motivação pela norma – se o agente é coagido a fazer algo,
essa capacidade não existe verdadeiramente;
o Ter consciência da ilicitude

25
3º ano, Turma A
Patrícia Carneiro da Silva

Antes de passar ao estudo da culpa enquanto pressuposto da responsabilidade penal,


cumpre analisar a evolução do conceito por via das Escolas:
o Escola Clássica – a culpa representa uma ligação psicológica susceptível de
legitimar a imputação ao agente do resultado, a título de dolo (conhecimento e
vontade da realização do facto) ou negligência (deficiente tensão de vontade
impeditiva de prever correctamente a realização do facto). Esta perspectiva não
tem em conta o caso do inimputável, que pode agir com dolo ou negligência.
o Escola Neoclássica – tem uma componente psicológica e uma componente
normativa. A culpa é constituída pela imputabilidade (capacidade do agente de
avaliar a ilicitude do facto e de se determinar por essa avaliação) e pela
exigibilidade (comportamento adequado ao Direito).
o Escola Finalista – a culpa representa um mero juízo normativo de
censurabilidade do agente, não comportando qualquer elemento psicológico. É
composta pela imputabilidade, pela consciência do ilícito e pela exigibilidade de
outro comportamento.
A culpa cumpre, no nosso sistema, uma função político-criminal de limitação do
intervencionismo estatal, pelo que, para que o Direito puna, em causa tem que estar a
violação pela pessoa do dever originário e essencial de realização e desenvolvimento
do ser.
Para a Professora Maria Fernanda Palma, deve ser adoptada uma concepção de culpa
próxima da desenvolvida pelas teses da culpa da vontade4 e da capacidade de
motivação pela norma. Assim sendo, a Professora entende que o fundamento da culpa
reside na verificação da oportunidade de actuação alternativa.

2 – Inimputabilidade
A inimputabilidade representa uma forma de negação da culpa – em causa estão
situações que afectam o agente e que fazem com que este não seja capaz de culpa,
por lhe faltar a capacidade de entender o carácter ilícito do comportamento.

A. ANOMALIA PSÍQUICA
Desde logo, a inimputabilidade pode resultar de anomalia psíquica. Estas representam
transtornos, devidos a causa orgânico-corporais, que geram deficiências patológicas
no agente. Existem vários casos que, para este efeito, se consideram anomalia psíquica,
e que são definidos também com recurso às ciências naturais: psicoses, neuroses,
anomalias sexuais, oligofrenia, psicopatias, etc.
Para além disso, o art 20º CP exige que, por força dessa anomalia psíquica, o agente,
no momento da prática do facto, seja incapaz de avaliar a ilicitude deste ou de se
determinar de acordo com essa avaliação. Está em causa a comparação entre o agir
modificado do psiquicamente anómalo e o que poderia esperar-se do homem-médio.
Assim, exige-se que o juiz proceda a uma racionalização retrospectiva de um processo

4
A culpa só pode ser censurabilidade da acção por o culpado ter actuado contra o dever quando podia,
antes, ter actuado de acordo com ele. Assim sendo, o poder de agir de outra maneira é elemento essencial
do conceito de culpa – temos de estar perante uma decisão livre e consciente da vontade a favor do ilícito.

26
3º ano, Turma A
Patrícia Carneiro da Silva

psiquicamente anómalo, devendo o agente ser considerado imputável se se entender


que, mesmo com essa anomalia, era possível que o agente compreendesse a ilicitude
do facto praticado.
Para que seja relevante, exige-se que a anomalia se verifique no momento da prática
do facto, requisito que assume uma dupla vertente:
o Conexão temporal – tem de verificar-se no momento da prática do facto;
o Conexão típica – a anomalia tem que ser expressa num concreto facto típico (por
exemplo, A, que sofre de tara sexual grave, viola e furta B – será inimputável
perante o crime de violação, mas a anomalia de que sofre não se manifesta no
furto, pelo que o agente será imputável quanto a este crime).
Diferentes são os casos de imputabilidade diminuída – situações que a anomalia
psíquica não implica a total incapacidade do agente para avaliar a ilicitude do facto ou
para se determinar de acordo com essa avaliação. Essa realidade comporta
consequências: para a Professora Maria Fernanda Palma, a diminuição da capacidade
corresponde a uma diminuição da culpa, o que gera a obrigatoriedade de atenuação
da pena. Já o Professor Figueiredo Dias entende que tal raciocínio traz desvantagens à
política criminal, pois que a anomalia psíquica que afecta o agente e diminui a sua
capacidade torna-o perigoso para a comunidade, de onde se exige uma reacção
criminal mais forte e mais longa. O Professor, ainda assim, chama também a atenção
para os casos de imputabilidade duvidosa – situações em que se comprova a existência
de uma anomalia psíquica, mas se tem dúvidas sobre as consequências que daí
resultam, ou devem resultar. São casos em que é duvidosa a compreensibilidade das
conexões objectivas de sentido que ligam o facto à pessoa do agente. O art 20º, nº 3 –
que acaba por remeter para o art 20º, nº 2 CP – oferece ao juiz uma norma flexível,
que lhe permite considerar o agente imputável ou inimputável consoante a
compreensão das conexões objectivas de sentido do facto.

B. IDADE
Outro dos factores que determina a inimputabilidade do agente é a idade – a
imputabilidade deve ser excluída relativamente a qualquer agente que ainda não
atingiu a sua maturidade psíquica e espiritual, com fundamento na necessidade de um
mínimo de maturidade como condição para apreciação da personalidade e atitude que
dela se exprimem. Só quando o estádio de desenvolvimento em que o agente se
encontra é suficiente para que o agente, ao praticar uma acção, tenha consciência da
natureza própria do que através dessa manifesta é que podemos falar em
imputabilidade. Nos termos do art 19º CP, os menores de 16 anos são inimputáveis.
No entanto, os ilícitos cometidos por estes agentes podem ser objecto de tutela
estadual, pois que também quanto a eles o Estado deve cumprir o dever de protecção
dos bens jurídicos.

27
3º ano, Turma A
Patrícia Carneiro da Silva

3 – Inexibilidade
A inexibilidade trata-se de uma causa de exclusão da culpa, assim sendo considerada
pelo ordenamento português (apesar de ser muito discutido, a nível mundial, se esta
deve levar a uma total exclusão da culpa ou apenas a uma atenuação da mesma5).
Se ao agente for “roubada” a possibilidade de agir de outra forma, por força de
situação exterior, deverá manter-se a censurabilidade? A resposta é que não – se o
agente não tem poder de agir para actuar de forma diferente, exclui-se a culpa: não
lhe é exigível, nesse caso, que actue conforme o Direito. O Direito não impõe à pessoa
ser um herói moral, mas apenas um homem dotado de resistência espiritual normal,
honesto, normalmente fiel à normatividade e que teria agido de forma correcta se não
fosse aquele desvio causado por causa exterior a ele.
A Professora Maria Fernanda Palma entende que a inexibilidade deve ser entendida
como o fundamento geral da exclusão da culpa, partindo para isso do princípio da
desculpa.

A. ESTADO DE NECESSIDADE DESCULPANTE


Nos termos do art 35º, age sem culpa quem praticar um facto ilícito adequado a afastar
um perigo real e não removível de outro modo, que ameace a vida, integridade física,
honra ou liberdade do agente ou de terceiro, quando não for razoável exigir-lhe,
segundo as circunstâncias do caso, comportamento diferente.
O estado de necessidade desculpante representa uma manifestação do princípio da
inexibilidade, que supõe uma colisão de bens jurídicos. Uma exclusão da culpa em
nome de um estado de necessidade desculpante só entra em questão quando não
esteja em causa a salvaguarda de bens jurídicos claramente preponderantes – apenas
quando se salvaguardem bens inferiores, iguais ou no máximo não sensivelmente
superiores ao bem jurídico lesado.

→ Requisitos
o Perigo actual e não removível de outro modo – é em tudo idêntico ao requisito
exigido no estado de necessidade justificante, ainda que aqui a actualidade
deva ser mais ampla, abrangendo os perigos duradouros. Quanto ao facto de
não poder ser possível que o perigo seja eliminado de outra forma, essa
exigência deve ser entendida de forma estrita: por exemplo, não pode
reivindicar o estado de necessidade desculpante o soldado que, sujeito a sevícias
físicas ou morais do seu superior, se pode queixar ao comandante e, em vez de
o fazer, deserta. Exige-se, também que seja escolhido o meio adequado e menos
oneroso para os direitos de terceiro não implicado.
o Bens susceptíveis de serem lesados – trata-se de ser ou não exigível do agente,
naquela situação, um comportamento adequado ao direito – por esta razão,
compreende-se que a exclusão da culpa só possa ocorrer quando se trata de

5
Roxin entende que a inexibilidade deve ser vista como uma causa de exclusão da responsabilidade,
afirmando que, em vez de imputar a questão da inexibilidade a uma categoria anterior à culpa, deve
atribuir-se-lhe uma nova categoria – a da responsabilidade. Assim, o que está em causa é a punição, que
não se deve efectivar por ser desnecessária, pois que não existem exigências de prevenção.

28
3º ano, Turma A
Patrícia Carneiro da Silva

preservar determinados bens jurídicos individuais elementares (vida,


integridade física, honra ou liberdade). O perigo deve ameaçar bens jurídicos do
agente ou de terceiro.
o Cláusula de inexibilidade – este é o requisito mais importante e conforme ao
princípio da culpa. É um critério pessoal e objectivo, que nos diz que não se pode
exigir ao agente, naquelas circunstâncias, outro comportamento diferente. No
fundo, o art 35º, nº 1 CP não desculpa o facto quando nele convirjam os
elementos acima referenciados, mas apenas quando, além deles, não seja
razoável exigir do agente, segundo as circunstâncias do caso, comportamento
diferente. Ainda assim, é sempre exigido um esforço mínimo de força de
resistência, normativamente determinado (se o critério não pode ser o do herói
moral, também não pode ser o do poltrão). Daqui retira-se que:
• A desculpa deve ser negada sempre que a lei exija do agente que
suporte o perigo (por exemplo, por exercício de profissões como a de
polícia ou bombeiro)
• Não há desculpa se a ameaça se mantém dentro da área típica de
perigos que o agente tem o dever de correr ou de suportar, sendo
também duvidoso que se possa atenuar a pena em função da diminuição
da culpa
• Há obrigação de suportar o perigo nos casos em que o próprio agente
criou o perigo, voluntariamente, para se fazer valer do estado de
necessidade desculpante (Figueiredo Dias). O Professor entende que
estes casos devem ter igual solução aos idênticos casos no estado de
necessidade justificante.
Outra questão, ainda dentro da inexibilidade, é a de saber em que termos a
proporção – ou desproporção – dos bens jurídicos conflituantes deve influenciar
a cláusula de inexibilidade. Sabemos já que há estado de necessidade
desculpante quando o bem salvaguardado é superior ao sacrificado, bem como
quando é igual. Poderá sê-lo, também, quando é inferior: mas poderá essa
inferioridade ser manifesta? Ou, nestes casos, deve entender-se que estamos
perante situações em que o agente tem o dever de suportar o perigo?
Por fim, cabe também saber que o facto só pode excluir a culpa se o agente tiver
por finalidade proteger o bem jurídico ameaçado, ainda que não se exijam
motivos nobres por parte deste.
o Exige-se que o agente tenha praticado o facto com a finalidade de salvação do
bem jurídico ameaçado, ainda que não sejam admitidos motivos nobres ao
agente – basta que o fim último seja a salvação do bem jurídico em perigo e que
a acção seja praticada com essa finalidade.

ARTICULAÇÃO DO 16º, Nº 2 COM O 16º, Nº 1 – ACEITAÇÃO ERRÓNEA DO END


Em causa estão situações em que há uma aceitação errónea de uma situação de estado
de necessidade desculpante, nas quais o art 16º, nº 2 determina que a punibilidade
apenas pode existir a título de negligência, uma vez que se exclui o dolo – adopta-se a
tese da analogia, segundo a qual se equipara esta às demais situações de erro (16º/1)

29
3º ano, Turma A
Patrícia Carneiro da Silva

O art 16º, nº 2 não identifica uma estatuição – todo ele é previsão, caracterizando o
erro. Verificado esse erro, exclui-se o dolo pelo art 16º, nº 1 CP (porque se estou em
erro, não tenho condições informativas de motivar pela norma – “para aceder à
consciência da ilicitude”). O dolo diz-me quais são as informações que tenho que ter
para conseguir aceder à consciência do ilício – o dolo é instrumental face à consciência
da ilicitude. EXEMPLO: no caso de homicídio – preciso de saber se estou a matar uma
pessoa se achar que estou a matar coelho, por definição, nunca vou assumir que estou
a praticar um ilícito. Assim sendo, o dolo dir-me-á que eu tenho que ter conhecimento
dos elementos constitutivos do tipo, pois que isso é o que se exige para que consiga
aceder à consciência da ilicitude.
Passadas as dificuldades do art 16º, nº 1, é-nos possível seguir para o art 16º nº 2: casos
em que eu não tenho a informação toda (ou a informação correcta) que me permite
aceder à consciência da ilicitude. Por exemplo, se a minha representação do mundo é
a de que a pessoa que vem na minha direcção me vai matar, então por definição, eu
nunca vou achar que a minha defesa é ilícita. O agente não tem condições de
informação para colocar correctamente o problema da ilicitude6.

EXCESSO DE LEGÍTIMA DEFESA DESCULPANTE


Relaciona-se com o art 33º, nº 2 CP. Para que se exclua a punibilidade, é necessário que
se verifiquem um conjunto de requisitos:
o Ultrapassa-se a medida da necessidade de defesa do meio
o Estão em causa motivos asténicos – perturbação, medo ou susto
• O excesso de legítima defesa desculpante não abrange os motivos
esténicos
o Pode haver excesso consciente ou inconsciente

4 – Falta de consciência do ilícito não censurável


É possível que a falta de conhecimento do ilícito exclua a culpa. Tal acontecerá,
precisamente, se essa falta de consciência não for censurável. A possibilidade de uma
falta de consciência do ilícito não censurável dependerá de se poder considerar que o
erro ou engano da consciência ética que está na sua base não se funda numa atitude
desvaliosa e juridicamente censurável do agente. O elemento decisivo é, portanto, a
determinação do critério de censurabilidade.
É de adoptar, para tal, o critério da rectitude da consciência errónea. Este será o critério
que nos permite dizer onde e quando se pode falar em falta de consciência do ilícito
não censurável. Será esse erro não censurável sempre que o mesmo não se
fundamente numa atitude interna desvaliosa face aos valores jurídico-penais7. Pode

6
O PROBLEMA NÃO SE COLOCA SE HOUVER EXCESSO, POIS QUE, MESMO QUE FOSSE VERDADE QUE A
PESSOA ME VINHA BATER, EU NUNCA LHE PODERIA – LICITAMENTE – DAR UM TIRO. Nesses casos, há
concurso aparente entre o art 16º, nº 2 e o art 33º, pois que se tenho 33º não posso ter 16º, nº 2 – a
aplicação de um exclui a aplicação de outro.
EXCEPÇÃO – SITUAÇÃO EM QUE O EXCESSO É PROVOCADO PELO ERRO (por exemplo, penso
que só tenho disponível para me defender uma pistola, quando, na verdade, de baixo do balcão
tenho também um bastão. Aqui, eu uso a arma quando podia utilizar um meio menos gravoso).
7
Nesses casos, facilmente se compreende que há censurabilidade da falta de consciência do ilícito

30
3º ano, Turma A
Patrícia Carneiro da Silva

acontecer que, apesar do erro da valoração em que o agente incorre, a sua


personalidade venha ainda a revelar-se essencialmente conformada com a suposta e
exigida rectitude. Nesses casos, fica excluída a censurabilidade da falta da consciência
do ilícito.
Critérios da rectitude da consciência:
o Presença do agente numa situação em que a ilicitude concreta é extremamente
controvertida e discutível – situações nas quais conflituem vários pontos de vista
jurídicos, todos eles relevantes. Aqui, mesmo que o agente escolha um deles,
isso não deixa de ser relevante para o Direito;
o Propósito do agente de recorrer a um desses pontos de vista – exige-se que o
agente tenha como propósito, com a sua actuação, corresponder ao ponto de
vista de valores juridicamente relevantes que adoptou.

V – A TENTATIVA
1 – Noção e fundamento da punibilidade
A questão fulcral é a de saber a que estádios de realização do crime doloso a
responsabilidade penal pode aferir-se, e de que forma. Facilmente percebemos, para
começar, que a mera decisão de realização do ilícito não é punível. O que está em causa
é a necessidade de protecção subsidiária de bens jurídicos, não de puros valores
morais.
Outra questão pertinente é a de saber se já há lugar a punição pela mera prática de
actos preparatórios. Tende a responder-se que não: não sou punido por comprar uma
caçadeira para a prática de um homicídio. Há, ainda assim, excepções: por exemplo o
caso do art 262º CP, que pune a contrafação de moeda, que por sua vez constitui um
acto preparatório, apenas se consumando o crime no momento da entrada em
circulação daquela moeda.
A tentativa não é punida relativamente a todo e qualquer crime – e, quando o é, não
lhe cabe a pena do crime consumado. O fundamento da punibilidade da tentativa é
tema do qual resultou o desenvolvimento de várias teorias:
o Teorias objectivas – a tentativa é vista como uma acção externa dirigida
intencionalmente à realização do crime, devendo ser objectivamente perigosa.
O Professor Figueiredo Dias entende que esta teoria deve ser recusada, desde
logo porque o art 22º, nº 1 CP exige como elemento da tentativa a decisão da
prática do crime.
o Teorias subjectivas – a tentativa é punida por causa da vontade delituosa do
agente. No entanto, não pode ser aceite uma concepção extremada ou
exclusivamente subjectivista, que exclua por completo o fundamento na
perigosidade objectiva da conduta.
o Teorias da impressão – tendo em conta as críticas feitas a ambas as teorias
analisadas supra, desenvolve-se a teoria da impressão. De acordo com esta, a
punibilidade da tentativa funda-se na dignidade penal do facto tentado. O ponto
de partida é a vontade exteriormente manifestada em contrário da norma de
comportamento. No entanto, a punibilidade do acto dirigido à realização do tipo

31
3º ano, Turma A
Patrícia Carneiro da Silva

só será afirmada se ela se revelar como uma intenção significativa no


ordenamento jurídico.
2 – Elementos da tentativa
São elementos da tentativa, por um lado, a decisão de cometer um crime e, por outro,
a prática de actos de execução de um crime que não chega a consumar-se.

I. A decisão de cometer o facto


O tipo subjectivo de ilícito da tentativa é o mesmo que o do crime consumado, pelo
que também aqui se afirma o dolo do tipo e, eventualmente, especiais elementos
subjectivos que a lei requeira no caso. Se estivermos perante uma tentativa inacabada
(caso em que o acontecimento fáctico é precocemente interrompido), pode tornar-se
duvidoso se o agente se decidiu ou não pela execução do facto, pois que ficam por se
manifestar aqueles actos de realização típica que manifestariam indubitavelmente a
existência de uma vontade dirigida à consumação. Não pode considerar-se decisão, por
exemplo, o caso do agente que apenas aprecia as condições que são necessárias à
prática do facto. Assim, pode adoptar-se o critério de Roxin, que nos diz que uma
decisão pelo facto existe logo que os motivos que empurram para o cometimento do
delito alcançaram predominância sobre as representações inibidoras, mesmo também
quando possam restar ainda últimas dúvidas.
Não será tentativa a colocação não dolosa em perigo de bens jurídicos alheios – não
existem tentativas negligentes. Já a articulação da tentativa com o dolo eventual, gera
divergências na Doutrina: há Autores para os quais a tentativa é incompatível com o
dolo eventual, partindo da ideia de que a decisão criminosa em causa na tentativa só
poderia ser imputada ao agente nos quadros do dolo directo. No entanto, a maioria da
Doutrina rejeita esta restrição – a decisão a que se refere o art 23º, nº 1 CP não tem de
ser entendida em termos mais exigentes que aqueles que valem para qualquer tipo de
ilícito doloso, onde o dolo eventual é considerado. Assim sendo, na tentativa, o dolo
pode assumir qualquer uma das suas formas.

II. Os actos de execução


Exige-se, para que haja tentativa, que seja identificável a prática de actos de execução
de um crime que não chegou a consumar-se. Assim, exige-se que a decisão se exprima
externamente em actos que constituam não meros actos preparatórios, mas já
verdadeiros actos de execução. A grande dificuldade está, no entanto, em distinguir
concretamente a execução da preparação
o Teorias formais objectivas – a distinção entre actos preparatórios e actos de
execução reside na ideia de que a tentativa supõe, pelo menos, a prática de
actos que caem já na alçada de um tipo de ilícito e são, portanto, abrangidos
pelo teor literal da descrição típica. Uma resposta na linha destas teorias conduz
a considerar decisivo o teor literal do tipo respetivo, deixando casos por resolver:
Mas, por isso considerada, não funciona para os casos mais complexos – há atos
em que tudo indica serem atos de execução sem se afirmar que integram o teor
literal ou significante de um elemento típico, nomeadamente, quando o crime é
de execução livre ou não vinculada.

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3º ano, Turma A
Patrícia Carneiro da Silva

o Teorias materiais objectivas – tentam determinar, com maior precisão, os


elementos de que depende o alargamento da tipicidade dos actos de execução.
É aqui que se enquadra a fórmula de Frank, segundo a qual devem considerar-
se como actos de execução aqueles que, em virtude de uma pertinência
necessária à acção típica, aparecem como suas partes componentes. Esta
fórmula ganhou posteriormente uma dupla conotação: combinou-se com a ideia
das teorias subjetivas, nomeadamente com o recurso ao plano do agente e liga-
se ao ponto de vista essencial das teorias objetivas sobre o fundamento da
punibilidade da tentativa (à ideia de que um ato se deve considerar como
começo de execução se acarreta um perigo imediato para o bem jurídico
protegido).
o Teorias subjectivas - a fronteira entre estes atos deve procurar-se com apelo à
qualidade ou intenção da vontade documentada no ato dirigido à realização do
crime. No entanto, estas teorias devem ser recusadas, porque é indispensável
que ao lado da decisão se coloque um momento objetivamente estruturado, sob
pena de violação do princípio da tipicidade.
Como conclusão desta exposição, podemos desde logo afirmar que nenhuma destas
teorias é, em si mesma, suficiente para distinguir entre actos de execução e actos
preparatórios. Para além disso, pode também concluir-se que a distinção cuja
concretização se procura há de ser eminentemente objectiva. Ainda assim, diz o
Professor Figueiredo Dias, falta ao art 22º, nº 2 uma vertente subjectiva, ligada ao
plano do agente.
o Art 22º, nº 2, al a) – considera como actos de execução os que preenchem um
elemento constitutivo de um tipo de crime. Há um acolher das teorias formais
objectivas, quando formuladas no sentido de que constitui acto de execução
todo aquele que preenche um elemento típico.
o Art 22º, nº 2, al b) – procede a um alargamento dos actos de execução. Ainda
assim, deve partir-se da ideia de que esta apenas vem adaptar a doutrina
contida na alínea a) aos crimes de execução não vinculada. Serve, no fundo,
para equiparar aos actos típicos (parciais) previstos na alínea a) todos aqueles
que são idóneos a produzir o resultado típico. Se o crime for de mera actividade,
então a idoneidade aqui exigida deverá corresponder à idoneidade para a
integral realização do tipo. Este preceito tem, contudo, de ser interpretado com
consciência da existência da alínea c), sob pena de se ir longe demais no seu
sentido e considerar actos de execução actos que não penetraram ainda no
âmbito de protecção da norma incriminatória. EXEMPLO: A falsifica um
documento, meio idóneo a criar em B um engano determinante de um prejuízo
patrimonial. Antes de poder usá-lo, contudo, o documento é apreendido pela
polícia. Não podemos considerar existir qualquer acto de execução, ainda que
esteja totalmente preenchido o conteúdo da alínea b). A verdade, também, é
que não é suficiente para a determinação do que é um acto de execução a
informação dada pelas alíneas a) e b). Imaginando o caso em que A, querendo
matar B, compra uma arma, compra balas, carrega a arma, desloca-se a casa de
B, aponta-lhe a arma e, ao premir o gatilho, a arma encrava: de acordo com a al

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3º ano, Turma A
Patrícia Carneiro da Silva

b), o meio idóneo seria apenas o de premir o gatilho. No entanto, assumir tal
premissa iria sempre contra a fórmula de Frank.
o Art 22º, nº 2, c) – são ainda actos de execução aqueles que, segundo a
experiência comum e salvo circunstâncias imprevisíveis, forem de natureza a
fazer esperar que se lhes sigam actos das espécies indicadas nas alíneas
anteriores, ou seja, ou seja, atos que integrem um elemento típico ou sejam
idóneos a produzir o resultado típico.

3 – Tentativa, tentativa acabada e tentativa frustrada


Diferente dos casos em que o agente não pratica todos os actos de execução
necessários à prática do ilícito típico, são os casos em que todos esses actos são
praticados, mas a consumação não vem ainda assim a ter lugar. Estes casos
correspondem, respectivamente, a situações de tentativa inacabada e de tentativa
acabada.
O Código Penal não trata expressamente destes conceitos, acabando estes por cair,
assim, no âmbito da mesma moldura penal. No entanto, tal não significa que a
distinção tenha perdido interesse – releva, desde logo, para o regime da desistência. O
problema está, essencialmente, em saber qual o ponto de vista decisivo para
determinar se a tentativa se pode já considerar acabada: se o ponto de vista subjectivo,
se o ponto de vista objectivo.

4 – A delimitação da tentativa punível


Nem todo o ilícito da tentativa, concretizada nos termos já analisados, tem dignidade
punitiva. Assim, surge o art 23º, que delimita o âmbito da tentativa punível em função
de dois critérios: a pena aplicável ao respectivo delito consumado e a seriedade do
ataque à ordem jurídica que a tentativa em concreto acarreta.
o Em função da pena aplicável ao crime consumado – falar em tentativa implica
falar sempre num desvalor do resultado inferior ao do crime consumado. Em
princípio, só é punível a tentativa nos casos em que ao crime consumado
corresponda pena superior a 3 anos de prisão. Se tal não acontecer, a tentativa
só poderá ser punível se a lei expressamente o declarar. Já relativamente à
tentativa de delitos qualificados, cumpre saber se a pena aplicável a que a lei se
refere é a do delito simples ou, antes, a do delito qualificado. Terá de ser a
segunda. Sendo punível a tentativa, a pena que lhe cabe será especialmente
atenuada.
o Seriedade do ataque à ordem jurídica – excluem-se os casos em que é manifesta
a inaptidão do meio empregado pelo agente ou a inexistência do objecto
essencial à consumação do crime. Não há punição, então, nos casos de tentativa
impossível.

TENTATIVA IMPOSSÍVEL E CRIME PUTATIVO


São exemplos de tentativas impossíveis a tentativa de homicídio por colocar numa
bebida um paracetamol dissolvido, ou a de envenenar uma garrafa e depois servir à
vítima uma garrafa inócua. A primeira conclusão que há a retirar é a de que toda e
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Patrícia Carneiro da Silva

qualquer tentativa impossível não coloca, verdadeiramente, o bem jurídico em perigo.


Com base nisso, há ordenamentos que excluem por completo a punibilidade da
tentativa impossível.
Também para a punibilidade da tentativa impossível o Professo Figueiredo dias invoca
a teoria subjectiva-objectiva da impressão, dizendo que, no caso concreto, a tentativa,
apesar de na realidade das coisas estar impossibilitada de produzir o resultado típico,
é suficiente para abalar a confiança comunitária na vigência e na validade da norma
de comportamento. Assim, a tentativa impossível será punível se, segundo as
circunstâncias do caso e de acordo com um juízo ex ante, ela era ainda aparentemente
possível ou não era já manifestamente impossível – quando não é manifestamente
impossível, o observador externo vê frustrada a sua confiança na validade das normas,
pelo que temos que punir para reestabelecer essa confiança (raciocínio de prevenção
geral). Quando a tentativa é manifestamente impossível, o observador externo não é
afectado, pelo que não se justifica a punibilidade.
A Professora Maria Fernanda Palma recusa a aplicação do critério da impressão,
considerando que a delimitação é relativa, uma vez que todas as tentativas podem a
certa luz ser impossível e todas são possíveis num mundo alternativo. Assim, o que
distingue será a verificação de graus de possibilidade. Nos casos em que o grau de
possibilidade da tentativa constitua uma perturbação do ambiente de segurança de
bens jurídicos justifica-se a punibilidade. No fundo, a lógica da Professora Maria
Fernanda Palma é a seguinte: o Direito Penal não tem como fim último reestabelecer
a paz pública, mas antes proteger os bens jurídicos. Não podemos punir se não
conseguirmos identificar nenhuma afectação do bem jurídico, mesmo que seja verdade
que o meio não era manifestamente inapto. Depois disto, a Professora coloca em prática
esta ideia através da classificação da tentativa como relativamente impossível ou
absolutamente impossível:
o A tentativa é absolutamente impossível quando a consumação do crime não é
possível nem neste mundo, nem em qualquer outro. Se a tentativa é
absolutamente impossível, não pode ser punida, mesmo que preencha o art 23º,
nº 3. EXEMPLO: dar substância abortiva a uma mulher que não está grávida. Esta
mulher não vai abortar nem neste mundo, nem em mundo nenhum.
o A tentativa é relativamente impossível quando apenas é impossível no nosso
mundo por uma mera casualidade (poderia ter funcionado num mundo
alternativo). Se a tentativa é relativamente impossível, então ainda há afectação
do bem jurídico, pelo que se justifica a punibilidade. EXEMPLO: disparar sem
balas contra alguém. O não ter balas é uma circunstância casual – num mundo
alternativo a pistola teria balas – é relativamente impossível: o bem jurídico é
ainda assim colocado numa posição de insegurança, aos olhos de um observador
externo.
Outra articulação a fazer é a que possibilita a distinção entre tentativa impossível e
crime putativo: quem parte, erroneamente, no seu comportamento, de circunstâncias
que, se fossem verdadeiras, preencheriam um tipo de crime, comete uma tentativa
impossível; quem, diferentemente, representa correctamente todos os elementos
constitutivos do facto, mas aceita erroneamente que eles integram um tipo de crime

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3º ano, Turma A
Patrícia Carneiro da Silva

comete um crime putativo. EXEMPLOS: o agente A pratica actos sexuais consentidos


com B, que julga ter 13 anos, quando na verdade tem 15 – há tentativa impossível do
crime de abuso sexual de crianças. // A pratica actos sexuais consentidos com B, que
sabe que tem 15 anos, mas está convencido que a prática desses actos com jovens de
15 anos ainda consubstancia abuso sexual de crianças – crime putativo.
O crime putativo não é punível, nem poderia sê-lo – faltaria qualquer perigo para o bem
jurídico. No entanto, há casos em que a distinção entre estas duas figuras se torna mais
dúbia. Desde logo, casos em que o dolo do tipo exige que o agente tenha conhecimento
do significado essencialmente correspondente à valoração jurídica de um certo
elemento típico ou, inclusivamente, de critérios jurídicos. Um conjunto de exemplos é
apresentado por Roxin:
o Erro sobre o carácter alheio da coisa em certos crimes patrimoniais
o Erro sobre o prejuízo patrimonial no crime de burla
o Erro sobre a competência do funcionário
o Erro sobre o facto prévio no favorecimento pessoal ou real ou no
branqueamento de capitais
o Erro sobre deveres fiscais
Relativamente à maioria destes casos, a Doutrina fala de erro inverso de subsunção,
dando a entender que, neles, a convicção da punibilidade do facto se fundamenta
numa subsunção errónea de um certo comportamento num tipo legal de crime que,
na verdade, não intervém no caso.
Pode haver casos de tentativa impossível em função do autor. Estes são casos em que
o agente da tentativa pensa, erroneamente, que possui uma especial qualificação. É o
caso de alguém que, não sendo funcionário por força da nulidade do processo de
nomeação, mas supondo-se como tal, preenche com a sua conduta qualquer crime
próprio da categoria dos funcionários.
Há situações nas quais a Doutrina afirma a inadmissibilidade da existência de tentativa.
São, desde logo, os casos de crimes de mera actividade. No entanto, o Professor
Figueiredo Dias entende que a figura da tentativa é perfeitamente coadunável com
estes crimes, não precisando sequer de tratamento especial – continuamos a ter
tentativa sempre que a consumação não se verifica logo através da própria actividade,
mas exige ainda um certo lapso de tempo.

5 – Desistência voluntária da tentativa


A tentativa e a respectiva desistência não podem ser autonomizadas, sob pena de se
perder todo o esforço rumo ao fundamento da impunidade da desistência. Note-se,
contudo, que o relevante é a desistência voluntária, pois que só essa releva para este
tema: a voluntariedade da desistência não é mero requisito, mas antes a verdadeira
ratio do instituto.
Para que se aplique o art 24º CP, é exigido que a consumação não se dê e que tal facto
se deva ao próprio agente. Isto gera a problemática de distinção entre tentativa
acabada e inacabada. Se o agente, com a sua actuação, não criou ainda todas as
condições indispensáveis àquela consumação – tentativa inacabada – basta-lhe que
interrompa ou abandone a realização típica, para que se possa falar em desistência.

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3º ano, Turma A
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Diferentemente, se ele já criou todas as condições da realização típica integral, então


é necessário que tenha uma intervenção activa, destinada efectivamente a impedir a
consumação da realização em curso.
Poderia daqui, portanto, retirar-se que só o estado objectivo da situação pode fazer a
distinção entre tentativa acabada e inacabada. No entanto, a Doutrina entende hoje,
quase unanimemente, que é necessário recorrer às representações do agente sobre o
estádio alcançado da realização do facto, apenas com essas sendo possível determinar
se aquele fez já tudo o que seria necessário para a realização integral do facto e toma
por isso a sua verificação como possível. É então inevitável a introdução de certos
elementos subjectivos. Por exemplo, há tentativa inacabada se o agente, no momento
em que abandona o facto, parte de que o resultado não se verificará – A pensa, ao
abandonar a vítima, que o aperto do pescoço a que a submeteu não foi suficiente para
lhe causar a morte que inicialmente intentava. Note-se que pode ser considerada
tentativa acabada a situação em que o agente, que começou por pensar que a sua
actuação anterior não poderia produzir o resultado, chega depois à conclusão de que
esse será possivelmente o caso.
Mais difíceis são os casos em que, segundo as representações do agente, se tornam
necessários vários actos ou a execução de meios diversos para a realização típica
completa, mas o agente não os realiza e o crime não chega a realizar-se. Nesses casos,
cumpre saber se a tentativa é acabada ou inacabada:
o Teoria do acto individualizado – considera a tentativa acabada com cada acto
de execução isolado que, segundo a representação do agente, é considerado
idóneo para a consumação. Assim, o elemento decisivo é aquilo que o agente
considerou necessário ao início da execução, sem ser relevante saber se ele
estava decidido à sua repetição ou se se encontrava em condições de continuar.
o Teoria da consideração conjunta – devendo a execução ser englobada num
todo, é decisiva a representação do agente no momento do último acto de
execução. A tentativa considera-se acabada quando o agente, ao tempo do
último acto de execução, considera possível a verificação da consumação. Até
esse momento, então, é relevante a desistência do autor. É a Doutrina que se
deve adoptar.
Já relativamente à tentativa frustrada, casos em que o agente renuncia à execução do
facto porque crê que a consumação já não pode ser alcançada – seja por razões
objectivas (o agente dá-se conta, já em fase de execução, que a vítima que se propõe a
roubar não leva consigo quaisquer valores) – seja por razões subjectivas (o autor de uma
tentativa de violação não consegue, por incapacidade de erecção, consumar o crime).
Em qualquer destas situações, uma vez que o agente se apercebeu de que falhou e de
que a realização típica intentada não é possível, ele não chega verdadeiramente a
desistir. O Professor Figueiredo Dias entende que, nestes casos, o fracasso da tentativa
não deve ser tido em conta autonomamente, pelo que será sempre decisiva a distinção
entre os casos em que o agente desiste voluntariamente e aqueles em que uma
desistência voluntária não existe ou não é possível – a tentativa fracassada não deve
ser autonomizada.

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3º ano, Turma A
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DESISTÊNCIA DA TENTATIVA INACABADA


São casos em que a lei exige que o agente deixe de prosseguir a execução do crime,
que ele a abandone. Há necessidade de verificação de uma situação objectiva – é
necessário que o agente deixe de prosseguir a execução e que a consumação não
sobrevenha – e de verificação de uma situação subjectiva – é decisivo o ponto de vista
do agente de que se abandonar a execução, a consumação não terá lugar.
Existem casos de dúvida, que cumpre esclarecer. São desde logo os casos em que o
agente renuncia à prática de actos ulteriores porque ele, verdadeira ou
presumidamente, já alcançou a finalidade da acção. É o caso da vítima de um processo
de violação que engana o violador e o leva a crer que consente na cópula, fazendo com
que este renuncie ao uso da força.
A desistência da tentativa pretensamente inacabada é irrelevante (a não ser para
efeitos da medida da pena): se A administra a B uma dose de veneno que acha
erroneamente não ser letal e abandona depois o seu projecto criminoso, mas a vítima
vem a falecer, não há apenas espaço para punição por negligência. O mesmo com a
tentativa acabada quando, apesar dos melhores esforços do agente para impedir a
consumação, esta se verifica: se o resultado não é imputável à conduta, o agente é
punível por tentativa.

DESISTÊNCIA DA TENTATIVA ACABADA


Uma vez que, nestes casos, a execução do delito foi levada ao limite, não pode bastar
o abandono do plano – exige-se que o agente, voluntariamente, impeça a consumação,
através de uma actividade própria (e eventualmente com a ajuda de terceiros). Desde
logo, é exigido que o agente tenha posto em movimento uma nova cadeia causal,
dirigida agora a impedir a consumação do facto, esperando que esta não venha a ter
lugar. Opta-se pela teoria da criação de oportunidades (de salvação do bem jurídico),
em detrimento da teoria da contribuição óptima – não se exige que o agente se tenha
feito valer dos meios óptimos para afastar a consumação, ou tenha usado todos os
meios que se encontravam à sua disposição. O que se exige, sim, é que a não verificação
da consumação possa ser imputada a uma actividade do agente, que dirige a sua
conduta a esse fim de forma idónea.
Se a consumação é impedida por facto não imputável à conduta do agente, segundo a
lei vigente, o agente não será punível se se tiver esforçado seriamente para evitar a
consumação (art 24º, nº 2 CP). Serão sérios os esforços quando o agente intenta levar
a cabo tudo aquilo que subjectivamente pensa que teria de fazer ou poderia fazer para
evitar a consumação.

DESISTÊNCIA EM CASO DE CONSUMAÇÃO


A nossa lei alarga o privilégio da desistência, também, a casos em que sobrevém a
consumação formal, mas não a material – casos em que ainda não teve lugar o
resultado atípico (resultado não compreendido no tipo de crime), mas que a lei teve em
vista evitar e que, por isso, integra o sentido da realização completa do conteúdo do
ilícito tido em vista pelo legislador. Nestes casos, é necessário que o agente impeça a
verificação do resultado atípico, mas ainda relevante para caracterização do conteúdo

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material do ilícito – que o agente impeça a consumação material. O regime a que ficam
submetidos este tipo de casos é em tudo idêntico ao que cabe na desistência da
tentativa acabada (art 24º, nº 2 CP).

DESISTÊNCIA EM CASOS ESPECIAIS


Cumpre, desde logo, analisar os casos de desistência parcial: será relevante que o
agente, já na fase de execução, renuncie voluntariamente à consumação de uma
circunstância qualificadora que consome o delito fundamental? A Doutrina dominante
tende a considerar relevante a desistência, até que se dê a consumação do delito
fundamental. EXEMPLO: A, quando tenta a realização de um furto qualificado, traz
consigo uma arma – art 204º, nº 2, al f) CP – mas, tomado de um sentimento inesperado,
decide não a usar e manda a arma fora, levando todavia a cabo o furto intencionado.
Já quanto à desistência nos crimes agravados pelo resultado, a questão é a de saber se
é ou não relevante a desistência voluntária do crime agravado pelo resultado quando
a produção do evento agravante já teve lugar, mas a realização do crime fundamental
ainda não passou o estádio da tentativa. EXEMPLO: B decide praticar um roubo usando
uma arma de fogo que, em todo o caso, se propõe a disparar unicamente, em caso de
resistência, para assustar C (vítima), disparando para o ar ou para o chão. A vítima resiste
e, por negligência, a arma de B dispara e mata C. Face a isto, B abandona o processo de
subtracção. Entende o Professor Figueiredo Dias que, se o perigo típico, ligado à
conduta tentada, já se actualizou no evento agravante, não é justo privilegiar o
comportamento unitário com a relevância da desistência.

NOTA: não é voluntária a desistência da tentativa quando o agente, determinado a


assaltar um banco, desiste porque vê que este tem demasiada segurança, como
também não é voluntária a desistência da tentativa quando A quer matar B, mas
desiste por B se defender melhor do que A esperava.

VII – COMPARTICIPAÇÃO
Em sede de comparticipação, cumpre estudar a responsabilidade pela realização de
factos típicos e ilícitos nos quais se identificam uma pluralidade de agentes, sendo
estes autores ou não. A comparticipação apenas existe ex ante facto, ou, quando
muito, no momento da sua prática. Significa isto que não é um caso de comparticipação
aquele em que uma pessoa se junta para encobrir o crime já praticado por outra
(situação que se passa ex post facto) – o encobrimento é um crime autónomo.
Existem três figuras de comparticipação: autoria, instigação e cumplicidade. Os
autores são as figuras centrais do acontecimento criminoso, sendo por isso o “centro
pessoal do ilícito típico”. Já o cúmplice representa uma figura lateral, secundária ou de
segunda linha, na integral realização do ilícito típico. Este não realiza o tipo de ilícito,
mas participa na realização levada a cabo por outrem. Existe também o instigador,
sendo esse aquele que determina dolosamente outrem à prática do facto. Por fim, há
que referir o papel do co-autor, o agente que pratica o facto em conjunto com outro(s),
tendo para isso havido uma decisão conjunta e participação na execução.

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1 – Autoria
O autor pode desde logo ser autor imediato ou autor mediato:
o Autor imediato – é punível como autor quem executa o facto, por si mesmo. O
autor imediato preenche, na sua pessoa, todos os elementos do ilícito típico.
EXEMPLO: A atira B contra C. A é autor imediato, pois que B não pratica qualquer
acção.
o Autor mediato – também é punível como autor aquele que executa o facto por
intermédio de outrem. Identificam-se as figuras do homem de trás (autor
mediato) e do homem da frente (executor, intermediário ou instrumento).
Roxin fala, aqui, de uma situação de domínio da vontade, que pode desde logo
ocorrer por três vias.
• Domínio da vontade por coação – homem de trás coage o homem da
frente à prática da acção (por exemplo, A aponta uma arma à cabeça de
B, dizendo-lhe que o matará se este não matar C).
• Domínio da vontade por erro – homem de trás engana o homem da
frente, levando a que este se torne executor involuntário do seu plano
delituoso (por exemplo, A entrega a B uma caixa de explosivos, dizendo
que a caixa contém compotas e que este tem de entregar a caixa a C. C
morre ao abrir a caixa).
• Domínio da vontade nos quadros de aparelhos organizados de poder –
em se de uma organização rígida e disciplinada, alguns autores entendem
que, por vezes, os agentes que recebem ordens acabam por se tornar
meros instrumentos (por exemplo, organização policial apodera-se do
aparelho do Estado).
o Co-autoria – é co-autor aquele que tome parte directa na execução do facto
(execução conjunta), por acordo (decisão conjunta). Há um domínio colectivo
do facto, em que a actuação de cada um dos co-autores se apresenta como
momento essencial da execução do plano comum. O co-autor é punido
segundo a moldura penal prevista para o crime, como se agisse sozinho.
• Decisão conjunta – o agente apenas pratica uma parte, mas decide pela
realização da execução típica. Por exemplo, num caso de roubo de um
banco, A paralisa os clientes e empregados com uma arma (ameaça),
enquanto B retira o dinheiro dos cofres (subtracção). Para considerarmos
haver uma decisão conjunta, tem de se verificar um acordo expresso, ou
pelo menos um conjunto de acções concludentes. Mais que isso, só
existe co-autoria perante o que foi determinado em conjunto, pelo que
não responderão ambos pelo excesso de um deles (por exemplo, A e B
decidem conjuntamente matar C, mas depois B “rouba”8 a vítima. O
homicídio é levado a cabo em regime de co-autoria; o “roubo” é
imputado a B, mesmo que A, depois da apropriação, também concorde

8
EXEMPLO RETIRADO DO MANUAL DO PROF. FIGUEIREDO DIAS. NO ENTANTO: considerar que há roubo
em vez de furto, parece-me a mim, representa violação do princípio ne bis in idem: toda a violência que
faria do roubo um crime de roubo é já contemplada no crime de homicídio, pelo que parece haver aqui
uma dupla valoração da violência.

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3º ano, Turma A
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com ela). Este acordo que se exige tem de se verificar antes ou durante
a prática do facto, e nunca depois da sua consumação, sob pena de
estarmos perante co-autoria sucessiva. Para o Professor Figueiredo Dias,
o co-autor sucessivo só pode ser responsabilizado pelo ilícito cometido
após a sua adesão ao acordo (diverge da doutrina alemã, que entende
que este seria punido por todo o ilícito praticado, desde que o acordo
aconteceu).
• Execução conjunta do facto – o art 26º, nº 3 CP exige que o co-autor
tome parte directa na execução. A execução parte de um critério do
domínio do facto, que aqui se combina com uma exigência de divisão de
tarefas. O que se exige é que cada um dos agentes contribua com
actuações que, em conjunto, preencham o tipo legal de crime. Esta
repartição tem de se manter no estádio de execução, pelo que, entende
Figueiredo Dias, deve ser recusada a classificação de co-autor para o
agente que apenas participa na fase preparatória. Nesse caso, apenas
poderemos ter instigação ou cumplicidade.

Pode ser elaborada uma lista de casos em que tipicamente se considera haver autoria
mediata:
I. O INSTRUMENTO (HOMEM DA FRENTE) ACTUA ATIPICAMENTE
o Por intervir quanto a ele uma causa de exclusão da tipicidade – o instrumento
pratica uma acção que, se cometida pelo homem de trás, constituiria um ilícito
típico, mas cometida por aquele, surge como atípica.
o Por ser a própria vítima – a atipicidade provém do facto de o instrumento ser a
própria vítima, não sendo a acção típica quando praticada por ela. EXEMPLO: A
convence B de que a eletricidade está desligada e de que este pode fazer
reparações. Quanto B começa, sofre um choque elétrico e morre.
o Por actuar sem dolo do tipo – o instrumento pratica uma acção que preenche o
tipo objectivo de ilícito, mas não o tipo subjectivo, por lhe faltar o dolo (há erro
sobre a factualidade típica). EXEMPLO: A prepara uma chávena de chá
envenenado e ordena B que se encarregue de a servir a C. B desconhece o plano.
O Professor Figueiredo Dias entende que a situação de negligência consciente
do homem da frente deve ser resolvida de igual maneira. EXEMPLO: caso
Lacman modificado – A e B fazem uma aposta para saber se A consegue acertar
na maçã que C segura na mão. A actua com negligência consciente (não se
conformando com a possibilidade de acertar em C), mas B quer que A acerte em
C, o que acaba por acontecer.

II. O INSTRUMENTO ACTUA LICITAMENTE


São casos em que o intermediário preenche, com a sua acção, o tipo incriminador, mas
actua licitamente, porque actua justificadamente. Se o homem de trás tem o domínio
do conhecimento e da vontade do executor, terá de ser considerado autor mediato.
Igual será a solução em que o homem de trás provoca uma situação de legítima defesa
ou de estado de necessidade justificante.

41
3º ano, Turma A
Patrícia Carneiro da Silva

III. O INSTRUMENTO ACTUA SEM CULPA


Representa o conjunto de casos em que o homem de trás explora situações em que o
instrumento pratica o ilícito tipicamente doloso, mas não pode, relativamente a ele,
ser afirmada culpa dolosa. O homem de trás deve, então, ser punido como autor
mediato. Se, porém, o executor for plenamente responsável, poderá existir instigação
ou, eventualmente, cumplicidade.
o Por falta de imputabilidade – são situações em que o instrumento é inimputável,
em virtude da idade ou de anomalia mental. Sendo aí quebradas as conexões
objectivas entre o agente e o facto, não pode entender-se que o homem da
frente possua o domínio do facto, ainda que este actue com dolo do tipo.
EXEMPLO: A convence B, que sofre de anomalia psíquica, a matar C.
NOTA – ESTES SÃO CASOS DIVERSOS DOS CASOS DE IMPUTABILIDADE
DIMINUÍDA: casos em que é duvidosa ou apenas parcial a
compreensibilidade das conexões do agente material do facto. A decisão
sobre a verificação da autoria mediata depende de cada caso
o Por actuar sem consciência do ilícito – homem da frente age com falta de
consciência do ilícito não censurável, intencionalmente criado pelo homem de
trás. Diferente pode ser a situação em que o homem da frente actua sem
consciência do ilícito censurável. Neste caso, diz o Professor Figueiredo Dias que
não há uma total desresponsabilização do homem da frente, atingindo-se um
ponto em que este não é considerado um mero instrumento e o homem de trás
não é considerado autor mediato.
o Por actuar em estado de necessidade desculpante – o homem da frente,
enquanto autor material, actua nos termos do ar 35º CP. Note-se, contudo, que
se o homem de trás nada faz para criar esse estado de necessidade desculpante
(estando este já constituído, determinando apenas, com ameaças ou conselhos,
o homem da frente a praticar o facto (sem qualquer transformação da situação
existente em desfavor da vítima), apenas poderemos falar em instigação ou
cumplicidade.

IV. AO INSTRUMENTO FALTA A QUALIFICAÇÃO OU A INTENÇÃO TIPICAMENTE


REQUERIDAS
É o caso particular em que ao executor falta a qualificação ou a especial intenção
tipicamente requeridas para fundamentar ou agravamento da responsabilidade.
EXEMPLO: falta ao agente a qualidade de “funcionário” para efeitos dos arts 375º ou
380º CP. Na Doutrina nacional, este conjunto de casos tem ainda assim que ter em
conta o disposto no art 28º CP (comunicabilidade ou incomunicabilidade das
circunstâncias).

V. O INSTRUMENTO ACTUA DE FORMA PLENAMENTE RESPONSÁVEL


Diz-nos o Professor Figueiredo Dias que a autoria mediata só ocorre quando o homem
da frente realiza o tipo de ilícito de forma não responsável. Fora isso, apenas se poderá
falar em instigação ou cumplicidade.

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3º ano, Turma A
Patrícia Carneiro da Silva

“Não existe autor atrás de autor, o que decorre do princípio da autorresponsabilidade”


o Casos ditos de erro sobre o sentido concreto da acção – casos em que o homem
da frente conhece todas as circunstâncias necessárias à efectivação da sua
responsabilidade dolosa pelo facto que pratica, mas erra sobre outras
circunstâncias, também relevantes juridicamente, por erro provocado pelo
homem de trás. EXEMPLO: agente sabe que irá matar alguém (preenchendo o
crime de homicídio), mas o homem de trás convence-o de que a vítima é alguém
que este odeia (erro sobre a identidade). Nestes casos, não há exclusão do dolo
do tipo – a lei pune quem matou alguém, independentemente da identidade da
vítima, pelo que não podemos falar em autoria mediata, mas apenas em
instigação ou cumplicidade.

2 – Instigação
Será instigador aquele que, dolosamente, determinar outra pessoa à prática do facto.
É esse o sentido do art 26º CP. Para que se seja considerado instigador, então, exige-se
ao agente que crie no executor a decisão de atentar contra o bem jurídico. A Escola de
Coimbra entende que a instigação é uma forma de autoria, dada a intensidade do
domínio da decisão que tem o instigador. O mesmo tende a entender o Professor
Figueiredo Dias. Já a Professora Maria Fernanda Palma, por contrário, defende que a
instigação é uma forma de participação, exigindo, desta feira, a acessoriedade.
Nos casos de instigação, acaba por ser exigida a verificação de uma situação de duplo
dolo – dolo do instigador deve referir-se à determinação do instigado (dolo na
determinação) e ao facto cometido por este (dolo do instigado). Pode também haver
situações de instigação em cadeia – casos em que a determinação é o resultado da
atuação em cadeia de vários instigadores. Apenas serão instigadores os que tiverem
domínio na decisão, sendo cúmplices todos os restantes.
Se o instigado for além do dolo do instigador, teremos um caso de excessus mandati,
respondendo o instigador apenas pelo seu dolo. Se, por contrário, a actuação do
instigado ficar aquém do dolo do instigador, então o instigador responderá pelo facto
efectivamente cometido – a tentativa falhada de instigação não é punida.

3 – Cumplicidade
Encontra-se regulada no art 27º CP, tratando de situações em que há uma
acessoriedade de participação – há uma colaboração do autor no facto, pelo que a sua
punibilidade supõe a existência de um facto principal cometido pelo autor. O cúmplice
não pratica a acção típica, pelo que o seu comportamento não é abrangido pela parte
especial do Código Penal – o art 27º CP representa uma extensão da punibilidade a
formas de comportamento que, sem ele, não seriam puníveis.
A cumplicidade pode dar-se por auxílio material – bastando que o cúmplice favoreça o
autor – ou por auxílio moral – por exemplo, auxílio psíquico. O que acontece se a
prestação material com que o cúmplice favorece o autor não for utilizada? Poderá
considerar-se que há uma mera tentativa de cumplicidade, que não é punível. No
entanto, também poderá ainda estar em causa um verdadeiro caso de cumplicidade,
pois que o contributo do cúmplice não precisa de ser causal para o resultado, bastando
43
3º ano, Turma A
Patrícia Carneiro da Silva

que o acto em causa aumente as hipóteses de realização típica por parte do autor.
Mais que isso, mesmo que não se considere já haver auxílio material, ainda há espaço
para que haja auxílio moral – bastará, para isso, que a prestação concedida pelo
cúmplice traga ao autor uma sensação de maior segurança no sucesso da prática do
facto.
A punição da cumplicidade funda-se na actuação do participante sobre a pessoa do
autor e na colaboração do participante no facto do autor (arts 72º e 73º CP).

4 – A acessoriedade na participação
Estabelecido que esteja que a actuação do agente é acessória e dependente
relativamente ao facto principal, cumpre fazer à acessoriedade exigências adicionais:
o Acessoriedade qualitativa ou interna – corresponde a uma medida mínima de
elementos constitutivos do facto do autor.
• Acessoriedade mínima – bastaria a verificação do facto típico – hoje
rejeitadas.
• Acessoriedade extrema – seria necessária a verificação de um facto
típico, ilícito, culposo e punível (hoje rejeitada).
• Discussão atual: entre a acessoriedade rigorosa (exige um facto típico,
ilícito e culposo) e a acessoriedade limitada (facto típico, ilícito).
Crítica à acessoriedade rigorosa: deixou de ter sentido com a
análise do tipo subjetivo que já implica a verificação do dolo;
ainda, não se coaduna com a referência, no art. 29º, a
independentemente de culpa.
ACESSORIEDADE LIMITADA: é hoje a tese dominantemente
aceite – cumplicidade como participação no ilícito típico do autor.
O Professor Figueiredo Dias propõe a teoria da acessoriedade
limitada modificada: a punibilidade, em princípio, não é critério,
no entanto, há situações em que têm necessariamente de ser
consideradas as condições objetivas de punibilidade ou casas
materiais e exclusão da pena (art. 227º/1 p.e.).
o Acessoriedade quantitativa ou externa: corresponde a uma exigência de que o
facto principal alcance um certo estádio de realização. Tem de existir execução
ou começo de execução: só há participação no facto de outrem se esse facto
começar a ser praticado (ideia de perigo dos bens jurídicos – art. 22º, tentativa).

5 – Casos dúbios em matéria de comparticipação - RELEVANTE


→ Roubo conjunto: A é meramente condutor da viatura
Cumplicidade ou co-autoria? A Professora Maria Fernanda Palma segue, como critério
de aferição, a essencialidade da conduta do agente para a prática do facto típico
(perceber, no fundo, se tem o domínio funcional do facto). Em regra, será considerado
cúmplice.

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3º ano, Turma A
Patrícia Carneiro da Silva

Exemplo de co-autoria – o transporte não é uma mera carrinha, mas um


helicóptero e o crime será praticado numa ilha: carácter essencial do piloto que
o leva a considerar como verdadeiro co-autor.

→ Roubo conjunto: A é apenas aquele que vigia a porta


Cumplicidade ou co-autoria? A Professora Maria Fernanda Palma segue, como critério
de aferição, a essencialidade da conduta do agente para a prática do facto típico
(perceber, no fundo, se tem o domínio funcional do facto). Em regra, será considerado
cúmplice.
Jurisprudência: considera que há co-autoria, maioritariamente fundamentando-
se em razões de prevenção geral.
Maria Fernanda Palma: só há co-autoria quando for essencial para a execução
do plano. Essencialidade – sem ele o plano cai por terra.
Helena Morão: só será justificável em co-autor em que a vigilância for um ato de
execução.

→ Co-autoria alternativa: A e B combinam matar C sabendo que, no caminho para


casa, C tanto pode seguir pela rua X como pela rua Y. A aguarda C na rua X. B aguarda
C na rua Y. Ambos têm uma arma e estão prontos a matar mal avistem C. C segue pela
rua Y e é morto por B
Helena Morão: no momento do início da execução só há um agente a iniciar a
execução; só o agente que efetivamente lhe dará o tiro é que poderá ser
considerado autor. O critério é a prática de atos de execução (colocação em
perigo do bem jurídico da vítima, pois que se prossegue que a eles se segue a
execução do ilícito típico). Aquele que tem a “sorte” de nada fazer não é punido,
pois que aquilo que fez foi apenas um ato preparatório (não punível). No limite
ou é instigador ou é cúmplice moral.
Roxin: co-autoria.
Problema: punimos alguém que não chega a fazer nada.

→ A contrata B para matar C. B confunde C e D e Mata D.


Quanto ao homem da frente (instigado): erro sobre o objeto da ação, que não exclui o
dolo do tipo (irrelevância). Já quanto ao homem de trás (instigador): cumpre perceber
se estamos perante um erro sobre o objeto da ação (irrelevante) ou um erro na
execução (aberratio ictus).
De acordo com a Professora Maria Fernanda Palma, o critério de distinção é a
existência, ou não, de tentativa, ou seja, uma vez que C não chega a estar em
perigo, na verdade, parece que não chega a haver tentativa, o que significa que
estamos perante um erro sobre o objeto, irrelevante pra efeitos de
responsabilidade. Se D chega a estar em perigo (por exemplo, por estar perto de
D), já se pode considerar inicio de execução, logo, aberratio ictus (tentativa +
homicídio consumado negligente).
Doutrina Alemã: aplica sempre aberratio ictus.

45
3º ano, Turma A
Patrícia Carneiro da Silva

→ A e B contratam C para apenas delinear um plano de assalto


A Professora Helena Morão diz que ser executor significa praticar factos de execução.
Ao dar as ordens, está a preencher um ato de execução – é expectável que lhes sigam
os atos de execução das pessoas que estão a praticar o assalto.
Se não dá ordens/dirige o assalto, limitando-se a fazer o plano, é apenas
cúmplice.

→ Caso Casa de Papel: A e B contratam C para delinear um plano de assalto e ordenar


todo o processo
Aquele que dirige tem o domínio funcional do facto – é esta a justificação de
Roxin para ser coautor.
Para Helena Morão e Figueiredo Dias, ser executor significa praticar factos de execução.
Ao dar as ordens, está a preencher um ato de execução – é expectável que lhes sigam
os atos de execução das pessoas que estão a praticar o assalto. Defendem ser, nestes
termos, co-autor.

→ A paga a B para bater em C. No entanto, as pancadas que B dá resultam na morte


de C.
É instigador de um facto negligente ou é autor material de um facto negligente?
Para a Professora Maria Fernanda Palma, neste caso, é autor de um crime
negligente, na medida em que a sua ordem criou aquele risco potencial e
intenso; há imputação objetiva direta entre o comportamento psíquico e o
resultado.
Não previu, mas poderia ser previsível: se se concluir pelo dolo eventual será
instigador; se se concluir pela negligência consciente será autor.

→ Ministro convence o motorista a ir, na A1, a 250 km/h.


Ministro: instigador (há dolo de instigação, mas não há dolo de prática do crime:
tão somente negligência)
Motorista: autor material (dolo)

→ Caso Rolling Stones: A e B atiram à vez uma pedra para a base de uma colina. Uma
das pedras atinge uma pessoa e esta vem a morrer.
Helena Morão: co-autoria negligente.
Maria Fernanda Palma: como há combinação entre os dois, estamos perante um
cenário de imputação objetiva. É um caso de autoria paralela negligente.
Se não houver combinação: causas paralelas.

Como se faz a imputação objetiva ao cúmplice ou instigador? Não se trata tão


somente de uma relação entre o facto típico do agente e o resultado: é uma
relação que passa pela intervenção de terceiros.
Cumpre averiguar o nexo entre o comportamento do participante e o resultado
típico e a relação prévia entre o instigador e o autor material. Há duplo
nexo de imputação → nexo de determinação (comportamento decisivo) + nexo
de resultado (essa determinação à prática do facto expressou-se no
facto típico). 46
3º ano, Turma A
Patrícia Carneiro da Silva

VIII – CONCURSO DE NORMAS OU DE CRIMES


É frequente existirem situações em que cumpre decidir sobre uma pluralidade de
crimes cometidos pelo menos agente, o que levanta a relevante questão do concurso
de crimes. As bases normativas do concurso são o princípio ne bis in idem (art 29º, nº
5 CRP), o art 77º CP (que fixa as penas conjuntas de cada crime) e o art 30º CP.
O art 30º CP consagra dois tipos de concurso:
o Concurso heterogéneo – em que se atende à unidade ou pluralidade de tipos
legais de crimes violados.
o Concurso homogéneo – atende-se à unidade ou pluralidade de acções
praticadas pelo agente.

PERSPECTIVA CLÁSSICA – CAVALEIRO FERREIRA


No concurso efectivo, é-se punido por tantos crimes quanto aqueles que se praticar.
No concurso aparente, diferentemente, parece haver uma situação de concurso, mas
só um tipo de crime é preenchido e percebe-se qual é através da relação lógica entre
as normas. Nestas circunstâncias, não se exige sequer um olhar ao caso concreto9:
basta olhar para as normas em abstracto e para a relação lógica que se estabelece entre
elas.
Existem três tipos de relações entre as normas:
o Especialidade – uma das leis repete/incorpora todos os elementos constitutivos
do outro tipo, mas caracteriza o facto através de elementos especializadores.
Aplica-se a norma especial, pois que esta assume todos os elementos da norma
geral, mais um. Note-se que só há especialidade se o tipo legal prevalecente tiver
sido consumado – não há especialidade quando há tentativa do tipo especial e
consumação do tipo geral.

NORMA GERAL | NORMA ESPECIAL

o Subsidiariedade – um tipo legal de crime é aplicado de forma auxiliar ou


subsidiária a outro. Nestes casos, aplica-se a norma mais grave. A
subsidiariedade pode ser:
• Expressa – o teor literal de um dos tipos legais restringe expressamente
a sua aplicação à inexistência de um outro tipo legal que comine pena
mais grave.
• Implícita/tácita – há normas que se interseccionam, como o caso da
norma que prevê o crime de roube a da norma que prevê o crime de
ofensa à integridade física. Existindo um caso que convoca os dois crimes,
há uma zona de intercepção, resolvendo-se o caso através da aplicação
do crime mais gravoso.

9
Excepto no caso da consunção, o que fundamenta a crítica feita a esta teoria pelo Professor Figueiredo
Dias

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3º ano, Turma A
Patrícia Carneiro da Silva

Zona de intercepção: aplica-se o


mais gravoso

o Consunção – casos em que são convocadas duas normas, mas, tendo em conta
as particularidades, percebe-se que uma delas consome todo o desvalor. Por
exemplo, A dá um tiro a B, que lhe acerta no peito: há crime de homicídio, mas
há também o dano de ter destruído a camisola. Nestes casos, entende.se que o
crime de homicídio consome todo o desvalor, pelo que o agente apenas é punido
por via desse.

PERSPECTIVA PROFESSOR FIGUEIREDO DIAS


A principal crítica que o Professor faz à teoria clássica prende-se com a consunção. Para
o Professor Figueiredo Dias, a consunção difere da subsidiariedade e da especialidade
a um nível em que deixa de ser possível considerá-las em conjunto, desde logo porque,
na consunção, exige-se olhar ao caso concreto: as relações de especialidade e de
subsidiariedade são relações independentes do caso, pelo que basta olhar para as
normas em causa e determinar a existência ou não dessas relações. Já no caso da
consunção, a sua existência depende sempre das circunstâncias do caso concreto.
Assim sendo, o Professor sistematiza a matéria do concurso de modo diverso:
o Concurso de normas – relações de especialidade e subsidiariedade
• Especialidade – idêntica à perspectiva clássica
• Subsidiariedade – o Professor entende que temos várias barreiras de
protecção do bem jurídico, em que o agente não é punido por
ultrapassar todas elas, mas antes pela violação do bem jurídico
propriamente dito. O bem jurídico é “muralhado” pelo legislador, que o
protege através dessas várias barreiras. A primeira barreira são os crimes
de perigo concreto e a segunda é a dos crimes de dano. Não se pune por
atravessar essas duas barreiras, mas apenas por passar a mais grave: a
mais próxima do bem jurídico.
o Concurso de crimes
• Efectivo (puro ou próprio) – art 30º + 77º e ss CP. Existe quando se
encontra mais do que um sentido de desvalor autónomo e próprio. O
agente é punido por quantos crimes ele praticar.
• Aparente (impuro ou impróprio) – consunção. Há uma absoluta
prevalência de um crime sobre o outro, no comportamento global.

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