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APG 9 - Febre reumática

A febre reumática é uma complicação inflamatória aguda, não supurativa da infecção faríngea por
estreptococos do grupo A, causando combinações de artrites, cardites, nódulos subcutâneos, eritema
marginado e coreia. O diagnóstico baseia-se na aplicação dos critérios modificados de Jones relacionados
com dados de história, exame e testes laboratoriais. O tratamento inclui ácido acetilsalicílico ou outros
anti-inflamatórios não esteroides (AINEs), corticoides durante cardites graves e antimicrobianos para erradicar
infecção estreptocócica residual e prevenir a reinfecção. É uma doença febril que ocorre como sequela tardia
de infecções por STREPTOCOCCUS PYOGENES. É caracterizada por múltiplas lesões inflamatórias focais
de estruturas do tecido conjuntivo, tais como as do coração, dos vasos sanguíneos e das articulações
(POLIARTRITE) e do encéfalo, e pela presença de NÓDULOS DE ASCHOFF no miocárdio e na pele.

Etiologia
Estreptococo beta-hemolítico do grupo A de Lancefield

Epidemiologia
Um primeiro episódio da febre reumática aguda (FRA) pode ocorrer em qualquer idade, mas com maior
frequência entre os 5 e os 15 anos, que são o pico de idade para faringite estreptocócica. A febre reumática
aguda é incomum antes dos 3 anos e depois dos 21 anos de idade. Mas faringite sintomática prévia só é
reconhecida em cerca de dois terços dos pacientes com febre reumática aguda.

A incidência mundial é de 19/100.000 (faixa de 5 a 51/100.000), com taxas menores (< 10/100.000) na
América do Norte e no Oeste Europeu, e taxas mais altas (> 10/100.000) na Europa Oriental, Oriente Médio,
África, Ásia, Austrália e Nova Zelândia. A frequência das crises (porcentagem de pacientes com faringite por
estreptococos do grupo A que desenvolvem febre reumática aguda) varia de < 1,0 a 3,0%. Frequências mais
elevadas de crises ocorrem com certos tipos sorológicos de proteínas dos estreptococos M e uma intensa
resposta imunitária do hospedeiro (provavelmente resultante de tendências genéticas ainda não
caracterizadas).

A prevalência da cardiopatia reumática crônica é incerta porque os critérios não são padronizados e a
necropsia não é realizada de rotina, mas estima-se que em todo o mundo haja ≥ 33 milhões de pacientes com
doença cardíaca reumática, resultando em cerca de 300.000 mortes anualmente.
Fisiopatologia
A faringite por estreptococos do grupo A (GAS) é precursora etiológica da febre reumática aguda, embora o
hospedeiro e os fatores ambientais sejam importantes. Proteínas M do estreptococos do grupo A
compartilham epítopos (locais antigênicos determinantes reconhecidos pelos anticorpos) com proteínas
localizadas nas sinoviais, na musculatura cardíaca e nas valvas cardíacas, sugerindo que o mimetismo pelo
antígenos do GAS das cepas reumatológicas contribui para artrite, cardite e lesão valvar. Os fatores de risco
genéticos do hospedeiro incluem o D8/antígeno celular 17 B e certos antígenos de histocompatibilidade
classe II. Desnutrição, superpopulação e baixas condições socioeconômicas predispõem a infecção
estreptocócica e subsequentes episódios de febre reumática.

Surpreendentemente, embora as infecções por estreptococos do grupo A tanto na faringe como em outras
áreas do corpo (estruturas da pele e dos tecidos moles, ossos ou articulações, pulmões e corrente sanguínea)
podem causar glomerulonefrite pós-estreptocócica, infecções por estreptococos do grupo A não faríngeas não
levam à febre reumática aguda. A razão dessa diferença distinta nas complicações resultantes de infecção
pelo mesmo organismo não é bem compreendida.

Articulações
A biopsia de uma amostra da sinovial revela comprometimento articular manifestado por inflamação
inespecífica, algumas vezes com pequenos focos semelhantes aos corpos de Aschoff (coleções
granulomatosas de leucócitos, miócitos e colágeno intersticial). Ao contrário dos achados cardíacos, porém,
as anormalidades das articulações não são crônicas e não deixam cicatrizes ou anomalias residuais ("a febre
reumática aguda lambe as articulações, mas morde o coração").

Coração
O comprometimento cardíaco manifesta-se por cardite, afetando o coração tipicamente de dentro para fora,
isto é, valvas e endocárdio, depois miocárdio e finalmente pericárdio. É às vezes seguido, anos a décadas
mais tarde, de cardiopatia reumática crônica, manifestada inicialmente por estenose valvular, mas também
regurgitação, arritmias e disfunção ventricular.

Nafebre reumática aguda, corpos de Aschoff aparecem frequentemente no miocárdio e em outras partes do
coração. A pericardite fibrinosa inespecífica, às vezes com derrame, ocorre principalmente em pacientes com
inflamação do endocárdio e geralmente diminui sem lesão permanente. Podem ocorrer alterações valvares
características e potencialmente danosas. A valvulite intersticial aguda pode provocar edema valvular.

Nacardiopatia reumática crônica, podem ocorrer espessamento valvar, fusão e retração ou outra destruição
das cúspides, provocando estenose ou insuficiência. Similarmente, os cordões tendinosos podem sofrer
encurtamento, espessamento ou fusão, piorando a regurgitação das valvas lesadas ou levando a regurgitação
de valvas não afetadas. A dilatação dos anéis valvares também pode provocar regurgitação.

Doença valvar reumática mais comumente envolve as valvas atrioventriculares direita e esquerda. As valvas
mitrais, aórticas, tricúspides e pulmonares, isoladamente, quase nunca são afetadas.

Na febre reumática aguda, as manifestações cardíacas mais comuns são

● Regurgitação mitral

● Pericardite

● Às vezes, regurgitação aórtica

Na cardiopatia reumática crônica, as manifestações cardíacas mais comuns são

● Estenose mitral

● Regurgitação aórtica (muitas vezes com algum grau de estenose)

● Talvez regurgitação atrioventricular direita (muitas vezes junto com estenose atrioventricular esquerda)

Pele
Os nódulos subcutâneos são indistinguíveis dos presentes na artrite idiopática juvenil (AIJ), porém a biópsia
mostra aspectos parecidos com os corpos de Aschoff. O eritema marginado difere histologicamente de outras
lesões cutâneas com aspecto macroscópico semelhante, p. ex., exantema da artrite idiopática juvenil
sistêmica, vasculite associada à imunoglobulina A (antigamente chamada de púrpura de Henoch-Schönlein),
eritema crônico migratório e eritema multiforme. Na região da derme, ocorrem infiltrados perivasculares de
neutrófilos e mononucleares.

SNC
A coreia de Sydenham, a forma de coreia que ocorre com a febre reumática aguda, manifesta-se no sistema
nervoso central com hiperperfusão e aumento do metabolismo dos gânglios da base. Demonstraram-se níveis
elevados de anticorpos antineuronais.

Manifestações clínicas
Sintomas da Febre Reumática:

1. Fase Inicial:

○ Febre

○ Edema (inchaço)

○ Dores nas articulações (especialmente nos joelhos, cotovelos e tornozelos)

2. Manifestações nas Articulações:

○ Poliartrite migratória: artrite que migra de uma articulação para outra

○ Dor intensa e sensibilidade nas articulações, desproporcionais ao edema presente

○ Pode afetar tornozelos, joelhos, cotovelos e punhos, e ocasionalmente ombros, quadris e


pequenas articulações dos pés e das mãos

3. Manifestações Cardíacas:

○ Cardite, que pode se manifestar como:

■ Dor no peito

■ Taquicardia
■ Sopros cardíacos

■ Insuficiência cardíaca, causando dispneia, náuseas, vômitos, dor no hipocôndrio direito


ou dor epigástrica, tosse seca persistente, letargia e fadiga

4. Manifestações Cutâneas:

○ Nódulos subcutâneos, frequentemente nas grandes articulações, transitórios e indolores

○ Eritema marginado, serpiginoso e geralmente no tronco e extremidades proximais

5. Manifestações no Sistema Nervoso Central (SNC):

○ Coreia de Sydenham, que inclui movimentos rápidos, irregulares e abruptos, perda do controle
motor fino, fraqueza, hipotonia e possivelmente comportamento obsessivo-compulsivo

6. Outros Sintomas:

○ Febre persistente

○ Anorexia

○ Mal-estar

○ Dor abdominal (possivelmente devido a envolvimento hepático na insuficiência cardíaca ou de


adenite mesentérica concomitante)

Recorrência:

● Episódios recorrentes podem imitar o inicial, com cardite recorrente em pacientes previamente
afetados e coreia reaparecendo em pacientes com história de coreia.

Fatores de risco
Diagnóstico
Diagnóstico da faringoamigdalite

Exames complementares para avaliação do comprometimento


cardíaco na FR
Radiografia de tórax e eletrocardiograma

Ecocardiograma

Tratamentos
Medidas gerais

● Hospitalização: (IIa-C) diante de pacientes com suspeita de FR, primeiro surto ou recorrência, a
necessidade de hospitalização varia de acordo com a gravidade da apresentação clínica. Indica-se
internação hospitalar para os casos de cardite moderada ou grave, artrite incapacitante e coreia
grave14. A hospitalização pode também ter como objetivo abreviar o tempo entre a suspeita clínica e o
diagnóstico, bem como iniciar rapidamente o tratamento. Além disso, deve ser uma oportunidade para
promover a educação do paciente e de sua família, no que se refere às informações sobre a doença e
à necessidade de adesão à profilaxia secundária. O tempo de hospitalização dependerá do controle
dos sintomas, principalmente do quadro de cardite.

● Repouso: (IIa-C) durante muitos anos, especialmente antes do surgimento da penicilina, alguns
estudos mostraram que o repouso no leito estava associado a uma redução na duração e na
intensidade da cardite, bem como na redução do tempo do surto agudo. Entretanto, até o momento,
não há evidências decorrentes de estudo randomizado que comprovem os benefícios dessa conduta.

● Controle da temperatura: quando a febre for baixa, não há necessidade de administração de


medicamentos antitérmicos. Já nos casos de febre mais alta (igual ou superior a 37,8 ºC),
recomenda-se utilizar o paracetamol, como primeira opção, ou dipirona, como segunda opção. Não é
recomendável o uso de anti-inflamatórios não esteroides, inclusive o ácido acetilsalicílico, até que se
confirme o diagnóstico de FR.

Tratamento não medicamentoso


Tratamento medicamentoso
Tratamento da artrite
O uso dos AINES apresenta bons resultados no controle da artrite, com desaparecimento entre 24 e 48 horas.
O AAS se mantém como a 1ª opção. O naproxeno é uma boa alternativa ao AAS, com a mesma eficácia,
maior facilidade posológica e melhor tolerância (I-A). As artrites reativas pós-estreptocócicas podem não
apresentar boa resposta clínica ao tratamento com AAS e naproxeno. Nesses casos, está indicado o uso da
indometacina. Os corticóides (CE) não estão indicados nos casos de artrite isolada.

Tratamento da coreia
Na coréia leve e moderada, estão indicados repouso e permanência em ambiente calmo, evitando-se
estímulos externos. Os benzodiazepínicos e fenobarbital também podem ser utilizados. O tratamento
específico está indicado apenas nas formas graves da coréia, sendo que a hospitalização poderá ser
necessária: a) haloperidol (I-B); b) ácido valproico (I-B) e c) carbamazepina (I-B). Alguns estudos mais
recentes têm mostrado a eficácia do uso de CE no tratamento sintomático da coréia (IIb-B).

Tratamento da cardite
● Controle do processo inflamatório

○ Indica-se o uso de CE nos casos de cardite moderada e grave (I-B).


○ O esquema preconizado é com prednisona, via oral (pode-se usar via EV na impossibilidade de
uso oral, em doses equivalentes).
○ Nos casos de cardite leve, não há consenso, podendo-se: a) não usar AINES; b) usar AINES
ou c) usar CE em doses e duração menores.
● Cirurgia cardíaca na FR aguda: na cardite refratária ao tratamento clínico padrão, com lesão valvar
grave, pode ser necessário tratamento cirúrgico na fase aguda, principalmente nas lesões de valva
mitral com ruptura de cordas tendíneas ou perfuração das cúspides valvares. Embora o risco da
cirurgia seja mais elevado, esta pode ser a única medida para o controle do processo (I-C).
● Pulsoterapia: a pulsoterapia com metilprednisolona EV em ciclos semanais intercalados pode ser
utilizada em casos de cardite grave, refratária ao tratamento inicial, como 1ª opção nos pacientes com
quadro clínico muito grave e IC de difícil controle ou naqueles pacientes que necessitam de cirurgia
cardíaca em caráter emergencial (I-C). Ainda pode ser usada em pacientes que não possam receber
corticóide por via oral (IIb-B).
● Tempo de uso do CE: dose plena por 2 a 3 semanas, com controle clínico e laboratorial (PCR e VHS),
reduzindo-se 20 a 25% da dose a cada semana, com tempo total de tratamento de 12 semanas na
cardite moderada e grave e de 4 a 8 semanas na cardite leve.
● Controle da IC: nos casos de IC leve ou moderada, o tratamento deve ser feito com diuréticos e
restrição hídrica. Indica-se furosemida e espironolactona. Estão indicados os inibidores de enzima
conversora de angiotensina, a digoxina principalmente na presença de disfunção ventricular ou de
fibrilação atrial. Nos casos de fibrilação atrial, a prescrição de anticoagulação deve ser considerada.

Monitorização da resposta terapêutica


• Observar o desaparecimento da febre e das principais manifestações clínicas. Atentar para a normalização
das provas inflamatórias, PCR e/ou VHS que devem ser dosados a cada 15 dias.

• Nos pacientes com cardite, recomenda-se ecocardiograma, Rx de tórax e ECG após 4 semanas do início do
quadro.

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