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DIREITO DA SAÚDE

DIREITO CONSTITUCIONAL DA SAÚDE

Introdução

A sociedade é um “agrupamento de pessoas de ambos os sexos e com idades


variadas, que vivem na mesma época e no mesmo espaço, e que estão sujeitas a
normas, princípios, leis ... comuns”1. Mais do que um mero aglomerado de pessoas é
um aglomerado de pessoas que, através de uma forma conjugada de actuação,
prosseguem finalidades comuns, de modo estável.
O homem vive em sociedade e só em sociedade satisfaz a sua existência,
necessidades, prossegue os seus fins. É naturalmente sociável.
A vida em sociedade só é possível porque os homens têm regras, regras que
visam a paz, a segurança, a justiça e a diminuição dos conflitos que surjam nas
relações sociais.
Podemos começar por imaginar o que seria uma “não-sociedade”, onde não
seriam necessárias quaisquer regras nem coisas do género 2. Ou, então, podemos
imaginar o que seria uma sociedade sem regras, sem normas. Tudo não passaria de
um caos, de uma desordem, na qual nenhum homem se conseguiria rever e evoluir
como ser humano. A existência de uma sociedade pressupõe a existência de uma
Ordem.
Uma sociedade pretende evoluir, satisfazer os seus objectivos: desde os alimentos
que todos necessitamos, às vias em que circulamos, tudo necessita de uma Ordem.
Não falamos de uma ordem qualquer, nem sequer de uma ordem natural porque esta
rege os fenómenos da natureza e estes são invioláveis, mas falamos numa Ordem

1
Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, Academia das Ciências de Lisboa, Vol. II, Verbo,
p. 3439.
2
Assim viveu Robinson Crusoé numa ilha, sozinho com o nativo “Sexta-feira”, depois de naufragar.
Cfr. Daniel Defoe, Robinson Crousué, Edições Asa.

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Social que tem por objecto o ser humano dotado de vontade própria, nomeadamente,
falamos das ordens normativas3.
As ordens normativas são um conjunto de normas ou regras que orientam a
conduta humana, estabelecendo regras e sanções ou consequências desfavoráveis a
quem não cumpre essas regras ou normas.

O Direito é um sistema de normas de conduta social, assistido de protecção


coactiva, que faz parte das ordens normativas.
A existência do direito decorre de duas ordens de factos: por um lado, o homem é
um animal social e por outro lado, ubi societas, ibi ius 4.
É da natureza do homem viver, não isolado, mas em convivência dentro de um
grupo organizado: em sociedade. A sociabilidade do homem é uma tendência natural.
Contudo, nem todos os autores pensam assim. Rousseau e Hobbes defendem
mesmo que o estado natural do Homem é isolado, apresentando-se o seu estado social
como uma distorção da verdadeira natureza humana. Divergem em alguns aspectos,
desde logo porque para Rousseau o Homem quando nasce é bom e é a sociedade que
o corrompe. Para Hobbes, o Homem é naturalmente mau (homo homini lupus) e é a
sociedade que remedeia esta maldade natural.
A convivência em sociedade traduz-se na entreajuda, na solidariedade, na divisão
de trabalho, e tudo isto é possível havendo padrões estabelecidos de conduta, regras
que assegurem a harmonização das actividades entre si.
O direito é necessário para promover a solidariedade e para resolver os conflitos
de interesses.
Mas para que a sociedade subsista e progrida é preciso mais do que a pura
existência de normas. É necessário que a eficácia dessas normas esteja o mais
3
Dentro da Ordem Social podemos falar da ordem de mero facto e na ordem ética ou normativa. A
ordem de mero facto limita-se a explicar como se passam as coisas numa sociedade, descreve a
realidade social, o “como é”. A ordem ética ou normativa é, antes, uma ordem de dever ser, que dirige
e orienta a conduta humana.
4
Onde existe uma sociedade, também existe um direito. Do mesmo modo que é verdade a regra
inversa de que onde há um direito, também há uma sociedade (ubi ius, ibi societas).

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possível garantida. Devem existir e ser respeitadas, independentemente dos desejos e
vontades dos seus destinatários e o seu desrespeito deve, pelo menos, ser reparado.

Actualmente a vida em sociedade é de organização estadual, depende do Estado,


através do qual se organizam os homens sobre a Terra. Daí que o direito prototípico
ou paradigmático seja o direito estadual.

1. Definição de Estado:
- Forma histórica de um ordenamento jurídico geral com os seguintes elementos
constitutivos:
a) territorialidade;
b) população;
c) politicidade.
[+ Reserva normativa da sociedade civil (ideia da pós-modernidade)]
= Estado como forma de racionalização e generalização do político nas
sociedades modernas.

2. Introdução ao Direito Constitucional


2.1. Brevíssima súmula histórica

A Constituição é uma Lei Fundamental. As leis fundamentais existem desde


sempre e constituem normas sobre as quais se ergue um ordenamento jurídico inteiro
(por exemplo, as Actas das Cortes de Lamego, sobre regência e tutorias, sobre o
casamento dos príncipes e sobre a sucessão da Coroa, foram leis fundamentais da
monarquia). No entanto, num Estado monárquico absoluto (como existiu em Portugal
até ao século XIX), a concentração do poder no monarca faz deste o supremo
legislador, o supremo juiz e o supremo administrador. Isto significa que a segurança
jurídica não estava garantida no Estado Absoluto, dadas as frequentes intervenções
do rei na esfera jurídico-patrimonial dos súbditos e o seu direito discricionário quanto

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à alteração ou revogação de leis (as leis não eram mais do que a expressão da vontade
do rei).
Em oposição a esta insegurança, a construção constitucional liberal tem em
vista a certeza do direito, pois só através desta é possível o desenvolvimento do
liberalismo económico centrado sobre uma economia de mercado livre. A maior
defensora do liberalismo económico e político era a burguesia, classe que desejava
ascender politicamente e que via no estado constitucional a oportunidade de o fazer.
Esta génese burguesa explica porque é que a Constituição liberal se preocupava
principalmente com os direitos economicamente relevantes (propriedade, liberdade de
profissão, indústria, comércio), oferecendo ao indivíduo toda a autonomia individual,
moral e intelectual (essência da filosofia iluminista).
Em Portugal, embora em 1808 um grupo de cidadãos portugueses tenha feito
um projecto constitucional que entregou a Junot (texto que ficou conhecido como “A
Súplica”), é a Constituição de 1822 (que teve como modelo a Constituição Espanhola
de Cádis de 1812) que marca o início do verdadeiro constitucionalismo em Portugal e
teve como princípios norteadores o princípio democrático, o princípio representativo,
o princípio da separação de poderes e o princípio da igualdade jurídica e do respeito
pelos direitos fundamentais (alguns autores, como Joaquim de Carvalho, afirmam que
esta Constituição é estruturalmente republicana e da monarquia conserva apenas a
Coroa - o símbolo; pela primeira vez se entende que a autoridade do rei tem origem
na Nação – é derivada – e as competências deste aparecem definidas de forma
positiva e negativa).
A Constituição portuguesa de 1838 é uma constituição pactuada entre as Cortes
e a Rainha (D. Maria II) e representa uma solução de compromisso entre liberais e
monárquicos. A Constituição de 1911 representa o coroamento do liberalismo
democrático português, mas como consagra um parlamentarismo absoluto criou
muita instabilidade governativa e um Estado fraco (em quinze anos sucederam-se 8
Presidentes da República e 44 Governos). Em resposta, a Constituição de 1933
institucionaliza um regime político-constitucional marcadamente autoritário (PR –

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António Carmona; Min. Finanças – António de Oliveira Salazar), em que se
fundamenta o nacionalismo português do Estado Novo com uma concepção supra-
individualista (os fins e os interesses da Nação, e o bem colectivo, sobrepõem-se aos
do indivíduo ou do grupo). Ao abrigo desta Constituição o Estado tornou-se forte
demais e uma revolução que ficou conhecida como “Revolução do 25 de Abril”
voltou a centrar a atenção no indivíduo, na pessoa, dando origem à Constituição da
República Portuguesa, promulgada em 2 de Abril de 1976 (a nossa sexta
Constituição), empenhada na defesa dos direitos e liberdades fundamentais do
homem enquanto pessoa, cidadão e trabalhador.

2.2. Definição de Constituição:


- Definição Tradicional: ordenação sistemática e racional da
comunidade política, plasmada num documento escrito,
mediante o qual se garantem os direitos fundamentais e se
organiza, de acordo com o princípio da divisão de poderes, o
poder político. Pressupõe um direito activo, dirigente e
projectante, legitimador de uma acção política racionalmente
transformadora.

- Definição Moderna: estatuto reflexivo que, através de certos


procedimentos, do apelo a auto-regulações, de sugestões no
sentido da evolução político-social, permite a existência de
uma pluralidade de opções políticas, a compatibilização dos
dissensos, a possibilidade de vários jogos políticos, a garantia
da mudança através da construção de rupturas (Teubner,
Ladeur).

Diferenças Fundamentais:

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Definição Tradicional – associada à ideia de subjectividade projectante,
racionalidade iluminista que pretende organizar o mundo através de um documento
escrito, convertendo a lei em instrumento jurídico de constituição da sociedade.
Definição Moderna – enuncia um direito reflexivo, pós-intervencionista,
influenciado e limitado pelos sistemas autónomos da sociedade (jurídico, económico,
social e cultural).

3. Funções da Lei Constitucional:

1.ª Modelação da estrutura organizatória dos poderes públicos;


2.ª Racionalização e limites dos poderes públicos;
3.ª Fundamentação da ordem jurídica da comunidade;
4.ª Programa de acção.

4. A Constituição Social

- este conceito designa o conjunto de direitos e princípios de natureza social


formalmente plasmados na Constituição, no capítulo II (catálogo dos direitos sociais),
e apela para uma democracia económica e social num triplo sentido:
- são direitos de todos os portugueses (ex: art. 64.º CRP);
- pressupõem um tratamento preferencial para quem necessita
(art.º 64.º/2 CRP);
- tendencial igualdade dos cidadãos no que respeita às
prestações a cargo do Estado (art.º 64.º/2).
As preocupações sociais do Estado, assim como a intervenção estadual na sociedade,
acentuaram-se no âmbito do modelo de organização que ficou conhecido como
“Estado Providência”.

5. O Estado Providência

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Ao longo do século XX, e sobretudo depois da segunda guerra mundial, os
Estados Centrais da Europa desenvolveram um conjunto de políticas públicas que
visaram criar sistemas de protecção social e de segurança social para o conjunto dos
cidadãos. Pela importância do reconhecimento amplo de direitos sociais e pelo
elevado nível de transferências de rendimento que envolveram, tais políticas
acabaram por transformar a natureza política das relações Estado/Sociedade Civil,
dando origem a uma nova forma política que se designou por Estado Providência.
Podemos identificar vários tipos de Estado Providência:
- o liberal: E.U.A e Inglaterra;
- o corporativo: Alemanha e Áustria;
- o social-democrático: Países nórdicos;
- “Quase Estado Providência”: Portugal, Espanha, Grécia,
Itália.

À luz destas considerações, analisemos o art. 64.º da CRP.

6. Análise do art. 64.º da Constituição da República Portuguesa


“1. Todos têm direito à protecção da saúde e o dever de a defender e
promover.
2. O direito à protecção da saúde é realizado:
a) Através de um serviço nacional de saúde universal e geral e, tendo em
conta as condições económicas e sociais dos cidadãos, tendencialmente gratuito;
b) Pela criação de condições económicas, sociais, culturais e ambientais que
garantam, designadamente, a protecção da infância, da juventude e da velhice, e
pela melhoria sistemática das condições de vida e de trabalho, bem como pela
promoção da cultura física e desportiva, escolar e popular, e ainda pelo
desenvolvimento da educação sanitária do povo e de práticas de vida saudável.

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3. Para assegurar o direito à protecção da saúde, incumbe prioritariamente
ao Estado:
a) Garantir o acesso de todos os cidadãos, independentemente da sua
condição económica, aos cuidados da medicina preventiva, curativa e de
reabilitação;
b) Garantir uma racional e eficiente cobertura de todo o país em recursos
humanos e unidades de saúde;
c) Orientar a sua acção para a socialização dos custos dos cuidados médicos
e medicamentosos;
d) Disciplinar e fiscalizar as formas empresariais e privadas da medicina,
articulando-as com o serviço nacional de saúde, por forma a assegurar, nas
instituições de saúde públicas e privadas, adequados padrões de eficiência e de
qualidade;
e) Disciplinar e controlar a produção, a distribuição, a comercialização e o
uso dos produtos químicos, biológicos e farmacêuticos e outros meios de tratamento
e diagnóstico;
f) Estabelecer políticas de prevenção e tratamento da toxicodependência.
4. O serviço nacional de saúde tem gestão descentralizada e participada.”

Direito à Protecção da Saúde (64.º CRP) – é um direito subjectivo público dos


cidadãos e, simultaneamente, um direito objectivo-programático. Abrange:
- Defesa;
- Protecção;
- Promoção.
Como assegura o Estado a protecção da saúde?
1) Serviço nacional de saúde universal e geral;
2) Serviço nacional de saúde tendencialmente gratuito;
3) Criação de condições económicas, sociais e culturais que garantam a
protecção da infância, da juventude e da velhice; melhoria das condições de

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vida e de trabalho; promoção da cultura física e desportiva, escolar e popular;
educação sanitária.

Obrigações do Estado:
a) garantir o acesso de todos os cidadãos;
b) garantir a racional e eficiente cobertura médica e hospitalar;
c) garantir a socialização dos custos dos cuidados médicos e
medicamentosos;
d) Disciplinar e controlar as formas privadas empresariais e privadas da
medicina, articulando-as com o SNS;
e) Disciplinar e controlar a produção, a comercialização e o uso de
produtos químicos, biológicos e farmacêuticos.
O direito à protecção da saúde possui:
- uma componente negativa: direito a exigir do Estado/ Terceiros que se
abstenham de qualquer acto que prejudique a saúde.
- uma componente positiva: direito às medidas e prestações estaduais visando
a prevenção das doenças e o tratamento delas.

Se o Estado não cumpre as suas obrigações ao nível da protecção da saúde


comete uma inconstitucionalidade por omissão (art. 283.º da CRP)5.
5
As leis constitucionais são as normas jurídicas que regulam a estrutura e funcionamento dos
órgãos superiores do Estado, o modo de formação e de manifestação da vontade política e que
estabelecem e garantem direitos dos particulares (os direitos, liberdades e garantias). É, contudo, uma
lei específica, desde logo, quanto à sua elaboração – através de uma Assembleia constituinte
especialmente eleita para o efeito –, hierarquicamente superior, que se encontra no vértice da ordem
jurídica, à qual todas as leis têm de se submeter. Esta lei fundamental, ou também designada lei básica,
está consagrada na Constituição da República Portuguesa.
As normas inferiores que violem os princípios e as regras consagrados na CRP padecem de um
vício que se denomina inconstitucionalidade, e os tribunais devem recusar a sua aplicação.
Podemos ter inconstitucionalidades por omissão ou por acção. As inconstitucionalidades por
omissão (art. 283º da CRP) resultam da violação da CRP por falta de norma jurídica devido à inércia

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Para os cidadãos, o dever de promover e defender a saúde tanto se
refere a saúde própria como à saúde alheia (saúde pública).

Para o Estado, o dever jurídico-constitucional que sobre ele impende


fundamenta a imposição de obrigações legais de fazer (ex. obrigatoriedade da
vacinação) ou de não fazer (ex. proibição de fumar em transportes públicos).
As obrigações legais podem ser garantidas por uma tutela penal ou contra-
ordenacional.
do órgão político que não legislou a tempo. As inconstitucionalidades por acção (art. 277º da CRP)
resultam da produção de uma norma que viola ou contraria os princípios e as normas da CRP.
Existem três tipos de inconstitucionalidade por acção: a inconstitucionalidade material, quando o
conteúdo da norma inferior lesa os princípios ou as normas constitucionais; a inconstitucionalidade
orgânica, quando a norma jurídica provém de um órgão que à luz da Constituição não tem poderes
para a criar; e a inconstitucionalidade formal, quando são preteridas formalidades essenciais no
processo de formação da norma jurídica.
O controlo da inconstitucionalidade das leis pertence aos tribunais (art. 277º e ss. da CRP), e em
especial ao Tribunal Constitucional (art. 221º e ss. da CRP).
A fiscalização da inconstitucionalidade das leis é realizada de várias formas. Assim, se a
fiscalização for realizada antes da norma entrar em vigor e independentemente de estar a ser aplicada
num caso ou processo concreto (num tribunal ordinário), designa-se fiscalização abstracta-
preventiva. Se for realizada depois da norma entrar em vigor e independente de estar a ser aplicada a
um caso ou processo concreto, designa-se por fiscalização abstracta-sucessiva. Finalmente, se a
questão da inconstitucionalidade se colocar durante um processo a decorrer em tribunal relativamente a
uma norma com pertinência na causa, designa-se fiscalização concreta.
A fiscalização abstracta-preventiva (art. 278.º da CRP) é atribuída de forma exclusiva ao Tribunal
Constitucional a pedido das pessoas com legitimidade para o fazer: o Presidente da República, o
Primeiro-Ministro, um quinto dos deputados da Assembleia da República em efectividade de funções e
os Ministros da República, dentro dos limites temporais estabelecidos no art. 278.º, n.ºs 3 e 6 da CRP.
Os efeitos da decisão do Tribunal Constitucional estão previstos no art.º 279º da CRP.
A fiscalização abstracta-sucessiva (art. 281.º da CRP) é atribuída também de forma exclusiva ao
Tribunal Constitucional a pedido das pessoas com legitimidade activa para solicitarem, a título
principal, a fiscalização abstracta de normas jurídicas (art. 281º, n.º 2 da CRP). A decisão tem força
obrigatória geral (força de lei – art. 282.º da CRP).

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Principal Obrigação do Estado – criar um Sistema Nacional de
Saúde que integre todos os serviços de saúde (públicos) numa única estrutura
organizatória descentralizada e de gestão participada: O SNS tem de ser:
- universal: todos os cidadãos podem recorrer ao SNS;
- geral: com todos os serviços e prestações de saúde integrados;
- tendencialmente gratuito: as prestações de saúde não podem
estar, em regra, sujeitas a qualquer retribuição ou pagamento
por parte de quem a elas recorre. A gratuitidade do SNS
implica a socialização dos custos dos cuidados médicos e
medicamentosos. A socialização dos custos é uma orientação
política geral que irradia dos serviços públicos de saúde para
os serviços prestados pelo sector privado.

Nota: as taxas moderadoras foram introduzidas em 1986 pela então


Ministra da Saúde, a DR.ª Leonor Beleza, e integram a Lei de Bases
da Saúde publicada pelo governo do Prof. Cavaco Silva (em 1990).

DIREITO ADMINISTRATIVO DA SAÚDE

1. Definição e caracterização da Lei de Bases

A fiscalização concreta resulta do levantamento num tribunal ordinário do problema da


inconstitucionalidade de determinada norma e da decisão desse tribunal cabe recurso por via incidental
para o Tribunal Constitucional que apreciará essa inconstitucionalidade em sede de recurso. Esta
fiscalização está prevista no art. 280.º da CRP.

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Em Portugal, o acto legislativo pode ser:
- vertido pela Assembleia da República, em forma de LEI;
- elaborado pelo Governo, em forma de DECRETO-LEI;
- emanado das assembleias legislativas regionais em forma de
DECRETOS LEGISLATIVOS REGIONAIS,
mas sempre produzido de acordo com os procedimentos e no exercício de
competências legislativas jurídico-constitucionalmente estabelecidas.

Apesar de as leis e os decretos-lei possuírem igual dignidade hierárquica, as


primeiras adquirem, sob a forma de LEI DE BASES, uma primariedade material e
hierárquica, pois a elas se subordinam os decretos-lei de desenvolvimento.

O que é uma LEI DE BASES?

- A lei de bases consagra os princípios vectores ou as bases gerais de um


regime jurídico, deixando a cargo do Executivo (Governo) o desenvolvimento desses
princípios ou bases.
A lei de bases consagra as opções político-legislativas fundamentais, deixando
ao Governo e às Assembleias Legislativas Regionais a definição concreta dos regimes
jurídicos gerais.

A lei de bases define os parâmetros materiais (os princípios e os critérios) que


quer ver respeitados no tratamento de determinado domínio jurídico – é
DIRECTIVA.

O desenvolvimento do regime jurídico deve manter-se dentro do âmbito das


normas fixadas nas bases – é LIMITE.

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Princípio da Reserva Legislativa de Bases Gerais:
1) este princípio assegura a intervenção primária da Assembleia da República;
2) permite ao Governo legislar sobre a matéria da lei de bases, desenvolver e
regulamentar as directrizes plasmadas na Lei de Bases.

Nota: As leis de bases não se confundem com as leis de autorização,


nomeadamente porque estas intervêm atenuadamente num domínio jurídico, visando
sobretudo autorizar que se faça uma intervenção profunda, enquanto aquelas alteram
a ordem jurídica e influenciam sobremaneira o desenvolvimento de determinado
regime jurídico.

2. Leitura acompanhada da Lei de Bases da Saúde


(Lei n.º 48/90, de 24 de Agosto)

DIREITO ADMINISTRATIVO DA SAÚDE

1. A Relação entre o Particular e a Administração da Saúde.

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A relação que se estabelece entre um particular e a administração da saúde
tem um carácter não contratual. Na verdade, o valor das vontades manifestadas pelo
particular e pela administração da saúde e o conteúdo das faculdades e poderes
exercidos não se equiparam.
A declaração do particular (ex: pedido de marcação de consulta em Centro de
Saúde) cria um pressuposto de uma decisão positiva ou negativa por parte da
administração da saúde. Claro está que, em princípio, o poder decisório da
administração é vinculado (isto é, a administração está obrigada a prestar cuidados de
saúde quando requeridos por um particular), mas critérios de repartição territorial, de
competências ou de carácter organizatório poderão ditar uma decisão de
indeferimento.
Em regra, a administração da saúde gera os efeitos de direito pretendidos
através de um acto pelo qual verifica e declara a titularidade pelo requerente dos
requisitos legais e o inscreve num plano de fruição dos seus serviços.

Requisitos de validade ou de eficácia da


decisão administrativa:
a) pedido prévio do particular;
b) consentimento do utente.

A Constituição da República Portuguesa estabelece (art. 64.º) que TODOS


têm direito à protecção da saúde.
A Lei de Bases da Saúde distingue o utente do SNS do beneficiário do SNS.
Qual é a diferença?

- Os beneficiários do sistema nacional de saúde estão taxativamente previstos


na Base XXV – só as pessoas aí previstas são consideradas beneficiárias.

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Os utentes do SNS são todas aquelas pessoas, independentemente de
pertencerem ou não à categoria dos beneficiários, que recorrem ao SNS (ex.: turista
coreano). A alínea c) do n.º 2 da Base XXXIII mostra que não há o propósito de
vedar o acesso de não beneficiários ao SNS, ou seja, os estrangeiros não beneficiários
também podem receber cuidados na qualidade de utentes, embora se sujeitem ao
pagamento dos encargos a que esses cuidados derem lugar e não apenas ao
pagamento de taxas moderadoras.

Em suma: os utilizadores do SNS são sempre utentes, mas apenas os previstos


na Base XXV são também beneficiários.

Estatuto do Utente:
Os utentes do SNS estão submetidos a um regime jurídico pré-estabelecido
num plano normativo, têm definida uma situação de direito público de carácter legal e
regulamentar.
Por um lado, o utente do SNS pode invocar os princípios gerais aplicáveis a
qualquer cidadão que recorra aos serviços públicos – direito ao funcionamento dos
serviços, direito de acesso ao serviço, direito ao funcionamento correcto do serviço,
direito à igualdade de tratamento.
Por outro lado, pode invocar os princípios e as normas específicas para os
utentes do SNS (consagrados principalmente nas Bases V e XIV da Lei n.º 48/90, de
24 de Agosto).

Como consequência da situação do utente ter um carácter legal e estatutário


podemos indicar o facto de não poder ser derrogada, nem sequer por acordo entre o
utente e a administração, assim como não podem ser introduzidas discriminações
positivas ou negativas em relação a uma determinada pessoa ou grupo de pessoas.
O utente não pode pretender determinar por acordo com a unidade de saúde a
que recorre modalidades específicas para as suas relações.

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Como é desencadeada uma relação jurídica de prestação de cuidados de
saúde?

É necessário o requerimento do interessado e, posteriormente, o seu


consentimento.
Vejamos: o utente possui, como já referimos, direitos subjectivos públicos
(que se traduzem no poder, concedido por uma norma de direito público, de exigir
uma conduta por parte de um órgão ou agente do SNS).
A tais direitos correspondem deveres de prestação de serviços (actos materiais
de exercício do cuidado de saúde) ou de coisas (ex: actos materiais de entrega de
medicamentos e alimentos) por parte do SNS.
Os utentes têm um direito subjectivo ao tratamento pelos meios adequados,
com prontidão e correcção técnica (cfr. Base XIV) e a este direito corresponde um
dever da unidade de saúde,
um dever jurídico de prestar um
facto material que tem por objecto uma
prestação genérica (de cuidados de saúde).

Quem determina a prestação?


- A determinação da prestação cabe à unidade de saúde, através dos seus
agentes. Há uma margem de livre determinação da prestação de facto a que podemos
chamar discricionariedade técnica.
O utente tem direito a receber uma prestação de cuidados com qualidade, com
recurso a conhecimentos tecnicamente actualizados, diagnóstico estabelecido com o
máximo cuidado, prescrições claras, terapêuticas que não o façam correr riscos
desnecessários – mas é o agente prestador dos cuidados de saúde que determina a
prestação que considera correcta para cada utente.

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A Lei de Bases, para além de estabelecer os direitos dos utentes, elencou os
seus deveres, deveres esses que têm como contrapartida, do lado da administração da
saúde, em certos casos direitos e noutros casos poderes de autoridade.

Por exemplo: (1) Ao dever de pagamento dos encargos (que prevê para os
utentes) corresponde o direito às taxas moderadoras (para a administração da saúde).
(2) Ao dever de respeitar ou outros utentes correspondem os poderes de autoridade
que a administração da saúde possui para sujeitar o utente a uma disciplina que
permita o regular funcionamento do serviço público (poderes de direcção e
disciplina).

Aplicam-se à administração da saúde os princípios gerais da conduta


administrativa definidos no art. 266.º, n.º 2 da Constituição da República
Portuguesa: igualdade, proporcionalidade, justiça e imparcialidade.
Numa versão subjectivada e nesta área temática, tais princípios encontram
concretização no direito à igualdade de tratamento, no direito à reserva da intimidade
da vida privada, no direito à liberdade de religião e de culto e no direito à
inviolabilidade da integridade física e moral.

Direito à inviolabilidade da integridade física e moral:


A inviolabilidade da integridade física e moral é um direito de personalidade.

O que é um direito de personalidade?


- Nos termos do art. 66.º, n.º 1 do Código Civil, “a
personalidade adquire-se no momento do nascimento
completo e com vida”. Os direitos de personalidade (exs:
direito ao nome, direito à imagem, direito à reserva sobre a
intimidade da vida privada, direito à integridade física e

Direito da Saúde Docente: Ana Rita Calmeiro 17


moral) pertencem a todas as pessoas pelo simples facto de
terem nascido.

A salvaguarda da inviolabilidade da integridade física e moral desdobra-se em


dois princípios:

1) Princípio do consentimento necessário (cfr. Base XIV, n.º 1, al. b)

2) Princípio do consentimento informado (cfr. Base XIV, n.º 1, al. e)

O CONSENTIMENTO6

Princípio do consentimento necessário:


Este princípio exprime a liberdade do doente enquanto pessoa humana em
face das propostas de intervenção sobre o seu próprio organismo.
A vontade do doente deverá ser respeitada, mesmo quando recusar tratar-se
(excepto quando interesses de saúde pública se sobrepuserem ao arbítrio individual).
Os primórdios do consentimento necessário situam-se na Alemanha, onde em
1931 (dois anos antes de Hitler chegar ao poder) se impôs a obtenção do
consentimento antes da prática de actos de experimentação científica. Mais tarde, o
Código de Nuremberga (1947), o primeiro texto de proclamação dos direitos dos
pacientes, procurando banir para sempre os horrores do Instituto de Frankfurt para a
Higiene Racial, determinou: “O consentimento voluntário do sujeito humano é
absolutamente essencial”.

Princípio do consentimento informado:

6
Estes apontamentos devem ser completados com a matéria leccionada nas aulas e com a informação
constante da bibliografia indicada.

Direito da Saúde Docente: Ana Rita Calmeiro 18


O doente tem direito a ser rigorosamente informado acerca da índole, do
alcance, da envergadura e das consequências do tratamento proposto.
A finalidade fundamental do esclarecimento deve ser a de permitir que o
paciente, com base no seu sistema de valores, possa determinar se deseja ou não
consentir na intervenção que lhe é proposta.
Elementos do consentimento informado:
- capacidade para tomar decisões;
- transmissão de informação suficiente para o tratamento
proposto;
- consentimento de livre vontade (sem coacção ou vício de
vontade).

A integridade moral do ser humano prende-se com a liberdade de decisão


informada sobre aspectos fundamentais do destino existencial de cada um 7; é um
direito fundamental de autonomia, pois é o doente que decide o se e o como do
desenvolvimento da sua personalidade. O confronto com as crises patológicas e a
perspectiva da morte representam um “filamento vital da personalidade”, motivo pelo
qual se subordina a prestação dos cuidados de saúde ao consentimento informado ou
esclarecido do doente.
No entanto, no art. 10.º da Convenção dos Direitos do Homem e da
Biomedicina está plasmado o direito a renunciar à informação – “Qualquer pessoa
tem direito de conhecer toda a informação recolhida sobre a sua saúde. Contudo, a
vontade da pessoa em não ser informada deverá ser respeitada”.
Ex.: Não tem de haver esclarecimento quando o paciente declara ao médico
que aceitará tudo quanto ele venha a decidir ou que, simplesmente, prefere não tomar
conhecimento da gravidade da situação.

7
Guilherme de Oliveira fala, a este respeito, de “autodeterminação do paciente nos cuidados de
saúde”, O Fim da Arte Silenciosa, Temas de Direito da Medicina, Coimbra Editora, 1999, p. 99.

Direito da Saúde Docente: Ana Rita Calmeiro 19


Em suma: para que o utente/paciente possa receber uma prestação de
cuidados de saúde em qualquer unidade do SNS é necessário que nela consinta de
forma esclarecida, podendo revogar o seu consentimento a todo o tempo.
Depois de consentir em submeter-se a determinada intervenção, o paciente
assume os riscos dessa intervenção desde que ela seja realizada com a diligência
devida, isto é, o consentimento válido transfere para a esfera jurídica do paciente os
riscos de uma intervenção feita com correcção técnica e com a observância dos
cuidados necessários.

RESPON SABILIDADE CIVIL

Direito da Saúde Docente: Ana Rita Calmeiro 20


1. Introdução

A) Conceito de Relação Jurídica


A expressão “relação jurídica” pode ser tomada num sentido amplo e num
sentido restrito.
A relação jurídica em sentido amplo é toda a relação de vida social disciplinada
pelo direito, isto é, produtiva de efeitos jurídicos.
Em sentido restrito, a relação jurídica é toda a relação de vida social regulada
pelo direito, que consista na atribuição a um sujeito de um direito subjectivo e na
imposição a outro de um dever jurídico ou sujeição. Do lado activo da relação
jurídica temos um direito subjectivo, do lado passivo temos um dever jurídico.

Tomando a relação jurídica em sentido restrito podemos distinguir:


a) a relação jurídica em sentido abstracto da relação jurídica em sentido concreto;
b) a relação jurídica simples da relação jurídica complexa.

a) Podemos considerar a relação jurídica como expressão de um modelo,


paradigma ou esquema contido na lei (por exemplo: o inquilino deve pagar a renda ao
senhorio) – relação jurídica em sentido abstracto, ou considerar a expressão
relação jurídica como referência a uma relação jurídica existente entre duas pessoas
determinadas, sobre um objecto determinado e procedendo de um facto jurídico
determinado (por exemplo, o senhorio João pode exigir do inquilino Manuel a renda
de 30 mil euros pelo arrendamento do prédio x) – relação jurídica em sentido
concreto.
b) Mas também podemos distinguir as relações jurídicas simples, que se
caracterizam por haver um só direito subjectivo atribuído a uma pessoa e o
correspondente dever jurídico atribuído a outra pessoa (a um direito de crédito
corresponde uma obrigação), das relações jurídicas complexas que apresentam uma

Direito da Saúde Docente: Ana Rita Calmeiro 21


série de direitos subjectivos e deveres ou sujeições (série de relações jurídicas
singulares) conexionadas ou unificadas por um qualquer aspecto, por exemplo, o de
promanarem do mesmo facto jurídico ou visarem o mesmo escopo. Assim, para além
dos deveres principais da relação contratual temos os deveres acessórios (guardar,
embalar, etc.), os direitos laterais (informar sobre as condições do objecto), direitos
potestativos, sujeições, ónus jurídicos (necessidade de adoptar um comportamento
para a realização de um interesse próprio. O onerado não deve, antes pode livremente
praticar ou não praticar um certo acto, se não o praticar não realizará certo interesse),
e expectativas jurídicas (situação activa, juridicamente tutelada, que corresponde a
um estádio de um processo complexo de formação sucessiva de um direito. É
possibilidade juridicamente tutelada de aquisição futura de um direito, estando já
verificada parcialmente a situação jurídica. É o caso dos herdeiros legitimários ou do
comprador sob condição suspensiva).

Uma outra expressão frequentemente utilizada pelos juristas é “instituto


jurídico”. Por instituto jurídico entende-se o conjunto de normas legais que
estabelece a disciplina de uma série de relações jurídicas em sentido abstracto, ligadas
por uma afinidade (integradas no mesmo mecanismo jurídico ou ao serviço da mesma
função). Por exemplo: o instituto da compra e venda, do poder paternal.
Enquanto que a relação jurídica é a matéria sobre que incide a regulamentação, o
instituto jurídico é o conjunto de normas que a regulamentam.

B) Estrutura Interna da Relação Jurídica


Ao definirmos a relação jurídica considerámo-la integrada por um direito
subjectivo e por um dever jurídico ou por uma sujeição. São eles que constituem a
estrutura interna, o conteúdo da relação jurídica.
Um direito subjectivo (em sentido amplo) é o poder jurídico de livremente
exigir ou pretender de outrem um comportamento positivo (acção) ou negativo
(omissão) ou de por acto livre de vontade, só de per si ou integrado por um acto de

Direito da Saúde Docente: Ana Rita Calmeiro 22


autoridade pública, produzir determinados efeitos jurídicos que inevitavelmente se
impõem à outra parte.
O sujeito é livre de exercer ou não seu direito, depende da vontade do seu titular.
Difere, neste aspecto, dos poderes-deveres ou poderes funcionais, em que não
existe uma liberdade de actuação, existe uma vinculação ao exercício dos poderes
respectivos. É o caso dos poderes do conteúdo do poder paternal ou tutelar. O não
exercício deste é passível de sanções. Diferentes são também as faculdades ou
poderes jurídicos “stricto sensu”, pois aqui não há qualquer relação jurídica mas
apenas manifestações imediatas da capacidade jurídica de um sujeito, como por
exemplo a faculdade de testar, de contratar.
O conceito de direito subjectivo em sentido amplo abarca o direito subjectivo em
sentido restrito e o direito potestativo. O direito subjectivo em sentido restrito é o
poder de exigir ou pretender de outra pessoa certo comportamento, determinada
conduta, positiva (acção) ou negativa (omissão). O poder de exigir refere-se às
obrigações civis, isto é, aquelas em que se o obrigado não cumpre, o titular desse
direito pode recorrer a autoridades públicas para fazer cumprir ou a sanções. O poder
de pretender refere-se às obrigações naturais (art. 402º do Código Civil), o seu
cumprimento não é exigível mas corresponde a um mero dever de justiça (ver art.
304º, n.º 2 e art. 1245.º, ambos do Código Civil). Não sendo exigível, se, contudo, for
prestado espontaneamente não pode ser repetido (exigido de volta) – a isto se chama
“solutio retentio”, não repetição do devido.
O direito potestativo é o poder de por acto livre de vontade, só de per si ou
integrado por uma decisão judicial, produzir efeitos jurídicos que inelutavelmente se
impõem à contraparte. Por exemplo A envia uma proposta contratual a B e este
aceita. Produzem-se determinados efeitos jurídicos na esfera de A, que fica vinculado
a esses efeitos, neste caso aos efeitos do contrato. B é titular de um direito
potestativo.
Os direitos potestativos podem ser constitutivos, quando constituem uma relação
jurídica por acto unilateral do seu titular, modificativos, quando modificam uma

Direito da Saúde Docente: Ana Rita Calmeiro 23


relação jurídica por acto unilateral do seu titular, e extintivos, quando extinguem uma
relação jurídica por acto unilateral do seu titular.

O dever jurídico em sentido amplo é a posição a que fica adstrito o sujeito


passivo das relações jurídicas. O lado passivo dos direitos subjectivos em sentido
restrito é o dever jurídico em sentido restrito, necessidade de adoptar o
comportamento a que tem direito o titular activo da relação jurídica. O lado passivo
dos direitos potestativos designa-se por sujeição, situação de necessidade em que se
encontra o “adversário”, que verá produzir-se forçosamente uma consequência na sua
esfera jurídica por mero efeito decorrente do exercício do direito pelo seu titular
activo.
O titular do dever jurídico em sentido restrito tem a possibilidade de adoptar ou
não adoptar o comportamento exigido. É dotado de vontade, pode decidir não o fazer,
expondo-se às sanções.
O titular da sujeição nada pode fazer, está necessariamente exposto à produção
dos resultados do exercício do direito potestativo. A produção dos resultados dá-se
independente da vontade daquele. O direito potestativo é inviolável.
A deve a B 100 mil euros. Se A não cumprir, pagando o que deve, viola um
direito subjectivo. A está adstrito a um dever jurídico.
A envia uma proposta contratual a B e este aceita. Neste caso A depois de B
aceitar o contrato nada pode fazer para impedir que surja o contrato. Este surge única
e exclusivamente da vontade de B. Aqui o A está adstrito a uma sujeição.

C) Elementos da Relação Jurídica


Toda a relação jurídica existe entre sujeitos; incide normalmente sobre um
objecto; promana de um facto jurídico; a sua efectivação pode fazer-se mediante o
recurso a providências coercitivas; e está dotada de garantia.
Os sujeitos são os extremos, activo e passivo, entre quem se estabelece o nexo em
que a relação jurídica se cifra. Podemos falar de pessoas singulares e colectivas.

Direito da Saúde Docente: Ana Rita Calmeiro 24


O objecto pode ser imediato (o complexo formado pelo direito subjectivo e
vinculação jurídica - a prestação) ou mediato (aquilo sobre que incide os poderes do
titular activo da relação jurídica - a coisa).
Por exemplo: A deve a B 100 mil euros. O dinheiro é o objecto mediato. A
prestação, o acto de entrega do dinheiro que é devido, é o objecto imediato.
O facto jurídico é o evento ou acontecimento que determina o aparecimento de
uma relação jurídica. Pode ser natural (ex.: a morte) ou voluntário, quando depende
da vontade humana (ex.: os contratos).
A garantia é o conjunto de providências coercitivas postas à disposição do titular
activo da relação jurídica em ordem a obter satisfação do seu direito lesado por um
obrigado que o infringiu ou ameaça infringir.
Pode ter função preventiva se visa evitar a violação do direito do sujeito activo,
por exemplo as providências cautelares (art. 405.º do Código de Processo Civil) ou
repressiva, quando visa sancionar quem lese o direito legalmente protegido do sujeito
activo, como por exemplo a indemnização por danos, as penas, as multas, as coimas.
Sucintamente:
A vendeu a B um computador. A e B são os sujeitos. O objecto imediato é a
prestação (a entrega do computador); o mediato é o computador (a coisa). O facto
jurídico é o contrato de compra e venda (a causa). A garantia é todo o mecanismo que
o direito põe à disposição dos sujeitos para fazerem cumprir o contratado.

C) Os Sujeitos de Direito (ou Obrigações)

São os entes entre os quais se estabelece o vínculo em que a relação jurídica se


traduz. Reflecte a importância do homem no fenómeno jurídico, a vertente jurídica da
vida do homem em sociedade, embora o ser humano não seja o único sujeito das
relações jurídicas.

Direito da Saúde Docente: Ana Rita Calmeiro 25


Os sujeitos de relações jurídicas podem ser pessoas singulares, o homem enquanto
ser humano, e pessoas colectivas ou jurídicas (associações, sociedades, fundações,
etc.).

Personalidade Jurídica

Para agir juridicamente o ser humano precisa de ser uma pessoa jurídica, isto é, de
ter personalidade jurídica. A personalidade jurídica é a susceptibilidade de ser titular
de direitos e estar adstrito a vinculações, é a aptidão para ser titular autónomo de
relações jurídicas.
Actualmente o direito atribui personalidade jurídica a todo o ser humano, mas
nem sempre foi assim, como aconteceu durante o período da escravatura.
No direito português para além das pessoas singulares também têm personalidade
jurídica algumas pessoas colectivas.
I – Começo da personalidade jurídica.
A personalidade jurídica adquire-se com o nascimento completo e com vida (art.
66.º, n.º 1 do CC), com a separação do filho do corpo materno.
E os nascituros, os já concebidos, e mesmo os não concebidos (concepturos)? Os
seus direitos dependem do nascimento (art. 66.º, n.º 2 do CC). Antes do seu
nascimento, não são sujeitos de direito mas a lei reconhece-lhes direitos dependentes
do nascimento. Até ao nascimento temos direitos sem sujeito, ou como referem
alguns autores, se para termos uma relação jurídica tem de haver o sujeito do poder e
o sujeito da obrigação e aqui não se descortina qualquer sujeito, estamos antes
perante uma relação jurídica imperfeita ou estados de vinculação juridicamente
tutelados, não chegando a existir ainda um direito subjectivo.
II – Termo da personalidade jurídica.
A personalidade jurídica cessa com a morte (art. 68.º, n.º 1 do CC). Com a morte
do ser humano extinguem-se os direitos e deveres de natureza pessoal e transmitem-
se os de natureza patrimonial para os sucessores.

Direito da Saúde Docente: Ana Rita Calmeiro 26


O art. 68.º, n.º 2 do CC estabelece a presunção de comoriência (mortes
simultâneas), importante para efeitos sucessórios. O n.º 3 do art. 68º do CC equipara
o desaparecimento das pessoas em certas condições, por não ser possível identificar o
cadáver, por exemplo, o afundamento de um navio, à morte delas.

A atribuição de personalidade jurídica às pessoas singulares é um problema de


dignidade humana mas também humanista e jurídico. O respeito pela “dignidade da
pessoa humana” é uma das bases da soberania do Estado Português (art.º 1º da CRP).

Direitos de Personalidade

Os direitos de personalidade são direitos que constituem atributos da própria


pessoa, por força do seu nascimento (direitos inatos), e que têm por objecto bens da
própria personalidade física, moral e jurídica. São direitos absolutos, porque se
impõem a todos (erga omnes); gerais, pois são direitos de que todas as pessoas
gozam; e não patrimoniais, pois são insusceptíveis de avaliação pecuniária, embora, a
sua violação possa gerar o direito a uma indemnização (art.º 496º e art.º 70º, nº 2,
ambos do CC).
É um círculo de direitos necessários, um conteúdo mínimo e imprescindível da
esfera de cada pessoa. Incidem sobre a vida da pessoa, a sua integridade física, a sua
honra, a sua liberdade física e psicológica, o seu nome, a sua imagem, a reserva sobre
a intimidade da sua vida privada e familiar, etc.
Os direitos de personalidade são indisponíveis e inalienáveis. Indisponíveis,
porque não se pode renunciar a eles, por regra (art. 81.º, n.º 1 e n.º 2 do CC), são
irrenunciáveis. Inalienáveis, pois não se podem transmitir a outrem, nem em vida,
nem por morte. São direitos intimamente e indissociavelmente ligados a determinada
pessoa, são intransmissíveis.
A irrenunciabilidade não impede a limitação voluntária ao exercício dos direito de
personalidade, todavia, para ser válida como negócio jurídico ou relevante como

Direito da Saúde Docente: Ana Rita Calmeiro 27


circunstância que exclui a ilicitude de um acto lesivo, e consequentemente a
responsabilidade civil do lesante, deve ser conforme aos princípios da ordem pública
(art. 81.º e art. 280.º, ambos do CC).
Assim é irrelevante ou nulo o consenso na lesão do bem “vida”. Mas já será
admissível, dentro de certos limites, uma limitação voluntária do direito à integridade
física, o consentimento para intervenções médicas, operações estéticas, para a prática
de jogos desportivos violentos. O critério decisivo a este respeito é sempre o do art.
81.º do CC, a não contrariedade aos princípios da ordem pública.
O acordo quanto à limitação voluntária de um direito de personalidade, quando
legal, pode ser revogado em qualquer altura, ainda que com a obrigação de
indemnizar os prejuízos causados às legítimas expectativas da outra parte (art. 81.º,
n.º 2 do CC). Mas quando o consentimento for nulo ou ilegal, não faz perder ao acto
violador do direito o seu carácter de ilicitude e consequentemente não isenta o autor
da obrigação de indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação.

A violação destes direitos de personalidade pode gerar mesmo um facto ilícito


criminal que desencadeia uma punição estabelecida no Código Penal (homicídio,
ofensas corporais, difamação, calúnia, injúria, etc.) e pode preencher um facto ilícito
civil gerando responsabilidade civil (art. 70.º, n.º 2 e art. 483.º e art. 486.º, todos do
CC). A violação de um direito de personalidade desencadeia responsabilidade civil do
infractor (art. 70.º, n.º 2 do CC) ficando o lesante obrigado a indemnizar os prejuízos
causados, e as pessoas ameaçadas ou ofendidas podem requerer “as providências
adequadas às circunstâncias do caso, com o fim de evitar a consumação da ameaça ou
atenuar os efeitos da ofensa já cometida”.

Capacidade Jurídica

Depois de sabermos quem pode ser titular de direitos e estar adstrito a


vinculações, importa agora saber quais os direitos e as vinculações de que uma pessoa

Direito da Saúde Docente: Ana Rita Calmeiro 28


(individual ou colectiva) pode ser titular e a que pode ficar adstrita e de como os pode
exercer.
No art. 67º do CC consagra-se o conceito de capacidade jurídica. Enquanto o
conceito de personalidade jurídica, já estudado, era um conceito qualitativo, na
medida em que, personalidade jurídica ou se tem ou não se tem, o conceito de
capacidade jurídica é mais um conceito quantitativo, pois pode-se ter mais ou menos
capacidade. A medida desta capacidade é aferida a partir de duas realidade: a
titularidade dos direitos e das vinculações (capacidade de gozo) e a actuação jurídica
desses direitos e dessas vinculações (capacidade de exercício).

Assim podemos definir capacidade de gozo como a medida de direitos e de


vinculações de que uma pessoa pode ser titular e ficar adstrita. A capacidade de
exercício refere-se a uma outra realidade, já que se afere pela possibilidade de
determinado sujeito poder actuar na vida jurídica, exercendo direitos e cumprindo os
seus deveres, pessoal e livremente. Esta é a medida dos direitos e das vinculações que
uma pessoa pode exercer e cumprir por si, pessoal e livremente. Assim tem
capacidade de exercício ou capacidade para agir aquele que puder exercer por si,
pessoal e livremente, certos direitos e certos deveres.

Por outras palavras podemos dizer que capacidade jurídica é a idoneidade para
actuar juridicamente, exercendo direitos e cumprindo deveres, adquirindo direitos e
assumindo obrigações por acto próprio e exclusivo ou mediante representante
voluntário. Esta capacidade adquire-se com a maioridade (art. 130.º do CC) ou
através da emancipação pelo casamento (art. 132.º e art.º 133.º, ambos do CC).

No sentido oposto podemos falar de incapacidade de gozo e de incapacidade de


exercício. A incapacidade de gozo designa a medida de direitos e vinculações de que
uma pessoa não pode ser titular, nem pode ficar adstrita. Trata-se de uma
incapacidade insuprível e a sua violação gera a nulidade. A incapacidade de

Direito da Saúde Docente: Ana Rita Calmeiro 29


exercício é, por sua vez, a medida de direitos e vinculações que uma pessoa não pode
exercer nem cumprir por si, pessoal e livremente. É uma incapacidade suprível e a
sua violação gera a anulabilidade. Os meios de suprimento da incapacidade de
exercício são: o poder paternal (art. 1901.º e ss. do CC), a tutela (art. 1927.º e ss. do
CC) e a administração de bens.
As formas de suprimento, enquanto os meios de actuação estabelecidos pelo
direito em vista do efectivo exercício dos direitos e cumprimento das vinculações do
incapaz, são a representação e a assistência.
Na representação o incapaz não pode exercer ou cumprir pessoalmente, é o grau
mais grave de incapacidade. Alguém age em nome e em vez do incapaz, o
representante. Os efeitos da actuação do representante repercutem-se na esfera
jurídica do representado. Aqui só o representante actua, o representado não actua na
prática do acto.
Na assistência o incapaz embora possa exercer ou cumprir pessoalmente, não o
pode fazer livremente. Existe uma actuação conjugada de duas vontades, a do incapaz
e a do terceiro (assistente). O assistente colabora com o incapaz que intervém
pessoalmente na prática do acto.
Podemos falar de três modalidades de assistência: a autorização, em que o
assistente intervém antes do incapaz praticar o acto; a comparticipação, em que o
assistente intervém durante a prática do acto por parte do incapaz; e a ratificação, em
que o assistente actua após o incapaz ter praticado o acto.

D) A Relação Jurídica Obrigacional

Conceito de Obrigação

É a relação jurídica por virtude da qual uma (ou mais) pessoa pode exigir de outra
(ou outras) a realização de uma prestação.

Direito da Saúde Docente: Ana Rita Calmeiro 30


O art. 397.º do CC define a obrigação como “o vínculo jurídico por virtude do
qual uma pessoa fica adstrita para com outra à realização de uma prestação”. Ou seja,
ao direito subjectivo de um dos sujeitos corresponde o dever jurídico de prestar
imposto ao outro.
O direito subjectivo confere ao respectivo titular o poder de exigir de outra pessoa
determinado comportamento. O dever jurídico recai apenas sobre o património de
determinadas pessoas. A prestação é o comportamento ou conduta do obrigado.

As obrigações têm duas faces. O lado activo, que se traduz no poder de exigir (o
direito de crédito) e o lado passivo, que se traduz no dever de prestar (débito ou
dívida).
À pessoa que tem o poder de exigir a prestação dá-se o nome genérico de credor;
à outra, sobre a qual incide o correlativo dever de prestar, dá-se o nome de devedor.
São exemplos de obrigações em sentido técnico as relações constituídas entre o
comprador, que tem o dever de pagar o preço, e o vendedor, que tem o direito de
exigir a entrega do dinheiro; entre o senhorio, que tem o dever de proporcionar o
gozo temporário do arrendado, e o inquilino, que tem o poder de o reclamar.

A relação obrigacional pode ser simples ou complexa. Simples, quando


compreende o direito subjectivo atribuído a uma pessoa e o dever jurídico
correspondente que recai sobre a outra. Por exemplo: quem empresta um CD tem o
direito de exigir a sua restituição, enquanto o outro tem o dever jurídico de restituir o
CD que pediu emprestado. Complexa, quando abrange um conjunto de direitos e de
deveres nascidos do mesmo facto jurídico. É o caso da relação nascida de um contrato
de compra e venda porque sobre o vendedor recai o dever jurídico de entregar a coisa
e o direito de exigir o pagamento, enquanto sobre o comprador recai o dever jurídico
de pagar o preço e o direito de exigir a entrega da coisa.

Estrutura da Relação Obrigacional ou Creditória

Direito da Saúde Docente: Ana Rita Calmeiro 31


Os elementos constitutivos da obrigação são três. Os sujeitos, titulares (activo e
passivo) da relação jurídica; o objecto, que é a prestação debitória. O objecto
imediato é a actividade devida, o objecto mediato é a própria coisa. E o vínculo, que
é o nexo ideal que liga os poderes do credor aos deveres do devedor.
Daqui resultam três elementos que integram o vínculo existente entre os sujeitos
da obrigação:
a) O direito à prestação. É poder que o credor tem de exigir a prestação do
devedor;
b) O dever de prestar. É a necessidade imposta (pelo direito) ao devedor de
realizar a prestação (uma conduta específica), sob a cominação das sanções aplicáveis
ao incumprimento;
c) A garantia. A lei procura assegurar a realização coactiva da prestação, sem
prejuízo do direito que, em certos casos, cabe ao credor de resolver o contrato ou de
recusar o cumprimento da obrigação que recaía sobre ele próprio, até que o devedor
se decida a cumprir. A garantia geral do cumprimento das obrigações é o património
do devedor, ou seja, o credor pode exigir a realização coactiva da prestação, pode
exigir judicialmente o cumprimento da obrigação quando o devedor não cumprir
voluntariamente e executar o património do devedor (art. 817.º e art. 604.º, ambos do
CC).

As Obrigações e os Direitos Reais

As obrigações ou direitos de crédito são direitos relativos: só vinculam pessoas


determinadas, valem inter partes. Os direitos reais são direitos absolutos: impõem-se
a toda a gente, valem erga omnes.
A obrigação é essencialmente o poder de exigir uma prestação que recai sobre o
devedor (direito relativo), enquanto que nos direitos reais temos um poder sobre uma
coisa e não sobre o devedor ou sobre qualquer comportamento objectivado do
obrigado.

Direito da Saúde Docente: Ana Rita Calmeiro 32


Assim, os direitos reais são direitos de soberania sobre uma coisa ou bens
determinados; as obrigações são um direito à prestação só realizável através do
intermediário, que é o devedor, e através da sua cooperação.
Por fim, podemos dizer que, enquanto para os direitos reais vigora o princípio da
tipicidade ou numerus clausus (só valem como tais aqueles que a lei reconhece – art.
1306.º do CC), para as obrigações vigora o princípio da liberdade contratual (art.
405.º do CC), as partes têm, dentro dos limites da lei, a mais ampla liberdade na
celebração dos contratos (quer típicos, quer atípicos, quer mistos) e na fixação do seu
conteúdo.

Fontes das Obrigações

Diz-se fonte da obrigação o facto jurídico de onde nasce o vínculo obrigacional.


A fonte tem uma importância especial na vida da obrigação porque esta tem um
conteúdo variável consoante a fonte de onde procede.
As fontes das obrigações são: os contratos, acordos vinculísticos de vontades
opostas mas harmonizáveis entre si; os negócios unilaterais (cfr. art. 457.º e ss. do
CC); a gestão de negócios (cfr. art. 464.º e ss. do CC); o enriquecimento sem causa
(cfr. art. 473.º e ss. do CC); e a responsabilidade civil (cfr. art. 483.º e ss. do CC). A
responsabilidade civil pode ser contratual ou extracontratual. A responsabilidade civil
extracontratual, por sua vez, pode ser por factos ilícitos ou subjectiva (art. 483.º do
CC), por factos lícitos (art. 339.º do CC) e pelo risco/objectiva (art. 499.º do CC).

2) RESPONSABILIDADE CIVIL8

I – A responsabilidade civil ocorre quando uma pessoa deve reparar um dano


sofrido por outra. A lei faz surgir uma obrigação em que o responsável é o devedor e
a vítima é o credor. Trata-se, portanto, de uma obrigação que nasce directamente da

8
Estes apontamentos devem ser completados com a matéria leccionada nas aulas e com a informação
constante da bibliografia indicada.

Direito da Saúde Docente: Ana Rita Calmeiro 33


lei e não da vontade das partes, ainda que o responsável tenha querido causar o
prejuízo.
Distingue-se a responsabilidade civil em contratual e extracontratual.
A responsabilidade civil contratual resulta da violação de um direito de crédito
ou obrigação em sentido técnico, ou seja, resulta da falta de cumprimento das
obrigações emergentes de contratos, de negócios unilaterais ou da lei. Tem origem no
não cumprimento dos deveres relativos próprios das obrigações, incluindo os deveres
acessórios de conduta.
A responsabilidade civil extracontratual resulta da violação de direitos
absolutos ou da prática de actos que, embora lícitos, causam prejuízo a outrem.
Assenta na violação de deveres gerais de abstenção, omissão ou não ingerência,
correspondentes aos direitos absolutos.

Pode suceder que o dano se mostre consequência de um facto que


simultaneamente viole um direito de crédito e um dos chamados direitos absolutos,
como o direito à vida ou à integridade física. Por exemplo: um transportador que, por
culpa sua, ocasiona um acidente em que a pessoa transportada sofre ferimento. Nesta
hipótese, existe, ao mesmo tempo, a violação de um contrato (o de transporte) e de
um direito absoluto (a integridade física), uma situação susceptível de preencher os
requisitos de aplicação do regime da responsabilidade contratual e da
responsabilidade extracontratual.

O CC sistematiza e disciplina a responsabilidade civil do seguinte modo: a


responsabilidade extracontratual nos arts. 483.º e ss.; e a responsabilidade contratual,
nos arts. 798º e ss. Às duas formas de responsabilidade interessam ainda os arts. 562.º
e ss., respeitantes à obrigação de indemnizar, independentemente da fonte de onde
procede.

Direito da Saúde Docente: Ana Rita Calmeiro 34


II – A partir dos factos susceptíveis de constituir responsabilidade civil
extracontratual, há que fazer uma tríplice distinção: responsabilidade subjectiva ou
por factos ilícitos, responsabilidade objectiva ou pelo risco e responsabilidade por
factos lícitos danosos.
Portanto, o direito moderno, ao lado do princípio da responsabilidade baseada na
culpa (responsabilidade subjectiva ou por factos ilícitos), acolhe, excepcionalmente, a
ideia de uma responsabilidade independente de culpa (responsabilidade objectiva ou
pelo risco) e, ainda mais excepcionalmente, admite que a obrigação de indemnizar
possa resultar de uma conduta lícita do agente causadora de danos (responsabilidade
por factos lícitos).

a) Responsabilidade subjectiva ou por factos ilícitos.


O princípio geral em matéria de responsabilidade por factos ilícitos está
consagrado no art. 483.º, n.º 1 do CC: “Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar o
direito ilícito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses
alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação”.
Do preceituado resulta que o dever de reparação depende de vários pressupostos.
São eles: o facto, a ilicitude, a imputação do facto ao lesante, o dano e o nexo de
causalidade entre o facto e o dano.
1. Facto. A existência de um facto voluntário do agente e não de um mero facto
natural causador de danos, ou seja, visa excluir os factos que não dependem da
vontade humana e se apresentam por ela objectivamente incontroláveis, como sucede
com um ciclone ou uma inundação. Portanto, o facto há-de ser dominável ou
controlável pela vontade.
A conduta pode constituir um facto positivo ou acção que importa a violação de
um dever geral de abstenção, dever de não ingerência na esfera de acção do titular do
direito absoluto (ex.: a afirmação de um facto injurioso, a morte ou ofensa corporal de
alguém, a danificação de coisa alheia), mas também um facto negativo ou omissão,

Direito da Saúde Docente: Ana Rita Calmeiro 35


não realizar a prestação devida (ex.: o dever dos pais de cuidar dos filhos, do
professor de natação de evitar que o discípulo se afogue).
2. Ilicitude. O facto voluntário que lesa interesses alheios só obriga a reparação
havendo ilicitude – que consiste na infracção de um dever jurídico.
São duas as formas da ilicitude: a violação de um direito de outrem e a violação
de norma destinada a proteger interesses alheios.
A primeira delas – violação de direitos subjectivos de outrem – compreende,
principalmente, as ofensas de direito absolutos, de que constituem exemplos os
direitos de personalidade (arts. 70º e ss. do CC) e os direitos reais (arts. 1251º e ss. do
CC).
A segunda forma de ilicitude é dirigida à violação de normas destinadas a
proteger interesses alheios.
A invocação deste segundo fundamento da responsabilidade depende de se
verificarem três requisitos: 1) que à lesão dos interesses dos particulares corresponda
a violação de uma norma legal, entendendo-se aqui norma em sentido amplo; 2) que a
tutela dos interesses particulares figure, de facto, entre os fins da norma violada e não
de simples interesses reflexamente protegidos, portanto, não basta que a norma
aproveite também ao particular, é preciso que ela tenha também em vista a protecção
dele; 3) que o dano se tenha registado no círculo de interesses privados que a lei visa
tutelar (ex.: uma criança trepou num poste de linha eléctrica, colocada a altura
inferior à regulamentar, e foi vítima de um acidente: a empresa foi isenta de
responsabilidade por se considerar que a altura mínima da linha, fixada no
regulamento, não visa impedir a escalada dos postes, mas obstar a que as coisas
transportadas por pessoas ou veículos, circulando ao nível do solo, contactem com as
linhas).
Assim, a violação do direito subjectivo de outrem ou da norma destinada a
proteger interesses alheios constitui, em regra, um facto ilícito. Contudo,
excepcionalmente, pode suceder que essa violação ou ofensa seja coberta por alguma
causa justificativa do facto, capaz de afastar a aparente ilicitude.

Direito da Saúde Docente: Ana Rita Calmeiro 36


Um facto, embora prejudicial aos interesses de outrem ou violando o direito
alheio, considera-se lícito sempre que é praticado no exercício regular de um direito
ou no cumprimento de um dever, em acção directa (art. 336.º do CC), em legítima
defesa (art. 337.º do CC), em estado de necessidade (art. 339.º do CC) ou com o
consentimento do lesado (art. 340.º do CC).
3. Imputação do facto ao lesante. Para que o facto ilícito gere responsabilidade,
é necessário que o agente (o lesante) tenha agido com culpa. A culpa consiste na
imputação do facto ao agente. Agir com culpa significa actuar em termos de a sua
conduta merecer reprovação ou censura do direito. O agente podia e devia ter agido
de outro modo.
São fundamentalmente duas as modalidades de culpa: a mera culpa e o dolo.
Aquela consiste no simples desleixo, imprudência ou inaptidão. No dolo o agente
representa o facto danoso, sendo o facto praticado com a intenção malévola de
produzi-lo ou apenas aceitando reflexamente esse efeito.
A culpa será valorada, em face das circunstâncias de cada caso, pela diligência de
um bom pai de família (art. 487.º, n.º 2 do CC ). A culpa é, portanto, apreciada em
abstracto e não segundo a diligência habitual do autor do facto ilícito.
4. O dano. Da violação do direito subjectivo ou da lei tem que resultar um dano,
isto é, o facto ilícito culposo tem que causar prejuízo (patrimonial ou moral) a
alguém. Apenas em função do dano o instituto da responsabilidade civil realiza a sua
finalidade essencialmente reparadora ou reintegrativa.
O dano ou prejuízo é toda a ofensa de bens ou interesses alheios protegidos pela
ordem jurídica.
Os danos são objecto de diversas classificações, distinguiremos apenas os danos
patrimoniais dos não patrimoniais e os danos emergente dos lucros cessantes.
Os danos podem ser patrimoniais ou não patrimoniais, consoante sejam ou não
susceptíveis de avaliação pecuniária. Os danos não patrimoniais, embora
insusceptíveis de uma verdadeira e própria reparação ou indemnização, porque

Direito da Saúde Docente: Ana Rita Calmeiro 37


inavaliáveis pecuniariamente, podem ser, em todo o caso, de algum modo
compensados. Este regime visa atenuar o mal consumado.
O problema da ressarcibilidade dos danos não patrimoniais está regulado no art.
496º do CC.
Por sua vez, os danos emergentes compreendem a perda ou diminuição de valores
já existentes no património do lesado, enquanto que os lucros cessantes referem-se
aos benefícios que o lesado deixou de obter em consequência da lesão.
5. Nexo de causalidade entre o facto e o dano. Além do facto e do dano exige-
se que entre os dois elementos exista uma ligação: que o facto constitua causa do
dano. O facto praticado pelo agente tem que ser causa do dano sofrido pela vítima.
Portanto, não há que ressarcir todos e quaisquer danos que sobrevenham ao facto
ilícito, mas tão-só os que ele tenha na realidade ocasionado, produzido (art. 563.º do
CC).
Segundo a doutrina da causalidade adequada consagrada, entre nós, no art. 563.º
do CC, é necessário não só que o facto tenha sido, em concreto, condição “sine qua
non” do dano, mas também que constitua, em abstracto, segundo o curso normal das
coisas, causa adequada à sua produção.

b) Responsabilidade objectiva ou pelo risco.


No âmbito da responsabilidade objectiva ou pelo risco (art. 499.º ss. do CC), o
dever de indemnizar não resulta de um facto ilícito, mas tão-só de uma conduta
perigosa. Há certas actividades humanas que envolvem o risco de causar prejuízos a
terceiros, mas que a lei não proíbe por serem socialmente úteis ou, quando menos,
não reprovadas pelo consenso geral. É o caso da circulação de veículos terrestres.
Contudo, para compensar as vantagens que dessas actividades retiram,
responsabilizam-se as pessoas que exercem tais actividades pelos danos que
eventualmente venham a produzir, embora sem culpa.
Ao lado da doutrina clássica da culpa, aflorou um outro princípio no sector da
responsabilidade civil: o da teoria do risco, ou seja, quem cria ou mantém um risco

Direito da Saúde Docente: Ana Rita Calmeiro 38


em proveito próprio deve suportar as consequências prejudiciais do seu emprego, já
que dele colhe o seu principal benefício, independentemente de culpa (ubi
emolumentum, ibi onus; ubi commodum ibi incommodum).
O CC ao mesmo tempo que proclama a responsabilidade baseada na culpa como
regime geral, limita a responsabilidade objectiva, fundada no risco, ou seja,
independente de ilicitude e de culpa, aos casos de danos causados pelo comissário,
pelos órgãos, agentes ou representantes do Estado ou de outras pessoas colectivas
públicas, por animais, por veículos e por instalações de energia eléctrica ou de gás
(cfr. art. 500.º; art. 501.º; art. 502.º; art. 503.º; art. 509.º, todos do CC).

c) Responsabilidade por factos lícitos.


Também se admite, excepcionalmente, que a obrigação de indemnizar resulte de
uma conduta lícita do agente. Portanto, apesar do facto praticado ser lícito, a lei
obriga o agente a reparar o prejuízo que a sua prática porventura cause a terceiro.
Estamos no âmbito da responsabilidade por factos lícitos.
O acto lesivo pode ser lícito por visar satisfazer um interesse colectivo ou um
interesse qualificado de uma pessoa de direito privado, mas pode, ainda assim,
simultaneamente, não ser justo que esse interesse colectivo ou esse interesse
qualificado de um indivíduo sacrifique, sem nenhuma compensação, os direitos de
um ou mais particulares ou os bens de uma outra pessoa, que sejam atingidos pela
prática do acto – a licitude nem sempre afasta o dever de indemnizar, como se
depreende do consagrado nos artigos 1367.º, 1347.º, 1348.º, n.º 2 e 1349.º, nº 3, todos
do CC.

DIREITO PENAL
- ALGUMAS QUESTÕES –9

Sigilo Profissional
9
Estes apontamentos devem ser completados com a matéria leccionada nas aulas e com a informação
constante da bibliografia indicada.

Direito da Saúde Docente: Ana Rita Calmeiro 39


Definição:
- o direito penal é manifestação de uma comunidade politicamente organizada,
que formula juízos de dignidade punitiva e necessidade de punição acerca de
determinada acção ou omissão.

Exemplo: - art. 195.º Cód. Penal: “Quem, sem consentimento, revelar segredo
alheio de que tenha tomado conhecimento em razão do seu estado, ofício, emprego,
profissão ou arte, é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até
240 dias”.

Analisemos este tipo de crime:


1) o bem jurídico protegido por esta incriminação é a privacidade (embora
alguns autores sejam da opinião de que também é protegido um interesse
comunitário da confiança na discrição e reserva de determinados grupos
profissionais, como todos aqueles que estão ligados à saúde). Estamos
perante um crime de dano contra a privacidade.
2) O dano contra a privacidade existe quando é revelado um segredo alheio.
- O que é um segredo? Facto (ou conjunto de factos) verdadeiro apenas
conhecido de uma pessoa ou de um círculo restrito de pessoas, e em
relação ao qual o titular do segredo deseja que continue apenas a ser
conhecido por esse círculo restrito de pessoas ou por quem ele decidir. Ou
seja:
 facto conhecido por um número restrito de pessoas;
 vontade do dono do segredo de que ele continue sob reserva;
 existência de um interesse legítimo na reserva.
Nota: não pertencem ao conceito de segredo as informações não
verdadeiras nem os juízos de valor.

Direito da Saúde Docente: Ana Rita Calmeiro 40


- O segredo terá de ser alheio, isto é, proveniente da esfera
jurídica de uma pessoa diferente da pessoa obrigada a sigilo.
2) O conhecimento do segredo terá de necessariamente – e exclusivamente –
ser obtido no exercício de uma actividade profissional, por causa ou por
ocasião desse exercício. Não viola qualquer dever de sigilo o enfermeiro,
o médico, o advogado ou o técnico de saúde que divulga determinado
facto de que tomou conhecimento sem querer ao escutar uma conversa de
café.
3) A acção típica consiste em revelar ou divulgar um segredo. Para haver
revelação o destinatário da comunicação tem de passar a conhecer factos
que antes não conhecia. A revelação é crime mesmo quando feita a pessoa
igualmente obrigada a sigilo profissional.
4) Importante: para ser punível a revelação tem de ser feita sem o
consentimento do titular do segredo (o consentimento é uma causa de
justificação que exclui a ilicitude – art.º 38.º Código Penal).
5) A infracção só é punível sob a forma de dolo (art.º 14.º C.P.), isto é, o
agente representa e quer divulgar um segredo, bem sabendo que está
obrigado a sigilo.

Mas será que a revelação de um segredo alheio de que se obteve


conhecimento através da actividade profissional consubstancia sempre um crime?
Nem sempre.
- Já ficou dito que não há crime se houver consentimento, isto
é, se o titular do segredo autorizar a sua divulgação. Isto é
assim porque o consentimento é uma causa de justificação que
exclui a ilicitude (cfr. súmula de legislação – art. 38.º do C.P.).

Mas e se não houver consentimento e, ainda assim, o profissional obrigado a


sigilo divulgar o segredo que lhe foi confiado ou de que tomou conhecimento? –

Direito da Saúde Docente: Ana Rita Calmeiro 41


DEPENDE. Depende da existência de uma outra causa de justificação para a
divulgação do segredo que afaste a ilicitude. Impõe-se a ponderação dos valores
em causa para descobrir se estamos perante uma situação de DIREITO DE
NECESSIDADE (art. 34.º Cód. Penal – cfr. súmula de legislação).

Caso Prático:
Um homem com 37 anos, casado, é internado nos Cuidados Intensivos do
Hospital Amato Lusitano, com o diagnóstico de Pneumonia Atípica. A história
clínica revela que mantém uma relação homossexual há 2 anos e proíbe a sua
revelação à esposa.
É feito despiste de doenças sexualmente transmissíveis. Posteriormente vem o
resultado da serologia indicando positividade para VIH. É informado o doente e este
mais uma vez pede segredo.
Questões:
1. Deverá ser informada a mulher da bissexualidade do marido?
2. Deverá ser informada a mulher da seropositividade do marido? Deverá ser
informado o parceiro sexual da seropositividade do seu companheiro?

Está em causa saber se é ou não legítima a violação do segredo a que está adstrito
o médico/ enfermeiro que dele teve conhecimento em razão do seu ofício.
Cada pessoa tem sobre si aquilo a que já se chamou o poder de
autodeterminação informacional, o poder de decidir quem, quando e em que contexto
pode saber um facto qualquer sobre si.
Reportando-nos ao caso em estudo podemos afirmar, por ser de conhecimento
generalizado, que o momento da comunicação do resultado de um teste de
seropositividade é um momento vivencial de enorme impacto porque o medo da
morte próxima associa-se ao sentimento de que se é portador de uma doença rejeitada
pela sociedade, o que acrescenta ao medo complexos de culpa e de vergonha.

Direito da Saúde Docente: Ana Rita Calmeiro 42


A doença e as acções posteriores do doente têm uma irredutível valência
sistémico-social, pois o conflito não se esgota no interior do paciente. O normal será
um conflito que coloca frente a frente os direitos e interesses do paciente e os direitos
e interesses de terceiros (ex.: o parceiro sexual, médicos e enfermeiros). No caso de
uma doença como a SIDA, na ausência de terapia sobra apenas a aposta absoluta na
prevenção e a prevenção reclama o conhecimento de quem é portador do vírus.
O teste positivo da SIDA proporcionou o conhecimento de um facto que se
insere na esfera de confidencialidade e intimidade do seu paciente.
As questões colocadas no caso prático inserem-se no limiar que permite indagar
acerca da existência de uma justificação para a divulgação do segredo.
Impõe-se a ponderação dos valores em causa: sem margem para dúvidas, a
revelação arbitrária do segredo relativo à seropositividade do paciente do caso de
estudo frustraria a relação de confiança que se estabelece entre médico/enfermeiro e
doente, o que poderia estimular o abandono do tratamento – por esse motivo (entre
outros), o médico/enfermeiro não deve revelar a seropositividade do paciente antes de
esgotar todos os meios de o convencer a comunicar o facto às pessoas que pode pôr
em perigo. No entanto, caso o paciente recuse definitivamente revelar a sua
seropositividade às pessoas que por si podem vir a ser infectadas, está a colocar em
jogo a Vida e a Saúde de terceiros.
No caso prático começa por se perguntar se deve o médico/enfermeiro informar
a mulher do seu paciente de que o seu marido é bissexual – a resposta terá de ser
claramente negativa. Fazendo esta revelação, o médico/enfermeiro incorre em
responsabilidade penal.
Pergunta-se depois se deve informar a mulher do seu paciente de que este é
portador do vírus da SIDA. Nesta matéria começa a sobressair a doutrina e a
jurisprudência que defendem que a revelação, sem consentimento, da
seropositividade de uma pessoa pode ver a sua ilicitude excluída pela concorrência de
justificação bastante. A causa de justificação mais apontada é o direito de necessidade
(art. 34.º do Código Penal) e a sua aplicação é equacionada precisamente em

Direito da Saúde Docente: Ana Rita Calmeiro 43


situações como a deste caso em que o médico/enfermeiro/profissional de saúde
conhece a seropositividade do seu paciente e, porque este se recusa a fazê-lo,
comunica o facto ao cônjuge ou ao parceiro sexual do paciente (outros exemplos em
que pode ser accionado o direito de necessidade: o médico da prisão revela ao
director da prisão a seropositividade de um recluso; o médico que comunica ao
director de uma clínica a seropositividade de um colega cirurgião).
Fundamental é ter como assente que para invocar o direito de necessidade o
médico/ enfermeiro deve (cfr. a este respeito o Parecer 32/CNECV/2000 do Conselho
Nacional de Ética para as Ciências da Vida):
1) ter dúvidas fundadas de que o paciente evitará comportamentos de risco: o
direito de necessidade só pode justificar um comportamento típico quando
há perigo actual para um bem jurídico (ex: vida, saúde, integridade física)
susceptível de protecção a título de direito de necessidade;
2) a revelação da seropositividade tem de ser o único meio capaz de
salvaguardar os bens jurídicos em perigo;
3) o médico/enfermeiro tem de esgotar todos os meios de convencer o paciente
a ser ele próprio a informar as pessoas que coloca em perigo;
4) caso o paciente se recusar a informar, deve o médico/enfermeiro adverti-lo
de que, nesse caso, é obrigado a não observar o dever de sigilo a que está
sujeito;
5) a divulgação sem consentimento do segredo deve ser feita ao menor número
possível de pessoas.
(Nota - estes passos devem ser observados por qualquer profissional obrigado a
segredo)
Este entendimento, subscrito pela doutrina e pela jurisprudência maioritárias é
contestado por alguns autores que sublinham a dificuldade de confirmar a existência
de um perigo actual para a vida ou saúde de outras pessoas, contudo, salvo melhor
parecer, julgo que apesar de realizar um comportamento tipificado como crime (art.
195.º C.P.), o médico/enfermeiro que acautele o procedimento acima descrito vê a

Direito da Saúde Docente: Ana Rita Calmeiro 44


ilicitude da sua conduta típica (revelação do segredo) ser justificada pelo direito de
necessidade, pois impõe-se a protecção da Vida, bem maior da Humanidade.
Assim sendo, não cometerá o crime de violação de sigilo profissional o
médico/enfermeiro que revelar aos parceiros sexuais do paciente do caso sob parecer
(seja um cônjuge, um amante, seja um parceiro heterossexual ou homossexual – isso
é absolutamente indiferente) a seropositividade deste, quando este se recuse a fazê-lo
e a revelação seja a única forma de proteger a vida e a saúde desses parceiros.

Eutanásia – sobre esta matéria é obrigatório o estudo da bibliografia colocada à


disposição dos alunos (“Alguns Aspectos Jurídicos da Eutanásia”) e analisada na
aula, bem como a leitura dos artigos 133.º, 134.º e 135.º do Código Penal.

Exposição ou abandono

Direito da Saúde Docente: Ana Rita Calmeiro 45


No art. 138.º do Código Penal o bem jurídico protegido é a vida humana. Para que
ocorra este crime é necessário que o agente coloque em perigo (em perigo concreto) a
vida de uma pessoa.
Nos termos da alínea a), o agente tem de expor a pessoa em lugar que a sujeite a
uma situação de que se não possa defender. A exposição implica que a vítima seja
transferida de um local seguro para outro menos seguro e dessa deslocação (espacial)
deve resultar um agravamento de riscos para a vida.
Nos termos da alínea b), o agente abandona a vítima sem defesa apesar de ter o
dever de a guardar, vigiar ou assistir (estes deveres deverão resultar da lei ou de
contrato). Esta segunda modalidade de conduta é especialmente importante para os
profissionais de saúde e em particular para os enfermeiros.
Com efeito, no Código Deontológico do Enfermeiro10 encontramos várias
disposições legais que fundamentam o dever jurídico que a classe tem de defender,
proteger, assistir e cuidar da pessoa humana (exemplos: art. 79.º, al. c), art. 81.º e art.
83.º, als. a), d) e e) do Código Deontológico do Enfermeiro), ou seja, o Código
Deontológico vincula os enfermeiros aos deveres de guardar, assistir e vigiar de que
se fala no art. 138.º do Código Penal.
Guardar consiste em tomar conta com o objectivo de vigiar, defender, proteger.
Vigiar é estar atento de forma a evitar a ocorrência de qualquer perigo.
Assistir é dar ajuda moral ou material a alguém, prestar assistência.
A alínea b) do art. 138.º do C.P. abrange tanto as situações em que o agente
abandona a vítima sem defesa, deixando só, como aquelas em que o agente
permanece no local junto à vítima e omita a realização dos deveres que se impõem.
Como acima se disse, o (I) abandono tem de ser realizado por um agente sobre o
qual impenda um especial dever de vigiar, assistir ou guardar (é um crime específico
próprio) e (II) é necessário que a vítima fique sem defesa em directa decorrência da
violação dos deveres que impendem sobre o agente e, ainda, que (III) a criação do

10
Nos termos do art. 79.º do Código Deontológico do Enfermeiro estes profissionais estão obrigados a
cumprir as normas deontológicas e as leis que regem a profissão desde o momento em que se
inscrevem na Ordem dos Enfermeiros.

Direito da Saúde Docente: Ana Rita Calmeiro 46


perigo seja consequência dos riscos que deviam estar prevenidos pela existência dos
deveres que recaem sobre o agente. Do abandono deve resultar para a vítima um risco
ou agravamento de risco para a sua vida, risco esse de que ela por si só não se possa
defender.
Este crime só existe quando praticado com dolo (art. 14.º C.P.). O agente tem de
estar consciente de que o seu comportamento causa perigo para a vida da vítima e que
esta não tem capacidade para se defender.
Não haverá crime quando é a vítima que, com o seu próprio comportamento,
potencie ou agrave os riscos que corre ou quando, por exemplo, o agente se veja
obrigado a abandonar uma vítima para salvar outra (conflito de deveres – art. 36.º do
C.P.).
Atenção: também comete este crime quem tendo abandonado o local onde
cumpria os seus especiais deveres, sem perigo para a vida da vítima, não regressa
atempadamente, colocando assim a vítima em perigo.

Aborto

Até ao ano de 1984 o aborto era punido sem excepções. A partir dessa data
foram consagradas situações medicamente indicadas em que o valor do bem jurídico
vida intra-uterina passou a poder ser sacrificado face a outros valores
constitucionalmente relevantes (o art. 142.º do C.P. elenca as causas de justificação
que eliminam a ilicitude da interrupção voluntária da gravidez), tais como a saúde da
mãe ou do próprio nascituro.
O bem jurídico aqui protegido é a vida humana intra-uterina: tem de estar em
causa a vida humana implantada no útero materno. Não se protegem os embriões não
implantados no útero, embora se possam considerar vida humana, o que tem sérias
consequências ao nível da experimentação científica.

Direito da Saúde Docente: Ana Rita Calmeiro 47


Se o aborto se fizer com o acordo ou assentimento 11 da mulher grávida este
crime vê a sua ilicitude diminuída (art. 140.º, n.º 1 do C.P.). Se o aborto se fizer
contra a vontade da mulher grávida haverá, pelo contrário, um agravamento da
ilicitude que justifica uma moldura penal mais gravosa (pena de prisão de 2 a 8 anos).
A forma por que se provoca a morte do feto é irrelevante: tanto pode ser por
intervenção directa sobre o feto como por intervenção indirecta sobre a mulher
grávida.
O crime de aborto também pode ser praticado pela própria mulher grávida (art.
140.º, n.º 3 C.P.) e é punido com pena de prisão até 3 anos.
Nos termos do art. 141.º, n.º 2 do Código Penal, o agente que se dedicar com
habitualidade ou intenção lucrativa à prática de aborto é punido com mais dureza (a
moldura penal é agravada).

Intervenções e Tratamentos Médico-Cirúrgicos Arbitrários

É o art. 150.º do C.P. que define o universo dos agentes que podem figurar
como autores deste tipo de crime contra a liberdade (bem jurídico protegido) - o
agente pode ser médico ou pessoa legalmente autorizada, e é no art. 157.º do C.P. que
encontramos as características que o consentimento do paciente deve possuir para ser
eficaz.
A previsão deste crime visa evitar que a integridade física humana seja de
alguma forma invadida sem consentimento válido, ainda que para realização de uma
intervenção ou tratamento (terapia, diagnóstico, prevenção, profilaxia, etc) médico-
cirúrgico.
A intervenção ou tratamento arbitrário (= sem consentimento do paciente) é
punido mesmo quando a recusa do paciente seja injustificada ou irracional porque
claramente o prejudica e ainda que tal recusa se faça à custa da sua saúde, integridade
física ou vida (ex: paciente que reclama a interrupção de um tratamento essencial para
11
Não confundir este acordo ou assentimento com o consentimento justificador previsto no art. 38.º do
C.P.!

Direito da Saúde Docente: Ana Rita Calmeiro 48


lhe prolongar a vida) – em caso de vontade contrária do paciente extingue-se o dever
de garante do profissional de saúde, pois não se pode conceber a cura coerciva12.
A respeito deste tipo de crime tem havido muita discussão em torno dos
tratamentos em menores, ou, em geral, dos incapazes sem o discernimento bastante
para compreender o sentido e o alcance do tratamento ou da intervenção.
No caso dos menores, o consentimento cabe normalmente ao representante
legal, aos pais. As dificuldades surgem quando o representante legal recusa o
consentimento para um tratamento medicamente indicado e indispensável para salvar
a vida do menor ou afastar uma doença grave.
Caso clássico: A e B, pais da criança C, não autorizam, por motivos de índole
religiosa, que esta seja submetida a uma transfusão de sangue indispensável para
ultrapassar doença grave ou debelar o perigo de morte. O direito português não
dispõe de mecanismos legais de ultrapassagem desta oposição, como acontece, por
exemplo, na Áustria, onde se prevê uma intervenção directa e imediata do tribunal
(intervenção esta que, segundo a doutrina dominante, deve mesmo dispensar-se na
hipótese de a demora pôr seriamente em perigo a vida ou a saúde do menor).
Não consignando o direito português a superação do problema pela via do apelo
ao tribunal, é convicção da generalidade dos melhores penalistas portugueses que o
médico (ou a pessoa legalmente autorizada) deve realizar o tratamento ou a
intervenção médico-cirúrgica e que, se o fizer, não incorrerá em responsabilidade
criminal a título de tratamento arbitrário. Isto porque entendem que a liberdade de
dispor do próprio corpo ou da vida é uma liberdade pessoal, que não se comunica ao
representante legal nem é violada só por se contrariar a vontade do representante
legal. No mesmo sentigo joga um argumento literal, pois a lei fala expressamente no
consentimento do paciente . Na verdade, parece existir a respeito desta matéria uma
intencional lacuna de punibilidade.

12
O direito penitenciário vigente permite a aplicação de tratamentos coercivos ou alimentação forçada
em caso de greve de fome, quando haja perigo para a vida e/ou para a saúde dos reclusos.

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Direito da Saúde Docente: Ana Rita Calmeiro 50

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