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MANUAL PRÁTICO

Terapia Cognitivo-
Comportamental
CRENÇAS NUCLEARES E
TRÍADE COGNITIVA
Formação de crenças
Desde a infância, as pessoas desenvolvem ideias sobre si mesmas, outras pessoas
e seu mundo. Suas crenças mais centrais são compreensões duradouras tão funda-
mentais e profundas que muitas vezes não as articulam, nem mesmo para si mes-
mas. A pessoa considera essas ideias como verdades absolutas – exatamente como
as coisas “são”.

Como surgem as crenças? As pessoas tentam entender seu ambiente desde os pri-
meiros estágios de desenvolvimento. Eles precisam organizar sua experiência de
forma coerente para funcionar de forma adaptativa. Suas interações com o mundo
e outras pessoas, influenciadas por sua predisposição genética, levam a certos en-
tendimentos: suas crenças, que podem variar em sua precisão e funcionalidade.

As crenças se desenvolvem desde a infância, quando uma criança compartilhou


seus sentimentos e emoções com seus pais, que reagem afirmando que a criança
está “errada”. Talvez o tenham feito de uma forma muito bem intencionada, por-
que a criança disse “tenho medo de que as outras crianças não gostem de mim,
porque sou diferente delas”. Seus pais podem não querer que você tenha esses
pensamentos e sentimentos negativos, e simplesmente dizem “você está errado,
isso não é verdade”.

Quando isso acontece repetidamente com cada emoção negativa que a criança ex-
perimenta, com o tempo pode desenvolver a crença de que está errado, não pode
confiar em si mesmo e não pode confiar em suas emoções. Se a criança acredita
em um nível fundamental que está errada, pode achar difícil se expressar asserti-
vamente, se sentir digno, merecedor ou confiar em si mesmo. A crença direciona
muitos aspectos diferentes de sua vida.

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Se uma criança foi maltratada por adultos, pode ter formado a crença: “Não estou
segura”. Quando criança, faz sentido tirar essa conclusão e também o protege de
confiar em outros adultos que também podem maltratá-la. No entanto, como
adulto, essa crença pode limitar a criação de conexões e a confiança nos outros. Na
verdade, a depender da situação, a criança pode selecionar em quem confiar, pen-
sando “Não posso confiar em meu pai (em comparação com os adultos) para me
proteger ou cuidar de mim”.

De particular importância para o terapeuta cognitivo-comportamental é que


as crenças disfuncionais podem ser “desaprendidas” e novas crenças funcionais
e baseadas na realidade podem ser desenvolvidas e fortalecidas por meio do
tratamento.

Crenças nucleares e seus desdobramentos


Por exemplo, João pode se considerar pouco inteligente para compreender de-
terminado texto, frequentemente tem uma preocupação semelhante quando
tem que se envolver em uma nova tarefa (como, aprender uma nova habilidade
no computador, descobrir como montar uma estante ou solicitar um empréstimo
bancário). João parece ter a crença central: “Eu sou incompetente”. Essa crença
pode operar apenas quando ele está em um estado depressivo, ou pode ser ativada
na maior parte do tempo. Quando essa crença central é ativada, João interpreta as
situações a partir dessa crença, mesmo que a interpretação possa, em uma base
racional, ser patentemente inválida.

Observa-se que João tende a se concentrar seletivamente nas informações que


confirmam sua crença central, desconsiderando ou descartando informações em
contrário. Por exemplo, João não considerou que outras pessoas inteligentes e
competentes podem não compreender totalmente um texto em sua primeira lei-
tura. Ele também não considerou a possibilidade de o autor não ter apresentado
bem o material ou não está escrito com clareza. Ele não reconheceu que sua difi-
culdade de compreensão poderia ser devido a uma dificuldade de concentração,
ao invés de uma deficiência da sua capacidade intelectual.

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Dessa forma, João esqueceu de que muitas vezes teve dificuldades inicialmente
quando apresentado a um conjunto de novas informações, mas depois teve um
bom histórico de domínio e resultados positivos de aprendizagem. Como sua cren-
ça na incompetência foi ativada, ele interpretou automaticamente a situação de
uma forma altamente negativa e autocrítica. Assim, sua crença é mantida, embora
seja imprecisa e disfuncional. É importante observar que ele não está tentando pro-
cessar informações dessa maneira propositalmente, isso ocorre automaticamente.

Em termos piagetianos, essa crença representa o esquema de João. O esquema é


uma estrutura cognitiva hipotética que organiza as informações. Inserido neste es-
quema está a crença central de João: "Eu sou incompetente." Quando João é apre-
sentado a dados negativos, esse esquema é ativado e as informações organizadas
são imediatamente processadas para confirmar sua crença central, o que torna a
crença ainda mais forte. João tem “certeza” acerca da sua capacidade e busca confir-
mar esta “certeza” através de situações e experiências que ele considera evidências
para fortalecer ainda mais a sua crença de “Eu sou incompetente”.

Mas um processo diferente ocorre quando João é apresentado a informações po-


sitivas, como, por exemplo, analisar qual plano de saúde seria o melhor para sua
família. Feita a escolha e aprovada por todos, sua mente desconsidera automatica-
mente esses dados positivos e pensa “Escolhi um plano de saúde muito bom, mas
demorou muito”. Quando seu chefe o elogiou, ele imediatamente pensou: “Meu
chefe está errado. Eu não fiz esse projeto bem. Eu não merecia este elogio, ele esta-
va de bom humor”. Essas interpretações, em essência, mudam a forma dos dados
positivos para dados negativos. Agora os dados se encaixam no esquema de João e,
como resultado, fortalecem a crença central negativa.

Observa-se que existem também dados positivos que João simplesmente não
percebe. Ele não nega algumas provas de competência, como pagar suas contas
em dia ou consertar um problema de encanamento em casa. Em vez disso, ele não
parece processar esses dados positivos de forma alguma; eles tangenciam o es-
quema. Com o tempo, a crença central de João de incompetência se torna cada vez
mais forte.

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As crenças centrais são o nível de crença mais fundamental; eles são globais, rígi-
dos e generalizados. Os pensamentos automáticos, as expressões orais ou imagens
que passam pela mente de uma pessoa são situações específicas e podem ser con-
sideradas o nível mais superficial de cognição.

As crenças centrais influenciam o desenvolvimento de uma classe intermediária


de crenças, que consiste em atitudes, regras e pressupostos (muitas vezes não arti-
culados). João, por exemplo, tinha as seguintes crenças intermediárias:

Atitude: “É terrível falhar.”

Regra: “Desista se um desafio parecer grande demais.”

Suposições: “Se eu tentar fazer algo difícil, vou falhar. Se eu evitar fazendo isso, eu
vou ficar bem.”

Essas crenças influenciam a visão de uma situação, que, por sua vez, influencia
como João pensa, sente e se comporta. A relação dessas crenças intermediárias
com as crenças centrais e pensamentos automáticos é descrita a seguir:

Crenças centrais

Crenças intermediárias (Atitudes,


regras e pressupostos)

Pensamentos automáticos

A maneira mais rápida de ajudar os pacientes a se sentirem melhor e a se com-


portar de forma mais adaptativa é facilitar a modificação direta de suas crenças
centrais o mais rápido possível, porque, assim que o fizerem, os pacientes tende-
rão a interpretar situações ou problemas futuros de uma forma mais construtiva.
É possível realizar a modificação de crenças no início do tratamento com pacientes

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que têm, por exemplo, depressão e que mantêm crenças razoáveis e adaptativas
sobre si mesmos antes do início de seu transtorno.

Mas quando as crenças dos pacientes estão muito arraigadas, o terapeuta pode
perder credibilidade e colocar em perigo a aliança terapêutica se questionar a va-
lidade das crenças centrais muito cedo. O curso usual de tratamento na TCC, por-
tanto, envolve uma ênfase inicial na identificação e modificação de pensamentos
automáticos que derivam das crenças centrais (e em intervenções que modificam
indiretamente as crenças centrais). Os terapeutas ensinam os pacientes a identifi-
car essas cognições que estão mais próximas da consciência e a distanciar-se delas
aprendendo: “Só porque eles acreditam em algo não significa necessariamente
que seja verdade”; “Mudar seu pensamento para que seja mais útil e baseado na
realidade os ajuda a se sentir melhor e a progredir em direção a seus objetivos”.

É mais fácil para os pacientes reconhecerem a distorção em seus pensamentos do


que em sua ampla compreensão de si mesmos, de seus mundos e dos outros. Mas,
por meio de experiências repetidas, nas quais obtêm alívio trabalhando no nível
mais superficial de cognição (pensamentos automáticos), os pacientes se tornam
mais abertos para avaliar as crenças que fundamentam seu pensamento disfuncio-
nal. Crenças de nível intermediário relevantes e crenças centrais são avaliadas de
várias maneiras e posteriormente modificadas para que as percepções e conclu-
sões dos pacientes sobre os eventos mudem. Essa modificação mais profunda de
crenças mais fundamentais torna os pacientes menos propensos a recaídas.

Crenças comuns na infância


Esquemas desadaptativos desenvolvidos a partir da paternidade negligente ou
abusiva. A criança pode desenvolver uma desconexão com os outros e sentimento
de rejeição, porque as necessidades de apego seguro não forma atendidas. Nessa
condição, uma criança pode desenvolver os seguintes esquemas e crenças:

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ESQUEMAS AMOSTRA DE CRENÇAS
Abandono/instabilidade “Você vai me abandonar porque você está
zangado”; “você não confiável”.
Desconfiança/abuso “Não posso confiar em você porque você vai me machucar.”
Privação emocional “Você não vai me dar carinho, empatia ou proteção.”
Deficiência/vergonha “Sou inferior por causa da minha aparência ou da
minha capacidade intelectual, você vai me rejeitar”.
Isolação social “Eu sou diferente dos outros e não
pertenço a nenhum grupo.”

EXEMPLO PRÁTICO1

Caso clínico: Transtorno do Déficit de Atenção/Hiperatividade (TDAH) associado ao


Transtorno de Ansiedade Generalizada (TAG)

A professora da terceira série de M. percebeu que ele não conseguia ter foco nas tarefas
propostas. Ele era frequentemente pego de surpresa quando perguntado e raramente
terminava as tarefas atribuídas. A professora sugeriu aos pais de M. que investigassem a
possibilidade de ele ter o transtorno do déficit de atenção/hiperatividade (TDAH). A mãe
de M. indicou que ela não percebeu M. desatento em casa e acrescentou imediatamente:
“E eu não vou drogar meu filho porque você não sabe como ensiná-lo.”

Ela reconheceu, no entanto, que seu filho, às vezes, tinha dores de estômago antes da
escola e achava que seu médico de família deveria encaminhar M. para uma avaliação de
saúde mental para determinar se ele tinha um transtorno de ansiedade. O pai de M., por
outro lado, afirmou: “O menino está bem. Ele é um pouco preguiçoso às vezes, mas isso é
porque sua mãe é muito mole com ele.” Ninguém perguntou a M. sobre suas dificuldades.

Depois que sua mãe falou com o médico da família, M. foi encaminhado a uma clínica
de saúde mental infantil para uma avaliação da ansiedade. O residente de psicologia da
clínica fez uma entrevista diagnóstica completa com a mãe de M., avaliou brevemente o
estado mental dele e concluiu que M. preenchia os critérios para TDAH, tipo desatento e
transtorno de ansiedade generalizada.

Dada a aversão de sua mãe ao uso de medicação estimulante, o residente encaminhou


M. para a TCC focada na ansiedade, uma terapia focada na mudança de pensamentos e
comportamentos ansiosos.

1 Para acessar o estudo de caso completo: https://www.guilford.com/excerpts/manassis2.pdf?t

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M. começou o trabalho terapêutico em grupo. A terapeuta de grupo notou que M. parecia
desfocado, muitas vezes era pego de surpresa quando perguntado e raramente terminava
as tarefas atribuídas. Ela pediu uma reunião com os pais de M. para explicar a eles que ele
estava obtendo poucos benefícios do grupo e que eles deveriam considerar tratá-lo para
seu diagnóstico primário (TDAH).

A mãe de M. respondeu com uma mensagem de voz indicando que ela e seu marido haviam
se separado recentemente, então ele não compareceria à reunião. Na reunião, ela reiterou
sua oposição à medicação e recusou mais tratamento de saúde mental para M. Ela disse
à terapeuta que estava planejando matricular M. em uma escola particular “assim que o
pai começar a pagar a pensão alimentícia.” Os pais de M. se envolveram em uma batalha
difícil pela pensão que durou três anos. Durante esse tempo, o desempenho escolar de
M. continuou a se deteriorar.

As discordâncias dos pais sobre a natureza dos problemas dos filhos costumam ser uma
pista para outros tipos de conflito familiar. Portanto, teria sido útil entrevistar M. sozinho
e perguntar-lhe sobre como as pessoas de sua família se relacionam. A terapeuta também
poderia ter feito um esforço para alcançar o pai de M. e obter sua perspectiva sobre a família
e seu filho. É até possível que a maioria dos sintomas de M. estivessem relacionados à
preocupação com seu conflito familiar que afetavam sua capacidade de aprendizagem na
escola. Seria muito importante investigar e trabalhar as crenças nucleares de M.

A forte oposição à medicação expressa pela mãe de M. também merece uma exploração
mais aprofundada para permitir a oportunidade de abordar suas crenças.

Finalmente, uma boa formulação do caso teria revelado fatores que podem perpetuar os
problemas de M., bem como fatores que podem ser protetores. A incapacidade de M. de
ter sucesso no tratamento em grupo focado na ansiedade reflete sua incapacidade de ter
sucesso na escola e, provavelmente, aumentaria sua ansiedade e diminuiria ainda mais
sua autoestima.

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Sistematizando: Crenças nucleares e tríade cognitiva

Crenças nucleares Crenças nucleares e


Crenças intermediárias
e tríade cognitiva seus desdobramentos

Situações repetidas
Formação de crenças levarão a criança a si Pensamentos automáticos
perceber como "errada"

Desde a infância, as
Esquemas desadaptativos
pessoas desenvolvem
Os pais reagem afirmando desenvolvidos a
ideias sobre si mesmas,
que a criança está “errada”. partir da paternidade
outras pessoas e
negligente ou abusiva
seu mundo.

Os terapeutas ensinam
Quando uma criança os pacientes a identificar
compartilhou seus essas cognições
Como surgem as crenças?
sentimentos e emoções (esquemas, crenças e
com seus pais? pensamentos automáticos)

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REFERÊNCIAS

1. Beck, J. S. (2014). Terapia cognitivo-comportamental: teoria e prática. 2. ed.


Artmed.
2. Friedberg, R. D., & Mcclure, J. M. A. (2007). Prática clínica de terapia cognitiva
com crianças e adolescentes. Artmed.
3. Papalia, D. E., & Feldman, R. D. (2013). Desenvolvimento humano (12th ed.).
AMGH Editora Ltda.

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