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Inês Nabeiro Ano letivo 2023/2024

Direito Penal I
Regência: Professora Maria Fernanda Palma

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Inês Nabeiro Ano letivo 2023/2024

1. Definição do Direito Penal

O Direito Penal carateriza-se por ser um conjunto de normas que se autonomizam no OJ, por atribuírem a
certos factos descritos de forma pormenorizada as consequências jurídicas profundamente graves – isto é,
estabelece os crimes e as suas consequências que são as penas (aplicadas aquele que atua com culpa) e as
medidas de segurança (aplicadas consoante a perigosidade).

Elementos identificadores das normas penais:

• O crime: conteúdo da previsão da norma penal;


• A pena: estatuição;
• A medida de segurança: estatuição.

O professor Figueiredo Dias distingue:


• Direito Penal Subjetivo – resulta da competência soberana do Estado em considerar como crimes
certos comportamentos humanos e atribuir-lhe sanções específicas;
• Direito Penal Objetivo – expressão do poder punitivo do Estado.

O crime a pena têm também um conteúdo pré-legislativo indisponível - isto decorre da relação entre a
definição material de Direito Penal e a temática de legitimidade constitucional – o Direito Penal não pode
ter qualquer conteúdo.

2. A Criminologia e a sua importância para o Direito Penal

Vamos abordar os estudos científicos não jurídicos sobre o crime, como um fenómeno social ou
psico-social. A criminologia pretende apenas compreender o explicitar o crime, sendo uma ciência de
base descritiva e não normativa. Surgem diversas correntes criminológicas neste sentido:
• Segundo a organização de Hassemer:
o Primeira concepção: o crime acontece devido a uma razão que é exclusiva do
criminoso, identificando-se deficiências do agente (biológicas ou psicológicas);
o Segunda concepção: tenta explicitar o crime de uma perspectiva social, onde se
assinalam deficiências de socialização ou de estrutura social (isolamento de
tendências sociais para averiguar de onde provém aquele crime);
o Terceira concepção: destacam a natureza social e funcional do crime, sendo ele
concebido como uma produção social – a própria sociedade decidiu que é
indesejado e considerado crime.

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Crime como produção social:

Teoria da Anemia – Merton e Durkheim

• Tenta explicar o crime através da indiferença relativamente às regras vigentes numa determinada
sociedade – o que explicaria o crime através do desfasamento entre as metas sociais gerais e as
vias para as alcançar.
• Para Merton, o elemento determinante seria o vício da estrutura social, sendo o agente a vítima
da estrutura socio-cultural.
• O desfasamento reside entre a promoção de valores de ascensão social e a efetiva escassez dos
meios legítimos para a atingir – este desfasamento leva à indiferença aos valores e mecanismos
de adaptação individual.

Por isso, Mertom distinguia cinco mecanismos:

o A conformação: congruência entre as metas culturais e os meios institucionais;


o A inovação: as metas institucionais seriam prosseguidas por meios não institucionais;
o O ritualismo: faltam metas culturais, mas seguem-se formalmente os meios institucionais;
o A apatia: faltam as metas culturais e a própria utilização de ação institucional;
o A rebelião: os agentes não se conformam com as metas culturais e obviamente também não
pautam o seu comportamento pelos meios institucionais

Assim, na perspectiva de Merton, os comportamentos desviados estariam associados à inovação ou à


rebelião, sendo a infração das normas adaptativa a uma disfunção da estrutura social. A apatia e o
ritualismo seriam igualmente perigosos para a desintegração social – comportamentos aditivos e a
burocracia opressora.
A rebelião enquadraria comportamentos revolucionários e o próprio terrorismo.

Em suma:
Vem dizer que a sociedade existe e prevê certos meios e privilegia certos objetivos – caminhos e
desenvolvimento pessoal. Os meios são limitados portanto nem todos vão conseguir cumprir os seus
objetivos. Se alguém tiver um objetivo diferente será reprovado socialmente. Quem não encontra os
meios para atingir os seus objetivos ou quem tem objetivos reprovados pela sociedade irá originar uma
quebra – geram-se sintomas entre os quais podem gerar uma conduta criminosa – rebelião, radicalismo,
ritualismo. O que explica o crime é que a sociedade falha em dar respostas a toda a gente que necessita –
é de todos a responsabilidade. Falha interior da própria comunidade, o crime é tido como um verdadeiro
produto social – no entanto, suscetível de ser prevenido aguando sobre os pressupostos estruturais e
corrigindo os desajustamentos nas condições sociais.

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Teoria de Sutherland

Teoria da associação diferencial: maior valorização do interacionismo e da relação do crime com a


deficiente socialização nas teorias de associação diferencial. Tenta explicitar o crime pela intensidade,
frequência e precocidade de certos contactos sociais.

• O crime é uma produção da própria sociedade.


• O crime aparece socialmente e não na falta de desenvolvimento dos indivíduos – sendo o crime
ensinado – é aprendido através da interação com outras pessoas num processo de comunicação.
• É um processo de aprendizagem e dá-se por contacto dentro de grupos íntimos e pessoais –
aprendem a repetir os comportamentos criminosos.
• A responsabilização é atribuída aqueles que ensinam o determinando o crime, e não a quem
praticou o ato criminoso.
• Crimes do colarinho branco – também são “ensinados”, o comportamento anti-social não se
restringe às classes mais baixas, nem é determinado pela pobreza ou deficiências familiares de
modo automático, prende-se sim com padrões comportamentais desenvolvidos pelos grupos
sociais.
• Comportamento criminoso como um produto social e não apenas marginalizado.

MFP: as teses de Sutherland, foram bem construídas e fundamentadas – revelaram-se anti-


estigmatizantes e otimistas na medida em que, revelam a génese do crime como não sendo determinista
através da prevalência que é dada à aprendizagem – sugerindo que todas as pessoas de todos os grupos
sociais não estão imunes a estes fenómenos, afastando a identificação entre crime e pobreza ou ainda
outras particularidades sociais (género ou raça).

o Parte de uma concepção de crime e sabe quais são os comportamentos desviantes – as pessoas
estão interessadas em entender porque é que achamos que aquelas pessoas são criminosas –
porque é que excluímos determinadas pessoas.

o Percepções éticas que são divergentes da comunidade e tornam comum aos membros desse
grupo mais pequeno – como máfias e nascem nesse meio. Reconhece na violência um meio de
reação e crescendo com esse mesmo estímulo.
o Investir em programas sociais que ataquem a raíz deste problema.
o Crimes de colarinho branco – a diferença reside da percepção do criminoso. Estas pessoas
controlam de certa forma a vida social.

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Pensamento de Kohlberg

Parte das teorias de Piaget


Kohlberg refere-se a vários estádios, nomeadamente:

o Pré-moralidade: desenvolvimento de juízos morais em que os agentes de motivam pela punição e


obediência com uma visão hedonista;
o Conformidade convencional: raciocínios de proveito pessoal e aceitação do Direito por razões
egoístas;
o Perspectiva do contrato social: atinge-se as ideias abstratas de justiça, respeito e confiança.

Segundo este autor, os comportamentos sociais estariam relacionados com a incapacidade de


atingir os estádios superiores dos níveis de desenvolvimento da personalidade.

Em suma:

• Visão de obediência/individual/social/comum / Universal


• O crime é explicado como uma falha no desenvolvimento dos indivíduos ao longo das suas vidas
• Como afeta o Direito Penal?
• O indivíduo à partida esta condenado a praticar um crime – condenação que está fora do controlo
do indivíduo.
• Não seria possível responsabilizar/culpar alguém por conta de uma falha que não esta no seu
controlo
• Seremos livres ou não para praticar o crime ? Se não somos não é justo aplicar a pena como
castigo.
• Fins das penas: esta fora do controlo da pessoa, o objetivo do Direito Penal seria na verdade
ensinar a esse indivíduo o desenvolvimento social que lhe faltou quando criança – reabilitar.
• Percepção do crime do ponto de vista individual e cognitivo.

Labelling approach: o crime é uma produção social

É a própria sociedade que de forma institucional ou não institucional que determinados


comportamentos são excluídos – essas pessoas serão excluídas não gozando de acesso e liberdade como
os restantes indivíduos – promoção pelo Estado. Acontece também de forma não institucional ( a nível
social e religioso por exemplo).

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• O crime seria a expressão de um processo subjetivo-social de estigmatização dos


delinquentes e de seleção de verdadeiras carreiras criminosas.
• Howard S. Becker: a déviance não é uma qualidade interna dos factos sociais, mas antes um
produto dos grupos sociais que criam regras cuja violação suscita e que aplicam com
sucesso (esta estigmatização) a qualificação de déviant aos que violam as normas – pura
criação social, como se uma etiquetagem se tratasse.

Exemplos: em comunidades em que é dominante um determinado tipo de etnia a reação é de exclusão e


tratamento diferencial.
Países com maior pendor nacionalistas pessoas que são de outra etnia, carecem dos mesmos direitos por
não terem o traço comum.

A consequência é que estas pessoas que se sentem excluídas sem oportunidade para satisfazer as
suas necessidades é a violência – delinquência secundária. Nasce em consequência do primeiro
comportamento de estigmatização. Em vez que agravar a exclusão social – dentro desta lógica – os
Estados devem devem tomar medidas para aniquilar esta estigmatização através de políticas sociais.

Conclusão

➔ Devemos ponderar uma destas teorias para ponderar o crime em questão que nos aparecerá na
frequência.

3. Tipos de crimes

• Crimes de perigo Concreto- exige-se a concretização efetiva para ser considerado crime. É um
crime – resultado. Se o A dispara contra B mas B não morre, não há crime de homicídio. Se eu
conduzo sob influencia de álcool mas não cometo nenhum perigo na minha condução não se
aplica o art.292º CP. O crime só esta consumado quando os bens são lesionados, no entanto
analisando o comportamento, se quase se deu a consumação também é um crime concreto ( ele
bebeu tanto que quase atropelou a velhinha na passadeira )

• Crime de perigo Abstrato – não exige a concretização para que seja crime. O mero
comportamento que indique a realização/concretização para aquele crime nem produzindo
nenhum perigo concreto ainda assim vai ser condenado por esse crime – art.292º CP – crimes de
mera atividade – comportamento basta. O crime de lenocínio passou de ser um crime de perigo
concreto para um crime de perigo abstrato ( retirou-se a necessidade de prova de exploração), de
modo a estancar o facto de dar azo a que os comportamentos sejam consumados. Pretende-se
evitar que o dano se torne irreversível.

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• Crime de perigo Abstrato-Concreto – exige-se a concretização mas também em determinados


casos não há efetivamente um dano no entanto as circunstancias e a experiência comprovam ..
ameaça / perseguição. A ameaça é uma conduta apta a desencadear a concretização do crime –
são crimes de aptidão. Não se exige que o comportamento tenha concretizado um crime concreto
mas exige-se que tenha determinadas características que o tornem apto à concretização desse
perigo. É necessário demonstrar que A ameaçou ou perseguiu o B de tal forma que tornem a
conduta apta a concretizar efeitos. Exige-se a demonstração de que o comportando era apto, era
suscetível de causar perigo ao bem jurídico. A mera atividade não chega – exemplo: A decide
perseguir B, de forma constante e intensa ( tira fotografias à janela, esperas na porta de casa,
persegue no trabalho ou na rua ), mas B não se apercebe. SE B não se apercebesse não teria
aptidão, não sendo colocados em perigo. No entanto o comportamento de A era apto é
perceptível de suscitar perigo para os bens jurídicos em causa.
• Na ameaça o comportamento é apto a causar inquietação. Mas se a ameaça for inapta (feita por
um humorista ou não ter credibilidade ou dois amigos num contexto de brincadeira ) – aqui não
há crime, porque se exige uma certa aptidão.

Tipos de crime quanto à conduta:

● Crimes de mera atividade: o tipo incriminador se preenche através da mera execução de um


determinado comportamento

○ Violação de domicílio (art. 190°-1 CP)


○ Coações sexuais (art. 163° CP)
○ Evasão (art. 352° CP)
○ Falsidade de depoimento ou declaração (art. 359° CP)

● Crimes de mero resultado: nos crimes de resultado sob a forma de comissão por ação, o tipo
pressupõe a produção de um evento como consequência da atividade do agente; nesses tipos de crime só
se dá a consumação quando se verifica uma alteração externa espácio-temporalmente distinta da conduta

○ Homicídio (art. 131° CP) - consumação só se verifica com a morte de uma pessoa
○ Ofensa à integridade física (art. 143° CP)
○ Burla (art. 217° CP)

É de resto, no fundo, essencialmente a mesma distinção que se leva a cabo quando se distinguem
crimes formais (a cuja tipicidade é indiferente a realização do resultado) e crimes materiais (a cuja
tipicidade interessa o resultado).

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• De um ponto de vista dogmático-prático, se revela por no tema se verificarem 4 possíveis


combinações:

1. Crimes de mera atividade que são crimes de dano


○ Crimes de violação sexual (art. 164° CP)
○ Violação de domicílio (art. 190° CP)
2. Crimes de resultado que são crimes de dano
○ Crimes de homicídio (art. 131° CP)
○ Ofensa à integridade física (art. 143° CP)
3. Crimes de mera atividade que são crimes de perigo
○ Condução em estado de embriaguez (art. 292° CP)
○ Falsidade de depoimento ou declaração (art. 359° CP)
4. Crimes de resultado que são crimes de perigo
○ Generalidade dos crimes de perigo comum (art. 272° CP)
○ Exposição e abandono (art. 138° CP)

• Crimes instantâneos: quando a consumação de um crime se traduza na realização de um acto


ou na produção de um evento cuja duração seja instantânea, isto é, não se prolongue no tempo,
esgotando-se num único momento:

○ Homicídio - consuma-se no momento em que se dá a morte da vítima


○ Furto - consuma-se no momento em que se dá a subtração da coisa

• Crimes permanentes/duradouro: quando a consumação do crime se prolongue no tempo, por


vontade do autor; se um estado anti-jurídico tiver uma certa duração e se protrair no tempo
enquanto tal for a vontade do agente, que tem a faculdade de pôr termo a esse estado de coisas, o
crime será duradouro → nesses crimes a consumação ocorre logo que se cria o estado anti-
jurídico, só que ela persiste até que um tal estado tenha cessado:

○ Sequestro (art. 158° CP)


○ Violação de domicílio (art. 190°-1 CP)

A distinção entre crimes instantâneos e crimes permanentes tem uma grande importância prático-
normativa para efeitos de legítima defesa (já que só é admissível a reação contra o agressor enquanto a
agressão for atual), de tentativa, de autoria e cumplicidade, de concurso, de prescrição do procedimento
criminal, e de flagrante delito.

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• Não confundir crimes permanentes com crimes continuados: o crime continuado é uma
construção dogmática e um regime criado pelo legislador —> art.30º do CP não tem nada que
ver com crime permanente.
Ex: Roubar 7x na semana (7 dias seguidos) roupa na Zara – o Código Penal permite tratar isto
como um só crime – crime continuado de furto.
Nos crimes permanentes a característica é a de se prolongar no tempo.

4. Conceito Material de Crime

Figueiredo Dias: Autonomização do conceito material de crime, face ao conceito formal de crime,
constitui uma necessidade sentida desde os tempos de Beccaria.

• Articulado com o princípio da ofensividade e de tradição jusnaturalista veio estabelecer- se um


conceito pré-legal de crime: conceito que, como tal, possui viabilidade para se arvorar naquele
padrão crítico do Direito vigente e do Direito a constituir, sem o qual o conceito material de
crime se torna imprestável;

Divergência na análise estritamente jurídica do conceito material de crime assenta no objeto da


infração criminal
• Violação de certos direitos subjetivos (Feuerbach) – estrutura liberal contratualista que
somente justifica a intervenção penal onde os direitos humanos básicos, que o contrato social
visa assegurar, foram violados;
o Dissolve a infração criminal na proteção da liberdade individual (subjetivação dos fins
da organização da sociedade como instância legitimadora).
• Violação de certos bens jurídicos (Birnbaum) – estrutura estatal cuja referência legitimadora
do Direito Penal é a comunidade e os seus valores;
o Define a infração criminal pela lesão objetiva de valores da comunidade (objetivação
dos fins da organização da sociedade como instância legitimadora);
o Direito vincula-se a elementos objetivos e procura a fundamentação da proteção
jurídica que merecem certos bens nos fins do Estado;
▪ Birnbaum vs. Binding: bem jurídico são os valores ou condições de vida da
comunidade jurídica, tal como definidos pelo legislador (perspetiva de puro
positivismo legalista).
o Von Liszt vem aderir à posição de Birnbaum – define bem jurídico como interesse
humano vital, expressão das condições básicas da vida em comunidade. É o conceito
legitimador do Direito Penal descomprometido com a norma legal.

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Funcionalismo sistémico na definição de crime

• Luhmann – funcionalismo no pensamento penal que parte da análise das sociedades humanas
como sistemas sociais.
• Sociedade não é um puro fenómeno político e é um sistema social, desempenhando
determinadas funções;
• Funções consistem na institucionalização da redução de complexidade:
o O Direito é a estrutura da sociedade que regula e assegura a institucionalização de
relações constantes entre ações, cuja função é selecionar as expectativas de ação aceites
geralmente para serem institucionalizadas;
o Reduz o problema da legitimação do direito à dimensão da funcionalidade.

Toda a conduta desviada em relação à norma surge como uma frustração das expectativas de
comportamento asseguradas juridicamente.

• Conduta desviante desempenha funções positivas e é útil como fator de afirmação da ordem
vigente.
• Jakobs – ponto de vista de que o Direito Penal deve manter padrões de ação que organizam as
expetativas sociais sobre o comportamento alheio.
• Função de estabilização contra fática das expetativas geradas pela violação de uma norma
incriminadora.
• Crime é dano social objetivo sendo o pretexto de afirmação de modelos de ação.
• Direito Penal tem função ideal/simbólica de controlo social – protege a vigência da norma.

Críticas ao Funcionalismo, na linha da Criminologia

A partir da necessidade de substituição do crime por outras categorias como o processo de definição e
seleção social de criminalidade

• Argumento criminológico: Interpretações criminológicas dos comportamentos como critério de


ponderação da adequação à realidade das opções normativas de criminalização.
o Resposta normativa, com critérios de justiça baseados no pensamento crítico, à
produção social do crime ou à construção da personalidade delinquente.

Críticas ao Funcionalismo a partir da teoria da sociedade

• Roxin: Excessivo normativismo e a reafirmação da norma não é um fim em si mesmo, mas antes
está destinada a contribuir para a prevenção futura de lesões reais – pena serve, em última
instância, a proteção de bens jurídicos.

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• MFP: funcionalismo não permite uma racionalidade de delimitação das normas


incriminadoras e apenas se preocupa com a promoção de padrões de ação desejáveis para a
coesão social.
• Visão funcionalista não anula absolutamente a função crítica interna ao sistema do conceito
material de crime, pela referência de toda a legitimidade da proteção jurídico-penal aos fins
sociais.
• E, na medida em que a definição destes fins não é produto de uma arbitrária decisão normativa,
mas surge apenas como efeito objetivo da ação dos indivíduos – enquanto subsistemas, eles
próprios, vocacionados para a autorrealização – o funcionalismo, como teoria, não exclui a
discussão sobre o objeto da infração criminal e apenas reduz a fundamentação da validade a uma
adequação das decisões legislativas a uma ideia de funcionalidade sistémica, racionalizando
através desse parâmetro a avaliação crítica.

Fundamentação normativa com a teoria crítica da sociedade

Ideia de que a ação social é necessariamente uma ação comunicativa.

• Razões e opções normativas, embora histórica e culturalmente produzidas não deixam de, em si
mesmas, conter uma abordagem crítica aos padrões de racionalidade;
• Reconhecimento crítico de uma distorção desta racionalidade, associado ao “mundo da vida”
pela interferência de uma racionalidade utilitarista instrumentalizadora, germinada nos
subsistemas sociais, que menosprezaria os padrões elementares da vida nas sociedades humanas
e as aquisições culturais do processo histórico.

Comportamentos incrimináveis são definíveis num modelo argumentativo de ética do discurso, em que a
legitimidade depende de não se contradizerem pela incriminação condições básicas da subjetividade e do
reconhecimento recíproco – como aconteceria, por exemplo, com a incriminação da blasfémia,
comportamentos sexuais privados, mas já não com o lenocínio.

Tendência para colocar os limites da criminalização no contexto de fundamentos da democracia e do


Estado de Direito, num nível político em torno de percepções do contrato social.

Estado atual dos modelos de política criminal em conexão com os modelos de fundamentação do
Direito Penal

• Fundamentação do Direito Penal com o modelo liberal-garantista:


o As restrições públicas da liberdade só podem ser justificadas pela própria necessidade
de garantir a liberdade – intervenção pública punitiva só poderia ser justificada em
função da proteção de direitos e interesses individuais, tornando-se aceitável pelos
próprios destinatários do direito penal.

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o Estrutura na máxima kantiana de que o Direito é suma essência da articulação do livre-


arbítrio de cada um com o dos outros, segundo uma lei geral de liberdade;
o Comunidade é uma conjugação de vontades;
o Pressupõe uma racionalidade universal.

Fundamentação do Direito Penal com os fins do Estado, bens coletivos, utilidade social e bem estar
geral

• Visão democrática em que o Direito Penal é delimitado pelo interesse político e pela necessidade
de utilização dos seus instrumentos sancionatórios em cada momento histórico.
• Não há limites constitucionais para o âmbito das normas incriminadoras – modelo expansionista
que ancora o Direito Penal na pertença a uma comunidade e na responsabilidade coletiva.

Fundamentação do Direito Penal como sistema de prevenção de danos

• Do pensamento da sociedade de risco, de Beck e da ideia do direito penal do inimigo de Jakobs.


• Direito penal assenta na prevenção de danos sociais e no controlo dos riscos, em nome do
valor da segurança e dos direitos dos cidadãos à mesma segurança.
• Pondera-se o peso do risco e perigo para os bens jurídicos, em detrimento, por vezes, dos direitos
imediatos, em sociedades que procuram a previsibilidade e a segurança como bem.
• Segurança como valor objetivo, e por vezes simbólico, passa a ser condição fundamental da
intervenção penal

O Direito Penal tem evoluído e a principal característica é a redução de um espaço livre no Direito Penal,
substituindo-se critérios éticos tradicionais de imputação por critérios standard (homem médio) e
aumentando o controlo democrático e constitucional das opções normativas.

Há um Direito Penal menos juricizado, menos dependente de legitimação, que requer um novo modelo
fundamentador, um modelo mais complexo, que reconstrua a interpretação do sistema penal a partir da
nova situação legislativa e das funções que tem assumido nas sociedades contemporâneas.

Modelo fundamentador do Direito Penal

À luz da CRP e da atualidade, quando é que legitimamente um comportamento é incriminado?


Quando não é legítimo incriminar um comportamento?

• MFP: procurar os limites negativos do que podem ser normas incriminadoras é admitir que o
Direito não tem princípios universais e a política criminal tem alguma margem para variar.
o Não é escolha arbitrária, mas é margem do legislador e do executivo da orientação da
política criminal.

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o CRP não tem conceito material de crime e tem apenas os limites – é a forma de melhor
se coadunar com o Estado de Direito democrático e com a escolha de alternativas
democráticas à política criminal.
o O que está em causa são os limites constitucionais às opções do legislador.

A CRP tem expressos, ou dela se infere, diversos princípios que dão aso a uma reflexão sobre a
política criminal através da exploração de um conjunto de tópicos

1. Primado do princípio da igual consideração do interesse de cada pessoa como participante numa
comunidade de pessoas livres.
a) Direito penal não pode intervir para criminalizar direitos, liberdades e garantias. Ex:
não incriminação de manifestações de liberdades (de consciência, de culto, de religião e
etc.)
2. Primado do princípio do reconhecimento do outro – legitimidade da incriminação de
comportamentos discriminatórios, de ódio racial, género, religião, orientação sexual;
3. Primado da ideia de necessidade da pena como princípio de articulação de direitos,
desvinculação da necessidade da pena de fins de instrumentalização política;
4. Reconstrução do espaço pessoa-mundo, considerando, no entanto, a questão da libertação do
Direito Penal do controlo total da vida;
5. Função construtiva do Direito Penal – reintegração como reatamento do vínculo social;
a) Argumento da controlabilidade do comportamento e motivabilidade dos
comportamentos dos agentes – há certos comportamentos que ultrapassam a barreira da
legitimidade da CRP para a incriminação, pois são comportamentos que não estão
suficientemente no controlo dos agentes.
b) Há margem que resulta do funcionamento do próprio sistema (funcionamento global de
um sistema que não dá a 1 indivíduo o controlo total do seu comportamento e há toda
uma cadeia). Ex: erro médico -> Responsabilidade objetiva – não deve fazer parte do
âmbito dos comportamentos criminalizáveis.
6. Utilização das ciências do crime como critério de análise de relevância constitucional, numa
procura de controlo e de redução de um normativismo não apoiado nas solicitações da realidade
social – argumento criminológico;
7. Função preventiva de meios alternativos à pena, a partir de um critério não repressivo de
reafirmação do Direito
a) Mesmo que o comportamento tenha dignidade punitiva pode não justificar a
incriminação quando há meios alternativos para resolver.

Conclusão:

Para se definir materialmente um crime é preciso:


1. Fundamento normativo aceitável pelo Direito, através da relação dos factos e não por mera

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descrição formal – necessidade de uma razão universalizável no âmbito do sistema jurídico;


2. Razão normativa que abarque o plano objetivo do facto, bem como o seu plano subjetivo;
3. Descoberta de quais os factos que podem, de acordo com os critérios do sistema jurídico, justificar
(proporcionalmente aos danos) às sanções criminais.

5. Bem jurídico

Abertura da ciência jurídico-penal a uma perspetiva específica de legitimação foi historicamente


veiculada pelo conceito de bem jurídico.

• MFP: Conceito que não nasceu no séc. XIX na Alemanha como os alemães afirmam. É muito
mais antigo e a ideia de bem é essencial no direito medieval e tem gestação já no direito romano
e grego.
• A maior parte dos autores simplifica a investigação dizendo que a ideia de bem jurídico vem de
Birnbaum.
• Conceito de bem jurídico tem vários significados para a delimitação do conceito material de
crime e para a função e legitimação do Direito Penal:
o Ideia de bem jurídico tem expressado relação do objeto de proteção da norma com um
interesse individual ou com um interesse coletivo assumido pelo Estado de Direito
democrático como condição essencial de incriminação;
o Ideia de bem jurídico sugere uma necessidade intersubjetiva que carece de ser
protegida;
o Ideia de bem jurídico convoca a ideia de lesão e de dano objetivo ou objetivamente
representado e não uma função meramente simbólica de um interesse protegido pelas
normas

Roxin - defende acerrimamente o papel do bem jurídico, numa aceção personalista, como limite de
intervenção penal, admitindo uma extensão no que diz respeito à preservação do interesse vital de
gerações futuras e no que se refere à proteção da biodiversidade – é possível um conceito de bem jurídico
entendido como parâmetro crítico da legislação.

Bens jurídicos = todos os bens que correspondem às condições e finalidades necessárias ao livre
desenvolvimento do indivíduo, à realização dos seus direitos fundamentais e ao funcionamento de um
sistema estatal construído em torno dessa finalidade.

• Teoria do bem jurídico enquanto garantia de liberdade leva à ilegitimidade da incriminação


quando se incrimina comportamentos que não ponham em causa nem o livre desenvolvimento
do indivíduo, nem as condições sociais necessárias a esse desenvolvimento.
o Frister: Um comportamento que não ponha em causa de modo algum a possibilidade
de desenvolvimento de outros não deve ser valorado como ilícito penal.

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Há quem critique o conceito de bem jurídico por ser demasiado vago, o que limitaria as suas
potencialidades.
MFP: Tese de que o bem jurídico carece de qualquer significado prático essencial esta errada, vejamos
exemplos:
1. Punição de atos homossexuais entre adultos – é evidente que essa conduta, quando consentida e tendo
lugar na esfera privada, não afeta a liberdade de desenvolvimento de ninguém nem perturba de nenhuma
forma a liberdade de convivência entre as pessoas – um conceito de bem jurídico leva a que não se puna
estes comportamentos (que eram punidas até 1969 na Alemanha).
2. Punição por ter posse de estupefacientes para consumo próprio – não há qualquer dano para outros,
sendo a descriminalização uma representação da conceção de bem jurídico como parâmetro crítico da
legislação.
3. Doação de órgãos inter vivos – não se vislumbra qualquer ofensividade para outrem e cumpre fins
socialmente úteis, pelo que a criminalização carece de uma legitimação conferida pela proteção de bens
jurídicos.
4. Incesto entre irmãos – o Direito Alemão pune esta conduta, mas, também nesta situação, em que os
irmãos atuam livres de coação e de modo consentido, sendo plenamente responsáveis.

a. Está ausente qualquer dano para o desenvolvimento da personalidade, de modo que o


princípio da proteção de bens jurídicos demanda a impunidade desta conduta.
b. TC alemão tomou posição e considerou que a conduta era punível pois os fins prosseguidos
por uma norma penal não podem deduzir-se a partir da teoria jurídico- penal do bem jurídico.
c. No entanto, incorre num discurso contraditório e procura fundamentar a sua decisão na
proteção de bens jurídicos protegidos pela incriminação (família, autonomia sexual, saúde
genética e etc.)

É necessário recorrer-se aos Três Degraus da Proteção de Bens Jurídicos: toda a norma penal de
legitimidade questionável deve:

1. Atender ao que deve ser protegido,


2. A quem deve proteger-se,
3. Contra o que deve ser protegido.

Concretização do princípio do bem jurídico deve atender a diretrizes:

1. Leis penais arbitrárias, fundadas em fins ideológicos ou contrárias a direitos fundamentais,


não protegem quaisquer bens jurídicos;
2. Comportamentos imorais ou reprováveis não fundamentam, por si só a lesão de um bem
jurídico;

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3. Proteção de sentimentos apenas pode corresponder à proteção de um bem jurídico- penal


quando pressuponha uma ameaça real;
4. Autolesão consciente e responsável, bem como o auxílio que lhe seja prestado, não põe me
causa qualquer bem jurídico (de outrem);
5. Normais penais simbólicas não desempenham função de proteção de bens jurídicos
6. Crenças ou tabus não são bens jurídicos;
7. Objetos de tutela abstratos que sejam de difícil apreensão não podem ser tidos como bens
Jurídicos;
8. Bem jurídico coletivo não pode ser objeto de tutela de determinada norma incriminadora,
sempre que tal implique simultaneamente a lesão de um bem jurídico individual.

Função liberal da ideia de bem jurídico consiste precisamente também em proteger a minoria contra o
domínio da maioria.
• Opinião pública sobre a aprovação ou reprovação de determinadas condutas não ofensivas de
bens jurídicos é mutável e suscetível de manipulação.
• Não pode ser esse o fundamento de uma política jurídico-penal que se pretenda racional
• Roxin concorda com a seguinte afirmação: “os defensores de um conceito de bem jurídico
crítico da legislação dirigem-se (...) antes de mais ao legislador e indicam orientações político-
criminais sem pretenderem que as suas propostas (...) alcancem em todos os casos um sentido-
constitucionalmente vinculante”.

Conclusões de Roxin:

o A pertença da conduta ao núcleo duro da esfera privada da pessoa pressupõe, em


primeiro lugar, a falta de uma lesão de bens jurídicos alheios.
o A inconstitucionalidade de uma criminalização de condutas que não ofendem bens
jurídicos também pode depreender-se de princípios constitucionais distintos da
dignidade humana (em particular do princípio da proporcionalidade ou de direitos
fundamentais especiais);
o O princípio do bem jurídico possui um relevante significado político-criminal mesmo
quando a sua não observância não resulte em inconstitucionalidade.

Figueiredo Dias

Bem jurídico = expressão de um interesse, da pessoa ou da comunidade, na manutenção ou integração de


um certo estado, objeto ou bem em si mesmo socialmente relevante e por isso juridicamente reconhecido
como valioso.
• Tarefa do direito penal é a preservação das condições fundamentais da mais livre realização
possível da personalidade de cada homem na comunidade

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Não consistindo em o bem jurídico um conceito fechado e apto à subsunção, bem se compreende que,
apesar de toda a evolução e progresso verificados, continuem hoje a discutir-se várias questões relativas à
sua concreta verificação, como a de saber se protegem autênticos bens jurídicos algumas incriminações.

Maria Fernanda Palma

Quem considera o conceito de bem jurídico tem por objeto de proteção da norma uma substancialidade
real e social – tem que ser um quid lesionável, quid esse que tem certa substancialidade em termos de
vida social e corresponde a algo mais que um interesse privado ou subjetivo.

• Tem que ser configurado como interesse intersubjetivo – tem que corresponder a necessidades
mais do que do sujeito, da comunidade;
• Quids que têm substância real, não meramente simbólica, e correspondem a realidades que têm
existência no mundo real e são lesionáveis.
o MFP: certa ideia de substancialidade é sobretudo uma ideia presente na propriedade, na
coisa.
o Ideia de bem jurídico é ideia liberal e em que há um certo caráter real em todos os
interesses valores (reificação da ideia de bem jurídico). Algo substancial é algo
semelhante a uma coisa, por isso lesionável.
▪ Ideia não muito favorável ao conceito de bem jurídico – tornar a vida ou a
integridade em coisas é expressão máxima do liberalismo.
▪ O ponto de partida para o conceito de bem jurídico não pode já ser a
propriedade, que não está no topo dos bens que exemplarmente fundamentam
o Estado.

Modelo argumentativo não se pode basear exclusivamente na proteção de bens jurídicos.


• Bens jurídicos são entendidos como interesses substanciais concretos, associados a condições
existenciais individuais e coletivas
• Além disto, tem de se apelar a uma relação com o Estado de Direito democrático, a uma lógica
de preservação da subjetividade e do reconhecimento dos interesses essenciais dos outros.
o Referência a Estado de Direito democrático e reconhecimento de subjetividade alheia
ultrapassa a utilização rígida do conceito de bem jurídico.

Uma dimensão de pessoa (valor da livre orientação sexual, desenvolvimento de personalidade e etc.) pode
ser um interesse suficientemente relevante para legitimar incriminações que, em última análise, têm
apenas uma vaga referência a bens jurídicos no sentido tradicional.

• Conceito pode ser equívoco pelo que a pertinência da sua utilização deve limitar-se a ser
conceito exploratório de critérios limitadores das normas incriminadoras, o que permite
reconhecer algumas características de que depende a legitimidade das mesmas;

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• Pedra de toque não é o bem jurídico, mas sim qual o fundamento do poder punitivo do Estado, à
luz dos vetores;
• Conceito material de crime prende-se com a ideia de saber qual a legitimidade de se incriminar
certa conduta.

o Roxin e FD: partem do conceito de bem jurídico e de qual o interesse que está a ser
protegido ao criminalizar determinada conduta.
o MFP: há vários patamares. Não basta haver um bem jurídico e temos de perceber se
essa incriminação é válida consoante os princípios jurídico-constitucionais.
o Se não passar no crivo dos princípios é materialmente inconstitucional, logo não
corresponde a um crime, no seu conceito material.

6. O problema dos fins da pena criminal

O problema que surge à luz do fim das penas reside na discussão de toda a teoria penal que
incide fundamentalmente sobre as seguintes questões: legitimação, fundamentação e função da
intervenção penal estatal. O sentido, o fundamento e as finalidades da pena criminal são determinações
indispensáveis para decidir de que forma deve ela actuar, no sentido de cumprir a função do Direito Penal
– elas recaem portanto no próprio conceito material de crime.

Neste sentido surgem duas teorias:

• Teorias absolutas – teorias conexas essencialmente à retribuição e expiação;


• Teorias relativas – subdividem-se em dois grupos de doutrinas, nomeadamente a prevenção
geral e a prevenção especial (ou individual).

6.1. Teorias absolutas: a pena como instrumento de retribuição

À luz desta teoria, a essência da pena criminal reconduz-se à retribuição, expiação (penitência), reparação
ou compensação do mal crime que foi cometido.
A ideia é a de que o facto que se cometeu no passado, é a justa paga do mal que com o crime se realizou,
sendo o justo e o equivalente do dano do facto e da culpa do agente – tem de existir correspondência entre
a pena e o facto. Apenas deste modo fica assegurada a dignidade histórica que a pena desde tempos
remotos assumiu, alcançando a sintonia com o sentimento cultural comunitário, reconduzindo a pena ao
que sempre se entendeu, um castigo e uma expiação do mal do crime cometido.

MFP: as teorias retributivas foram nas suas primeiras formulações, teorias absolutas, com o fim de
justificar a compensação do mal do crime – independentemente de qualquer fim pragmático.

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Esta teoria tem dignidade histórica, sendo também suportada pelo pensamento filosófico:

• Na antiguidade grega é relatada uma conversa entre Anaxágoras e Péricles onde se manifesta,
primordialmente, a concepção retributiva;

• O princípio do Talião “olho por olho, dente por dente”, correspondendo à Idade Antiga de
representações mitológicas e durante a Idade Média, em que se afigurava como um raciocínio
religioso de que a realização de justiça no mundo, com o mandamento de Deus, conduz à
legitimação da aplicação da pena retributiva pelo juiz como representante do terreno da justiça
divina;
• KANT, neste sentido, encarava a pena como sendo um “imperativo categórico”, preconizando
que quando a justiça desapareça, não tinha mais valor que os homens vivessem na terra (teria o
último assassino que se encontrasse na prisão de ser previamente enforcado), sendo na negação
do direito alheio a negação do direito em geral, o que reconduz à ideia do imperativo categórico,
concebendo o crime como a negação da universalidade da lei;
• HEGEL, considerava o crime como a negação do direito e a pena como a negação da negação,
como a anulação do crime, que de outro modo continuaria a valer, e como restabelecimento do
Direito. Acrescentava ainda que aplicar esta consideração absoluta da pena com qualquer fim de
prevenção seria como “levantar um pau contra um cão e tratar o ser humano não segundo a sua
honra e liberdade, mas como um cão.” –concebia a pena como um modo de honrar o criminoso,
e não como um instrumento ao serviço da sociedade através do qual a dignidade do criminoso
como pessoa possa ser afetada. A pena é uma consequência lógica do crime, pois sendo a
negação deste que constitui a reafirmação dialética do Direito.

A discussão central relativa às teorias absolutas da retribuição assentou na determinação da compensação


ou a igualação que deveria operar entre o “mal do crime” e o “mal da pena”. A discussão encontra-se hoje
terminada chegando-se à seguinte conclusão: a compensação de que a retribuição se nutre só pode ser em
função da ilicitude do facto e da culpa do agente. Logo, esta doutrina reivindica acima de tudo as
exigências da justiça, implicando que cada indivíduo seja tratado segundo a sua culpa e não segundo a
lotaria da sorte e do azar em que na vida se jogam os comportamentos humanos e as suas consequências.
O que está em causa é tratar o homem segundo a sua liberdade e dignidade pessoal, isto reconduz a um
princípio que se traduz no pilar fundamental do direito penal (democrático e civilizado) – o princípio da
culpa – não pode haver pena sem culpa e a medida da pena não pode em caso algum ultrapassar a medida
da culpa. Este princípio foi edificado pelas teorias absolutas, sendo o princípio absoluto hoje consagrado
(art.40º, nº2 CP), absoluto para toda a aplicação da pena, consagrando uma absoluta proibição à pena que
viole eminentemente a dignidade humana.

No entanto, deve frisar-se que se toda a pena supõe a culpa, nem toda a culpa supõe a pena – apenas
aquela culpa que simultaneamente acarrete necessidade ou carência de pena. Chegamos portanto à
seguinte máxima – a culpa é pressuposto e limite, mas não fundamento da pena.

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Como teoria dos fins das penas, a doutrina retributiva das teorias absolutas não pode operar, à luz do
Professor Figueiredo Dias. Não é verdadeiramente uma teoria dos fins da pena, visando justamente o
contrário - a consideração da pena como entidade independente de fins – não sendo a justiça um “fim”,
mas sim os efeitos relevantes na e para a vida em sociedade.
A doutrina de retribuição deve também ser recusada pela sua inadequação à legitimação, à fundamentação
e ao sentido da intervenção penal, estes elementos apenas podem resultar da necessidade que ao Estado
incumbe de satisfazer, de proporcionar as condições de existência em sociedade assegurando a cada
pessoa o especo possível de realização livre da sua personalidade, como fundamento para retirar o
mínimo e indispensável de direitos, liberdades e garantias assegurando o direito dos outros e com
eles a comunidade.

MFP: A intervenção do Estado, servido do poder punitivo, não pode servir para sancionar diretamente a
culpa uma vez que nem a própria pena é adequada a uma intervenção na personalidade de cada criminoso.
Não cabe ao Estado, pelo menos não num Estado de Direito Democrático promover uma Ética ou moral
em si mesmas – cabe sim assegurar a medida indispensável da preservação das medidas de segurança
com o fim de garantir condições sociais de existência. O princípio da necessidade da pena vem reafirmar
isto, consagrado no art.18º, nº2 CRP, postula que a pena só deve ser aplicada quando necessária para a
preservação da sociedade.

Conclusões:

• Neste sentido para cumprir a retribuição, a expiação ou a compensação do mal do crime não são
meios legítimos ou idóneos;
• Como Estado Democrático e pluralista dos nossos dias, este não pode afigurar-se como uma
entidade sancionadora de pecados ou vícios, tendo de limitar-se a proteger os bens jurídicos;
• O Estado não pode servir-se de uma pena dissociada de fins, como a que é apresentada pela
teorias absoluta, nem se pode afigurar como instância destinada à realização do ideal de “justiça”
como uma espécie de justiça divina.

Crítica: uma pena retributiva, baseada na compensação pelo mal do crime, fazendo sofrer o delinquente
como compensação ou expiação, configura uma doutrina puramente social-negativa, vedando qualquer
socialização do delinquente ou restauração da paz jurídica afetada pelo crime, sendo inimiga de qualquer
atuação preventiva e qualquer pretensão de controlo e domínio da criminalidade.

6.2.Teorias relativas: A pena como instrumento de prevenção

Ao contrário do que foi supracitado (relativamente à teoria absoluta), as teorias relativas são teorias de
fins. A pena é encarada como um mal para quem a sofre, e não como uma compensação ou expiação pelo

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mal do crime, sendo encarado de outro prisma, nomeadamente de um prisma de prevenção ou profilaxia
criminal.

• Para o funcionamento da sociedade, cada pessoa, tem de prescindir de direitos que lhe assistem e
lhe são conferidos em nome da sua eminente dignidade (na sua medida indispensável).
• A questão da preservação da dignidade da pessoa é independente da questão das finalidades da
pena – deve ser resolvida independentemente dela. A questão reside em saber se, não a pena mas
sim a sua aplicação não deve fazer-se em termos que respeitem a intocável dignidade da pessoa
humana , sendo a resposta inevitavelmente positiva. Este problema prende-se com os limites que
devem ser impostos às suas condições de aplicação, e não com os fins da pena.
• Contende, portanto, com a função e a materialidade do concreto de culpa jurídico-penal e não
com as finalidades do conceito da pena.

6.2.1. Prevenção Geral

A prevenção geral radica na concepção da pena como um instrumento político-criminal destinado a atuar
sobre a generalidade dos membros da comunidade – afastando-os da prática do crime através da ameaça
penal estatuída pela lei, da realidade da tua aplicação e da efetividade da sua execução. Os defensores das
teorias absolutas julgam a prevenção geral como uma violação da eminente dignidade humana –
improcedente.1
A atuação estatal, neste sentido, assume uma dupla perspectiva:

• Prevenção geral negativa: a pena é concebida como uma forma estatal de intimidação das
outras pessoas, através do sofrimento que com ela se inflige ao delinquente, e cujo receio desta
punição reconduz a não cometerem factos puníveis.
Críticas: os defensores da teoria absoluta retributiva, que julgam as teorias relativas, apesar de
forma improcedente, apontam uma indiscutível fragilidade à prevenção geral na sua vertente
negativa, nomeadamente por se tratar de uma forma de intimidação da generalidade dos
cidadãos. Não se torna possível determinar empiricamente o quantum de pena necessário para
alcançar tal efeito, por diversos motivos – não logrando na erradicação do crime, a tendência
será a de usarem para tal efeito penas cada vez mais severas e desumanas, podendo o Direito
Penal descambar, culminando num Direito Penal do terror e desproporcional, violando a
eminente dignidade da pessoa humana.

• Prevenção geral positiva: por outro lado, a pena é concebida como a forma que um Estado se
serve para manter e reforçar a confiança da comunidade na validade e na força das suas normas
na tutela dos bens jurídicos, configurando um instrumento destinado a relevar perante a
comunidade e à inquebrantabilidade da ordem jurídica, reforçando os padrões de comportamento

1
DIAS FIGUEIREDO, Jorge, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 3ª edição, 2019, pp.57 e 58.

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adequado às normas. Os valores inerentes são os de confiança e de aprendizagem (que resulta da


demonstração das consequências do facto punível), e ainda de integração. Este critério reforça a
confiança da comunidade relativamente ao Estado e ao Direito, restaurando a paz jurídica e
permite que se encontre uma pena justa e adequada à culpa do delinquente. É reforçada por
teorias atuais – teorias sistémico-sociais.

A prevenção geral é atualmente convencionada como um género de coação psicológica2 em que a


finalidade da pena reside em criar um espírito nos potenciais criminosos um contra motivo
suficientemente robusto para evitar a prática do crime, contra motivações derivadas do conhecimento do
mal da pena, aniquilando as motivações conducentes à prática do crime, alcançando deste modo,
eficazmente a prevenção.

• O ponto de partida das doutrinas da prevenção geral é desde logo acolhido, pelo facto de se
conectar com a função do direito penal de tutela subsidiária de bens jurídicos, ao contrário do
que sucede com as doutrinas de retribuição.
• Exige-se portanto da pena, à luz desta perspectiva, uma atuação preventiva sobre a generalidade
dos membros da sociedade seja no momento da sua ameaça abstrata, seja no momento da sua
aplicação ou na sua efetiva execução.

6.2.2. Prevenção especial (ou individual)

“As doutrinas da prevenção especial têm por denominador comum a ideia de que a pena é um instrumento
de atuação preventiva sobre a pessoa do delinquente com o fim de evitar que no futuro ele cometa novos
crimes.”3

Assim, este critério é também encarado com uma finalidade de prevenção de reincidência. De que forma
deve então a pena cumprir esta finalidade?

A ideia foi reconduzida à intimidação pessoal e individual: a pena visaria em aterrorizar o


delinquente ao ponto de este não repetir prática semelhante no futuro. Para outros a prevenção especial
lograria em alcançar um efeito de defesa social através da separação ou segregação do delinquente da
sociedade, tendo em conta a sua perigosidade social. Surgem neste sentido duas aceções:

• Prevenção especial negativa


• Prevenção especial de neutralização

O efeito pretendido com a prevenção especial é o de que se criem condições necessárias para que o
delinquente possa no futuro continuar a viver a sua vida sem cometer crimes – prevenção de reincidência.

2
Feuerbach.
3 DIAS FIGUEIREDO, Jorge, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 3ª edição, 2019, p.62.

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Para além desse propósito, tendem ainda em lograr a reinserção social, a ressocialização do delinquente –
prevenção especial positiva ou de socialização. Tal como se verificou com a prevenção geral, a prevenção
especial revela de igual modo sintonia com a função do direito penal como tutela subsidiária dos bens
jurídicos. Reforça portanto a ideia de que o Estado tem o dever de auxiliar os membros da comunidade
colocados em posição particularmente desfavorável, oferecendo os meios necessários à sua reincerção
social.

O Professor Figueiredo Dias preconiza deste modo, a indispensabilidade e o caráter irrenunciável da


prevenção individual nesta perspectiva de socialização (ou prevenção especial positiva) como
componente das finalidades da pena.

Críticas:

• É de recusar um caráter da prevenção especial que se destine à correção ou emenda moral


do delinquente, ainda que seja no sentido de substituir as concepções pessoais pelos juízos
de valor próprios do ordenamento jurídico – para este efeito carece o Estado de legitimação.
• De igual modo, é de recusar o tratamento médico ou clínico como proposto por alguns
autores da prevenção especial, sempre que este se torne num tratamento coactivo das
inclinações ou tendências do delinquente para o crime – estaria o Estado a violar a liberdade
de autodeterminação da pessoa do delinquente, bem como outros princípios jurídico-
constitucionais, com especial relevo a dignidade da pessoa humana (art.1º CRP).
• Pelos motivos enunciados, apenas a prevenção de reincidência pode ser acolhida pelo
direito penal de um Estado de Direito, e ainda nesta aceção, não se pode acolher como
finalidade única da pena – iria resultar numa pena absolutamente indeterminada4,
dependente de fatores indetermináveis como o tempo de persistência da perigosidade social
do delinquente ou em casos em que a sua socialização não fosse lograda.
• Por fim, no que diz respeito à prevenção individual positiva, esta aporta algumas
dificuldades uma vez que se destina à socialização do delinquente, e pode ocorrer que o
agente não revela carência de socialização, pelo que se chega à conclusão que a prevenção
especial positiva não pode valer por si só como solução para os fins das penas. Nos casos
em que, efetivamente, esta desnecessidade (de socialização) se configure, só haverá lugar
muito pontualmente para uma prevenção especial negativa – de pura defesa social. Nestes
casos, que são muito menos frequentes, nomeadamente no que diz respeito a crimes
económicos, em especial, os crimes de “colarinho branco” , uma vez que não se revela
carente de socialização tendo em conta precisamente o status económico-social, a
respeitabilidade pelo modo de vida e o seu posicionamento na sociedade como defendem
alguns autores. Contrariamente, o Professor Figueiredo Dias alega que este entendimento é
deficiente na medida em que também o crime económico (fraude fiscal, subvenções,

4 Pinto de Albuquerque.

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atuações ilícitas no mercado etc) revela um defeito de socialização do agente, e tem o


Estado o dever de adotar mecanismos para evitar a sua reincidência.

6.3.Concertação agente-vítima e a reparação de danos

É hoje debatida, cada vez com mais persistência, uma nova e autónoma finalidade da pena no sentido de,
com ela operar conjuntamente uma possível concertação entre o agente e a vítima através da reparação de
danos (tanto patrimoniais como morais) causados pelo crime.

• ROXIN, procura através desta acepção erguer um sistema tripartido de sanções penais: penas,
medidas de segurança e reparação de danos.

6.4.Teorias Mistas ou Unificadoras

As teorias onde reentre a ideia de retribuição das teorias absolutas são rejeitadas à luz de teorias
unificadoras. No entanto como iremos ver, não podemos realizar esta desconexão, uma vez que coloca em
causa o princípio da é culpa.

6.4.1. Teorias da prevenção integral

O ponto de partida reside na combinação ou unificação das finalidades da pena – que opera
a nível da prevenção geral e especial, com exclusão de qualquer vestígio de retribuição,
expiação ou compensação do mal. Consiste portanto numa compreensão orientada para
atribuir a cada uma (prevenção geral e especial) a máxima incidência na prossecução de um
ideal de prevenção integral. Esta concepção unificadora deve ser globalmente recusada, uma
vez que veda qualquer intervenção da concepção retributiva na legitimidade para integrar a
composição dos fins das penas o que traduz na grave consequência de recusa do pensamento
da culpa e do seu princípio como limite do problema: substituindo-se pela perigosidade ou
pelo principio da proporcionalidade, e ainda por uma manipulação das ideia de culpa como
derivada da prevenção.
Isto traduz-se num desrespeito pela eminente dignidade da pessoa (pressuposto e limite
do Direito Penal).

6.4.2. Teoria Unificadora preventiva dos fins da pena

ROXIN, por outro lado conclui que a pena serve exclusivamente finalidades de prevenção
geral e especial, mas nunca negando a intervenção da retribuição na querela de finalidades

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da pena, pelo que não significa abandonar nem minimizar o pensamento e o princípio da
culpa.

Assim:

• A culpa é pressuposto e limite inultrapassável da sua medida;


• A medida da pena pode ser fixada abaixo desse limite máximo, se tal se tornar necessário à luz
das exigências da prevenção especial e se não se opuserem as exigências mínimas da prevenção
geral, sob a forma das necessidades irrenunciáveis da tutela do ordenamento jurídico.
• A moldura da culpa, é dentro desta moldura (com exceção dos casos especiais de particulares
exigências da prevenção especial), o juiz deverá fixar a medida concreta da pena.

Ao mesmo tempo que ROXIN afirma que a medida da culpa é dada não por um ponto exato da
escala penal, mas através de uma moldura de culpa, em que o juiz deve fixar a medida concreta
da pena, implica uma teoria unificadora preventiva dos fins da pena. Com a construção desta
moldura da culpa como espaço de aplicação da pena, surge de novo a ideia de compensação da
culpa – ideia de retribuição, regressando de novo às finalidades da pena e degradando os
propósitos preventivos que deveriam ser únicos, para meros corretores da correspondência entre
pena e culpa – uma versão disfarçada da ideia de compensação da culpa, a ideia mestra de
retribuição, implicando o seu regresso às finalidades da pena. Assim se degrada o papel central
que cabe à prevenção geral (positiva), para lhe conferir a função de mínimo dos mínimos da
pena.

6.5.Finalidades e limites das penas criminais

A solução preconizada pelo Professor Figueiredo Dias é a de que os fins das penas só podem ter
natureza preventiva, seja ela prevenção geral (negativa ou positiva) ou prevenção especial
(positiva ou negativa) mas não natureza retributiva. O Direito Penal e o seu exercício pelo
Estado fundamentam-se na necessidade estatal de subtrair à disponibilidade de cada pessoa o
mínimo dos seus direitos, liberdades e garantias indispensável ao funcionamento da sociedade,
preservação dos bens jurídicos essenciais e em última instância permitir a realização da mais
livre possível personalidade de cada um enquanto indivíduo e enquanto membro da sociedade.

• Posto isto, a pena criminal na sua ameaça, na sua aplicação concreta e na sua execução
efetiva apenas pode prosseguir a realização desta finalidade – prevenindo a prática de
futuros crimes.
• A prevenção geral e especial devem operar-se em conjunto, não esquecendo, como
refere a Professora Maria Fernanda Palma , que a prevenção especial tem uma lógica

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paralela à do princípio da necessidade da pena, que carece de uma limitação e


articulação por este princípio.

6.5.1. Fundamentos da punição no sistema penal Português

O art.40º do CP estabelece as finalidades da punição. O preceito foi introduzido aquando uma reforma
penal que ocorreu em 1995, no seguimento de uma fase que pretendia ultrapassar as rotinas judiciais
retributivas.

• O preceito tinha como objetivo estabelecer o fundamento da punição, que seria a prevenção geral
na dimensão da proteção dos bens jurídicos (auxiliada pela prevenção especial) e que a culpa-
retribuição apenas iria conter uma função restritiva – consagrada no art.40º, nº2 CP.
• O Professor Figueiredo Dias densificou o pensamento de ROXIN (associar a culpabilidade do
agente a uma função meramente restritiva nos fundamentos de punição), e neste sentido
pretendia uma exclusiva fundamentação preventivo-geral da decisão de punir.
• Neste sentido, o Professor preconiza que segundo o art.40º a punição deve ancorar-se na
necessidade preventiva, mesmo que os limites de culpabilidade anulem a justificação da pena –
neste prisma, a Professora MFP refere que, à luz desta interpretação, parece nunca haver lugar
ao afastamento da pena perante a persistência das exigências mínimas da prevenção geral,
ainda que as exigências da culpa apontem para um limite inferior. Este pensamento fará
depender a aplicação da pena exclusivamente da prevenção geral positiva e a culpabilidade do
agente apenas controlará a medida da pena.

Críticas da MFP à interpretação do FD:

➔ O primeiro argumento é o de que, esta leitura do art.40º aporta desde logo dificuldades do ponto
de vista sistemático, uma vez que o próprio Código Penal estabelece a culpa do agente como o
critério fundamental da medida da pena – justificando a variação entre o máximo e o mínimo
(art.70º CP), o que evidencia logo o problema de o critério da medida judicial da pena poder
ser diferente do fundamento legal de punição.
➔ O segundo argumento reside no facto de diminuir/reduzir a culpabilidade do agente a um
critério meramente restritivo ou acessório de uma responsabilidade baseada na PG positiva
(proteção de bens jurídicos e promoção da segurança geral) auxiliada pena PE, quando a
culpabilidade do agente é um elemento do conceito de crime e um pressuposto essencial de
toda a atribuição de responsabilidade.
➔ Concretizando estes dois primeiros argumentos, MFP chega à seguinte conclusão: qual o
significado desta redução da culpabilidade a um mero princípio restritivo e até que ponto será
esta redução compatível com o sistema legal e constitucional. Será plausível justificar a
aplicação de uma pena ao agente quando a censurabilidade deste seja mínima, com fundamento
na perda de confiança no Direito, os sentimentos de impunidade ou o enfraquecer das
expectativas relativas ao sistema (Estado e aplicação do Direito)?

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➔ O princípio da culpa é expressão de uma consideração plena da igual dignidade da pessoa, assim
como de igual modo a consideração dos interesses de todos e a justa oportunidade de cada
pessoa orientar o seu comportamento pelas normas penais (art.1º, 13º e 27º da CRP). Desde logo
a tese do caráter restritivo de culpabilidade apresenta debilidades.
➔ Nada tem que ver com a ideia de retribuição, mas sim com a ideia de uma relação punitiva
justa, a partir de comportamentos que merecem tutela penal porque os seus autores reuniram as
condições para se reconhecerem como responsáveis, tendo deste modo cabimento um juízo de
censura pessoal pela prática de certos comportamentos.
➔ Na própria seleção legislativa dos comportamentos a ser puníveis, não pode ser considerada
apenas uma perspectiva baseada na satisfação dos interesses gerais da comunidade ou numa
perspectiva objetiva de proteger bens jurídicos – terá de existir cabimento para a consideração de
um certo nível de desvalor da ação, bem como a exigibilidade média de um outro
comportamento a quem viola a norma. Ex: erros médicos ou outras atividades de risco praticados
em situações de excesso de trabalho, ou certos casos de interrupção voluntária da gravidez
(quando passa do prazo) – situação de comportamento que colide com bem jurídico provando
danos sociais, em situações de grave desigualdade e restrição de oportunidade.
➔ Utilizar a prevenção essencialmente e exclusivamente como pressuposto da aplicação da pena,
dado o caráter instrumentalizador5que possuí a prevenção geral, instrumentalizam a pessoa –
aplicando-se penas acima da culpa.

Posto isto, existem dois modelos referentes à análise do art.40º, concretamente na sua articulação
entre o nº1 e o nº2: relação entre prevenção geral positiva, prevenção especial e a função da
culpabilidade do agente na fundamentação judicial da punição (determinação da pena concreta)

• Para o FD, a culpabilidade não tem um papel determinante na decisão do se da pena – opera
apenas a posteriori na determinação da medida judicial concreta para evitar que se transgrida um
limite, ainda que justificável preventivamente – para evitar excessos preventivos numa moldura
entre um máximo e um mínimo baseada em critérios de culpabilidade média.
o A culpabilidade é um princípio restritivo que funciona no quadro da prevenção,
fixando o limite máximo atingível pela prevenção.

Passos para definição da medida da pena:


1. O professor olha primeiro para a PG positiva, em que o limite mínimo corresponde ao
necessário para proteger os bens jurídicos de acordo com a reafirmação da eficácia do
Direito e o limite máximo corresponde à medida ótima de proteção dos bens jurídicos.
Ex: moldura penal legal situada entre 2 e 8 anos – a PG não permite aplicar nada abaixo
da moldura legal estabelecida, ficaria aquém do necessário para o Direito Penal cumprir
o seu objetivo. PE de exigência reduzida, e PG de exigência elevada iriam situar o
intervalo entre 5 a 6.5 anos – acima deste valor seria um castigo demasiado pesado.

5 PALMA, M.F., Direito Constitucional Penal, p.123.

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2. A finalidade primordial da pena é a prevenção geral positiva coadjuvada pela prevenção


especial.
3. A PE determina em última instância a medida da pena ( PE positiva e negativa).
Prevenção de futuros crimes pelo delinquente através da sua socialização (positiva) e
intimidação (negativa).
4. Por último a culpa, vai determinar a medida da pena tendo em conta que esta está
delimitada pela PG e PE. No art.40º/2 CP devemos entender culpa como “limite
máximo”. Ex: tendo em conta o exemplo anterior, caso o juízo de culpa fosse reduzido
iria redundar nos 5 anos (não poderia ser abaixo disso, pois o mínimo da PG tem de ser
respeitado, prevalecendo a proteção dos bens jurídicos. Sendo assim, ainda que on juízo
de culpa se situe abaixo da PG, deverá ser aplicada a pena onde esta se situe. Art.70º
CP – conseguimos aplicar uma pena não privativa da liberdade? Provavelmente não,
por ser uma pena consideravelmente elevada.

o Não apoia uma dupla fundamentação do art.40º, defendendo que torvaria a natureza
exclusivamente preventiva das finalidades das penas.

• Para MFP, a culpabilidade opera desde logo a priori, condicionando os critérios de necessidade
a partir da consideração do merecimento da conduta do agente (não numa lógica de retribuição).
A culpabilidade não restringe a necessidade , apenas a reconfigura – estabelecendo um limite
inultrapassável, não podendo a pena concreta e a decisão de punir ultrapassar este limite.
o A prevenção é um princípio restritivo que opera no quadro delimitado pela
culpabilidade (máximo e mínimo) que o comportamento justifica – mas a culpa não é
alheia à prevenção.

Passos para definição da medida da pena:


1. Devemos fazer refletir na moldura penal o juízo de culpa do agente (sendo este
reduzido ou elevado). Ex: moldura penal legal situada entre 2 e 8 anos. Juízo de culpa
reduzido do agente – o intervalo deverá ser situado entre o mínimo ou acima do
mínimo (intervalo de 2 a 5 anos).
2. Posteriormente, neste intervalo definido avaliamos a PG e a PE
Ex: tendo em conta o referido anteriormente, se tivermos uma PG elevada irá
aproximar-nos dos 3.5, mas se tivermos uma PE reduzida irá reduzir para 2 anos.
3. Após esta consideração, realizamos um balanço entre as duas. Ex: no exemplo
referido seria 2.75 anos. Com uma pena concreta nestes termos facilmente atingimos
uma pena não privativa da liberdade – art.70º CP.

o Para a regente, a culpa é pressuposto e limite da pena. Portanto, se a PG e a PE forem


elevadas, aplica-se numa pena máxima tendo em conta o intervalo definido previamente

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Inês Nabeiro Ano letivo 2023/2024

dentro da moldura penal pelo juízo de culpa, o mesmo raciocínio para valores mínimos
– pena mínima. (Contrariamente a FD)

➔ A moldura penal é então fixada em função deste limite, pelo que a PG e a PE podem determinar
uma pena, no entanto nunca pode ser superior a esse limite de culpabilidade a priori fixado.
Portanto, a PG e a PE nunca poderão justificar a punição se a culpa for mínima ou exígua. Neste
sentido FD preconiza que o papel da culpa no sistema punitivo reside na proibição do excesso,
não sendo fundamento da pena, mas constituindo o seu pressuposto necessário e
consequentemente o seu limite inultrapassável.

7. O papel dos princípios no Direito Penal na legitimação das normas


incriminadoras

Os princípios são idéias gerais cujo papel é permitir que a constante regulamentação normativa produzida
num sistema jurídico respeite uma determinada racionalidade, assim como assegurar o controlo da
efetivação prática do sistema.

• São expressão de uma racionalidade inerente a um conjunto de normas ou objetivos gerais do


sistema, que têm de ser legitimados;
• Princípios penais são o ponto de apoio para qualquer raciocínio jurídico-penal e sustentam-nos;
• Há moldagem do conteúdo desses princípios quando se altera a racionalidade interna do sistema
com a introdução de novas ideias de justiça, transformação de alguns deles e atribuição de novas
dimensões;
• Os princípios são a estrutura e os valores principais do sistema – são o esqueleto do Direito
Penal. São o instrumento integrador do sistema, não sendo um instrumento normativo fechado,
podendo ser moldados pela realidade;
• A relevância prática da qualificação de um preceito legal como Direito Penal traduz-se na sua
• subordinação aos princípios do Direito Penal. Por outro lado, são aqueles mesmos princípios que
orientam a indagação sobre o caráter penal de uma norma ou a qualificação de um facto como
ilícito penal

7.1. Princípio da culpa

Não é objeto de uma formulação legal tão nítida como o da legalidade.

• Decorre da dignidade da pessoa humana e do direito à liberdade (art. 1º e 27º CRP).

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Inês Nabeiro Ano letivo 2023/2024

• No CP é expressamente indicado como fator de determinação da medida da pena (art. 40º/2, 71º
e 72º).

Ideia de censurabilidade de alguém por um facto por ela praticado

Doutrina tem entendido um significado triplo para este princípio:


Como fundamento da pena – não tem aceitação unânime e há autores que dizem que não é
racional que um desvalor ético-social derivado da prática de certos comportamentos tenha
função de legitimar a realização dos fins do Estado, como a proteção de bens jurídicos ou a
efetivação de prestações sociais.
o MFP: além do Direito Penal ser legítimo porque as suas normas realizam os objetivos da
sociedade, é também legitimado por ter comandos e proibições que conduzam à aplicação e
realização de ideias culturais de justiça que enformam as expectativas dominantes na sociedade.
o É neste segundo aspeto que o princípio da culpa ainda tem lugar como fundamento do Direito
Penal. Pena não serve apenas para proteger bens jurídicos, mas também para realizar uma ideia
de justiça que está culturalmente enraizada e isso não pode estar desligado do conceito de culpa.
o Ultrapassa o papel restritivo considerando que a democracia exige a igual consideração pelos
interesses e a subjetividade de cada um – suum cuique tribuere (a cada um o que lhe é devido,
aquilo de que é merecedor, na base da justa oportunidade de participar no todo, na comunidade,
na sociedade política).

• Como fator da determinação da medida da pena – possibilidade de chegar a comparações


entre comportamentos de agentes através da referência à ideia de culpa;
• Como princípio da responsabilidade subjetiva – limitação da responsabilidade penal ao
âmbito do domínio da vontade humana, que tem como pressuposto a ideia de liberdade e poder
de ação causal.

Em Direito Penal só há responsabilidade subjetiva e não objetiva (pelo risco)

o Coaduna-se com o art. 147º CP pois todos os crimes de agravação pelo resultado têm de ser
coadunados com o art. 18º CRP, que diz que só há imputação de resultados agravantes se tiver
agido com algum tipo de culpa (como a negligência);
o Não há resposta do Direito Penal para condutas fora do controlo dos agentes – associada a uma
liberdade de agir, em que há condições para os agentes se motivarem pela norma, e respetivas
consequências;
o Por este motivo, TC italiano liga este princípio com o princípio da legalidade pois não há crime
sem lei, tendo os agentes que conhecer as normas para se motivarem por elas. Tem de haver
possibilidade dos agentes se motivarem pelas normas para agirem, só assim é que cumprem os
seus ditames de conduta.

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Inês Nabeiro Ano letivo 2023/2024

A culpa tem de estar aferida por descrição de conduta e com base num facto suscetível de ser provado
em Tribunal e articula-se com o princípio da legalidade.

7.2. Princípio da necessidade da pena

➔ Intervenção mínima do Estado em matéria penal - tem como subprincípios a proporcionalidade


(certa relação quantitativa entre bens e valores diferentes a serem ponderados) e a adequação
(averigua- se que se o utiliza o meio mais apto/adequado para se atingir certo fim).

Surgiu como uma reação contra a utilização discricionária das penas pelo poder político ao serviço de
quaisquer fins, traduzindo historicamente a ideia de que a utilização pelo Estado de meios penais deve ser
limitada ou mesmo excecional.

Vindo de uma ideia primitiva de contrato social, hoje resta a aceitação de que o poder político se
justifica pelo serviço aos membros da sociedade – subordinação racional dos abstratos fins políticos à
realização da pessoa em sociedade.

Na discussão sobre a legitimidade da incriminação, o apelo ao princípio da necessidade surge na


discussão sobre:
• A carência de proteção penal do bem jurídico;
o Será contrariada quando se tratar de um mero valor moral sem expressão num bem
jurídico determinado (ex: relações homossexuais entre adultos);
o Não se afirmará quando os meios penais não forem absolutamente indispensáveis,
existindo outros meios sociais capazes de evitar determinados comportamentos (ex:
o planeamento familiar em vez da perseguição penal do aborto);
o Não se verificará quando o Direito Penal não evita a prática de certas condutas e
chega a ter um papel criminógeno (ex: condutas criminosas associadas ao aborto
clandestino).

Legislador ao criminalizar um comportamento tem de aferir se no Ordenamento Jurídico há algum outro


mecanismo jurídico que tutele o bem jurídico de forma igualmente eficaz que o Direito Penal e não seja
tão lesivo para o agressor (art. 18º/2 CRP).

• Intervenção penal é a último ratio de intervenção do Estado;

• Quanto à intervenção do princípio da necessidade da pena na determinação da responsabilidade


penal, dois aspetos são assinaláveis: a conformação do conteúdo de certos conceitos valorativos
ou critérios dos quais depende a responsabilização penal e a influência na medida da pena.

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7.3.Princípio da Igualdade Penal

• Art. 13º CRP – não é princípio específico do Direito Penal, mas orienta as soluções do sistema
penal.

À igualdade subjaz uma ideia de proporcionalidade entre a gravidade do ilícito e da pena bem como é a
igualdade que sustenta a medição da pena pela culpa.

Proporcionalidade é princípio formal cujo conteúdo é preenchido pelos outros princípios constitucionais
de Direito Penal, como a culpa e a necessidade da pena.

Idêntica necessidade de punir e idêntica culpa justificarão idênticas penas – ou, pelo menos, o direito a
que não seja mais gravemente punido.

• O princípio da igualdade proíbe tipos penais discriminatórios. Por outro lado, tendencialmente,
factos menos graves não podem ter uma punição superior a factos mais graves. Isso violaria o
princípio da igualdade (ex: furto de supermercado e violação);
• No que se refere ao conceito material de crime, o princípio da igualdade tem relevância na
delimitação negativa das incriminações e legitima, em certos casos, o conteúdo de normas
incriminadoras, mas não prevalece sobre o princípio da necessidade da pena;
• João Matos Viana: é um princípio fraco em direito penal. É altamente constrangido pelo
princípio da necessidade e da culpa. Em direito penal, muitas vezes, aquilo que aparentemente é
igual é tratado de forma desigual devido ao princípio da necessidade.

7.4. Princípio da Humanidade

• São emanações do Estado de Direito democrático e social;

• Expressa a ideia de responsabilidade social pela delinquência e disposição de respeitar e


recuperar a pessoa do delinquente;

• Justifica a rejeição de penas atentatórias do respeito pela pessoa humana como a pena de morte,
prisão perpétua, torturas e etc. (art. 24º /2, 25º /2 e 30º/1, 4 e 5 CRP).

➔ Expressão da dignidade da pessoa humana – um criminoso tem uma compreensão dos seus
direitos civis e políticos, mas não deixa de ser pessoa.

Apela ao princípio da sociabilidade, numa perspetiva de orientação do sistema penal não contemplada
pelos fins tradicionais da política criminal e que explicará que a lógica impiedosa e vertical do sistema
punitivo ceda a soluções que a flexibilizam por causa da noção de uma supremacia social de certos
interesses individuais aos quais outros interesses se deveriam sacrificar.

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Condiciona inevitavelmente a legitimação das normas incriminadoras em termos de proporcionalidade e


adequação de penas. Interferem na legitimação de normas incriminadoras em que estejam em causa
padrões mínimos de consideração pelos outros.

7.5. Princípio da legalidade (art.29º, nº1 e 3 da CRP) – formulação, âmbito e


fundamento

Breve sistematização:

• “Nullum crimen, nulla poena sine lege”

o Corolários:
o Scripta: art.163º, nº1 , al c) CRP – reserva de lei em sentido formal, tem de ser criada
pela AR ou Governo dentro dos limites da CRP – única forma de a lei penal ser válida.
o Certa: princípio da determinação
o Stricta: art.1º, nº3 CP – proibição de analogia.
o Praevia: art.2º e 3º CP e art.29º CRP, proibição de retroatividade

“Nulla poena sine crimen – princípio da conexão.

(Para que haja crime e pena, a lei deve ser escrita, certa, estrita e prévia).

• O princípio da legalidade é a base mínima e essencial de adequação do Direito Penal ao Estado


de Direito Democrático, decorrendo deste e integrando-se no elenco dos direitos, liberdades e
garantias fundamentais. Dos artigos 29º da CRP e 1º e 3º do CP resulta que as instâncias de
criação e aplicação do Direito Penal têm o seguinte regime:

1) A lei apenas pode, em princípio, ser fonte de Direito Penal mediante uma reserva relativa de
competência da Assembleia da República – no seu art.165º, nº1, al c) CRP;
2) O próprio conteúdo das normas penais terá de revelar um elevado grau de determinação, na
descrição das condutas incriminadas e das suas consequências – art. 29º, nºs 1 e 3 da CRP;
3) Existe um condicionamento do intérprete da lei penal, estando proibida a analogia e
eventualmente a própria interpretação extensiva de normas incriminadoras (MFP) – art.29º,
nºs 1 e 3 da CRP e art.1º, nº3 do CP;
4) Está consagrada a proibição de retroatividade de normas penais – art.29º, nºs 1 e 3 da CRP e
art.1º, nº1 do CP;
5) Consagra-se o princípio da retroatividade das leis penais que sejam de conteúdo mais
favorável ao arguido – art.29º, nº4 da CRP e art.2º, nºs 2 e 4 CP)

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Inês Nabeiro Ano letivo 2023/2024

O princípio da legalidade é a manifestação da separação de poderes, democracia igualitária, e é a


garantia da segurança dos indivíduos frente ao Estado mediante controlo da criação e aplicação
do Direito Penal pelos órgãos de representação democrática.

Fundamentos do princípio da legalidade

o Controlo democrático: principio de reserva de lei, precisamente pelo motivo de a lei


penal estar dependente do órgão mais ligado ao povo – tem de se determinar e garantir
que a lei apenas seja interpretada pela AR ou GOV dentro dos limites estabelecidos pela
CRP (normas de competência, competência concorrencial)
o Princípio da culpa: não pode ser admitido que alguém seja punido por ter violado
determinado comportamento se era incompreensível para o cidadão – não seria possível
censurar quem cometeu o crime nem realizar um juízo de culpa.
Segurança jurídica: decorre do art.2º da CRP – se a lei não seguisse estas características o
cidadão português não sabe o que é ou não permitido – nem pode ser admitido que alguém, seja
punido por ter violado um comportamento que era difícil de determinar que não era permitido –
gera insegurança jurídica, paralisação das esferas jurídicas.

Para JFD, temos que:

• O princípio da legalidade assume consequências e efeitos em cinco planos diversos

o O plano do âmbito de aplicação: cumpre assinalar, neste plano, que o princípio da legalidade não
cobre segundo a sua função e o seu sentido toda a matéria penal, mas apenas aquela que se
traduza em fundamentar ou agravar a responsabilidade do agente. Caso abrangesse também a
exclusão ou atenuação da responsabilidade o princípio passaria a operar contra a tua própria
teleologia e a sua razão de ser: a proteção dos direitos, liberdades e garantias do cidadão face à
possibilidade de arbítrio e de excesso do poder estatal.
Exemplo dado pelo professor: O princípio da legalidade cobre toda a matéria relativa ao tipo
de ilícito ou quanto ao tipo de culpa, mas já não cobre no que concerne às causas de justificação
ou causas de exclusão de culpa.

o Plano da fonte: conduz à exigência de lei formal, apenas a lei da AR ou por ela competentemente
autorizada pode definir o regime dos crimes, das penas, medidas de segurança e os seus
pressupostos.
o Determinabilidade do tipo legal: importa que a descrição da matéria proibida e de todos os
outros requisitos de que dependa em concreto uma punição sejam passíveis de ser objetivamente
determináveis os comportamentos proibidos e sancionados, e consequentemente, se torne
objetivamente motivável e dirigível a conduta dos cidadãos – a norma tem de ser esclarecedora é
passível de compreensão objetiva, para que os cidadãos possam orientar o seu comportamento

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Inês Nabeiro Ano letivo 2023/2024

consoante a mesma. Posto isto, na formulação dos tipos legais é inevitável a utilização de
elementos normativos, conceitos indeterminados, clausulas gerais – o que não pode acontecer é
queda sua utilização obste à determinabilidade objetiva das condutas proibidas (a respeito das
normais penais em branco como iremos abordar de seguida) – nesta mesma acepção se afirma
que a lei penal fundamentadora ou agravadora da responsabilidade tem de ser uma lei certa e
determinada – é aqui que reside o grande perigo para a consistência do princípio nullum
crimen.

NORMAS PENAIS EM BRANCO – problema suscitado à luz do princípio da legalidade

• Reserva de lei e tipicidade das normas penais (MFP)

A reserva de lei penal exige uma conformação da técnica legislativa e da interpretação, de modo a
permitir que as normas penais se apliquem estritamente de acordo com a sua definição legislativa.
A decorrência destas proposições é o chamado princípio determinação das normas penais
incriminadoras – no que respeita ao preceito primário e ao preceito secundário.

o Segundo este princípio todos os pressupostos da incriminação e da responsabilidade


penal têm de estar descritos na lei – não sendo admitidas leis penais em branco.
o A norma deve ser esclarecedora relativamente aos comportamentos humanos, e têm de
prefigurar com exatidão o âmbito do proibido e a respetiva consequência (sanção).
Implica portanto o preenchimento máximo das figuras ou imagens dos factos
proibitivos, através de conceitos espécie.
o Este princípio justifica o desmembramento do ilícito criminal através de várias figuras
de infrações criminais – os chamados tipos legais de crime – sendo a técnica legislativa
subjacente a da tipicidade (categoria irrenunciável na determinação da responsabilidade
penal).
o Posto isto, nenhum comportamento humano pode ser tido como criminoso se não
corresponder a um tipo legal de crime – descrito com precisão por um preceito legal.

Nota:
Tipicidade – adequação do facto a um tipo legal de crime.

Exemplo prático dado pela professora no manual:


o No processo de decisão do Direito face aos casos concretos, recorre-se necessariamente à
analogia, entre a imagem legal e o caso concreto, pretende-se portanto averiguar se um
determinado facto corresponde a um “tipo ilícito” que constitui a essência da norma
incriminadora.
o Jurisprudência germânica: verificou-se que o ácido será ainda uma arma no sentido de uma
norma que vigora do Direito alemão embora não corresponda ao conceito corrente de arma

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Inês Nabeiro Ano letivo 2023/2024

(mecânica). O fim da norma era punir mais gravemente as condutas realizadas por meios
especialmente perigosos.
o Direito Penal português: o conceito de “veneno” relativamente ao homicídio qualificado
(art.132º, alínea i )) em que deverão caber dentro do conceito todas as substâncias que em si
mesmas não sejam tóxicas, mas que surtem o mesmo efeito no organismo humano (podendo ser
ministradas com outras, ou em grandes quantidades contra pessoas particularmente débeis –
ministrar quantidades elevadas de açúcar a doentes diabéticos).
o Acórdãos:

(a) Acórdão 427/95 do TC – é um caso em que há uma norma incriminadora que prevê a
proibição de inclusão de aditivos num produto alimentar (que desvirtuem a qualidade do
alimento) e que remete para uma portaria que fixa as substâncias que, apesar de serem
aditivos, não são proibidos. O TC entendeu que não havia aqui violação da reserva de
lei, uma vez que a proibição estava contida na primeira norma, enquanto proibição de
aditivos, e a segunda meramente excluía certas substâncias do âmbito da proibição; ou
seja, tinha uma delimitação negativa e não extensiva. Respeitou-se assim uma reserva
de certeza e de previsbilidade na norma incriminadora: esta dava informação suficiente
sobre o que era o comportamento proibido; a Portaria apenas vinha acrescentar
informações técnicas sobre o que não seriam aditivos proibidos.

(b) Acórdão 115/2008 – questionou-se a constitucionalidade do art. 277º CP, que remete
para normas regulamentares ou técnicas, ao configurar o comportamento típico de violação
de regras de construção de que resulte perigo para a vida, integridade física ou propriedade
de terceiros. Nesse caso, também o legislador pretendeu assegurar um efeito de
regulamentação, consistente em relacionar o perigo produzido com a violação de leges artis
da construção, na medida em que estas correspondem às boas práticas de controlo de riscos.
A proibição contida na norma remissiva refere- se ao não respeito por estes critérios.

Assim, a violação dos princípios da determinação e da tipicidade não ocorre quando estamos
perante uma destas situações – pelo que o legislador pode utilizar conceitos menos precisos, ou o
intérprete excede o sentido puramente lógico-formal das palavras.
Dá-se sim quando a possibilidade de uma compreensão e controlo do desvalor expresso no tipo
legal de crime deixa de existir – deixa de existir compreensão objetiva.

Violação de lei certa (corolário da lei certa associado a princípio da legalidade):

➔ A norma que incriminasse qualquer conduta anti-democrática seria inconstitucional pois


ofenderia indiretamente a reserva de lei do art.165º, nº1, alínea c) e o art.29º, nº1 da CRP por não
ser controlável no seu conteúdo. Já os conceitos previstos no art.170º do CP “importunação

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Inês Nabeiro Ano letivo 2023/2024

sexual”, e art.137º do CP “homicídio por negligência”, utilizam conceitos normativos suscetíveis


de um consenso na linguagem jurídica, ética e social.
➔ A inconstitucionalidade da norma penal em branco à luz do princípio da legalidade e a reserva de
lei, depende do grau de imprecisão do conteúdo da norma, o nível de artificialismo dos conceitos
e da sua inserção na linguagem vulgar.
➔ A violação da reserva de lei começará onde a linguagem normativa manipule o conceito para fins
incontroláveis e onde for impossível uma compreensão legal por parte dos seus destinatários
coincidentes com o resultado de uma interpretação teleológica.

Ocorre ainda outro tipo de situações que podem levar à violação da reserva de lei (violação de lei
escrita – scripta associado ao princípio da legalidade):

➔ Normas penais que estabeleçam o conteúdo da sua previsão ou da sua estatuição por remissão
para outras normas constantes de leis hierarquicamente inferiores – como sucede no caso de leis
penais remeterem para regulamentos (leis do Governo sem autorização legislativa), ou portarias
– a definição de elementos de que resulte o comportamento incriminado ou a pena aplicável
➔ No entanto, a remissão de uma norma para outras não é em si um obstáculo ao respeito da
legalidade, mas sim o grau de esvaziamento de conteúdo precetivo e a atribuição da competência
para definir o comportamento proibitivo a leis hierarquicamente inferiores ou mesmo a atos
administrativos.
➔ Assim, em situações em que a essência do proibido depende totalmente da norma para a qual se
remete, será uma norma penal em branco e consequentemente será inconstitucional (MFP).
➔ Se apenas possuir um sentido técnico, e a essência do proibido estiver na norma penal, esta é
admissível e é considerada uma norma remissiva para normas técnicas (mas a essência do
proibido consta na norma remissiva (principal)).
➔ Muitas vezes as normas remissivas apenas têm a função de orientar o intérprete segundo critérios
objetivos quanto à verificação de um comportamento proibido.

Taipa de Carvalho – normas penais em branco

o A exigência de lei escrita, decorrente do corolário do princípio a legalidade “nullum crimen,


nulla poena sine lege”, serviu para excluir o costume e a figura dos “crimes naturais” das fontes
de direito penal – que eram uma fonte de insegurança jurídica e graves arbitrariedades judiciais.
o Na opinião do professor Taipa de Carvalho o Governo não tem competência para descriminalizar
ou reduzir sanções criminais (penas ou medidas de segurança ) definidas quer por lei formal quer
por decreto-lei de autorização legislativa. Fundamentos:
▪ Descriminalizar ou reduzir a pena ou medida de segurança afetaria gravemente o
princípio da separação de poderes – se atribuída competência legislativa exclusiva à AR

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Inês Nabeiro Ano letivo 2023/2024

e o Governo pudesse vir a legislar negativamente em sentido contrário seria uma


incoerência e mesmo uma contradição intra constitucional.
o A extensão do direito penal a áreas como o ambiente, urbanismo, economia etc obrigaram o
legislador penal a recorrer à técnica de lei penal em branco, por diversas razões:
▪ Complexidade técnica da regulamentação de certas atividades, cuja regulamentação
pode colocar em perigo bens jurídico-penais como a vida, saúde, a confiança em
atividades financeiras;
▪ A complexidade apenas pode ser tida devidamente em conta pelo poder executivo ou
pelas organizações profissionais, que não pelo poder político-legislativo;
▪ Mutabilidade desta regulamentação, resultante de inovações tecnológicas ou das
conjunturas económico-sociais.

Questão da constitucionalidade:

• Para o professor é uma norma que contém sanção penal (a norma penal em branco) e que, quanto
ao facto típico remete total ou parcialmente para descrição feita por outra norma extra-penal, do
ordenamento jurídico. Determina direta e expressamente a pena, e define indiretamente ou por
remissão a matéria da proibição penal, isto é, a conduta a que é aplicável a sanção estabelecida
pela dita norma penal em branco.
• O problema da (in)constitucionalidade coloca-se em relação à norma extra-penal complementar,
implementadora ou integradora da norma penal em branco uma vez que esta tem
necessariamente de contar de lei ou de decreto-lei autorizado pela AR. Desde que a norma extra-
penal respeite as exigências de determinabilidade (lei certa) ou tipicidade, decorrentes do
princípio da legalidade não existem razões para considerar inconstitucional a norma penal em
branco.
• Argumento utilizado: é o próprio legislador penal a definir, embora o faça por remissão, a
matéria da proibição penal e portanto a norma para que remete também assume por força dessa
remissão natureza penal, exigindo-se apenas que a remissão-conexão entre a norma penal e a
norma extra-penal seja clara, inequívoca e seja precisa da descrição da conduta – Taipa de
Carvalho.
• A alteração do conteúdo normativo da norma extrapenal significará a revogação tácita da norma
penal em branco. Ex: se a norma penal em branco estabelecer que é punível com determinada
pena de prisão ou de multa quem praticar o facto descrito na norma extrapenal x, a alteração
desta hipótese legal irá significar a ineficácia da norma penal em branco.
• O professor considera deste modo as normas penais em branco com sentido estrito (que ele
próprio lhes atribui) dizendo que se devem evitar a todo o custo, e apenas são admissíveis
quando o sentido técnico-legislativo for indispensável.

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Inês Nabeiro Ano letivo 2023/2024

MFP: estas teorias que legitimam normas remissivas enfatizando o interesse fundamental das normas
remissivas como a de mera obediência e necessidade a uma regulamentação administrativa colocaria em
causa a separação de poderes e o princípio da legalidade.

Em que medida é que uma norma penal que não define todo o seu conteúdo remetendo para uma
outra viola o princípio da reserva de lei?

• A remissão de uma norma para outras não é, em si mesma, obstáculo ao respeito pelo princípio
da legalidade.
• O que pode desrespeitar este princípio é o esvaziamento de conteúdo precetivo e a atribuição da
competência para definir o comportamento proibido a leis hierarquicamente inferiores ou até aos
atos administrativos.
• Assim, importa distinguir, atendendo ao “critério do proibido”:
▪ Situações em que o núcleo do comportamento proibido pela norma depende totalmente
da norma para qual se remete, não sendo previsível para os destinatários sem essa
norma o que deles se espera; Ex: remissão de uma norma que incrimina o tráfico de
estupefacientes para um regulamento que qualifique como estupefaciente uma certa
substância. Sem o conhecimento da natureza legalmente atribuída de droga proibida a
essa substância não é previsível que a venda da mesma possa ser tráfico.
▪ São inconstitucionais pois violam o princípio da legalidade (na aceção da reserva de lei)
e conflituam com a separação de poderes.
• Situações em que a remissão é puramente para um critério técnico, não estando o objeto da
norma remissiva, o interesse fundamental protegido, dependente do conteúdo concreto
deste critério – efeito de regulação da norma incriminadora, que não depende do conteúdo da
norma para a qual se remete.
▪ Neste caso se encontram aquelas normas em que o cerne da proibição (e por isso do
ilícito) se centra manifestamente num efeito pretendido ou num interesse fundadamente
prosseguido, não dependendo do critério técnico (em si mesmo variável em função de
novos conhecimentos) o sentido essencial do comportamento contrário ao Direito.

A distinção entre normas remissivas que violam a reserva de lei e as que são com ela compatíveis
depende, de saber se a função da norma penal é estabelecer direta e materialmente a fronteira entre o
proibido e o permitido ou apenas sinalizar que um certo efeito material dependente da obediência à
regulação legal devido à natureza ou grau de risco da atividade é o conteúdo fundamental da proibição.

• Art. 277º CP é considerado, por alguns autores, como norma penal em branco e, devido a
tal, inconstitucional.
• MFP: não entende assim. Pode ser norma formalmente penal em branco por ser remissiva, mas,
o que se pretende com este tipo de normas é que certas atividades perigosas devem ver

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Inês Nabeiro Ano letivo 2023/2024

respeitadas as normas técnicas vigentes. O cerne do proibido é o cumprimento de certas normas


técnicas. São apenas normas remissivas que não são inconstitucionais.
▪ Art. 277º CP não é norma penal em branco pois o proibido está explícito, que é a
violação da norma técnica. Não sendo a norma técnica que tem o conteúdo do proibido.
• TC: há casos em que a remissão não interfere com a previsibilidade e com a segurança jurídicas,
mas apenas cumpre o papel de orientar o intérprete segundo critérios objetivos quanto à
verificação do comportamento proibido.

Em suma, na fronteira da violação da reserva de lei encontra-se a garantia de que não emana da norma
regulamentar ou do ato da autoridade administrativa a diferenciação entre o comportamento permitido e o
proibido, mas antes da norma remissiva. Será esta a linha de rumo na distinção entre as normas penais em
branco, propriamente ditas, inconstitucionais, e as normas remissivas para normas técnicas que não
violam a referida reserva de certeza e de previsibilidade.

Se houver remissão para Regulamento da UE isso não viola a reserva de lei – há violação quando se
remete para decisão-quadro ou diretiva.

Perante um caso de normas penais em branco deve analisar:

1. Começar por: A norma penal tem de ser certa, escrita, estrita e prévia (scripta, certa, stricta e
proevia) – segundo o corolário do princípio da legalidade consagrado no art.29º, nº1 e 3 CRP.

2. Identificar:
➔ Bem jurídico (que esta a ser colocado em causa com o comportamento )
➔ Desvalor da ação (comportamento que se quer evitar)
➔ Desvalor do resultado (perigo ou dano que te pretende evitar).

3. A norma extrapenal nunca pode ter caráter inovador nem deve constar a essência do proibido
(essa tem de constar da norma penal), se constar na norma extrapenal temos uma
inconstitucionalidade material.

4. Consequências
• Inconstitucionalidade orgânica - foi um órgão que não a AR a legislar sobre o assunto
– 165º, nº1, al.c CRP
• Inconstitucionalidade formal - porque não é uma lei, em sentido de ato jurídico –
112º, nº5 CRP
• Inconstitucionalidade material - porque viola o princípio da legalidade – 29º, nº1 e 3
CRP

Em suma:

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MFP – em matéria de penas, de incriminações ou de medidas de segurança, as normas penais em branco


são inconstitucionais.
FIGUEIREDO DIAS – as normas penais em branco só são inconstitucionais em relação às penas.

8. Problema de interpretação da lei penal: proibição de analogia

Outra concretização do princípio da legalidade na sua reserva de lei, é a própria interpretação


penal. O art. 1º, nº3 do CP proíbe de forma expressa a analogia quanto às normas de que resulta a
qualificação do facto como crime, a definição de um estado de perigosidade e a determinação da pena ou
da medida de segurança correspondente – normas incriminadoras.
Fundamentos:
• A exclusividade da competência do Parlamento (ou do Governo com autorização
legislativa) na formulação de normas incriminadoras. Caso fosse possível aos tribunais
recorrer à analogia, formulariam normas incriminadoras o que violaria o princípio da
legalidade (art.29º, nº1 e 3 da CRP), pelo que deixariam de ser objeto do controlo
democrático;
• O caráter fragmentário do Direito Penal, na medida em que impede que
comportamentos análogos aos expressamente previstos – tendo em conta o bem
jurídico violado – tenham o mesmo merecimento penal.

A proibição da analogia não deve confundir-se com a proibição de raciocínios analógicos na


aplicação da lei penal, pelo que tem surgido o problema de distinguir a este propósito a analogia
da interpretação extensiva.

• A interpretação extensiva baseia-se na possibilidade de referir um certo caos que não


foi expressamente considerado pela letra da lei ao seu pensamento. Diferencia-se de
analogia na medida em que o caso real é meramente semelhante aos casos considerados
pela lei, quando o legislador tenha exprimido imperfeitamente a sua intenção.
• Exemplo dado no manual:
Quando o legislador refere “veneno” como meio utilizado para perpetuar o homicídio
tutelado no art.132º, nº1m alíena i) pretende abranger não só as substâncias designadas
como veneno, como também aquelas que produzam efeitos tóxicos que sejam próprios
do veneno – não tendo de ser necessariamente veneno no sentido acérrimo da palavra –
basta que seja uma substância que eu sei que é tóxica para determinado sujeito em
questão, tendo conhecimento de que, caso administre tal substância provocará a morte
desse sujeito – dar amendoim a quem é alérgico a amendoim, ministrar açúcar em
elevada quantidade a quem é diabético – o indivíduo estará completamente indefeso,

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Inês Nabeiro Ano letivo 2023/2024

devido à ministração da substância – basta que seja particularmente perigosa para a


vida daquele indivíduo.

Temos portanto a questão de saber qual será a interpretação proibida e a interpretação permitida –
é necessário perceber em primeiro lugar a proibição da analogia, a sua ratio e a sua possibilidade.
Descobrindo a razão de ser de tal proibição (na segurança jurídica e no controlo democrático) da aplicação
da lei penal conseguiremos compreender a diferença entre interpretação extensiva e analogia.

• A interpretação extensiva pode não corresponder a um entendimento que seja juridicamente


aceitável, ou previsível dentro do sentido das palavras. Não é de excluir que ultrapasse o
pensamento do legislador, na sua formulação histórica, interpretando a norma de acordo com um
significado plausível e juridicamente válido dentro daquilo que é o sentido das palavras.
• Devemos desligar-nos das categorias tradicionais da interpretação (nomeadamente os elementos
literal, lógico, sistemático e histórico) mas sim procurar um critério fundamentado na
racionalidade da proibição da analogia.

O art.1º, nº3 do CP não proíbe expressamente a interpretação extensiva, no entanto não se poderá
interferir com a proibição da analgia in malam partem pelo nº3 do art.1º do CP a sua permissão num
raciocínio a contrario sensu – assim, a proibição da interpretação extensiva só poderá ser integrada no
art.1º, nº3 do CP por analogia com a própria proibição de analogia. No entanto no ordenamento jurídico
temos a seguinte solução:
• Segundo o art.11º do CC, a analogia apenas é proibida quanto às normas excecionais, que podem
no entanto ser alvo de interpretação extensiva.
• Ora, posto isto, impor uma limitação interpretativa mais ampla que a que está consagrada no
Código Civil só seria plausível se os princípios constitucionais do Direito Penal o impusessem –
o que não sucede, portanto na medida requerida pela reserva de lei e pela legalidade - sendo a
interpretação extensiva tida como a expressão do pensamento da lei, revelado pelos elementos
não literais da interpretação, não irá contender com estes princípios.
• Art.29º, nº3 da CRP: não seria legítimo de igual modo extrair da expressa cominação legal das
penas e das medidas de segurança, a proibição da interpretação extensiva – pode entender-se que
esta corresponde a um pensamento expresso, embora imperfeitamente.

Sousa e Brito: entende que a interpretação extensiva é inconstitucional porque sustenta que entre o
sentido possível das palavras e o mínimo de correspondência verbal existe uma grande distância a ser
percorrida incompatível com a segurança jurídica e com o princípio da legalidade

Castanheira Neves: nega neste sentido que a distância entre o sentido possível das palavras e o mínimo
de correspondência verbal exista uma distância significativa, não havendo sensível diferença.

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Inês Nabeiro Ano letivo 2023/2024

Posto isto, existem dois modos de abordagem – duas teorias – na resolução do problema suscitado quanto
à proibição da análgica e do cumprimento da legalidade:

• Castanheira Neves —> Pensamento valorativo (antipositivista, teleológico, e pragmático)


inspirado na filosofia de Heidegger e Gadamer.
o Através desta posição, existe uma desvinculação total da interpretação permitida, orientando-se
por critérios extraliterais e reveladores do significado fundamental da norma no sistema jurídico.
o O elemento literal esfuma-se, não sendo o texto jurídico objeto de interpretação – no seu lugar
coloca-se a norma a definir do caso concreto, cuja descoberta é determinada através de um jogo
de condições de validade (condições legal, sistemática, dogmática e institucional).
• Condições de validade:
o Condição legal – necessidade de o concreto juízo incriminatório ter fundamento efetiva
numa norma penal positiva, ser secundum legem – segundo a lei;
o Determinação dogmática dos tipos – os tipos legais têm de ser construídos pelo
legislador de tal modo a que seja perceptíveñ o seu núcleo axiológico-normativo com
relevo para o bem jurídico que esta a ser tutelado – não bastante uma conceitualização
abstrata.
o Adequação sistemática – não é permitida a incoerência sistemática, a interpretação
adotada para o caso tem de ser generalizada relativamente a outros casos sem colocar
em causa o sistema;
o Garantia institucional – garantia jurisprudencial da unidade do Direito, segundo o
professor compete ao STJ (Supremo Tribunal de Justiça).

Crítica (MFP): a perspectiva proposta por Castanheira Neves, converte o controlo da reserva de lei
(modelo democrático-parlamentar) num controlo institucional-jurisprudencial da lei penal, ultrapassando
a racionalidade democrática que está na origem da proibição da analogia. De forma fundamental a critica
pela professora reside no facto de o autor remeter a definição dos critérios de interpretacao da lei penal
para a decisão das instâncias menos diretamente controladas pelos cidadãos – a adequação sistemática
depende de redifenições atualizadas – que penas estão ao alcance das instâncias de discussão pública e
parlamentar. A unidade do direito que Castanheira Neves preconiza apenas é possível através de um juízo
de constitucionalidade que apenas pode ser efetuado pelo Tribunal Constitucional – a garantia
institucional apenas pode ser garantida por este.

Se a condição da descoberta da norma penal é essa, seria colocada em causa a questão da segurança
jurídica - para conseguir fazer uma interpretação lícita do Direito Penal, os critérios são demasiados
exigentes e pouco operativos.

• MFP —> Pensamento positivista (filosofia analítica, logicista e menos pragmática).

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o Os limites da interpretação permitida são ainda controlados fundamentalmente por critérios de


significação (e de validade da interpretação) de índole linguística – o principio da legalidade não
é colocado em causa até que não se ultrapasse o sentido possível das palavras.
o O sentido possível das palavras é extremamente fundamental da decisão e critério jurídico
inultrapassável da norma do caso. Existe uma vinculação relativa ao texto, em si mesmo, na
apreensão da norma.
o Enquanto que para Castanheira Neves as ideias jurídicas não são moldadas pelas palavras mas
meramente indiciadas por elas, para MFP as palavras são constitutivas das ideias – as palavras
segundo Wittgenstein são o limite do mundo.
o O predomínio da interpretação deve residir no texto jurídico.

• Condições de validade
o Sentido comunicacional social – tem de ser cognoscível pelo resto da sociedade, e não
em qualquer sentido lógico não sustentável pela linguagem social;
o Contexto normativo da norma – o sentido do texto ou das palavras no texto jurídico e
não das palavras de forma isolada, sentido no conjunto onde a norma está inserida.
o Essência do proíbido - a interpretação permitida também resulta da teleologia da
norma em questão, que está relacionado com o bem jurídico que visa proteger – é a
adequação do texto de acordo com as valorações do sistema que a norma diretamente
exprime ou pretende exprimir.

Estas condições contribuem para a fixação do sentido jurídico definitivo do texto – para a
delimitação normativa que ele objetivamente revela.

➔ Os dois primeiros critérios vão de encontro à essência do proibido. Se estes três pressupostos
estiverem reunidos podemos realizar a interpretação, porque cabe dentro do sentido possível
das palavras, e caso algum destes falhe, então a interpretação permitida não irá operar,
colocando em causa a proibição da analogia (art.1º, nº3 do CP) colocando em causa o princípio
da legalidade (art.29º, nº1 e 3 da CRP).
➔ A vinculação ao texto normativo, preconizada por esta teoria positivista, irá redundar numa
rejeição da redução teleológica incriminadora – uma vez que também corresponde ao sentido
possível das palavras a sua utilização no sentido comunicacional mais amplo.

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Inês Nabeiro Ano letivo 2023/2024

Síntese:

Teorias Castanheira Neves Maria Fernanda Palma


(Pensamento valorativo) (Pensamento positivista)

Impõe quatro condições de validade: Impõe três pressupostos:


• A Condição legal;
• Determinação dogmática dos • Sentido comunicacional social;
Pressupostos fins; • Contexto normativo da norma;
• Adequação sistemática; • Essência do proibido.
• Uma garantia de cumprimento
do nullum crimen – garantia Têm de estar todos reunidos, caso
institucional. contrário a interpretação não é permitida
—> Violação do art.1º, nº3 CP e 29º, nº1
e 3 CRP.
Descaracteriza o elemento literal, não é
o texto que é objeto de interpretação. Não pode extravasar o sentido possível
Metodologia Constrói-se a norma a descobrir a partir das palavras – caso contrário coloca em
do caso, segundo as condições de causa o princípio da legalidade. A
validade – as ideias jurídicas não são interpretação deve residir no texto
moldadas pelas palavras, mas jurídico, sendo as palavras constitutivas
meramente indiciadas por elas. das ideias.

9. Não proibição de analogia e de redução teleológica das normas permissivas

Quanto às normas permissivas, coloca-se a questão de se a analogia é necessariamente proibida


ou não, uma vez que tais normas não são descrições típicas de condutas permitidas, mas sim um
mero afloramento dos princípios ou critérios gerais de solução de conflitos de interesses ou de
direitos.

• O texto jurídico destas normas não é pré-determinante, como sucede nas normas
incriminadoras.
• MFP: o recurso à analogia, desde que justificado pela necessidade de concretizações
diferentes das legalmente previstas, a partir dos princípios reguladores dos conflitos de

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interesses ou de direitos, é permitido ainda que extravase o sentido possível das


palavras.

Importa realizar a seguinte distinção:

o Analogia iuris – aplicam-se princípios em situações jurídicas similares (integração de uma


lacuna através de um princípio geral de direito já aplicado em caso semelhante). A norma
permissiva, concretiza critérios de permissividade não abrangentes de outras condutas mas que
merecem ser permitidas segundo determinado princípio.
Exemplo: poderá admitir-se um fundamento justificador para permitir analogia na legítima
defesa preventiva, com base no mesmo princípio geral de defesa manifestado no art.32º do CP –
no entanto não poderão valer as possibilidades amplas de lesão dos bens do agressor permitidas
no art.32º do CP – Se A reconhecer que B atravessa a rua para o vir assassinar em sua casa não
poderá ainda eliminar essa ameaça matando a B, como sucederia se a agressão fosse atual e
ilícita, nos termos do artigo 32º, mas poderá disparar para o ar ou ameaçar de outro modo B para
o dissuadir, se não for possível, obviamente recorrer aos meios de força pública (heterotutela) –
art.1º do CPC.

➔ Por outro lado, a analogia iuris, não será legítima em casos em que a norma permissiva – neste
sentido Cavaleiro de Ferreira – constituir um direito excecional e não direito geral.

o Analogia legis – aplica-se a uma norma que não regula uma situação jurídica a uma situação
qualitativamente similar à que foi regulada pela lei – proibida pelo art.1º, nº3 CP.

Limites à analogia:
• Regras excecionais – art.11º CC;
• As causas de exclusão de ilicitude não admitem analogia legis;
• Causas de exclusão da responsabilidade (causas de justificação, causas de exclusão de culpa);
• Cavaleiro Ferreira: causas de justificação de Direito Geral. Mas também há causas de
justificação excecionais (ex: art. 187º CP – excecionalmente autorizada para obter a prova de
facto a um elenco taxativo de crimes) relativamente às quais não é concebível a analogia porque
é uma intervenção em direitos alheios.

Em princípio qualquer analogia está proibida, mas em relação à legitima defesa deve ponderar-se
se não se deve criar outra figura de uma outra legitima defesa com pressupostos diferentes, mas
restritivos.

• MFP: Art. 32º do CP deve fazer-se interpretação restritiva (ou redução teleológica)
sobre a necessidade do meio – é mais restritiva que a interpretação comum da
necessidade do meio. A legitima defesa requer que seja meio menos gravoso para o

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agressor, sem alternativa de meios, sustenta a própria necessidade de defesa em si. Não
se veda uma interpretação algo restritiva, eventualmente redução teleológica, desde que
seja a interpretação que coloca os requisitos da causa de justificação de acordo com o
seu princípio fundamentador - questão de ratio legis.

10. Aplicação da lei penal no tempo

10.1. A proibição de retroatividade in pejus

O princípio da legalidade tem como uma das suas máximas “nullum crimen, nulla poena sine
lege praevia”, que origina problemas complexos – proibição da retroatividade in malem partem,
isto é, contra o agente.

Podem, neste sentido, ocorrer as seguintes situações:


• Após a prática do facto, que ao tempo não constituía crime, uma lei nova venha a criminalizá-lo;
• Sendo o facto crime ao tempo da sua prática, uma nova lei venha a prever uma pena mais grave,
qualitativamente (pena de prisão quando antes era multa) ou quantitativamente (pena de
prisão até 8 anos quando antes era 5 anos);

➔ Configura uma proibição constitucional de retroatividade de normas penais que criem ou


agravem a responsabilidade penal, tendo como fundamento de proibição:
• Princípio da culpa – culpa jurídica – uma vez que iria contrariar uma responsabilidade
penal fundamentada na livre determinação do agente pela norma jurídica;
• Segurança jurídica – iria destruir a garantia das expectativas dos cidadãos, quando ao
que é proibido. Estes orientam a sua conduta conforme o disposto na lei.
• Controlo democrático
• Dignidade da pessoa humana (Taipa de Carvalho)

➔ Sanções criminais: a retroatividade afetará sobretudo a referida segurança – sob pena de


permitir abusos de poder – pela possível alteração constante das espécies e limites de sanções.

A proibição da retroatividade corresponde deste modo à garantia de que, o exercício do poder punitivo
seja exercido de acordo com critérios e limites conhecidos antecipadamente, cognoscíveis pelos cidadãos
em geral, e não alteráveis por força de um interesse particular, ou para resolver um caso concreto antes
não previsto.

A proibição de retroatividade incide sobre:

o Incriminações;

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o Agravantes da responsabilidade criminal;


o Penas;
o Pressupostos das medidas de segurança;
o Medidas de segurança;
o Normas processuais que afetem diretamente direitos, liberdades e garantias.

Pressupostos da retroatividade:

Temos de realizar uma delimitação normativa – a retroatividade apenas existe se houver uma
sucessão de leis, um regime que entre em vigor que delimite a mesma situação típico-normativa
(continuidade típico-normativa).
Tal situação, segundo o art.3º do CP, é referida ao momento da efetiva prática da ação criminosa
ou ao momento em que se iria produzir a ação que evitaria o resultado típico – se a lei em causa for
anterior à da produção do resultado típico, mas posterior à prática da ação prevista, já existiria
retroatividade.
Não existe retroatividade se não existir esta continuidade típico-normativa (sucessão de leis),
portanto se o dever ser objetivo e a intenção normativa compreendidas a partir do texto não se puderem
concretizar naquelas situações.

10.2. Retroatividade e tempus delicti

• Pressuposto de atuação do princípio da não retroatividade ou de irretroactividade


(Figueiredo Dias), é a determinação do tempus delicti – deve ser determinado o
momento da prática do facto.
• Art.3º CP: o momento da prática do facto é o momento da ação, nos crimes de ação e
nos crimes em que deveria ocorrer a ação devida, nos crimes por omissão.
• A razão de ser desta norma é a garantia das expectativas dos destinatários das normas,
quanto ao tratamento legal do seu comportamento.
• O grande problema coloca-se porque o “facto” pode ser analisado no contexto de uma
ação ou de uma omissão como referido anteriormente, mas também porque nele se pode
compreender não só a conduta como também o resultado – podendo uma e outra ter
momentos temporalmente muito distintos – a conduta e o resultado podem arrastar-se
no tempo, como sucede nos crimes de consumação duradora ou permanente.

Do art.3º conseguimos retirar, como solução para este tipo de problemas, que é decisivo para a
determinação do momento da prática do facto a conduta e não o resultado.

• Segundo o Professor Figueiredo Dias esta solução dada pela norma, é a que melhor se enquadra
com o principio da legalidade, uma vez que é no momento em que o agente atua (e nos casos de

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Inês Nabeiro Ano letivo 2023/2024

omissão, deveria ter actuado) que se revela a função tutelar dos direitos, liberdades e garantias da
pessoa que constitui a razão de ser do princípio.
• Tanto se aplica para os autores como para os cúmplices, valendo esta solução para todos os
comparticipantes (art.26º e 27º) - são igualmente credores da proteção e garantia que o princípio
da legalidade oferece.
➔ Caso fosse o resultado o momento decisivo, iria abrir-se a porta ao arbítrio e ao possível
excesso de intervenção punitiva do Estado.

Exceções:
• Nos crimes de consumação: neste tipo de crimes a ação perdura no tempo, iniciando-se a
consumação a partir do início da ação, e a consumação perdura até ao último ato, de modo a
que uma alteração da lei penal ainda que agravante ocorrida enquanto a consumação não se
esgotou terá de ser aplicada a todo o comportamento punível – isto porque o agente manteve a
realização do comportamento após a entrada em vigor da lei nova, não sendo surpreendido pela
sua aplicação —> caso cesse o seu comportamento, poderá ser aplicada lei anterior.

o Exemplo dado pelo manual (MFP):


➢ Em crimes como o sequestro, uma nova lei que se afigure ainda mais grave, viria
sempre a abranger o comportamento cuja consumação se iniciou anteriormente, mas
que ainda persiste aquando a sua entrada entrada em vigor (LN).
➢ Outro exemplo é o crime de violência doméstica, em certas figurações típicas concretas,
em que se deve seguir o critério de referência do tempo da prática da ação a todo o
período de consumação da ação.

• Nos crimes continuados: art.30º, nº2 e 79º do CP. Existe uma unificação de ações idênticas
suportadas por uma intenção criminosa continuada, no contexto de circunstâncias externas
favoráveis à renovação da vontade criminosa. Também nestas situações se irá justificar a
aplicação da lei nova mais gravosa, a todo o período de continuação criminosa.

Divergência da doutrina italiana e portuguesa (crimes continuados)


• Italiana: determinar o tempus delicti relativamente a cada um dos crimes, determinando-se a
pena de cada crime segundo a lei vigente no momento da sua prática e correspondentemente a
pena mais gravosa.
• Portuguesa: o crime continuado, no Direito português, é uma figura atenuante relativamente ao
concurso efetivo de crimes, pressupondo um unificação jurídica de todas as ações de
continuação.
Assim, a aplicação da lei anterior menos grave seria de forma paradoxal uma atenuação da pena
de uma série de crimes (incluindo o último crime da continuação já praticado quando a LN
entrou em vigor) relativamente à prática de um único crime.

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• Posto isto, para MFP apenas se justifica o levantamento da continuação nos seguintes
casos:

➢ No caso de uma lei nova incriminadora (não e poniendo aplicar retroativamente);


➢ No caso extremo em que a punição segundo a lei nova seja mais gravosa do que a que
resultaria do concurso efetivo de crimes – art.30º, nº1 e 77º do CP.

10.3. Retroatividade das medidas de segurança

A subordinação a medidas de segurança à proibição de retroatividade foi negada anteriormente,


defendendo a aplicação imediata da lei que prevê medidas de segurança, negando o levantamento de
qualquer problema de retroatividade em sentido próprio – as medidas segurança eram consideradas
alheias ao Direito Penal de facto.

• A perigosidade do agente, entendida como sendo um sintoma, era vista como pressuposto e
fundamento da medida de segurança, pelo que não existiria qualquer retroatividade desde que a
lei criasse ou modificasse uma certa medida de segurança fosse contemporânea de um estado de
perigosidade que já era anterior e duradouro – enquanto existisse perigosidade no presente e
embora manifestada no passado não se poderia conceber uma verdadeira retroatividade da lei
que agravasse a medida.
• As medidas de segurança eram vistas como medidas de prevenção especial positiva, comandadas
pelo verdadeiro bem do agente.
Argumento: Existia a convicção de que a proibição de retroatividade se baseava no princípio da culpa,
pelo que o facto se assegurar finalidades preventivas das sanções penais não tinha de respeitar o
conhecimento to pelo agente da existência ou da medida da sanção

Presentemente, esta perspectiva foi totalmente refutada, apesar de ter influenciado o Direito alemão, é
refutada pela própria doutrina alemã e inclusive a que sustentou. No nosso ordenamento foi
decididamente afastada pelo art.29º, nº1 e 3 da nossa CRP e pelo art.2º do CP.

• O fundamento da proibição da retroatividade não é essencialmente a culpa, mas sim a segurança


dos destinatários do Direito própria de um Estado de Direito democrático.
• Quer a alteração agravante de uma medida de segurança, quer a sua criação, afetam a segurança –
iria permitir uma intervenção sem controlo do poder punitivo na liberdade dos cidadãos – a
ausência de limites à intervenção do Estado mesmo que em nome da prevenção ou política criminal
colidem com a segurança jurídica que é fundamento da proibição de retroatividade das medidas
de segurança.

Tese diferenciadora de Maria João Antunes (sustentada por Figueiredo Dias)

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➔ Esta tese vem defender que a proibição de retroatividade nas medidas de segurança seria executado
no momento da formulação pelo Tribunal do juízo da perigosidade “aplicando-se a lei vigente no
momento da formulação do juízo de perigosidade” – fundado no receio de que o agente venha a
cometer outros factos ilícitos típicos – determinando-se a lei a aplicar como sendo a lei vigente no
momento da decisão, por este corresponder ao preenchimento do pressuposto da perigosidade
criminal do agente.
➔ MFP: refuta esta teoria, dizendo que é uma redução teleológica do art.2º, nº1 do CP contra o
arguido. Iria quebrar-se a conexão entre os indícios de perigosidade com o pressuposto que é a
prática de um facto típico e ilícito – pelo que ao aceitarmos esta tese, estamos a admitir uma medida
de segurança para uma perigosidade desligada do facto típico e ilícito.

10.4. Retroatividade e Processo Penal

• Do art.5º, nº1 do CPP resulta a aplicabilidade imediata da nova lei processual penal – no entanto
o nº2 do mesmo artigo limita a sua aplicabilidade imediata:
➢ Aos processos iniciados anteriormente à sua vigência;
➢ Agravamento sensível da situação processual do arguido;
➢ Quebra de harmonia e unidade de vários atos do processo;

Existem, portanto, limitações decorrentes do princípio constitucional de não retroatividade e do próprio


princípio contido no art.5º, nº2 CPP.

• O primeiro tipo de limites exclui a aplicabilidade imediata de todas as normas de processo penal
que não sejam puras normas processuais – possuindo uma natureza substantiva penal numa
conexão fundamentadora da responsabilidade do arguido.

Normas prescricionais:

• A aplicabilidade imediata apenas se justifica relativamente a normas que regulem o modo de


proceder dos tribunais na definição concreta do Direito Penal, ao contrário de normas que se
refiram às condições de procedibilidade ou causas de extinção do procedimento criminal, como
sucede com normas prescricionais – estas delimitam direta e exclusivamente a relação jurídico
punitiva.
• Assim, normas que dilatem os prazos de procedimento prescricional, embora não afetem
diretamente o direito subjectivo dos autores dos crimes revelam uma alteração na necessidade de
punir e uma intensificação da dignidade punitiva a comparativamente com a vigente no momento
da prática do crime.
• A aplicação imediata do prazo prescricional revelaria a necessidade da punição de um crime
cometido no passado – não assegurando a autolimitação própria de um Estado de Direito.

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Inês Nabeiro Ano letivo 2023/2024

Passagem de crimes particulares ou semi-públicos a públicos:

• É também de rejeitar a aplicação imediata da lei que transforme um crime particular ou semi-
público em público – isto porque o facto criminoso cometido no passado contra o qual não foi
deduzida queixa pelo particular possa vir a ser objeto de processo penal. A aplicação neste tipo de
casos deverá ser a aplicação da lei antiga, visto que não iria garantir (aplicação da LN) o princípio
da objetividade e vinculação ao Estado e ao seu Direito.

Passagem de crimes públicos em semi-públicos ou particulares:

• Neste tipo de casos a solução afigura-se distinta, na medida me que o princípio do Estado de
Direito não será critério decisivo na solução jurídica na perspectiva do arguido, se dele
pretendermos extrair exclusivamente garantias de que o Estado se vincule ao seu Direito para não
agravar, arbitrária e de forma inesperada a posição do arguido – assim como a lógica da segurança
jurídica é insuficiente para a formação da decisão na lógica do arguido.

• No entanto, na perspectiva do titular do direito de queixa, é o princípio do Estado de Direito e a


segurança jurídica como regra de objetividade e previsibilidade, que impõe que as expectativas
deste não sejam defraudadas - neste caso tem a oportunidade processual de exercer o seu direito
de queixa após a entrada em vigor.

• A função do direito de queixa configura uma valia extraprocessual e extra-penal – não se justifica
a referência a normas que o regulam à ratio legis do art.5º, nº1 - a adaptação do processo a
soluções novas e eficientes, instrumental da realização da justiça.

• O direito de queixa é influenciado pelo chamado princípio vitimológico em que compete ao


Direito assegurar a reparação dos danos emergentes do crime sofridos pela vítima em toda a sua
dimensão jurídica – através da utilização do processo penal. Este princípio pressupõe que a
proteção penal de um bem que alguém é titular deve ser deixado na disponibilidade do ofendido
ainda que seja relevante para toda a sociedade.

• Assim, a lei da qual resultem alterações ao direito de queixa não é apenas uma lei penal no sentido
de Direito Penal, mas um conjunto de normas direta ou indiretamente incriminadora tendo como
meio de aplicação o processo penal.

Conclusão: os limites previstos no art.5º, nº2 do CPP referem-se a normas processuais das quais derive um
efeito essencial para a posição processual do arguido, na relação jurídica punitiva, na sua fase processual.
Ex: Direito de defesa.

Divergência:

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Inês Nabeiro Ano letivo 2023/2024

O acontece no processo, caso exista uma alteração a meio do processo para o professor Taipa de Carvalho
– o processo continua, assim como a investigação – mas o queixoso pode dizer que pode extinguir o
processo. O silêncio do titular do direito de queixa faz com que o processo continue a andar
Para MFP o processo para logo assim que seja decretada essa alteração e da-se um prazo ao titular do direito
de queixa para que o mesmo o exerça.

10.5. Aplicação retroativa da lei penal mais favorável

➔ Como limite não intrínseco à proibição da retroatividade, consagra-se nos art.29º, nº4 da CRP e
no art.2º, nº4 do CP a aplicação retroativa da lei mais favorável, como salvaguarda dos direitos,
liberdades e garantias das pessoas. Configura, neste sentido, mais do que uma mera exceção ao
princípio da legalidade, possui uma natureza autónoma diretamente decorrente do princípio da
necessidade.

A retroatividade in melius configura um princípio, tendo como fundamento:


o Princípio da igualdade;
o Princípio da necessidade.

Se a lei penal posterior suprimir uma norma incriminadora, será injusto que agentes que praticam factos
idênticos recebam um tratamento diferente, de punição ou não punição, conforme atos factos tenham sido
praticados antes ou depois da revogação da norma (LA). Se um crime deixar de o ser, é porque no ponto
de vista da prevenção geral não será necessário um tratamento diferenciado.

Discussão da aplicação do princípio da retroatividade in melius ao caso transitado em julgado:

➔ O art.2º, nº2 do CP impõe que a revogação da norma incriminadora tenha como consequência a
extinção da pena ou do procedimento criminal sem quaisquer limitações.
➔ MFP: o art.29º, nº4 da CRP, sugere a aplicação da retroativa da lei penal mais favorável
podendo deter o trânsito em julgado na medida em que se faz referência à “lei penal mais
favorável ao arguido”. No entanto, a restrição pelo trânsito em julgado não se adequa ao
princípio da retroatividade in melius – porque por essa lógica, à luz de tal princípio, apenas se
justificaria por uma lógica exterior e estabilidade das instituições que executam as penas. A
referência a “arguido” não é sinónimo de “caso julgado” na medida em que após o “caso
julgado” a qualidade de arguido irá persistir ainda que o processo seja retroativo.
O problema que se coloca, é o facto de o art.29º, nº4 da CRP ter uma natureza análoga a esta
solução, ainda que se aceitasse uma interpretação restritiva da referência do preceito a “arguido”
– no art.2º do CP o princípio da aplicação retroativa da lei mais favorável consagra-se de um
modo mais amplo, não tendo suporte constitucional a restrição da garantia emanada por este
artigo.

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Inês Nabeiro Ano letivo 2023/2024

➔ O TC pronunciou-se quanto a este problema: antes da revisão de 2007, o TC entendeu que o


art.2º, nº4 que restringia a aplicação da lei mais favorável a pelo “facto transitado em julgado”
era inconstitucional , pelo que ocorreu a modificação do preceito no sentido de aniquilar essa
restrição. A reserva do caso julgado ancorava-se em razões de segurança e estabilidade das
instituições penais, que comparativamente com o principio da igualdade e da necessidade da
pena têm um valor muito inferior – assim, determinou-se que a expressão “arguido”
constante do art.29º, nº4 da CRP não configurava uma restrição à aplicação retroativa da
lei mais favorável ao caso transitado em julgado.

Assim, atualmente:

➔ O atual art.2º, nº4 do CP parte do princípio geral da aplicabilidade da lei mais favorável: prevê
a cessação da condenação e de todos os seus efeitos.
o Operatividade: logo que a parte da pena que se encontrar cumprida atinja o limite
máximo da pena prevista na lei posterior.
o No caso de se atingir o limite máximo existe de imediato a aplicação da lei penal, ope
legis, como tutelado pelo artigo.
o No caso se um regime mais favorável entrar em vigor antes de ter cessado a execução
da pena, terá de existir uma adaptação nos termos do art.371º-A do CPP. (Lacuna
preenchida).
o A aplicação retroativa da lei penal de conteúdo mais favorável impõe que seja
determinado o regime concreto mais favorável ao arguido, isto é, que se considere a
medida da pena mais favorável face a todas as causas de justificação, desculpa,
atenuação, agravarão ou precedibilidade.

Assim, se o legislador alterou uma lei ao ponto de deixar de representar jurídico-penalmente


relevante um comportamento, não tem qualquer sentido político-criminal manter os efeitos de uma
conceção ultrapassada – violaria o princípio da igualdade e da necessidade da pena.

10.6. A aplicação retroativa da lei penal mais favorável e a delimitação da sucessão de


leis no tempo

A retroatividade in melius pressupõe que exista uma verdadeira sucessão de leis no tempo, pelo que a
sintomas penais sucessivas podem fundamentar a decisão dos mesmos casos embora de forma diversa –
para isto ocorrer tem de existir, necessariamente, uma continuidade típico-normativa – tem d existir uma
previsão da factualidade típica e idêntica relativamente a condutas humanas idênticas.

➔ Não haverá sucessão de leis no tempo se o comportamento que é objeto de juízo de ilicitude for
parcialmente reproduzido na lei posterior.

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➔ Depende, assim, de o comportamento anteriormente contemplado na LA não implicar


necessariamente a verificação da conduta prevista na LN – revogação tática.

O problema que se coloca na sucessão de leis, que é um pressuposto essencial da resolução de problemas
de substituição de punição de certos factos no âmbito penal, coloca-se em dois cenários:

• Houve alteração do regime punitivo ( ex: uma pena passa de 3 anos de prisão para 2 anos) –
aplicação do art.2º, nº4 do CP;
• Houve um fenómeno de descriminação – art.2º, nº2 do CP.

Situações especiais:

• Neste segundo cenário, pode ocorrer a conversão de crimes em contra-ordenações, o que


implica a substituição de uma forma mais grave de responsabilidade por outra menos grave, a
correspondente substituição de uma pena por uma coima —> isto implica uma compreensão
valorativa da substituição de regimes, para saber se estamos perante uma verdadeira sucessão de
leis no tempo, tendo em conta a diferença qualificativa entre o que é o ilícito penal e a merda
ordenação social.

Neste sentido, é incorreto defender a extinção em absoluto da responsabilidade jurídica em tais situações,
quando não existir uma vontade expressa e coerente legislativa de extinção de toda a responsabilidade por
factos passados, porque se passa de ser considerado crime para ser convertido numa contra-ordenação,
não existe a vontade expressa de extinguir a responsabilidade.
o O objeto da proibição é um comportamento humano, idêntico na sua essencialidade na previsão
de diferentes normas – assegurando a unidade do facto e a continuidade normativa.
o Assim, não há qualquer entrave à aplicação da punição mais favorável.

• De forma semelhante pode também ocorrer a conversão de crime de perigo abstrato em crime
de perigo concreto, em que a LA dispensa prova efetiva do perigo para os bens jurídicos e a a
LN requerer tal prova

o Na LA dispensava-se esta prova, abrangendo-se mais factos;


o Na LN existe uma restrição, que abrange os factos causadores de perigo.
o Exemplo dado no manual: se o crime de incêndio for um crime de perigo abstrato e
passar a ser concreto os incêndios reveladores de perigo para as pessoas, praticados à

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Inês Nabeiro Ano letivo 2023/2024

luz da LA não deixariam de ser punidos pela LN que tenha vindo a excluir o mero
perigo presumido, exigindo uma efetivação do perigo.
o Inversamente, a transformação de um crime de perigo concreto em crime de perigo
abstrato irá envolver uma ampliação da responsabilidade, mas os comportamentos de
perigo concreto serão incluídos no novo conjunto de factos por maioria de razão

➔ A aplicação no tempo da lei mais favorável nos termos do art.2º, nº4 do CP levará a que aplique
sempre a moldura penal mais favorável ao agente.

• Sucessão de leis que originam a conversão de crimes públicos em semi-públicos: questiona-


se se será uma verdadeira sucessão de leis para o efeito do art.2º, nº2 e 4 do CP, no entanto a
pergunta justifica-se na medida em que violaria aquelas normas uma não aplicação retroativa da
lei penal posterior aos factos que foram cometidos antes da sua vigência – sendo esta última a
mais favorável.
No entanto, a dimensão normativa do direito de queixa que subjaz a estas situações,
não é estritamente penal no sentido dos art.2º, nº4 do CP e do art.29º, nº4 da CRP. A
ratio legis é a igualdade e a necessidade de aplicação da pena – que justifica a
retroatividade in melius, pelo que as alterações do direito de queixa não estão
necessariamente contempladas – quer isto dizer que a exigência do direito de queixa
para o desencadeamento do processo penal não implica necessariamente a diminuição
da necessidade de punir relativamente à fase anterior nem pretende favorecer a posição
do autor do crime, efeitos que irão ser consequentemente produzidos.
Assim, a despublicização pode produzir os seguintes efeitos:
1. Proteção da vítima;
2. Revelar um desinteresse pelo Estado.
➔ Este tipo de casos não se submetem exclusivamente ao art.29º, nº4 da CRP por não existir um
sentido estrito de descriminação (relacionável com a necessidade de punir da despublicização)
tendo difícil aplicação lógica.
➔ Já nos casos em que a despublicização conduza a uma menor necessidade de punir, seria mais
lógica a aplicação segundo o art.29º, nº4 da CRP – sem que fosse limitativa dos direitos do
ofendido.
➔ A solução mais harmoniosa será a da atribuição ao ofendido da oportunidade processual de
exercer o direito de queixa:
o Nos casos de despublicização para proteção da vítima: não se submete totalmente à
ratio dos artigos 29º, nº4 da CRP e art.2º, nº4 do CP – a ultraatividade da lei anterior
(crime público) levaria a uma desigualdade entre os arguidos pelos mesmos crimes
antes e depois do processo de despublicização – se não viesse a ser exercido o direito de
queixa.

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• Por todas as razões referidas impõe-se uma única solução jurídica para este tipo de casos: a
atribuição de oportunidade para o exercício do direito de queixa – embora o seu fundamento não
decorra diretamente do art.29º, nº4 da CRP, mas sim dos princípios jurídicos que lhe subjazem –
a igualdade e a necessidade da pena e a proteção da confiança emenda do Estado de Direito
democrático.
• Assim, deve ser aplicada a lei nova e a proteção do exercício do direito de queixa.

Ter em atenção a lei nova:

1. Temos de averiguar se existe continuidade normativo-típica;

2. Existe sucessão de leis no tempo? Critério da continuidade normativa – nas situações em que se
altera o elemento típico temos de aferir se essa alteração é especificadora ou especializadora.

• Especializadora: o legislador penal decidiu incorporar uma situação típica ex novo, um contexto
novo que não existia no crime —> vem valorar uma ocorrência que até então não tinha valor,
pelo que não pode ser aplicada. (Segurança jurídica)
o Não existe continuidade normativo-típica, não há sucessão de leis.
• Especificadora: quando essa alteração da descrição do comportamento proibido reside em
especificar a forma como queria punir um crime que já punia.

o Existe continuidade normativo-típica, há sucessão de leis.

Leis intermédias:

• As leis intermédias entram em vigor posteriormente à prática do facto, no entanto já não


vigoram ao tempo da apreciação judicial. Ex: a punição vigente no momento da prática do
facto foi substituída por uma menos grave, no entanto esta foi antes da sentença revogado por se
considerar demasiado leve, repostando a punição anterior.
• O início da vigência é posterior ao momento da prática do facto criminoso, no entanto o termo
da vigência ocorre antes do julgamento – sendo mais favorável aplicar-se-á a lei intermédia.
• É retroativa uma vez que se aplica a uma conduta que ocorreu antes da sua entrada em vigor e
ultra-ativa, aplicando-se depois de ter cessado a sua vigência formal —> com a aplicação
retroativa de leis intermédias pretende-se a segurança contra a arbitrariedade do legislador e
assegurar o princípio da igualdade.
• Segundo FD este tipo de situações cabem dentro do âmbito literal do art.29º, nº4, 2ª parte da
CRP e no art.2º, nº4, 1ª parte do CP – justificando-se teleológicamente e funcionalmente, uma

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Inês Nabeiro Ano letivo 2023/2024

vez que com a vigência da lei mais favorável (lei intermédia) o agente adquiriu uma posição
jurídica que deve ficar salvaguardada pela proibição da retroatividade da lei mais grave
posterior.
• O agente beneficia de uma lei mais favorável devido à ideia de autovinculação do estado, que
consta do art.2º do CP – o agente adquiriu uma expectativa jurídica de que vai beneficiar de uma
lei nova.

➔ A jurisprudência pronunciou-se neste sentido, pelo que deve entender-se que uma pena elevada
de multa (deverá considerar-se mais favorável) do que uma pena de prisão, ainda que leve.
➔ Quanto às restantes situações, deve aceitar-se que o juízo complexivo de maior ou menor favor
deve resultar da totalidade do regime a que o caso se submete.

Américo Taipa de Carvalho: se for mais favorável ao arguido, aplicar-se-á (será retroativa e,
simultaneamente, ultraativa).

Leis temporárias e de emergência

• As leis temporárias consagram uma exceção ao princípio da aplicação da lei mais favorável –
consagrada do art.2º, nº3 do CP.
• O professor Figueiredo Dias realiza a seguinte distinção:
o Leis temporárias em sentido estrito – o período é adaptado pelo legislador em termos
de calendário ou em função de um estado de sítio ou de guerra;
o Leis temporárias em sentido amplo – aquele período se torna reconhecível em função
de certas circunstâncias temporais.
• É comum a lei cessar a sua vigência automaticamente uma vez decorrido o período de tempo
para a qual foi editada – o afastamento da aplicação da lei temporária apesar de favorável reside
no facto de não existir uma verdadeira continuidade típico-normativa (que seria a alteração de
uma concepção legislativa) mas sim uma alteração das circunstâncias fácticas – não existem
expectativas jurídicas que mereçam por este motivo ser tuteladas, e por outro lado as razões de
prevenção geral persistem.
• Deve realizar-se uma interpretação rigorosa daquilo que é uma lei temporária, e em caso de
dúvida fazer valer as regras de proibição de retroatividade e da aplicação da lei mais favorável
consoante o caso concreto.
• MFP: O art.2º, nº3 do CP não pode ultrapassar os preceitos constitucionais apenas apoiado na
prevalência da intenção legislativa quanto ao caráter temporário de uma lei, assim como o
legislador ordinário não pode legitimamente decretar que a retroatividade in melius não se aplica
quando descriminaliza, também a atribuição do caráter temporário de uma lei em situações que
subsista uma verdadeira sucessão de leis tem de ser disciplinada pelos princípios da igualdade e
necessidade da pena.

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Em situações de sucessão de leis de emergência a aplicação da lei retroativa mais favorável deve
impor-se sempre que persista como elemento constante do tipo incriminado a mesma situação de
excecionalidade.
Fora destes casos, a sucessão de leis de emergência cabe no art.2º, nº3 do CP.

10.7. A lei penal inconstitucional e o problema da sucessão de leis no tempo

Pode ocorrer que a lei que deveria ser aplicável (a mais favorável) venha posteriormente a ser declarada
inconstitucional – poderá uma lei inconstitucional ser ainda assim aplicável por ser mais favorável,
segundo o art.29º, nº4 da CRP ou outra norma constitucional?

A doutrina portuguesa tem-se posicionado de duas formas:


➔ A primeira posição (Rui Pereira), considera que a lei inconstitucional é inválida e portanto não
pode produzir efeitos, até porque o art.282º da CRP determina que a declaração de
inconstitucionalidade (ou ilegalidade) produz efeitos desde a sua entrada em vigor, determinado
a repristinação das normas que por ela tenham sido revogadas. Assim, deixará de existir uma
verdadeira sucessão de leis no tempo, pelo que não caberá no âmbito do art.29º, nº4 da CRP, e
sendo a lei mais favorável considerada inconstitucional não se aplicará, até pela repristinação da
lei revogada menos favorável.
• No entanto nestes casos poderá ocorrer um erro sobre a ilicitude do facto, quando o agente tenha
agido ao abrigo da norma constitucional, pelo que esse erro irá excluir a culpabilidade segundo o
art.17º do CP.
• Caso já tenha sido aplicada a lei mais favorável, nos termos do art.282º, nº 1 da CRP preserva-se
o caso julgado. A única exceção encontra-se consagrada no nº3 em que a lei penal considerada
inconstitucional se afigura menos favorável – em que se levantará o caso julgado para repristinar
a lei penal favorável (a priori revogada) de acordo com a regra geral (art.282º, nº1).

➔ Segunda posição (Jorge Miranda) , preconiza que não será possível realizar uma interpretação
rígida do art.282º, nº1 da CRP tendo em conta o art.29º, nº4 CRP e o princípio do Estado de
Direito democrático assente na confiança —> por esta razão a lei mais favorável declarada
posteriormente inconstitucional deve ser aplicada, uma vez que foi esta que orientou o
comportamento do agente e o Estado vinculou através dela o comportamento dos destinatários.
Argumentos:
• Prevalência do princípio da igualdade subjacente ao art.29º, nº4 da CRP;
• Princípio do Estado de Direito, na vertente da vinculação que cria nos seus
destinatários;
• Princípio do Estado de Direito, na vertente de confiança depositada pelos destinatários
nas normais penais.

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• Poderá também argumentar-se a existência de uma lacuna no art.282º da CRP:


configura a não salvaguarda do caso julgado nos casos de uma lei penal inconstitucional
menos favorável, dando prevalência ao princípio da lei mais favorável – não tendo em
conta a situação inversa de lei constitucional mais favorável.

Posição MFP - concorda com esta segunda posição, uma vez que não decorre de uma
verificação fictícia de erro sobre a ilicitude e a um mero recurso ao art.17º do CP para
deixar de punir o agente pela lei mais severa – no caso de não ser aplicável bastaria
apenas atenuar a pena de acordo com a lei inconstitucional mais favorável. No entanto
faz a ressalva de que.
- A proteção do caso julgado deve prevalecer sobre as consequências da declaração
de inconstitucionalidade, sendo apenas afastada pela exceção consagrada no nº3 ;
- Quanto à lacuna existente, deve ser integrada através da articulação dos
princípios por razões de igualdade, necessidade da lei penal e da confiança
inerente ao Estado de Direito, devendo abranger a situação não contemplada no
art.282º, nº1 da CRP – a aplicação da lei penal mais favorável.

Síntese:

1. Determinar o que vamos designar o momento da prática do facto – tempus delictum ou delicti
(qual era a lei em vigor no momento da prática do facto) art.3º/1 do CP – critério do momento
da prática do facto e não do resultado; (importa apontar o momento temporal em que o agente
agiu), é no momento em que a pessoa atua que ela tem de atuar conforme o direito – desvalor da
ação e do resultado podem não coincidir no tempo — o agente apenas tem controlo absoluto
sobre o desvalor da ação – o desvalor do resultado não é controlável, é no momento da conduta
que tem que se exigir que cumpra a lei - critério unilateral da conduta.

2. Existem leis novas depois do momento da prática do facto? Temos de determinar se existe
sucessão de leis penais no tempo. A sucessão de leis penais no tempo só vai acontecer quando a
LN vai regular a mesma situação jurídico penal da LA. É necessário que exista uma
continuidade normativa e típica - a nova legislação tem que conter normas que regulem a
mesma realidade típica - a forma como são descritos os comportamentos proibidos pela norma
penal.

3. Se não há sucessão de leis penais no tempo não há duvidas, continua-se a aplicar a LA.
Havendo lei temos de avaliar o seguinte, no caso em concreto:
• A lei é mais favorável ao agente; (o que é mais favorável aquele agente em concreto – uma LN
que seja favorável ao A pode ser desfavorável ao B – dependendo do caso concreto)
• A lei é desfavorável ao agente.

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Inês Nabeiro Ano letivo 2023/2024

➢ Ou prevalece a regra em que existe a proibição de retroatividade caso seja desfavorável


ou no outro caso aplica-se a LN por ser mais favorável ao agente, consoante esta
ponderação no caso concreto.

4. Concluir: aplica-se a LN ou a LA, a concreta solução do caso tem que culminar com a
disposição legal aplicável – interpretar o art.29º, nº1 e 4 CRP (que segmento do art.29º se
aplica) e o art.2º do CP – 2º, nº2 e 2º, nº4.

• Art. 2º, nº2 CP: trata dos casos de descriminalização eliminando do catálogo de crimes aquele.

• Art.2º, nº4 CP: Não elimina o crime mas altera a forma como o mesmo é redigido – a descrição
da ação que se quer punir, mexe com a pena aplicável (sendo mais pesada ou mais leve)
consoante o juízo de favorabilidade.

• LN que transforma um crime me contra-ordenação – não existe sucessão de leis penais


o MFP e FD: quem praticou o facto sabia no momento que estava a cometer um crime,
no entanto não existe problema em aplicar a LN porque é uma sanção mais leve do que
aquela com que a pessoa estava a contar.
o Taipa de Carvalho: se a LN descriminalizou (art.2º, nº2 do CP) o agente não pode ser
punido.

• Conversão de crime público em semi-público – o crime semi-público é mais favorável para o


Agente.
- MFP: preconiza que tem de se dar prazo à vítima para exercer o direito de queixa (ela tem de
fazer queixa para o julgamento continuar);
- Taipa de Carvalho: processo continua a não ser que a vítima diga que não o quer.

Notas:
• RETROATIVIDADE: aplica-se a lei atual a factos anteriores.
• ULTRA-ATIVIDADE: aplica-se a lei depois de estar revogada.

11. Aplicação da lei no espaço: âmbito de validade espacial da lei penal

Existe uma necessidade de coexistência espacial de diversas ordens jurídicas, que configura uma
limitação natural do desenvolvimento absoluto dos princípios – no Direito Penal de um Estado, a
territorialidade tende a ser o critério básico da validade espacial da lei penal, condicionado uma
determinada apetência pela universalidade – preocupações com questões de previsibilidade e de
segurança, e razões de Direito Internacional.

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Inês Nabeiro Ano letivo 2023/2024

• Há que distinguir o Direito Internacional Penal (âmbito de validade especial) do Direito Penal
português fora do território do Estado – corresponde à aplicabilidade com relevância
internacional (atingindo factos cometidos no estrangeiro) do Direito interno ao Direito Penal
Internacional.

11.1. O princípio da territorialidade – art.4º CP

O princípio geral de aplicação da do Direito Penal português no espaço é o princípio da territorialidade da


prática do facto – art.4º do CP – a lei penal portuguesa aplica-se no território português.

➔ Exceções:
• Seja qual for a nacionalidade do agente e salvo convenção em contrário, o facto que seja
praticado em território português – dependendo de limitações de território e o que seja entendido
por praticar um facto em território português – pelo que temos:

• Território português (art.5º, nº1 e 2 da Lei Constitucional nº1/89): inclui o espaço terrestre, aéreo
e marítimo, sendo ainda território português os navios e as aeronaves portuguesas – princípio do
pavilhão (art.4º, alínea b do CP)) destinado a resolver conflitos negativos de competência;
• A lei penal portuguesa é também aplicável aos crimes cometidos em aeronaves estrangeiras –
remissão para a Lei nº254/2003 e o DL nº208/2004 de 19 de agosto art.2º e 3º e crimes
decorrentes do art.4º do mesmo diploma.
• Princípio especial – art.5º - em determinadas circunstâncias a lei portuguesa pode aplicar-se
fora do território português, que consagra o princípio da administração supletiva da justiça penal
em que a lei portuguesa passa a ter competência para conhecer dos factos que não se
encontrando sujeitos às regras já referidas, foram praticados no estrangeiro por estrangeiros que
se encontram em Portugal – cuja extradição sendo requerida não pode ser concedida.

• Extensão de competência territorial


• Salvo tratado ou convenção internacional em contrário, a lei penas portuguesa é
aplicável aos crimes elencados no art.4º do DL nº 208/2004 de 19 de agosto:
▪ A bordo de aeronave alugada com ou sem tripulação;
▪ A um operador que tenha a sua sede em território português;
▪ A bordo de aeronave civil registada noutro Estado;
▪ Em voo comercial fora do espaço aéreo nacional se o local de aterragem
seguinte por em território português e o comandante da aeronave entregar o
presumível infractor às autoridades portuguesas competentes.

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Inês Nabeiro Ano letivo 2023/2024

• A determinação da prática do facto em território português, realizada segundo o


art.7º do CP, que abrange ainda o caso de tentativa, pelo que deve ser produzido o
resultado segundo a representação do agente em território português – art.7º, nº2 do CP.

Figueiredo Dias:

A confirmação do sistema estadual de aplicação da lei penal do espaço baseia-se em diversos princípios e
num certo modelo:

• Estes princípios não têm igual hierarquia, existindo:


• Princípios-base: princípio da territorialidade (art.4º do CP) – aplicando-se a todos os factos
penalmente relevantes quer tenham corrido no seu território, independente de contra quem
tenham sido praticados;
• Princípios acessórios: princípio da nacionalidade – o Estado pune todos os factos penalmente
relevantes praticados pelos seus nacionais, com indiferença pelo lugar onde eles foram
praticados e por aquelas pessoas contra quem o foram;
• Princípios complementares: princípio pela defesa dos interesses nacionais – segundo o qual o
Estado exerce o seu poder punitivo, relativamente a factos dirigidos contra os seus interesses
específicos sem consideração do autor que os cometeu, ou do lugar em que foram cometidos – e
o princípio da aplicação universal que manda o Estado punir todos os factos contra os quais se
deva lutar a nível mundial ou que internacionalmente ele tenha assumido a obrigação de punir,
com indiferença pelo lugar da comissão, pela nacionalidade do agente ou pela pessoa da vítima.
• Este último princípio tem assumido cada vez mais importância, com a crescente preocupação
internacional com determinado tipo de infrações (crimes de genocídio, violações graves do
direito humanitário, terrorismo etc.) que deram lugar à criação de jurisdições internacionais para
o conhecimento destes crimes através dos Tribunais Penais Internacionais.

➔ A generalidade dos sistemas legislativos penais tem adotado como princípio basilar o princípio
da territorialidade e não o da nacionalidade, sendo a posição do Direito Penal português.

• Argumentos:
• Deve ser na sede do delito que mais se deve fazer sentir as necessidades de punição e de
cumprimento das suas finalidades à luz das exigências da prevenção geral positiva – é a
comunidade onde o facto foi praticado, que viu a sua paz jurídica perturbada e que
exige por este motivo a sua confiança no ordenamento jurídico (razões substantivas) e
também porque o lugar do facto é aquele onde melhor se pode investigá-lo e fazer a sua
prova, consequentemente existem expectativas mais fundamentadas de que se possa
obter uma decisão justa (razão processual).

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Inês Nabeiro Ano letivo 2023/2024

A ação e o resultado

• O legislador penal teve de recorrer a esta dualidade, o chamando princípio da ubiquidade (MFP)
em que basta que um destes dois elementos essenciais se manifeste em território português para
que a lei portuguesa possa ser aplicável —> manifestação da soberania do Estado português
através do seu poder punitivo, ampliando o âmbito de aplicação da lei penal portuguesa.
• A doutrina recorreu a uma solução mista ou plurilateral (FD) para determinar o local da prática
do facto, ao inverso do que sucede com a determinação do tempus delicti.
• Decorre do princípio da territorialidade que a lei penal portuguesa é aplicável a factos praticados
em território português seja qual for a nacionalidade do agente, tornando-se indispensável
determinar o local onde o facto foi praticado – locus delicti.

• Art.7º do CP, locus delicti:


▪ Determina qual o país estrangeiro em que se praticou o facto criminoso;
▪ Determina o local em que o crime foi também praticado ao abrigo da lei
portuguesa.

O critério da lei penal definido para aferir o lugar da prática do facto, baseado no objetivo do máximo
alcance da soberania da soberania punitiva do Estado seja diverso do que se estabelece para o momento
da prática do facto (art.3º CP) orientado pelo princípio da legalidade.

• MFP: A lei portuguesa não poderá ser aplicada apesar de o resultado típico em território
português quando por por força do critério de aplicação no tempo o facto não seja punível por
não estar previsto em lei anterior à realização da ação em território estrangeiro.
• Os critérios dos art.2º e 3º do CP derivados do art.29º, nº1 da CRP aplicam-se independente do
princípio da ubiquidade que estabelece o âmbito da validade espacial da lei penal portuguesa, a
sua aplicação não fica comprometida.
• Exemplo:
Uma sucessão de leis no tempo, em que o resultado seja produzido em território
português num momento em que passou a vigorar uma lei que vem a punir o facto,
quando no momento em que o mesmo foi praticado no estrangeiro não era punido em
Portugal.
- O art.7º do CP determina ainda assim, a aplicabilidade ao facto da lei penal
portuguesa, embora nos termos do art.2º, nº1 do CP e art.29º, nº1 CRP o facto não
possa ser punido —> proibição de retroatividade in pejus.
- A aplicação da lei penal nos termos do art.4º e 7º do CP não dispensa a observância
de todos os princípios a que a mesma de subordina – aplicação no tempo e proibição de
analogia.

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Mera possibilidade de ocorrência do dano

➔ O art.7º basta-se com a tentativa inacabada, mas já não com a prática de atos preparatórios não
puníeis (art.21º e 22º do CP) para a definição do lugar da prática do facto – deixou de ser
discutível se a mera possibilidade da ocorrência do dano (entendido como lesão do bem jurídico,
autónoma da verificação do evento típico ou do resultado) em território português será suficiente
para a aplicação da lei penal portuguesa ao facto – depois da revisão do CP de 1998 passou a
estar legalmente previsto que nos casos de tentativa o facto deverá considerar-se igualmente
praticado no lugar em que de acordo com a representação do agente o resultado se deveria ter
produzido.
➔ A doutrina penal tem entendido que tentativa é crime de perigo concreto e os crimes de perigo
concreto são crimes de resultado portanto, fará todo o sentido que caiba no âmbito do art.7º do
CP a mera possibilidade da ocorrência do resultado em território português ainda que a ação
criminosa se desenrole no estrangeiro —> a possibilidade do resultado se desencadear em
território português será abrangida pela norma (MFP)
➔ O perigo afronta a Ordem Jurídica e coloca em causa a segurança dos bens e a confiança no
Direito, clamando pela soberania punitiva do Estado do mesmo modo que sucede com a ação e o
resultado.

• Pode ainda ocorrer situações em que, a mera ocorrência do dano (lesão do bem jurídico) sem
que o resultado típico se verifique em Portugal permite considerar praticado em território
português o facto.
• Exemplo dado no manual: Alguém profere no estrangeiro difamação perante terceiros contra
pessoa vivendo em Portugal, poder-se-á afirmar que o facto foi praticado em Portugal
considerando que apenas a lesão da honra tem conexão com uma pessoa que vive em território
português e o resultado típico se verificou no estrangeiro?
Neste caso, o art.7º apenas poderia abranger o dano através de uma analogia incriminadora, que
se encontra proibida pelo art.1º, nº3 do CP – (MFP) resposta negativa na medida em que o
dano nunca é uma lesão ideal do bem jurídico totalmente desligada de um certo evento
contraponível e imputável à ação típica. O resultado típico pode corresponder a uma fase menos
concretizada e avançada da lesão do bem jurídico, pelo que todo o dano pressupõe nos crimes de
resultado uma manutenção do resultado típico ou a sua intensificação – o primeiro momento não
afasta a conexão com a ordem jurídica portuguesa, porque se pressupõe uma intensificação ou
desenvolvimento do evento típico.

• A revisão do CP de 1998 veio ainda prever uma alteração muito significativa nos casos em que o
resultado típico ou o resultado não compreendido no tipo de crime se tiver produzido em
território nacional. São os casos de crimes de perigo comum (art.272º e ss do CP) ou de crimes
de falsificação (art.255º e ss do CP) – também o resultado material que já não é necessário para
a consumação continua a ser relevante para a determinação do lugar da prática do crime.

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Inês Nabeiro Ano letivo 2023/2024

Figueiredo Dias:

Assim, a revisão do CP de 1998 veio aditar duas novas conexões ao art.7º que já não seriam exigidas pela
solução plurilateral (princípio da ubiquidade para MFP):

1. O local onde se produziu o resultado não compreendido no tipo de crime: diz respeito aos
crimes tipicamente formais mas substancialmente materiais, que atingem a sua consumação
típica antes de se ter verificado a lesão que a lei pretende evitar, garantido-se uma tutela
antecipada do bem jurídico;
- Exemplo: Fraude na obtenção de crédito punido segundo o art.38º do DL 28/84 que consuma a
prática da conduta fraudulenta independentemente da efetiva obtenção do crédito;
- No caso se embriaguez e intoxicação (art.295º CP): caso a autocolocação em estado de
inimputabilidade tiver ocorrido no estrangeiro e a condição objetiva de punibilidade (prática do
facto ilícito típico) ocorrer em Portugal – a lei portuguesa será competente.

2. Em caso de tentativa, o local onde se deveria ter produzido de acordo com a representação do
agente: o art.7º, nº2 do CP acrescentou uma nova inovação quanto aos critérios de determinação
do locus delicti – o local do facto é, em caso de tentativa, o local onde o resultado deveria
ocorrer segundo a representação do agente.
- Exemplo: cai sob a alçada da lei portuguesa o envio por um agente de uma carta armadilhada a
explodir em Portugal e com o intuito de matar um cidadão aqui residente que, todavia, é
desativada pelas autoridades de um Estado estrangeiro: caso a carta penetra-se o território
português existe uma parcela iter criminis que decorre do território nacional, pelo que à luz do
princípio da territorialidade fundaria desde logo a competência portuguesa, podendo caso isso
não ocorresse ser fundamentada com base em regras de nacionalidade passiva e da proteção dos
interesses nacionais - concluindo, a lei portuguesa limita a competência da lei nacional aos
casos em que a infração já configura uma tentativa.

11.2. Princípio da defesa dos interesses nacionais

A territorialidade da lei penal não permite estabelecer de forma exaustiva a conexão entre o poder
punitivo e a defesa de bens jurídicos essenciais à preservação de certas condições essenciais da
organização e da segurança da sociedade – sempre que ocorram lesões de bens jurídicos exteriores ao
território português por se destinarem a lesar os bens jurídicos deste, ainda que praticados os factos no
estrangeiro.

• O art.5º, nº1, al a) do CP indica um elenco de normas que correspondem a possibilidades mais


frequentes – burla informática (art.221º), crimes de falsificação de moeda, título de crédito etc

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Inês Nabeiro Ano letivo 2023/2024

(art.262º a 271º), crimes contra a segurança do Estado e contra a realização do Estado de Direito
(art.308º a 321º e art.325º a 345º respetivamente).
• A revisão do CP de 1995 introduziu os crimes de burla informática, o que enfatiza a
extraterritorialidade cada vez mais presente em diversos tipos de crimes tendo em conta o
desenvolvimento das novas realidades de comunicação e informática – delimitação do âmbito do
poder punitivo dos Estados menos vinculada ao território – em que o espaço comunicacional se
introduz como nova fronteira do poder punitivo dos Estados.

• Todavia, crimes ainda mais graves que a burla informática não são contemplados (Lei nº 109/91
de 17 de agosto).

➔ Os Estados nacionais têm necessidade de intervir, protegendo penalmente os seus interesses


específicos perante factos cometidos no estrangeiro mas diretamente dirigidos à lesão de bens
jurídicos nacionais.
➔ O Estado português deve munir-se dos seus próprios mecanismos e instrumentos necessários à
defesa própria dos seus interesses essenciais.

Hipótese integrantes do princípio:


• A defesa de bens jurídicos que podem dizer-se acionais (portugueses) segundo a sua específica
natureza;
• É a substância do bem jurídico e não a titularidade que o torna (ao bem jurídico) de interesse
nacional;
• É um princípio de proteção real.

Em suma: o princípio encontra-se consagrado no art.5º, nº1, al a) do CP, sendo o conjunto de crimes que
tutelam interesses próprios da soberania e do Estado português, pelo que os bens jurídicos em causa têm
de ser protegidos pelo Estado – não existem mais países que protejam os bens jurídicos- soberania do
Estado português. Apenas é aplicável quando esteja em causa algum dos crimes que constam do referido
artigo na sua alínea a).

11.3. Princípio da universalidade da aplicação da lei penal portuguesa

Consagrado no art.5º, nº1, al c) do CP, o princípio da universalidade segundo o qual a validade espacial
penal portuguesa é delimitada pela necessidade de cooperação do Estado português na proteção penal de
bens da humanidade de valor universal.

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• Destina-se a permitir a aplicação da lei penal portuguesa a factos cometidos no estrangeiro que
atentam contra bens jurídicos que carecem de proteção internacional ou que, de qualquer modo,
o Estado português se vinculou internacionalmente a proteger.
• O princípio deve valer independentemente da sedes delicti e da nacionalidade do agente – não se
tratando de permitir a cada Estado a intervenção penal relativamente a todo e qualquer facto
considerado crime pela sua lei interna, o que seria fomentador de conflitos internacionais de
caráter jurídico-penal – mas sim, de reconhecimento do caráter supranacional de determinados
bens jurídicos que merecem tutela universal (uma proteção a nível mundial).
• Jescheck – “luta contra a delinquência internacional perigosa”.

➔ Os art.5º, nº1/ c) e d) do CP ordenam a aplicação da lei penal portuguesa aos seguintes crimes
que visam tutelar bens jurídicos que carecem de proteção internacional:
• Art.5º, nº1/ c):
o Mutilação genital feminina (art.144º. -A CP);
o Tráfico de órgãos humanos (art.144º. -B CP);
o Casamento forçado (art.154º. -B CP);
o Atos preparatórios (art.154º.-C CP);
o Escravidão (art.159º CP);
o Tráfico de pessoas (art.160º CP);
o Rapto (art.161º CP);
o Abuso sexual de crianças (art.171º CP);
o Abuso sexual de menores dependentes (art.172º CP)
o Etc. (referidos no artigo)

• Art.5º, nº1/ d), quando a vítima seja menor:


o Ofensa à integridade física grave (art.144º);
o Coação sexual (art.163º);
o Violação (art.164º)
o Extensão do âmbito da lei penal portuguesa introduzida pela Lei nº59/2007 de
4 de setembro, justificada pela política internacional em que Portugal participa
destinada a conceder especial proteção aos menores em face da criminalidade
internacional.

• A aplicação da lei penal portuguesa nas referidas hipóteses está sujeita a uma dupla
condição:
o O agente seja encontrado em Portugal;
o Não possa ser extraditado ou em entregue em resultado de execução de
mandato de detenção europeu ou de outro instrumento de cooperação
internacional que vincule o Estado Português.

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Tais limitações aos olhos de Figueiredo Dias são compreensíveis, sendo apenas colocada a questão de
saber se quanto à segunda condição ela vale para o caso em que a extradição/entrega foi requerida mas
não pode ser concedida ou se vale também para os casos em que nem foi requerida.

Solução: a interpretação mais ampla parece ser imposta pela teleologia específica do princípio
da universalidade. A redação da al f) parece reforçar este entendimento uma vez que o legislador fez
questão de especificar que a competência da lei portuguesa no caso aí previsto depende da concreta
existência de um pedido de extradição que não pode ser atendido (ao contrario do que sucede nas al c) e
d) ).
Os crimes contra a humanidade apesar de não se integrarem na previsão da al c) do art.5º do CP,
seguem um critério universalista nos termos da Lei nº31/2004 de 22 de Julho nos termos do art.5º do
mesmo diploma – o âmbito das duas normas é bastante semelhante, com exceção do último caso em que
existe um critério de mera oportunidade quanto à não entrega ao Tribunal Penal Internacional - “desde
que o agente seja encontrado em Portugal e não possa ser extraditado ou seja decidida a sua não entrega
ao Tribunal Penal Internacional”.

➔ Por fim, a fonte do princípio da universalidade pode ser o direito internacional convencional a
que Portugal se tenha obrigado – neste sentido dispõe o art.5º, nº2 do CP. Casos exemplares da
aplicação do princípio com esta fonte: casos de luta internacional contra a pirataria aérea,
terrorismo, tráfico de droga, falsificação de moeda, etc.

11.4. Princípio da nacionalidade (art.5º, nº1/ al e))

A lei penal portuguesa aplica-se aos factos praticados:

• Fora do território nacional por portugueses (princípio da nacionalidade ativa);


• Fora do território nacional por estrangeiros contra portugueses (princípio da
nacionalidade passiva)
• Para que se verifique têm de estar preenchidos os requisitos – art.5º, nº1, alínea e), i),
ii), e iii).

Fundamentos:

• Nacionalidade ativa: vínculo dos cidadãos portugueses à soberania punitiva do seu próprio
Estado;
• Nacionalidade passiva: dever do Estado português conceder proteção aos bens jurídicos de que
os cidadãos portugueses sejam titulares ainda que no estrangeiro.

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➔ O princípio da nacionalidade ativa dá expressão ao princípio da não extradição de nacionais –


art.33º, nº1 da CRP – a contrapartida da proibição de extradição de nacionais, na ordem
internacional, vem de certa forma assegurar a perseguição penal ou o julgamento dos factos
criminosos praticados pelos cidadãos portugueses no estrangeiro.
➔ A aplicação da lei penal portuguesa aos portugueses ou estrangeiros por força do art.5º, nº1
alínea e) tem de obedecer a uma série de requisitos sendo eles cumulativos, exprimindo
verdadeiramente as condições de punibilidade. São eles:
• Os agentes encontrados em Portugal;
• Os factos serem puníveis pela legislação do lugar em que tiverem sido praticados, salvo
quando nesse lugar nao se exerça poder punitivo;
• Os factos constituírem crimes que admitam extradição e esta nao possa ser concedida
ou seja decidida a nao entrega do agente em execução de mandato de detenção europeu
ou de outro instrumento de cooperação que vincule o Estado português.

Os referidos requisitos limitam o âmbito de influencia do poder punitivo do Estado português


segundo um duplo fundamento:

1. A aplicação da lei penal portuguesa pressupõe um mínimo de respeito pelas expectativas dos
agentes envolvidos e pelo sentido do desvalor (ílicito) das suas condutas praticadas no
estrangeiro, bem como pela igualdade entre aqueles agentes e os estrangeiros que a lei penal
portuguesa nao possa abranger – os agentes terão de ser puníveis pela legislação do lugar em
que os factos foram praticados – locus delicti.
2. Os agentes terão de ser encontrados em território português e não poderão ser extraditados
ou entregues a outro título incluindo os casos em que essa situação dependa de uma decisão
do Estado português —> nesta condição estamos perante uma situação em que o Estado
português pode punir os agentes por razões materiais e jurídico-constitucionais. Não terá
apenas as possibilidades materiais de os punir com presença em território português como
também por força dos art.33º, nº1, 2 e 3 da CRP estará colocado numa posição em que só ele
possa punir ou em que exista a possibilidade legal de ser o Estado Português a punir e assim
seja decidido.

A alínea b) do nº1 do art.5º alarga o poder punitivo do Estado português às situações em que os
factos no estrangeiro contra portugueses, sem que o requisito da punibilidade pela legislação do
lugar se verifique, desde que tais agentes vivam habitualmente em Portugal ao tempo da prática
desses factos e aqui sejam encontrados —> serve precisamente para evitar as situações em que
os agentes praticam factos no estrangeiro na expectativa de escaparem ao poder punitivo do
Estado português, sem que, no entanto, estejam determinados pela irrelevância penal das suas
condutas, não tendo cabimento assegurar expectativas ou proteger a igualdade entre estes agentes
e os estrangeiros.

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o A necessidade político-criminal justifica-se nestes casos enquanto se sancionam


portugueses que mantêm um dever de fidelidade para com a lei portuguesa devido a um
vínculo de cidadania (ativo) na medida em que vivem habitualmente em Portugal
(território português) —> assim, nestes casos as condições do art.5º, nº1 al e) não são
exigidas porque existe um interesse legítimo em aplicar ao agente a lei penal
portuguesa, e não apenas em suprir lacunas de punibilidade.

➔ A interpretação do art.5º, nº1 al e) suscita algumas questões que terão de ser resolvidas segundo
a ratio legis e com o próprio teor do princípio da nacionalidade.

• Deve questionar-se quais os contornos conceituais e o âmbito de exigência de punição do lugar


em que os factos tiverem sido praticados:

o Punibilidade em abstrato: tipicidade e ilicitude


o Punibilidade em concreto: causas de exclusão ou de punibilidade reportadas à pessoa
do agente

➔ Segundo a lógica do princípio da nacionalidade, bastaria a tipicidade e a ilicitude dos factos no


território estrangeiro com a sua contrariedade objetiva à ordem jurídica estrangeira, pelo que tão
só estas categorias seriam suficientes para fundamentar expectativas quanto à irrelevância do
facto, ao seu não desvalor.
➔ Todavia, uma aplicação da lei penal portuguesa que decorresse de uma punibilidade de factos
não puníveis em concreto no estrangeiro (devido a certas condições do agente, como a sua
idade), resultaria numa violação do princípio da aplicação da lei penal estrangeira mais favorável
—> art.6º, nº2 CP.
➔ A melhor interpretação do art.5º, nº1, al e), ii) irá impor que a lei penal portuguesa seja aplicável
por forca do princípio da nacionalidade conjugado com o da aplicação da lei penal estrangeira
mais favorável – apenas nos casos em que o facto seja em concreto punível no estrangeiro.
➔ Os casos em que, por força do art.6º, nº1 do CP, se impõe a aplicação de lei penal estrangeira
mais favorável em que o agente foi julgado no estrangeiro e se subtraiu à condenação, ou não foi
julgado no estrangeiro, impõe que onde o agente nem pudesse ter sido julgado no estrangeiro
(por força de uma condição objetiva ou subjetiva de punibilidade ou uma condição de
procedibildiade) ou que se fosse julgado nunca poderia ser condenado (causas de exclusão de
culpa) não deve ser submetido à aplicabilidade da lei penal portuguesa.
➔ Outra norma que deve ser interpretada é a do art.5º, nº1, alínea b), quanto ao que é que deve ser
entendido por crime contra portugueses:
Divergência
o Anteriormente este artigo foi concebido com o objetivo de contemplar crimes como a
bigamia ou o aborto, pelo que se coloca a questão se o aborto pode ser entendido como

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crimes contra portugueses, sem o recurso a analogia. O aborto, previsto no art.140º, nº2
do CP, “feto” parece não ser, no sentido normal das palavras um cidadão português.
o O aborto consentido proibido tem como objetivo a ação típica o próprio feto e o bem
jurídico protegido é a vida intra-uterina, sendo os interesses da sociedade portuguesa
como um todo, como qualquer outro crime, que são afetados.
o O bem jurídico sendo a vida intra-uterina de um futuro cidadão português é um bem
cuja tutela penal tem de ser justificada por um interesse objetivo da sociedade.
o Não existe neste caso necessidade de recorrer à analogia entre o conceito feto e cidadão
português uma vez que é possível determinar através de uma interpretação sistemática o
sujeito passivo do crime a toda a sociedade – a todos os portugueses – não estamos
portanto perante uma analogia proibida.

MFP: a norma sistematicamente mais próxima do art.5º, nº1 al e) referida a proteção


pessoal dos portugueses na perspectiva de nacionalidade passiva – e não aos interesses
coletivos dos portugueses – e sendo a alínea b) moldada pelo sentido da alínea e) como
se fosse uma extensão da mesma, o elemento sistemático da interpretação de uma norma
que consagra um alargamento excecional do princípio da nacionalidade não poderá
integrar interesses gerais e coletivos dos portugueses sem ultrapassar o sentido
possível das palavras.

11.5. Restrições à aplicação da lei penal portuguesa por força da aplicação


mais favorável do direito estrangeiro – art.6º, nº2 do CP

➔ O art.6º, nº2 do CP consagra uma restrição à aplicação da lei penal portuguesa menos favorável
nos casos em que esta seja aplicada por força dos princípios da universalidade e da nacionalidade
– quando não estejam em causa os princípios da territorialidade e da defesa dos interesses
nacionais (art.6º, nº1 e 3 CP) e sempre que o agente encontrado em território nacional não tiver
sido julgado no país da prática do facto ou se houver subtraído ao cumprimento tal ou parcial da
condenação.
➔ Esta restrição é explicitamente excluída, porém existem exceções:
o Estejam em causa crimes de terrorismo (organização terrorista) - art.8º, nº2
relativamente aos crimes de organização terrorista e de terrorismo previstos nos art.2º e
3º da Lei nº52/2003.
o Nos crimes de violação do Direito Internacional Humanitário previstos na Lei nº
31/2004 nos termos do art.5º, nº2.

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Tendo em conta a gravidade dos crimes e o facto de o Estado Português se assumir como
representante da comunidade internacional, não apenas para cobrir lacunas de punibilidade mas
sim de um modo proativo nestes casos não se aplica a lei estrangeira mais favorável.

➔ Tal restrição consiste na exigência de naqueles casos ser aplicada a lei do país em que o facto
tiver sido praticado sempre que aquela for concretamente mais favorável ao agente – art.6º, nº2
CP.
Fundamento:
• Conjugação da subsidiariedade do exercício do poder punitivo do Estado Português nestes casos
com:
o Princípio da culpa;
o Princípio da Igualdade;
o Princípio da necessidade da pena;
o Princípio da segurança jurídica.

Nas situações referidas o Estado pune porque outro Estado não pôde punir, mas não deixa de conceber a
punição de acordo com os seus princípios constitucionais.

➔ A punição pelo Direito português em termos mais graves não iria garantir uma adequação da
consciência da ilicitude do agente ao desvalor da ação e à gravidade do ilícito para ele previsível
– o agente orientou a sua conduta num determinado sentido, pelo que não teria a mesma
concepção do ilícito nem das consequências da sua conduta.

O princípio da aplicação da lei estrangeira mais favorável não abrange as al a) e b) do nº1 do art.5º - o
poder punitivo do Estado nestas condições não é subsidiário.

➔ O art.6º pressupõe que o facto seja punível em país estrangeiro, contrariamente ao art.5º, nº1 al
a) e b) se baseiam em que o facto não seja punível no território em que é praticado nem em
abstrato nem em concreto ou ser menos gravemente punível.
➔ Também a circunstâncias de o art.5º, nº1 alínea e), ii) ter sido interpretado com referência à
aplicação da lei penal mais favorável, fazendo uma interpretação da punibilidade pela legislação
estrangeira no sentido de punibilidade em concreto, não contende com a subtração ao princípio
referida no art.5º, nº1 al b), uma vez que estes casos previstos não são por natureza comparáveis
em termos de igualdade e necessidade aos factos semelhantes cometidos por estrangeiros no
respetivo país.

➔ A subtração ao princípio da lei mais favorável também se prevê, nos casos de terrorismo (art.8º,
nº2 relativamente aos crimes de organização terrorista e de terrorismo previstos no art.2º e 4º da

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Lei nº 52/2003 e nos crimes de violação do Direito Internacional Humanitário previstos na Lei nº
31/2004 nos termos do art.5º, nº2.

➔ Dada a gravidade dos crimes e o facto de o Estado Português se assumir como representante da
comunidade internacional de modo proativo e não meramente para cobrir lacunas de
punibilidade não se justifica a aplicação da lei estrangeira mais favorável.

11.6. A aplicabilidade da lei penal portuguesa e o princípio non bis in idem

➔ O art.6º, nº1 do CP exprime um condicionamento geral de aplicabilidade da lei penal portuguesa


pelo princípio non bis idem – art.25º, nº5 CRP.

o O princípio non bis idem é pressuposto da efetivação dos princípios da nacionalidade e


da universalidade é o fato de o agente encontrado em Portugal não ter sido julgado no
país da prática do facto ou ter-se subtraído ao cumprimento total ou parcial da
condenação.
o O art.6º, nº2 prevê nos casos em que haja efetivamente lugar à aplicação da lei penal
portuguesa que a lei estrangeira mais favorável se imponha em concreto – sendo a pena
aplicável posteriormente convertida numa pena correspondente no sistema penal
português ou, caso não seja possível, na pena que estiver prevista para o facto.
o Uma questão que se coloca é se havendo condenação ou o cumprimento parcial da
pena no país estrangeiro, tal facto não deverá impedir julgamento em Portugal pela
prática dos mesmos crimes com vista ao cumprimento da pena (total ou parcialmente)
em Portugal, por força do princípio non bis in idem.
o Poderá haver duplo julgamento pelo mesmo crime ? O princípio non bis in idem é a
expressão de garantia de que a perseguição criminal mediante o processo penal não é
instrumento um instrumento de arbitrariedade do poder punitivo sem limites — é sim,
um modo controlável e garantido de aplicação do Direito Penal.
o A repetição do julgamento pelo mesmo crime de que se foi absolvido ou condenado a
certa pena assim como a repetição da punição de agente já condenado e punido
constituem claras negações do valor geral do processo penal e do direito do arguido a
que o Estado se vincule ao desfecho do processo penal que desencadeou.
o No entanto isto não implica a restrição da aplicação do princípio aos julgamentos
realizados por tribunais portugueses - o poder punitivo do Estado português terá que se
justificar pela estrita necessidade de intervir (julgar e punir) nos termos do art.18º, nº2
da CRP.
o A necessidade de intervenção do poder punitivo nos casos em que uma pessoa já foi
julgado e absolvida no estrangeiro ou já cumpriu a pena não existe — apenas se

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justifica pela proteção de interesses nacionais sendo legítima a intervenção punitiva do


Estado Português.
o O princípio non bis idem:
▪ Vinculação do poder punitivo do Estado de Direito pelo desfecho do processo
penal;
▪ O próprio princípio da necessidade da intervenção penal.

o A pergunta acerca da condenação e o cumprimento parcial da sentença estrangeira


podem ser alvo de novo julgamento pelos factos em Portugal tem duas respostas
possíveis:

1. Os efeitos negativos das sentenças estrangeiras previstos no art.6º, nº1 do CP


são a máxima expressão possível e exigível da CRP. Tal resposta, sem excluir
o princípio da transnacionalidade do non bis in idem, limita o seu âmbito
internacional a julgamentos absolutórios ou em que houve cumprimento da
condenação (em que não houve subtração ao cumprimento total ou parcial da
condenação).
2. Uma outra resposta, consideraria o art.6º, nº1 incompatível com o art.29º, nº5
CRP na medida em que em caso de subtração ao cumprimento da pena se
viesse a renovar em Portugal, o julgamento pelo mesmo crime. A
inconstitucionalidade desta parte final do art.6º, nº1 seria sempre evitada pela
interpretação do preceito no sentido de que o novo julgamento se limitaria a
rever e confirmar a sentença estrangeira à luz da lei penal mais favorável – nos
termos do CPP.

o A proteção mais absoluta do non bis in idem em situações em que não haveria qualquer
acordo internacional sobre a eficácia das sentenças estrangeiras não é exigível pela CRP
– desde que o novo julgamento preconizado esteja contido nos seis estimulados pelo
chamado princípio do desconto – isto quer dizer, desde que a pena já cumprida seja
efetivamente descontada na nova condenação (art.82º do CP)
o O princípio non bis in idem atinge em absoluto um efeito impeditivo de dupla punição
mas não um efeito impeditivo de repetição do julgamento realizado em país estrangeiro.
o O art.6º, nº2 estabelece um mecanismo de conversão da pena aplicável ao que
corresponder no sistema português, ou que a lei portuguesa previr o facto. Tal sistema
refere-se à aplicação de do Direito Penal estrangeiro em sentença proferida por tribunais
portugueses como também à revisão e à confirmação de sentença penal estrangeira
pelos tribunais portugueses.
o A conversão é não só decorrência de um princípio de praticabilidade como também a
emanação dos princípios da necessidade da pena (apenas a pena correspondente é

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Inês Nabeiro Ano letivo 2023/2024

necessária) e non bis in idem (a pena aplicável nunca poderá, pela conversão, vir a
impor uma espécie de segunda punição ou qualquer punição mais gravosa).
o É à luz destes princípios a conversão em concreto deve realizar-se, pelo que caso se
imponha uma pena não privativa da liberdade não se converta numa pena de prisão – se
a lei penal estrangeira previr uma pena pecuniária para o facto, terá que ser aplicada
multa de medida correspondente. Mas se a pena estabelecida no estrangeiro for uma
pena não privativa da liberdade e não pecuniária a pena corresponde só poderá ser uma
pena igualmente não privativa de liberdade e não pecuniária.

12. Cooperação judiciária internacional: extradição e regime do mandato de


detenção europeu

12.1. Extradição – problemas de constitucionalidade

A cooperação judiciária internacional suscita diversas questões quanto aos limites de aplicação da lei no
espaço, existindo duas situações que interferem com a aplicação da lei penal portuguesa a factos
praticados fora por estrangeiros ou portugueses:
• Impedimentos para extraditar certos agentes por razões legais e constitucionais – art.33º, nº3, 4
e 6 CRP;
• O dever de julgar nos casos em que não se possa extraditar ou se tenha decidido não o fazer –
princípio aut dedere aut judicare – consagra a não extradição ou entrega a título por motivos
políticos – art.33º, nº 6 CRP, e art.7º, nº1, al a) da Lei nº144/99 de 31 de agosto.

A não extradição de nacionais

O Estado português, quando vinculado a convenções internacionais nos casos de:


o Terrorismo;
o Criminalidade organizada;
o Condições de reciprocidade;
o Na condição de o Estado requisitante consagrar as garantias de um processo justo e equitativo –
garantias fundamentais da independência dos tribunais (direitos de defesa e de recurso) – todas
as garantias que decorrem do art.32º da CRP.
▪ Não têm de ser necessariamente iguais, o processo justo e equitativo pode ter outros
moldes, mas sempre assegurando as garantias processuais essenciais que decorrem de
um Estado de Direito – tutelado por fontes internacionais:
- Convenção Europeia dos Direitos Humanos – art.5º, 6º e 7º;
- Declaração Universal dos Direitos Humanos – art.8º a 11º.

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• Quanto ao segundo princípio também são abrangidas infrações conexas segundo as “concepções
do direito português – art. 7º, nº1, al a) da Lei nº144/99.

O problema da “natureza política” na CRP e na Lei nº 144/99

• Entre o art.33º, nº6 e o art.7º, nº1 da Lei nº144/99 não existe uma total correspondência (MFP),
uma vez que a Constituição refere a não extradição a qualquer título por motivos políticos, a lei
por outro lado utiliza a natureza política como critério – apelando a um critério objetivo – a
natureza política, deste modo, estaria relacionada com a atividade dos titulares de cargos
políticos.
• O problema surge pela seguinte razão – a Constituição pretende evitar que a extradição seja
manipulada por razões de mera perseguição política, pelo que à luz da constituição parece dar-
se primazia à motivação, independentemente de qualquer natureza objetiva dos crimes.
• A Lei de cooperação judiciária internacional apesar de ser mais ampla, consagra uma mera
natureza objetiva em função da atividade dos agentes dos crimes – o que uma interpretação
muito estrita dos crimes de natureza política seria violadora da Constituição – o que permitiria
que fosse concedida a extradição sempre que os crimes, apesar de não terem natureza política,
pudessem constituir pretexto para uma perseguição política.
• Assim, MFP, diz que devemos interpretar o art.7º, nº1, al a) de a “natureza política” ser
considerada como um indício objetivo impeditivo de uma excessiva subjetivação da qualificação
da motivação política – mas não restringindo o critério a um tipo de crimes.
• O art.7º da Lei nº144/99 exclui crimes como o genocídio, contra a humanidade, de guerra e
terrorismo do conceito de crimes de natureza política – a CRP não faz qualquer exclusão de tais
tipos de crimes – no entanto, a dimensão da proteção dos direitos humanos e da lesão de bens da
comunidade internacional como um todo, afastará, uma interpretação no sentido de natureza
política desses crimes, pelo que não colocam em causa a previsão constitucional.
• No entanto, o art.7º, nº1, al d) da mesma lei prevê a possibilidade de uma convenção retirar
natureza política a certos crimes – o que vai contra a letra da Constituição – ultrapassando o seu
espírito na medida em que possa ser retirada a natureza política, por convenção, a crimes em que
a extradição seja requerida por motivação política sem que a natureza objetiva dos factos
criminosos justifique que se retire tal natureza política dos mesmos.

O princípio da não extradição por crimes a que corresponda a pena de morte ou a lesão irreversível da
integridade física

➔ Segundo o Direito do Estado requisitante, está vedada a possibilidade de extradição por crimes
correspondentes aos referidos, decorrente do art.33º, nº6 da CRP e o art.6º, alínea e) da Lei
nº144/99.

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➔ Este princípio não admite qualquer flexibilidade na sua interpretação, pelo que caso o país
requisitante dê alguma garantia política concreta de que tais penas não se aplicarão, não será
ainda assim possível a extradição por força deste princípio.
➔ No entanto o art.6º, nº2 al a) admite a cooperação se o Estado que formular o pedido por acto
irrevogável e vinculativo para com os seus tribunais, comutar a pena de morte ou outra de que
possa resultar a lesão irreversível da integridade física.

No entanto, a jurisprudência tem entendido que a interpretação consistente com a Constituição é a


de que a garantia corresponde a uma espécie de alteração da ordem jurídica do estado requerente
em concreto – vinculativa em termos jurídicos dos tribunais e do próprio poder político – uma
vinculação no sentido essencial do Estado e da correspondente separação de poderes.
- Acórdão do TC nº1/2001.

O princípio da restrição da extradição por crimes a que corresponda pena ou medida de segurança
privativa ou restritiva da liberdade com caráter perpétuo ou de duração indefinida

➔ Art.33º, nº4 da CRP e art.6º, nº1, alínea f) da Lei nº144/99.


➔ A Revisão Constitucional de 2004 veio estabelecer o atual art.33º, nº4, em que se tornou claro
em matéria de infrações a que corresponda pena de prisão perpétua no Direito do Estado
requisitante, flexibiliza-se a exigência de garantias do Estado que requeira a extradição – não
exigindo como sucede na pena de morte uma alteração da ordem jurídica – mas apenas uma
vinculação convencional no plano do Direito Internacional —> trata-se de uma vinculação com
juridicidade no plano internacional, pelo que as garantias estão associadas a uma convenção
internacional, e não serão apenas um plus.

➔ Assim, o sentido do texto corresponde à exigência de que seja realizado um acordo entre o
Estado português e o outro Estado em matéria de extradição (não necessariamente bilateral,
poderá ser multilateral) que contemple como condição as garantias constitucionais de não
aplicação da prisão perpétua

➔ A interpretação de que seriam garantias diplomáticas ad hoc não resulta da norma constitucional.

12.2. Extradição – outros critérios legais

Para além dos princípios de matriz constitucional já enumerados anteriormente, a Lei nº144/99 estabelece
critérios gerais quanto à cooperação judiciária internacional em matéria penal:

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• Extradição passiva – o Estado português é solicitado;


• Extradição ativa – o Estado português é requisitante;
• Reciprocidade;
• Especialidade;
• Requisitos concretos de inadmissibilidade da extradição e razoes invocáveis facultativamente
pelo Estado português.

Princípio da reciprocidade

➔ Prevista no art.4º da Lei nº144/99, como sendo um princípio geral – no entanto não obsta a
que, caso não se verifique a reciprocidade, não possa existir cooperação em razão de política
criminal – prevenção geral, prevenção especial e a própria proteção dos cidadãos portugueses
(art.4º, nº3):

“ A falta de reciprocidade não impede a satisfação de um pedido de cooperação desde que essa
cooperação:
a) Se mostre aconselhável em razão da natureza do facto ou da necessidade de lutar contra
certas formas graves de criminalidade;
b) Possa contribuir para melhorar a situação do arguido ou para a sua reinserção social;
c) Sirva para esclarecer factos imputados a um cidadão português.”

Regra da especialidade

➔ Prevista no art.16º da Lei nº144/99 – garantia e condição de validade da extradição.


É uma garantia de que a extradição requerida não possa ser utilizada para vir a punir e julgar o
extraditando por infração diversa daquela que foi o objeto do pedido – as autoridades
portuguesas devem abster-se de intervir (perseguindo, julgado ou detendo) – qualquer pessoa por
facto anterior à sua presença em território nacional diferente do que originou o pedido de
cooperação formulado (art.16º, nº1).

o Extradição passiva – regra semelhante implica que não possa a pessoa extraditada
sofrer qualquer intervenção processual por facto distinto daquele que determinou o
pedido de cooperação, anterior à sua saída do território português (art.16, nº2), devendo
ser prestada uma garantia de que assim o será pelo Estado requisitante (art.16, nº3).

Requisitos negativos relativamente à extradição passiva

➔ Para além dos requisitos constitucionais, consagra ainda a Lei nº144/99:

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Inês Nabeiro Ano letivo 2023/2024

o Art.6º (requisitos gerais negativos de cooperação internacional) e art.32º;


o O facto de ter sido cometido em território português (art.32º, nº1, al a));
o O crime ser da competência do tribunal requisitante e ser punível pela lei portuguesa e
pela lei do Estado requisitante com pena não inferior a um ano de prisão (art.31º, nº2);
o O crime não ter uma determinada natureza como para além da que já foi referida
(natureza política) a natureza militar – art.7º, nº1 al b)).

➔ As garantias exigíveis para a extradição (art.6º, nº2, al b)) foram objeto de fiscalização da
constitucionalidade pelo Acórdão do TC nº1/2001 – que analisou a alínea a) acabou por analisar
a alínea b) – referindo a sua compatibilidade com a CRP – em que se chegou à conclusão de
que o género de limites existem qualquer que seja o modo de definição de um direito na
Constituição, resultando da existência de outros direitos ou bases, igualmente reconhecidos na
CRP e que em certas circunstâncias entram em conflito.

MFP: tudo depende da necessidade e da proporcionalidade do limite ou da restrição

No caso da garantia de não execução da pena ou medida de segurança perpétua ou de duração


indefinida trata-se de uma restrição ainda admissível uma vez que não toca no bem jurídico ou
constitucional que o direito fundamental visa proteger.
A revisão de 1997 não fez nada mais que precisar tal limite ou restrição relativamente ao art.30º,
nº1 ao introduzir o art.33º, nº5 – deve entender-se portanto que ao fazê-lo- não foram ofendidos
limites materiais da revisão – art.288º, alínea d).

Situações de inadmissibilidade da extradição e situações de recusa facultativa

➔ Extinção da responsabilidade penal do extraditando por extinção do procedimento criminal em


Portugal ou noutro Estado em que tenha sido instaurado processo criminal pelo mesmo facto –
art.8º da Lei nº144/99 —> trata-se de uma recusa por ausência de fundamento e verificação do
fim da extradição a que se refere o art.31º e uma decorrência do princípio non bis idem – art.25º,
nº5 CRP.
➔ A Lei nº144/99 prevê ainda situações de recusa facultativa de extradição:

o Reduzida importância da infração – art.10º;


o Critérios atinentes de políticas criminal – art.18º;
o Casos de cidadãos nacionais em que sendo possível extradição (nos termos de
convenção internacional) por certos crimes como o de terrorismo e de criminalidade

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organizada, o Estado português decida não o fazer – art.32º, nº2 prevendo a


admissibilidade de extradição nesses casos mas não a sua obrigatoriedade.

12.3. Mandato de detenção europeu – Lei nº65/2003

➔ Baseado numa racionalidade da União em matéria de justiça e segurança – o terceiro pilar da


construção europeia resultante dos acordos de Tampere – princípio de reconhecimento de mútuo
sentenças.

o Com o Tratado de Maastricht em 1992, para além da União económica foram instituídos mais
dois pilares da construção europeia – o segundo que respeita à Política Europeia e o terceiro que
corresponde à Justiça e Assuntos internos.
o Depois da consolidação com o Tratado de Lisboa que reforçou os poderes dos orgãos
comunitários e lançou as bases para uma política cidadania europeia foi consolidado o mandato
de detenção europeu em Portugal através da Lei nº65/2003 que constitui o principal instrumento
de cooperação judiciária na UE, permitindo a detenção e entrega por um Estado a outro Estado
de pessoas procuradas para efeitos de procedimento criminal ou cumprimento da pena (incluindo
cidadãos nacionais) – com base no princípio de reconhecimento mútuo.

➔ Este mecanismo dispensa a verificação de dupla incriminação (pelo Estado que emite e pelo
Estado que executa o mandato). O catálogo de crimes (art.2º, nº2):
o Organização criminosa;
o Terrorismo;
o Homicídio;
o Tráfico de pessoas;
o Drogas;
o Armas e viaturas;
o Exploração sexual de crianças;
o Corrupção e branqueamento;
o Entre outros.

O mandato de detenção europeu pressupõe o reconhecimento mútuo de decisões judiciais que


assenta na confiança recíproca, e na tendencial harmonização dos Direitos dos Estados.

A sua aplicação também aporta as suas dificuldades, como por exemplo o TC alemão que já
julgou inconstitucional por mais de uma vez, por violação dos princípios da proteção de nacionais e pela
legalidade.

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No entanto, tem uma utilização bastante recorrente e o seu modelo inspirou o surgimento do
mandato de obtenção de provas: através deste, os Estados conseguem solicitar entre si, para efeitos de
utilização num processo, a apreensão e a preservação de meios de prova obtidos no território de cada um.

12.4. Comparação entre o regime do mandato de detenção europeu e a


extradição

O mandato de detenção europeu:

1. Dispensa do princípio da dupla incriminação quanto a um vasto elenco de infrações criminais


graves – art.2º, nº2. A recusa de entrega será obrigatória nos casos previstos no art.2º, nº3 da Lei
nº65/2003.
Quanto a este artigo surgiu um problema antes da Lei nº115/2019, porque quando conjugado
com o art.12º, nº1, al a) da mesma lei que admitia recusa facultativa, levava a uma redução
teleológica incriminadora do art.2º, nº3 por via do elemento sistemático. Esta solução contendia
com o art.29º, nº1 e 3 da CRP e com o art.1º, nº3 do CP – tornando-se necessária uma
interpretação ab-rogante do art.12º, nº1, al a) - no entanto este problema foi superado com a lei
que entrou em vigor.

2. Afastamento do princípio constitucional da não extradição de nacionais – art.33º, n3 da CRP


admitindo-se sempre a entrega de nacionais, embora não seja obrigatório ou que origina uma
recusa facultativa desde que o Estado português se comprometa a executar a pena ou medida de
segurança de acordo com a lei portuguesa – art.12º, al g). A possibilidade de recusa não
prevalece quando não haja dupla incriminação, uma vez que não seria aplicável a lei portuguesa.
• Atenção: sempre em conformidade com o art.33º, nº5 CRP.

3. Afastamento do princípio da territorialidade como causa impeditiva de entrega, como


sucede na extradição, tornando-se apenas numa recusa facultativa – art.12º, nº1 al h) e i).

4. Afastamento das garantias constitucionais do art.33º, nº4 quanto às garantias exigíveis nos
casos em que corresponda a pena de prisão perpétua ou de duração indefinida. Neste instrumento
basta a garantia de:
o Estar previsto no Estado a emissão de uma revisão da pena a pedido;
o Revisão obrigatória quando passarem 20 anos (no caso de não ter existido pedido);
o Medidas de clemência com vista a que tal pena não venha a ser executado – art.13º, nº1
al a).
o Atenção: sempre em conformidade com o art.33º, nº5 CRP. A única objeção que se
pode colocar segundo MFP seria a eventual ultrapassagem dos limites da revisão

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constitucional previstos no art.288º, al d), na medida em que se entendesse que estaria


em causa o núcleo do direito à liberdade – art.27º, nº1 e art.30º, nº1 da CRP.

O problema que se coloca no plano constitucional segundo MFP, prende-se com o facto de que os
objetivos da cooperação internacional na construção de uma união jurídica europeia de possam sobrepor à
concepção constitucional dos direitos, liberdades e garantias.
A conversão de uma proibição absoluta de penas de duração perpétua em penas de duração perpétua
revisíveis seria aos olhos da professora regente uma interpretação harmonizável com a prevalência dos
objetivos da cooperação.
➔ Deste modo, não se violariam os limites materiais da revisão constitucional dando-se cobertura
através do art.33º, nº5 a normas como o art.13º, nº1, al a) da Lei nº65/2003, aludindo à primazia
que Portugal dá à construção e aprofundamento da UE que corresponde aos princípios
fundamentais do Estado português consagrados nos art.7º, nº6 e 8º, nº4 da CRP.
➔ MFP: No entanto, a mera revisibilidade não oferece garantias essenciais no que tange ao núcleo
da dignidade da pessoa humana, o que faz com que a norma contida no art.13º , nº1, al a) se
baseie numa dimensão interpretativa do art.35º, nº5 da CRP e contenda com o art.288º, al d) da
CRP - não respeitando os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos.

12.5. Passos de resolução de casos práticos sobre aplicação da lei espacial

1. Determinar o local da prática do facto


A. Para determinar o o local da prática do facto temos o artigo 7º do CP;
a) Qual é o critério que guia a determinação do lugar da prática do facto e porque é que é esse
critério que guia:

o Se o artigo 3º do CP tem o critério unilateral da conduta, no artigo 7º do CP temos o critério


misto/plurilateral (ação e resultado), princípio da ubiquidade (MFP), em que basta a
verificação de um deles.
o O critério é a proteção do bem jurídico, quando este é atacado no território português.
o OU, art.5º. do CP : Tenho de saber onde decorreu a ação e onde é que se produziu o resultado.
A ação pode ser num país e o resultado no outro. Podemos ter:
▪ Resultado produzido em portugal- 7/1 2ª parte
▪ Ação produzida em Portugal- 7/1 1ª parte
▪ Crime permanente - o agente atua em vários países um deles sendo portugal.

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Inês Nabeiro Ano letivo 2023/2024

B. OU vemos que o lugar da prática do facto (a ação ou o resultado) foi Portugal:


b) Aqui aplica-se o artigo 4º do CP

C. OU, vemos que nem a ação nem o resultado ocorreram em Portugal:


c) O artigo 4º do CP não se aplica e avançamos para o artigo 5º do CP.

o A única forma do direito penal se aplicar aquele crime é se estivermos numa das alíneas
do artigo 5º do CP (se nenhuma alínea está preenchida a lei penal portuguesa não é
aplicável) - aplicação da lei portuguesa fora do território português - ver alínea a alínea
se se aplica ou não e explicar porquê - Cada alínea tem um princípio subjacente que
devemos mencionar:
➢ Alínea a): Princípio da defesa dos interesses nacionais
▪ Conjunto de crimes que tutelam interesses próprios da soberania e do estado português,
estes bens jurídicos tem de ser protegidos pelo Estado Português porque não há mais
países que protejam os bens jurídicos “soberania do estado português”;
▪ Apenas quando estiver em causa um destes crimes se aplica a alínea a).

➢ Alínea b): Princípio da nacionalidade


▪ Tutela situações de abuso espacial da lei ou fraude à lei à penal- Alguém que se
aproveita de um país estrangeiro onde não é crime algo que é em portugal- Exemplo da
violência doméstica
▪ Crime por portugueses contra portugueses e punimos porque são portugueses,
moram em portugal e está em portugal a sua ligação jurídica - onde eles devem
obediência à lei. Por isso a lei penal portuguesa aplica-se. Shopping do direito penal
▪ Divergência doutrinária:
i. Taipa de Carvalho - há um requisito adicional implícito - é preciso provar que o
agente foi propositadamente ao estrangeiro para praticar este facto que sabiam que em
Portugal era crime.
ii. FD - nega a existência deste requisito.

➢ Alínea c): Princípio da Universalidade


▪ A lei portuguesa aplica-se mesmo a factos fora de Portugal quando estão em
causa bens e interesses de valor universal. Ver os requisitos do artigo!!!
i. Crimes contra a humanidade
➢ Alínea d): Princípio da Universalidade
▪ A lei portuguesa aplica-se mesmo a factos fora de portugal quando estão em
causa bens e interesses de valor universal.
i. Crimes contra menores

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▪ O legislador partiu os requisitos em sub-alíneas que são alternativas! Basta


uma estar verificada:
i. Não haver extradição;
ii. Se for cometido por portugueses ou por quem habitualmente resida em
Portugal;
iii. Contra menor que resida habitualmente em Portugal.

➢ Alínea e): Princípio da nacionalidade


▪ A lei penal portuguesa pode aplicar-se a factos fora do território português
quando estão em causa cidadãos de nacionalidade portuguesa.
▪ O princípio da nacionalidade importa tanto do lado ativo ou passivo;
b. O primeiro requisito
i. Crime cometido por portugueses ou contra portugueses→ é o que concretiza
a nacionalidade
ii. Subalíneas tem de ser cumulativamente aplicadas
1. Subalínea 1- agente da prática do crime;
2. Subalínea 2- O que a pessoa fez tem de ser crime também no país do local
da prática do facto por razões elementares do princípio da legalidade- requisito
da dupla incriminação - importa saber o local da pratica do facto;
3. Subalínea 3- Tem de ser um crime que admita extradição ou entrega e ela
não seja concedida por impossibilidade ou a não entrega.

➢ Alínea f): Alínea residual que tutela o princípio de que quem não extradita julga -
aut dedere aut judicare- se há um agente suspeito pela prática de um crime e o
encontrar num determinado país, se esse país não o entregar fica esse país responsável
por ele.
➢ Alínea g): Aplicação às pessoas coletivas.

Artigo 6º do CP

➔ O artigo 6º regula o modo como a lei portuguesa se vai aplicar

• Princípio non bis idem → o agente só pode ser julgado uma vez por determinado facto jurídico
o Tem projeção interna, mas também internacional → no país onde o crime aconteceu,
não sendo Portugal, que já tenha julgado aquela questão - quando isso acontecer, a lei
penal (portuguesa) não obstante estar destinada a aplicar-se, está proibida de o fazer →
1ª coisa a controlar depois de aplicar o art.5º do CP.
o Se a lei do local do facto, onde ocorreu ação ou resultado, se alguma delas for mais
favorável que a lei portuguesa, aplica-se a lei mais favorável.

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o Artigo 6º/3 CP → se aplicar sempre a lei mais favorável, estou a dar a solução que o
art.5º algumas vezes quis evitar —> Nas situações do nº 1 do art. 5º alínea a) e b) a
lei mais favorável não se aplica.

Esquema final:

Art.7º CP Art.4º CP

Art.5º CP Art.6º CP Nº1


- non bis in idem

Nº2
- Lei mais favorável
- nº3 – art.5º, nº1 al. a) e b)

Esquema Lei nº144/99 e Lei nº65/2003 (LMDE):

• São de aplicação diferenciada: só uma delas se aplica.


• LMDE simplifica os procedimentos de cooperação internacional entre os países – EU
o Âmbito - só países da UE - em todos os outros casos aplica-se subsidiariamente a
Lei 144/99 (e em tudo o que não regule aplica-se a 144/99 aos países da UE – art.32.º
n.º 6 Lei 144/99)
• Lei 144/99 fala-se de extradição, na LMDE de entrega.

• Lei 144/99 aplica-se não só a extradição como a todos os processos de cooperação.


Ex: pedidos de recolha de prova, transferência de processos penais, pedidos de vigilância de
pessoas, etc.
o Requisitos gerais
▪ Artigo 4º - princípio da reciprocidade - só colaboramos com países que
garantam que também irão colaborar connosco em situações idênticas - se não existir
temos duas opções:
1. OU se enquadra no nº3 deste artigo;
2. OU vamos para o art.6º, nº4

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▪ Artigo 6º: conjugar n.o 2 com alínea e) e f) - pode ou não Portugal colaborar
com outro país quando esteja em causa pena de morte ou irreversível;
▪ Há infrações com as quais nunca cooperamos - Artigo 7º - perseguição
política e crimes militares.

o Requisitos específicos para extraditar (art.31º e ss.)

▪ Artigo 31º: Tanto a extradição como a entrega podem ter duas


formas/naturezas - podem ser para efeitos de procedimento criminal ou para
efeitos de cumprimento de pena;
- Requisitos de tempo mínimo

▪ Artigo 32º:
Situações nas quais não se extradita
I. Nº 2 - não extradição de cidadãos nacionais – art.33º, nº3, 2ª parte -
uma exceção que tem 3 requisitos;
II. Nº3 - Portugal só faz extradição de cidadãos nacionais para efeitos de
procedimento - nunca para cumprimento de pena!
III. Nº5 - princípio aut dedere aut judicare

• Lei nº65/2003 (LMDE)

➢ Artigo 1º e artigo 2º: têm de estar preenchidos para se aplicar esta lei e depois avançar
para as leis de entrega;
▪ Art.2º, nº1: limites da pena constante esteja em causa uma entrega para
procedimento ou cumprimento da pena;
▪ Se estiver verificado – regime dual:
1. Ver se o crime está no art.2º, nº2 – prescinde do requisito de dupla
incriminação;
2. Se não estiver – art.2º, nº3 – requisito de dupla incriminação;
3. Remissão do nº3 para o art.11º, al f).
▪ Art.11º;
▪ Art.12º - facultativas
▪ Art.13º - especiais
- Pena perpétua;
- Cidadão ser português para efeitos procedimentais.
▪ Nada nesta lei impede de entregar um português – isto não contende com a
CRP? Não, nos termos do art.8º entende-se que pode derrogar a CRP nesta
parte – art.33º, nº6 da CRP.

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Inês Nabeiro Ano letivo 2023/2024

▪ MFP: referir relativamente o problema constitucional quanto à mera


revisibilidade em penas de prisão perpétua.

13. Imunidades

13.1. Origem histórica e fundamentos constitucionais

➔ As imunidades de titulares de cargos políticos (nomeadamente parlamentares) têm a sua origem


em dois modelos:

Modelo Britânico:

• Formalizou uma tradição iniciada com o Bill of Rights (1689)

Modelo Francês (1789):


• Por influência de Mirabeau, acentuava a vontade do povo perante a autoridade real, convidando
a Assembleia Nacional a assegurar a sua proteção contra o poder das baionetas e afirmando a
total inviolabilidade dos deputados – evitando o absolutismo régio.

❖ Em ambos os casos as imunidades parlamentares significaram a proteção global do poder


legislativo face ao poder do rei.
❖ A ideia de inviolabilidade apontava para uma proteção mais absoluta dos deputados perante
o poder executivo, incluído o próprio poder judicial – existe uma tradição mais restringida à
liberdade de discurso e de expressão de pensamento, como atividades parlamentares
específicas, e uma tradição de inviolabilidade dos deputados na linha da separação de
poderes incluindo o poder judicial.
❖ Há que realizar a seguinte distinção:
o Imunidade absoluta – irresponsabilidade em função de atividade legislativa;
o Imunidade material – corresponde à inviolabilidade na linha de defesa dos deputados de
pressões políticas exteriores, exercidas através da instrumentalização do poder judicial.

➔ A distinção entre irresponsabilidade e inviolabilidade é hoje reconhecida em quase todas as


constituições —> apela à diferença entre natureza parlamentar (emissão de votos e opiniões que
constitui a expressão da atividade legislativa) e a proteção do estatuto de deputado como
instrumento de salvaguarda política do autogoverno do parlamento perante a pressão dos poderes
executivo e judicial.

13.2. Contexto atual

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➔ O referido anteriormente já não exprime totalmente o contexto atual das imunidades – tanto as
parlamentares como as de outros titulares de cargos públicos, pelas seguintes razões históricas:

• Fragmentação do parlamento – luta entre a maioria e a oposição assume protagonismo, sendo


necessário proteger os deputados contra a própria maioria parlamentar representativa do poder
executivo;
• Autonomia do poder judicial, face ao poder executivo – desvinculação da interpretação e
aplicação do Direito com uma estrita vinculação à lei;
• Distribuição dos poderes democráticos representativos – Parlamento e órgãos executivos eleitos
(como é o caso do PR, nos sistemas presidenciais e semi-presidenciais), retirando aos deputados
a exclusividade de representação popular.

Justificação das imunidades parlamentares no quadro do Estado de Direito

• Apenas os poderes de representação parlamentar, enquanto expressão de livre manifestação da


vontade dos representados, justificam as imunidades – deve estabelecer-se um nexo funcional
como critério de aplicação das imunidades;
• O conteúdo dos poderes de representação parlamentar e a atividade necessária ao seu exercício
moldam o âmbito das imunidades – tanto ao nível de condutas, como de pessoas abrangidas;
• A necessidade de proteção das minorias parlamentares corresponde a uma dimensão essencial da
proteção do Parlamento contra outros poderes;
• Confrontos frequentes entre o poder legislativo e o poder judicial – é necessário evitar,
impedindo que qualquer um deles possa exercer uma supremacia absoluta – tem de existir um
controlo parlamentar da verificação dos pressupostos do levantamento das inviolabilidades para
o poder judicial não interfira com o poder político.

O art.157º da CRP: a revisão constitucional de 1997 tornou obrigatória a autorização do levantamento


da imunidade quando haja fortes indícios da prática de crime doloso, punível com pena de prisão superior
a três anos – embora seja obrigatória a suspensão da imunidade, requer um juízo certificativo do
Parlamento.
Deputado José Magalhães: “É um juízo certificativo de acertamento, de verificação e que pode,
naturalmente, culminar num “não”, se o juízo do Parlamento for de que não é uma situação coberta pela
norma constitucional, que é, portanto, uma situação em que há imunidade ou em que há um erro ou um
vício de aplicação da lei e o procedimento é ele próprio ilegal e inconstitucional.”

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Inês Nabeiro Ano letivo 2023/2024

As imunidades do Presidente da República e dos membros do Governo

• As imunidades do PR têm uma justificação semelhante às dos Deputados na perspectiva da


proteção da representatividade democrática – embora a sua intensidade se justifique
historicamente pela mitificação do poder do monarca como poder supremo – o absolutismo régio
(razão histórica).

Imunidade do PR

• O art.130º, nº4 da CRP determina que, fica o PR excluído da prossecução penal relativamente a
crimes estranhos ao exercício de funções durante o mandato, sendo apenas julgado
posteriormente (no fim do seu mandato) nos tribunais comuns, suspendendo a responsabilidade
penal durante esse período de tempo.
• No que se refere aos crimes praticados no exercício de funções não existe imunidade, estando o
julgamento a cargo do Supremo Tribunal de Justiça, implicando a destituição do cargo e o
impedimento da reeleição.
• O que se deve entender por crimes praticados em efetividade de funções?
o Numa interpretação sistemática restritiva tratar-se-ia apenas dos crimes referidos na Lei
nº34/87 de 16 de julho – no entanto existem outros crimes, nomeadamente contra o
Estado (art.308º e ss) ou contra a humanidade que pressupõe o abuso e o desvio dos
poderes que terão de se enquadrar na ratio legis no âmbito dos crimes do exercício de
funções.
o A conexão com o exercício de funções deve ser entendida em sentido material,
abrangendo o exercício de atividades próprias das funções como ações e omissões que
tenham o exercício de funções como causa ou finalidade.
o Exemplo: um homicídio para ocultar um erro político ou um facto da vida privada que
poderia colocar em causa o cargo de PR seria entendido como um crime cometido no
exercício de funções.
o A suspensão do procedimento criminal relativamente a crimes fora do exercício de
funções não deveria afetar os prazos prescricionais previstos no CP, embora tal
situação não esteja prevista para determinar o início ou a interrupção da prescrição.

Apenas a referência no art.120º, nº1, al a) do CP ao impedimento legal do início do


procedimento criminal como causa de suspensão poderá permitir regular sem violação do
princípio da legalidade a adequação do regime constitucional ao legal.

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Inês Nabeiro Ano letivo 2023/2024

Imunidade do PM e membros do Governo

• A CRP prevê no art.196º um regime semelhante ao dos Deputados relativamente à efetivação da


responsabilidade criminal – não reproduzindo a irresponsabilidade dos Deputados quanto às suas
opiniões e votos prevista no art.157º, nº1 CRP.

Síntese

Esta matéria é essencialmente dominada pelas imunidades


• Sentido amplo - todas as formas legais pelas quais alguém pode ser objeto de uma situação de
irresponsabilidade ou imunidade em sentido restrito.
• Sentido restrito - imunidade de jurisdição - pessoa não pode ser levada a tribunal pelos factos
que causou.
▪ Esta imunidade pode não ser permanente - geralmente tem uma razão e dura só durante
o período dessa razão (ex: quem tenha um cargo político).

• Imunidades políticas – CRP (Razão histórica: absolutismo régio)


▪ Art.130º, 157º e 196º CRP
▪ Irresponsabilidades
o Discutir a sua teleologia - MFP entende que para efeitos de discurso de ódio
não se aplica a regra da irresponsabilidade por exemplo;
▪ Deputados – 157º, nº4 – o processo fica suspenso até ao fim do mandato, devendo-se a
uma ideia antiga de que eles não devem ser “incomodados” para se dedicarem 100% ao
cargo.
▪ Art.130º - imunidade do PR
▪ Art.196º - imunidade do PM e membros do Governo

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Inês Nabeiro Ano letivo 2023/2024

Jurisprudência analisada em sala de aula relacionada com a matéria

1. Acórdão Incesto

Bem jurídico que a proibição do incesto visa proteger:

• Proteção legítima da família e do casamento

o Impacto da disfunção familiar que o incesto causa no âmbito da sociedade - pilar basilar da
família nas sociedades, uma figura importante para a vida social
o Sociedade é o primeiro nível social de uma pessoa
o Se os papeis dentro da concepção e regulação jurídica da família gera-se sobreposição de
direitos e deveres a nível jurídico
o Impacto da disfunção familiar no âmbito da proteção da criança nascida de uma relação
incestuosa.

• Saúde pública

o Incesto associado a casos associados a deficiências, aumentando o encargo do Estado em


termos de saúde.
o Ver na CRP - os direitos fundamentais, o CP - Parte especial - diferentes bens jurídicos -
torna-se mais fácil descobrir os bens jurídicos em causa e caso seja um crime que já exista
descobrir qual é o bem jurídico que põe em causa.

• Moral

o Será que compete ao D. Penal proteger a moral?


o Convicção moral generalizada do incesto como algo negativo, imoral.
o Critérios religiosos e éticos
o A sociedade reprova este tipo de comportamentos a nível generalizado.
o Encontrar um equilíbrio, para não abusar dele como argumento, mas continuar a ser possível
a sua ponderação – posição da regente.
o Alguns crimes do CP estipulam a intenção como requisito.

Aquilo que caracteriza o incesto, como tal em relação a outros crimes sexuais, é o consentimento livre
e material de ambas as partes.

- A coesão social não se define a partir da moral sexual, mas sim a partir da liberdade individual.

2. Acórdão de maus-tratos a animais de companhia

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