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Foto: Gisele Weiss Almeida | Lia Campos Chagas , Valentina Virgínio Silva, Théo Almeida Santos | Escola Pindorama
Parece-nos que tudo sobre a alimentação já foi com o resíduo que estava na panela. Na mesma
dito e, parece-nos óbvio que isso tivesse acontecido. comunidade, quando apresentei às mães uma ordem
Ao nascer o aparato que nos dá a possibilidade de possível para a apresentação dos legumes, um grupo
ingerir alimento já está disponível. Nossas papilas se olhava com total expressão de riso. A abóbora
gustativas começaram a desenvolver-se no segundo naquela comunidade era, essencialmente, uma
mês da gestação, e no oitavo mês já havíamos comida para porcos.
construído alguns hábitos alimentares que nos Geograficamente e historicamente, a comida
acompanharão pela vida afora a partir dos hábitos carrega significados construídos na coletividade. Há
de nossa mãe. Os hábitos de nossa mãe derivam das uma variedade de alimentos típicos que representam
possibilidades Culturais traduzidas por aspectos uma região. Há alimentos relacionados a rituais
sociais, econômicos e geográficos de sua própria religiosos e alimentos que representam instituições.
existência, no momento da gestação. Há também alimentos que representam modificações
O acesso à comida poderia ser farto ou limitado. políticas, buscas de território, escravidão e guerra. Há
Não só por questões financeiras, mas também, por alimentos que impulsionam o comércio. Alimentos
questões que se conectam ao conhecimento. Em uma que nos nutrem e que nos matam.
das comunidades em que trabalhei, tinha a atribuição Embora não pensemos nestas questões quando
de preparar alguns alimentos com educadores, com comemos, há em nosso inconsciente marcas
as cozinheiras e com as famílias. Lembro-me de profundas que influenciam nossas escolhas
observar, logo na primeira visita a cozinha o modo de alimentares.
preparo da carne. As cozinheiras tinham muito medo
de queimar o alimento que, naquela comunidade, era Isso pode ser demonstrado quando sentimos
escasso. Então elas colocavam litros de água junto repulsa por um tipo de alimento ou, quando algum
à carne. Faziam o cozimento por muitos minutos deles nos trás memórias de infância, saudade ou
e quando percebiam que o cozimento estava ideal sentimento de culpa.
jogavam todo o caldo (na maioria das vezes de Quando pequenos ouvimos sobre como comemos,
uma carne de músculo, com grande quantidade de sobre quanto comemos e sobre o que comemos.
proteína) no ralo da pia, servindo as crianças apenas Talvez, um adulto amoroso, que nos era importante
nos ensinou a escolher algum tipo de alimento e nos e os outros substantivos que nomeiam distúrbios
fez desistir de outro. alimentares eram suficientes para explicar o
Talvez um adulto se mostrou indiferente à qualidade quadro sintomático destas crianças. Porém,
e a quantidade de alimentos que ingerimos . Talvez foram as necessidades que se impuseram a mim
um adulto importante, não com más intenções, durante a última década, que me fizeram perceber
mas com intenções baseadas em suas próprias uma infindável teia de relações que precisam
construções geracionais nos obrigou a comer mais do ser repensadas antes de se falar em “problemas
que gostaríamos ou poderíamos, nos ameaçou e até alimentares infantis”
nos castigou usando a comida. Talvez nossa família Já não aceito com tanta ingenuidade que são
brigava à mesa. Talvez riam. Talvez almoçamos esperadas e prováveis os problemas de alimentação.
juntos aos domingos. Talvez comemos em frente à Percebi a força que o resgate de algumas questões
TV ou sempre estávamos sozinhos. Talvez recebemos com os adultos com os adultos são tão importantes
um alimento preparado com cuidado, talvez um quanto apenas ensiná-los técnicas para que a criança
alimento preparado com desprezo. se alimente melhor.
Quais destas marcas desconhecidas ou Para cada queixa em relação à criança há algumas
conhecidas, conscientes ou inconscientes, nos perguntas que despertam outras possibilidades de
impedem hoje, de considerar as várias facetas reflexão aos adultos. (Tabela)
da alimentação na nossa individualidade, e Estas perguntas não têm como objetivo constranger
consequentemente na nossa sociedade? os adultos ou condenar algum comportamento
São estas as questões que coloco adiante de qualquer alimentar, mas, em geral, nos permitem oferecer
orientação em instituições ou famílias que apresentam uma possibilidade para que eles mesmos
as “queixas comuns” sobre a alimentação dos filhos. compreendam o que pode estar acontecendo com
a criança. Alguns adultos começam a traçar uma
Por anos, seguia convencida que as expressões: rede de outras perguntas a partir de uma destas
recusa dos alimentos, compulsão alimentar, perguntas, ou verdadeiras redes de histórias
comportamento anoréxico de crianças acamadas vivenciadas.
Meu filho tem alergia a leite, mas ama queijo. Não Há algum alimento considerado saudável que não lhe
consigo tirar os derivados dele. faz tão bem, mas que ainda assim você come?
Meu filho não come verduras Há algum alimento que você se nega a comer?
Dou sempre yogurte quando meu filho se nega a comer Você conhece o processo de fabricação dos alimentos
outra coisa. Não quero que ele fique com fome. que consome?
Educar a própria vontade depende de uma E quanto aos adultos, qual seria seu papel nos
motivação individual interna e subjetiva que envolve processos de alimentação das crianças?
nosso ser social, biológico e psíquico integralmente. O principal papel do adulto é escolher se vincular
Para a maioria dos adultos, é extremamente árduo à criança, deixando de lado as queixas em relação à
o controle da vontade. O que aconteceu para nos alimentação, para criar uma rede de compreensão
perdemos neste processo que deveria ser autônomo? sobre ela com a criança.
A questão é que a educação da vontade se relaciona Para isto ele precisa ser capaz de pensar, O que eu
a processos de escolher, iniciar ações motivadas por gostaria de comer se durante toda aminha vida só
curiosidade, classificar, avaliar, ouvir, experimentar, tivesse tomado leite? Uma pera ou uma laranja? Uma
perceber e perceber-se, compreender, analisar, batata ou uma batata doce? Um alimento cozido ou
concentrar-se, julgar. uma verdura crua?
Acreditamos que as escolhas alimentares Minha experiência tem demonstrado que, quanto
conscientes da criança formam-se progressivamente menor a criança, maior a conexão dela própria com
seus processos vitais.
quando lhe permitimos experiência da autoeducação
da vontade, e estas experiências não estão restritas É por este motivo, que nos diferentes programas
às escolhas alimentares. Nas situações cotidianas de alimentação que organizo junto às nutricionistas
os verbos que se relacionam a este processo estão para escolas e famílias, a máxima é: Como esse bebê
presentes. Uma criança só poderá saber se gosta se alimentou até aqui?
de um alimento quando é capaz de experimentar. No caso das crianças maiores, a partir de sabores
E a capacidade de experimentar não nasce conhecidos inserimos outros, respeitando e
necessariamente da experiência da alimentação. A fortalecendo a vontade e inserindo grupos de
capacidade de perceber a reação de um alimento alimentos em uma ordem que pode ser diferente das
no corpo só pode ser alcançada quando a criança que nos apresentam os manuais de pediatria.
é capaz de se conectar com o próprio corpo. A Cada comunidade tem disponível um tipo de
capacidade de concentrar-se no momento da alimento. Não podemos ir contra este fato, o
alimentação acompanha o desenvolvimento da importante é repensar, como adultos, nossos caminhos
concentração em outros processos de vida. alimentares para compreender, e até, (por que não?)
refazer este caminho lado a lado com as crianças.
A centralidade da brincadeira e do movimento
novamente se coloca aqui. Brincar é a principal via Para qualquer nutrição, não nos esqueçamos do amor.
para a educação da vontade. Brincar nos possibilita Leila Oliveira
fazer escolhas conscientes e analisar riscos. leilabob9@hotmail.com