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PARTE/

--

A abordagem gestált[ca

... e o fen de nossa viagem será chegar ao


lugar ~ ondepartrmos. -É co~he~ê-lo então
pda pnme1ra vez.
T. S. Eliot

A escolha dessa abordagem como referenemcialvirtud


de meu trabalho
e de minha
terapêutico e pedagógico deu-se sobretudo
identificação com seus pressupostos filosóficos acerca da natureza
humana, da ~nfase na relação terapêutica como caminho de cresci-
mento, assim como de sua criatividade e riqueza instrumental.

Configuração, estrutura, tema, relação estrutural(...] ou todo organi-


zado e significativo são termos que se assemelham mau de perto à pa-
lavra g~stalt, originalmente uma palavra ale~ para a qnal não há
uma ~uivalência em 1nglês (nem em português). (Perls~ Heff«line e
Goodman, 1997, pp. 33-1)

A Gestalt-terapia tem fontes múltiplas. Essa abordagem foi


criada a partir de uma série de influências teóricas e filosóficas,
que se constituem num todo coerente, mas em OODStame transfor-
33
mação, já que não possui um corpo teórico pronto, hermético e
acabado.
No entanto, parR Tellegen (1984, p. 34), as principais in-
fluências no pensamento de Perls foram a psicanálise, a análise
t
do caráter de Reich, a fenomenologia, a psicologia da Gestalt,
a teoria organísmica de Goldstein, a filosofia existencial e o
\ zen-budismo.
1 Para Apresentar essa abordagem descrevo, a seguir, alguns
dos principais pressupostos filosóficos e conceitos básicos da
Gestalt-terapia, assim como sua metodologia e seus instrumentos
terapêuticos.

A atitude fen.omenoLógí.w -existenc[al


Esta é considerada o ponto de convergência da multiplicidade
de fontes da Gestalt-terapia, e fundamenta sua concepção de exis-
tência humana, de relação e de método terapêutico , além de seu
modelo teórico.
Segundo Loffredo (1994, p. 74) :

[... ] a atitude fenomeno16gico~cxistencial dá sentido a todos os "frag-


mentos" de influ!ocias a partir dos quais surgiu a Gestalt-terapia. pro-
piciando uma estrutura de "conjunto", formando uma gestaJt, pois um
leque só é montado através do ponto comum que une seus segmenlos.

Entretanto, Tellegen (1984, p. 41) afirma que há na literatura


da Gestalt-terapia uma falta de explícítação de suas bases feno-
menológico-existenciais e que a função de Fritz Perls, seu funda-
dor, foi abrir pistas a serem segui~as. A autora caractenza as
bases da Gestalt-terapia ao enfatizar:

[ .. .] o pomem-em-relação, na sua forma de estar no mundo, na rad!Cal


escolha de sua existência no tempc- <:t~ m e..scamotea.:- a dor, o c()ntlito,

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a contradição, o impasse, encarando o vazio. a culpa,
a angústia, a
morte, na incessante busca de se acha r e se transcender.
ações desta
A maneira de seguir atenta e minuciosamente as manifest
pcsr ura feno•
experiência na sua unicidade irredutível caracteriza uma
com o ··tru-
menológica e se afasta dos tecnicismos desqualificados
ques" pelo próprio Perls.

ente-
A abo rdag em gestáltica con side ra o hom em um ser iner
cret o e
men te reJ acional. dotado de singularidade, além de con
cotp0rificado.
se atua li-
O hom em é um conj unto de poss ibili dade s que pod em
?at1 se re..alizar dura nte sua ex.istencta. Tem
libe rdad e para realizar
esco lhas , vivi das con1 angú stia e mqUtetação, já que
não pode esco -
s.
lher toda s as coisas e prec isa renu ncia r a mui tas possibilidade
ci-
Ess a abordagem terapêutic.él e pedagógica valoriza a capa
e de si e
dad e cria tiva do homem e o concebe capaz de tomar poss
do muncio, responsável e po~suidor de potencial tran
sformador da
pró pria vida e do destino.
Ges-
Rib eiro (1985, p. 4l)t ao traçar convergências entre a
talt- tera pia e o existencialismo. afir ma que

nuam e
f. .. J tanto a proposta gest.altista. como a existencialista se enco
se irmanám no sentido de privilegiar o hom em com o ser que se pos-
aqui e agora
sui, como ser livre e resp onsá vel [ ... ] a crença no homem,
si próprio.. a
presente. capaz de tornar.. sc cada vez mais cons cien te de
cxte nslo para
part ir da experiência vivid a agor a e da certe za de sua
o homem e dele
depo is, dent ro de uma visã o holís tica do homem com
com o ser no mundo.

ialis -
Ass im, tanto para a Gestalt-terapia com o para o exis tenc
ro de soa
mo, o hom em é o intérprete mais fiel de si mesmo, cent
pió pria liberdade e libertação, detentor do poder sobre 11
rnEM•Nt
aind a que, mom enta nea men t~ tenha perdido eua apc
idlo ,-.
auto gov ema r-se .
O homem é um ser em projeto, fazendo-se em processo, ca-
. - ~•-:'"''l (~,1~:(• ~ ",1,; .-.(~,..,,,,.,.,,~ ~ ~;

paz de·fazer opções e escolher o que deseja ou pretende s.er. E li-


vre para realizar escolhas e, portanto, responsável por suas 3ções.
Assim, a Gestalt-terapia é existencial em dois sentidos:

1. no sentido geral, enfatizando o processo do existir de cada indiví~


duo em sua vida, ·no decorrer da terapia, privilegiando o sentido de
""•- -=~.,_,,,.,.;,h _ _ ....,..,......y,... , , ....,r~·-,,- ,w~•,.,o-lr,,•-

sua responsabilidade e ~s~~lh~ na criação de sua própria existên-


cia;
2. no sentido de uma atitude paiticular quanto à concepção de rela-
ção, embasada no ponto de vista filosófico do Existencialismo día-
lógico. Nomeada na estrutura da relação propriamente elita de
Diálogo
. '
Eu-Tu, Encontro,
, ...... ....... , . ,,
~ ,. ' .
ou Encontro
...,
Existencial.
........ • . " ....., ' , ,.,.w• .,
A esta concep-
ção ou atitude de relação articula-se uma metodologia de trabalho
que forma, com ela, um todo coerente e indissociável. (Yontef,
1986, p. 6)

Embora F. Perls (1~79) e L. Perls (apud Friedman, 1985) ci-


1 tem Buber (1974) como um existencialista que os influenciou, as
referências à sua filosofia não aparecem diretamente na literatura
clássica da Gestalt-terapia.
Na literatura contemporânea, entretanto, há diversos e impor-
tantes autores; como Hvcner (1990, 1995), Jacobs
·=-·, - .~- -,
. ,,.,$,-- ._ _,,.,.
(1978), Hycner . ,

e Jacobs (1995) e Yontef (1986, 1987, 1993), que consideram a


Gestalt-terapia uma'·'â5õrd.agem
-~- dialógica.
-,:, ~ .............__,,. . . . ,. ,,. ,

Considero importante, portanto~ abordar, ainda que sintetica-


mente, as principais idéias de Buber e sua filosofia d.ialógica, que
fundamentam trabalhos relevantes de gestalt-terapeutas que enfati-
zarn a relação terapêutica como possibilidade de encontro e ca-
minho de crescimento.
Buber (1974) em seu Existencialismo Dialógico considerava
que a civilização moderna, com seu desenvolvimento tecnoló-
gico, fomentou o narcisismo e o isolamento do homem por não
valorizar a dimensão relacional da vida.

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O inter-humano acontece no "diálogo'\ que não se. refere
. ~\_,sim~lesmente ao discurso, m~s ao fato de que a ~tên~J uma-
~ ,;J na e fundamentalmente relac1onaL "No começo e a relaçao , afir-
...._, t _l'n(,,;Y<-.·(·""',«,~,:,:<,••" ...,,,, ,_.

.·'1J
. , . "',:-,-~

mava Buber (1974, p. 20). . . ,. ,


<? ( O diálogo dá-se na esfera do "entre", mediante a v1venc1a .~ ~ (>

de duas polaridades, EU-TU e EU-ISSO,,. as duas atit11des funda-


mentais do ser humanô"p ia-~el~~ i~~se coin os outros e com o
\ mundo. ·
\

A p~ayra ptjncípio EU-TU só _pode ser proferida pelo ser em sua !?.~.:-
lidade. A união e a fusão em um ser total não pode ser re,aijzada por
~~ nem pode ser efetivada sem mim.[ O EU se realiza Iia relação
com o TU; é tornando-me EU que digo TU. Toda vida atual é encontro.
(idem, ibidem, p. 13) ) ,t._ · , ,.

Já em relação ao princípio EU-ISSO, Buber define:

A palavra-prin cípio EU-ISSO jamais pode ser profe:ida pelo ser em sua
½ . ...., ..., ½.,. •-'

totalidade[ ...] O mundo como experiência diz respeito à palavra-prin -


cípio EU-ISSO. A palavra-princípio EU-TU fundamenta o mundo da
relação ... (idem, ibidem, pp. 4 e 6)

E, ainda:, "[... ] o homem não pode viver sem o ISSO, mas


,1 ~ •w,i.:-'<-»w~-, ..:

aquele que vive somente. com o ISSO não é homeM' (idem, ibi-
deiri;~p. 39). .
Assim sendo, a atitude EU-TU refere-se à relação com o outro
',
: valorizand o sua "alteridade" ou,

[... ] o reconhecimento da singularidade e a nítida separação do outro


em relação a nós, sem que fique esquecida nossa relação e nossa hu-
manidade comum subjacente. A pessoa é um fim em si mesma e não
um meio para atingir esse fim. (Hycner, 1995? p. 24)

Na atitude EU-ISSO, a pessoa é considerada um objeto, um


meio para atíngir um fim; esta é, em alguns momentos,-~ã-atitu-

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r

:de imr>9rtante e necessária para a nossa sobrevivê~cia, q~e não


~pode encerrar-se nessa atitude.ou tê-la como predommante, Já que
reflete a ':'coisificação" da vida e das relações.
Mas estar disponível para o encontro EU-TU não assegura o
encontro, pois não podemos forçar o outro a encontrar-nos, nem
sennos por ele forçados. Aqui deparamo-nos com os ~tes de
!}OSS!,.I!.W~\l.l'Il~~~~ Além disso, não podemos nos colocar
deliberadàlnente na atitude EU-TU; o encontro é, portanto, LlllE!.e..
visíy~l pàra ambos, ele simplesmente "acontece".
;,,,ltJ { , tJ J .

A .-vivência da dualidade EU--TU e EU-ISSO confere, então, uma


aitemância entre relação e separação, que caracteriza uma exis-
tência sadia

Os teDilos EU-TU -e EU~rsso indicam a natureza recípro~a de nossa


orientação relacional [ ....] ..
Toda,t roca hmnana tem essas duas dlmensões, muitas vezes simulta-
neamente
. ~
.[..~)' o diálogo genuíno
. somente pode emergir se duas
pess~ estiverem disponíveis para ir além. da atitude EU-ISSO e valo-
.rizârem,_aceitarem e apreciarem a alteridade da outra pessoa... isso re-
quer a transcendência da nossa individualidade [...] estar disponível
para roiJ.b~r- e entrar, como descreve Buber, na esfera do entre.
(idem, ibidem., p. 25)

A. Gestalt-terapíá, ao valorizar a dimensão relacional da exis-


tência, e pôrtantd ·o "entre'', traduz a ~tude terapêutica funda-
mentada na âbordagem 4ialógica
Loffr$ ·considera.a atitude de encontro existencial suporte
para uma·atitude fenomenológica:

O que·si_gnifica que é utilizado o método fenomenológico como cami-


.nho pará a conquista do que se denomina awareness, objetivo focali-
zado pelo gestalt-terapeuta a cada passo. Valendo enfatizar[...] que a
metodologia de awareness e a forma peculiar de contato, que 6 diálo-
go, são·um todo indissociável. É importante assinalar que, na aborda-

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· - do que se vê mas·
gem fenomenológi~ não se trata apenas de descnçao .1 2
4 81
de uma interrogação do todo que aparece. (Loffredo, 199 , P· ) '

0
Para a fenomenologia, o homem não é propriamente um : ~-
jeto~' de conhecimento, já que é sujeito, construtor de sua propna
história e situado no mundo.
. A fenomenologia clareia, então, significados atribuídos que
constituem um fenômeno, ou seja, um fragmento da experiência
de um sujeito-no-mundo, pela descrição da experiência, da obser-
vação de "como" ela acontece. A consciência sempre é consciên-
.,......._,~
eia de alguma cois~ voltada para um objeto, e o objeto, por sua
vez, é sempre um objeto para uma consciência.
------------
Assim, ao realizar a descrição fenomenológica, o gestalt-tera-
peuta privilegia o "~uê" e o u~.9.!11:º", em vez do "~~rq_~~-~'.
Por meio da intencionalidade algo se constitui na consciên-
ci~ já que a consciência é sem,re consciência de alguma coisa,

[... ] eia só é consciência estando dirigida a um objeto (sentido de in-


tentio). Por sua vez, o objeto só pode ser definido em relação à cons-
ciência, ele é sempre objeto para um sujeito [...] sua essência (do
objeto) é sempre o termo de uma visada de significação e que sem
essa visa?ª não se poderia falar de objeto, nem portanto de uma es-
sência dç objeto [...]. Eis por que a fenomenolo~ em vez de ser con-
templação de um wtlverso estático de essências eternas, vai se tomar
a análise do dinamismo do espírito que dá aos ~bjetos do mundo seu
sentido. (Dartigues, 1992, p. 18)

1. Os tennos 'i:otalidade"t "todon e "global,, referem-se, neste trabalho, a wna


concepção do homem como ser composto de partes (dimensões perceptual,
afetiva, c0gnitiva,. cultural etc.) que se inter-relacionam dinamicamente e em
processo constante de transfonnação; relacionam-se à configuração ou gPstalt
que se forma em sua experiência como ser-nermundo.
2► O termo awarenus não tem correspondente ·
em nnrtnat,&r• · n-n~ ..
r-•"4)-, 51e,uutca prescn-
. _ . . _
tificaçao, consctentJzaçao,
.
concentraça-o
. .
É um dos nrinrin~i...
r--~QW conceitos
· da
Gestalt-terapia. e refere-se também à sua metodologia, portanto, será descrito· em
deta1hes acliante.

39
Tellegen descreve esse processo:

Toda figura surge de um fundo. Por fundo entendemos a situação am~


biental, vívencial e existencial da pessoa, incluindo toda a sua expe-
riência passada, seus projetos para o futuro, situações recentes ou
remotas não resolvidas (inacabadas). Recuperar a relação figura/fun-
do, ou o sentido, implica a investigação de toda a complexidade
destas .redes de conexões. Em Gestalt-terapia procuramos sempre
partir do mais óbvio e imediato que é a experiêncic presente de con-
tato e suporte na relação terapêutica que, em sempre novos ciclos ex-
perien-:iaís, remete a outras e outras e outras, que vão explicitando
elos ocultos e significados desconhecidos. (idem, ibidem, p. 90)

Por fim, o contato é um dos processos fundamentais (além da


formação de gestalt e da awareness) que serve ao processo de
auto-regulação organísmíca, ou ao ajustamento criativo.

Ajustamento criativo
A importância desse conceito na Gestalt-terapia pode ser ob-
servada na própria definição da Psicologia de Perls, Hefferlíne e
Goodman (1977, p. 45):

[ ... ) psicologia é o estudo dos ajustam.entos críativos. Seu tema .é a


transição sempre renovada entre a novidade e a rotina que resulta em
assimilação e crescimento [ ...J a psicologia anormal é o estudo da
interrupção, inibição e de outros acidentes no decorrer do ajustamento
criativo.

Tendo em vista que o contato é se1npre criativo, já que ape-


nas o novo é objeto de contato, é in1portante ressaltar que no pro-
cesso de auto-regulação orgariísmica o novo não pode ser aceito
passivamente, pois deve ser assimilado.

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