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O IMPÉRIO DO GROTESCO – SODRÉ E RAQUEL PAIVA

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notícias católicas: o padre-cantor Marcelo Rossi, em batas de anjo branco, batiza no Rio Jordão o
apresentador Gugu Liberato (o mesmo da pôrno-tevê dos domigos à tarde). p. 6

DISCURSO DO PRESIDENTE. O comum é a figura do rebaixamento (chamado de bathos, na


retórica clássica), operado por uma combinação insólita e exasperada de elementos heterogêneos,
com referência frequente a deslocamentos escandalosos de sentido, situações absurdas,
animalidade, partes baixas do corpo, fezes e dejetos – por isso, tida como fenômeno de desarmonia
do gosto ou disgusto, como preferem estetas italianos – que atravessa as épocas e as diversas
conformações culturais, suscitando um mesmo padrão de reações: riso, horror, espanto, repulsa. p. 7

o grotesco esquiva-se de tal elevação. De fato, não se empenha nem um pouco, como o barroco, na
restauração da razão clássica, nem opta por nenhuma moral progressista. O grotesco funciona por
catástrofe. Não a mesma dos fenômenos matematicamente ditos “caóticos” ou da geometria fractal,
que implica irregularidade de formas, mas dentro dos padrões de uma repetição previsível. Trata-se
da mutação brusca, da quebra insólita de uma forma canônica, de uma deformação inesperada. p. 11

a dissonância não se resolve em nenhuma conciliação, já que daí decorrem o espanto e o riso, senão
o horror e o nojo. p. 11

[o grotesco] não se aplicava apenas à obra de arte: como categoria estética, participava igualmente
da estesia social ou do “sensível”, entendido como faculdade humana de sentir (…) que, de maneira
positiva, afeta e repercute em nós. P. 17

o fenômeno estético é mais amplo que o artístico. O pensador alemão Baumgarten, inventor da
palavra estética como “ciência do modo sensível de conhecimento de um objeto” (…) queria
mostrar a existência de uma gnoseologia da sensação ou da percepção sensível, irredutível ao saber
lógico. p. 17

artista e contemplador, enquanto sujeitos da percepção (representação) sensível, são igualmente


produtores de arte. p. 18

o elemento estético funciona, assim, como signo de comunicação, abrindo-se para uma semântica
do imaginário coletivo e fazendo-se presente na ordem das aparências fortes ou das formas
sensíveis que investem as relações intersubjetivas no espaço social. p. 18

o campo social é afetado pelas aparências sensíveis, não necessariamente instaladas na ordem do
real, mas também do possível e do imaginário. Somos afetados todo o tempo por volumes, cores e
ritmos, assim como por narrativas e frases. p. 18

o sensível é esse rumor persistente que nos compele a alguma coisa, sem que neles possamos
separar real de imaginário. p. 18

pelo ridículo ou pela estranheza, [o grotesco] pode fazer descer ao chão tudo aquilo que a ideia
eleva alto demais. p. 18

POLITICAMENTE CORRETO. O disgusto dos românticos [sec. XIX] é uma reação a essas
doutrinas moralistas afins com a hegemonia política da burguesia. p. 22
[para Eugenio D´ors] trata-se da constante supratemporal de algo negativo, mas tragicômico, algo
que se repete ao longo da História, embora sob formas diferentes. p. 26

o grotesco subverte as hierarquias, as convenções e as verdades socialmente estabelecidas. Subverte


igualmente as figurações clássicas do corpo, passando a valorizar as vinculações corporais com o
universo material, assim como seus orifícios, protuberâncias, e partes baixas. Alimentação, dejeção,
cópula, gravidez e parturição compõem constantes na imageria grotesca. p. 28

PAREI AQUI

na noção de gosto (…) operam motivações estéticas, morais e sensoriais. p. 16

características da estética do grotesco: deslocamento incongruente; invocação de clichês


culturalistas; disparidade chocante; imaginário coletivo escatológico circense; exibição irrisória;
ridícula antropomorfização; desritualização insólita.

entre os anos de 69 e 72, a televisão brasileira cativava o seu público emergente com programas que
exploravam as misérias e as aberrações da condição humana. Sílvio Santos, Jacinto Figueiras Jr.,
Dercy Gonçalves, Raul Longras, Chacrinha e outros tinham como matéria-prima televisiva a
infelicidade alheia, a mendicância, as deformidades físicas, etc. Sílvio Santos hoje um dos
empresários mais ricos do país, promovia o desfile de mulheres miseráveis, que contavam suas
penas. A mais infeliz, escolhida pelo auditório, era proclamada “rainha por um dia”. p. 5

desde meados da década de 90, as aberrações recrudesceram na televisão brasileira. No “domingão


do faustão”, atores da rede globo saboreavam comida japonesa servida sobre o corpo de uma
modelo nua; o “programa do ratinho” notabilizou-se por brigas de família e palavrões, pontuadas
pelo enorme cassetete brandido pelo apresentador. Orientam-se por essa linha as atrações de
programas como “Leão”, Gugu Liberato, etc. p. 5

encarar o grotesco como um outro estado da consciência, uma outra experiência de lucidez, que
penetra a realidade das coisas, exibindo sua convulsão, tirando-lhes os véus do encobrimento. p. 29

é quase sempre também uma certa visibilidade disto que Freud chamou de “pulsão de morte” (…) a
racionalidade e a coerência das instituições são solapadas pelo caos e pela dissociação – funções
complementares da pulsão de morte – características do grotesco. p. 29

além da expressão representativa do grotesco (nas artes etc), há o grotesco atuado, enquanto
“gênero”; manifestações antipetistas guardam um pouco de cada uma desses gêneros: “trata-se das
situações de comunicação direta, vividas na existência comum ou nos palcos, de natureza:
Espontânea – episódios ou incidentes da vida cotidiana, geralmente expostos na mídia, que
apontam para o rebaixamento espiritual ou a irrisão (absurdos de realidade, disparates levados a
sério, o ridículo advindo do exagero, etc) característicos do grotesco.
(…)
Aqui, torna-se claro que o grotesco (…) pode ser definido como uma atitude ou um estilo de
vida.
Encenada – é o grotesco que pode revelar-se em peças teatrais ou quaisquer outros jogos
cênicos. Neste caso, destaca-se um modo de atuar que busca a cumplicidade do público por meio de
gestos corporais risíveis (…).
Carnavalesca – aparece nos ritos e festas regidos pelo espírito carnavalesco e circense,
desde festejos populares até o Carnaval propriamente dito.
O gênero grotesco também se divide em espécies (modalidades expressivas): Escatológico;
teratológico (referências risíveis a monstruosidades, deformações etc); Chocante (escatológico ou
teratológico, mas “voltado apenas para a provocação superficial de um choque perceptivo,
geralmente com intenções sensacionalistas); Crítico (“dá margem a um discernimento formativo
do objeto visado. Ou seja, não propicia apenas uma privada percepção sensorial do fenômeno, mas
principalmente o desvelamento público e reeducativo do que nele tenta se ocultar”).

Desde as épocas mais remotas da humanidade, a festa aparece como teatro simbólico das
vicissitudes identitárias do grupo, portanto, como lugar de ritualização dos conflitos em torno do
controle social. Nela, podem acontecer o caos das identidades socialmente estabelecidas (paródias,
ritos de inversão dos papéis), o descontrole das pulsões normalmente organizadas (orgasmos,
êxtases) (…) levando o povo a ver no espelho do imaginário sua própria cara, com todas as
distorções que a alegre radicalidade dessa experiência possa comportar. p. 52

popularesco: “adjetivação de um adjetivo. Com esta palavra, quer-se significar a espontaneidade


popular industrialmente transposta e manipulada por meios de comunicação, com vistas à
ampliação de audiência urbana”. p. 54

a partir dos anos 1940, a comunicação forte e intensa da indústria do entretenimento com o público
brasileiro passava pelo rádio com seus programas de auditório e pela cinematografia das
chanchadas, em que predominava a estética do grotesco paródico. p. 55

É FANTÁSTICO. os conteúdos e os formatos dos programas radiofônicos de auditório, das


chanchadas cinematográficas, dos varietys shows norteamericanos, mas também das atrações
típicas das praças e feiras nordestinas, terminariam sendo traduzidos ou transpostos para a
programação televisiva a partir da segunda metade dos anos 1960, precisamente no período mais
repressivo da ditadura militar no Brasil. p. 55

Nesse período, a televisão brasileira atravessava a sua difícil adolescência. Como costuma acontecer
nos países caracterizados pela 'via prussiana', isto é, a modernização feita autoritariamente, de cima
para baixo, a televisão chegou aqui de repente (desde 18 de setembro de 1950) (…), sem estrutura
industrial e, mesmo, sem número razoável de aparelhos receptores. Mas foi anunciada como ícone
do progresso nacional – o Brasil foi o primeiro país na América Latina (o quinto no mundo) a
dispor da novidade eletrônica. (…)
O regime militar foi a incubadora da expansão televisiva. p. 55

a repressão à liberdade de expressão, tanto nos espaços públicos e nas universidades quanto na
imprensa, abriu espaço para o entretenimento vinculado ao mercado de consumo e à tevê. Dessa
conjuntura – em que se davam as mãos militares, empresários e tecnoburocratas – surgiu a Rede
Globo. p. 55

tudo isso já foi suficientemente descrito em dezenas de estudos nacionais e estrangeiros (…) mas
talvez não se tenha dito o suficiente sobre os aspectos estratégicos da estética do grotesco em todo
esse processo. p. 56

a programação televisiva popularesca como um recurso de socialização compensatória da massa


excluída da inserção plena no espaço urbano. p. 56

o auditório é um espaço de mediação ('transicional', na terminologia do psicanalista Winnicott)


entre a nova realidade daquilo que os sociólogos chamaram de 'grandes bolsões urbano-industriais'
e a realidade tradicional, interiorana, das camadas populacionais que migraram para os 'bolsões'
durante os anos 60. Na televisão, o auditório passou a exercer a mesma função que lhe garantira o
grande sucesso no rádio: recriar a espontaneidade das festas e dos espetáculos públicos – portanto,
assumir uma parte da tensão presente nas manifestações simbólicas das classes economicamente
subalternas no espaço urbano – e, ao mesmo tempo, manipular os conteúdos 'popularescos', pondo-
os a serviço da competição comercial/publicitária pelo mercado de audiência. p. 56

nessa conjuntura televisiva, surgem e impõem-se programas no formato de 'feira livre', conduzidos
por animadores como Chacrinha e Silvio Santos (…) Como nas feiras de outrora, reprisavam-se
nesses programas as exibições do que Bakutin chamou de 'curiosidades', ou seja, montava-se o
espetáculo das anomalias humanas – aleijões, deformidades, manifestações de idiotia etc. p. 57

todos esses programas pautam-se por recursos de rebaixamento de padrões, seja para reduzir a
complexidade de mensagens e facilitar sua assimilação por um público mais amplo, seja para
estimular rebarbativamente o comportamento da plateia no auditório, levando os corpos a se
movimentarem ao som da música ou as bocas a gritarem em uníssono com o animador. p. 57

a televisão massiva – na esteira da contribuição dada pela rádio para a unificação da língua nacional
– revelou-se importante dispositivo de articulação de um espaço público nacional (espelho
imaginário do 'Brasil unitário' sonhado pelo regime militar), ao constituir como seu público
categorias sociais as mais diversas, sob a bandeira uniformizante do consumo de massa. p. 57

(…) a mídia, impondo a imagem pública, forma acabada da mercadoria, como modo dominante de
relacionamento entre os indivíduos e o mundo. p. 57

houve sem dúvida uma incorporação maciça de largos contingentes populacionais a uma nova
ordem socioeconômica, orientada para um novo tipo de consumo. E o fato é que, a partir dos anos
1970, apesar da continuidade dos programas de auditório, as emissora de televisão passaram a
exercer maior controle estético e editorial sobre o popularesco, ao mesmo tempo em que
procuravam atender às exigências da sociedade hegemônica p. 60

quando se fala em 'cultura nacional', uma espécie de monopólio do sentido por parte de elites
regionais, aparece uma imagem de unidade. p. 61

na realidade, as coisas se passam diferentemente: o que há mesmo é multiplicidade, diversidade,


contradição. A ideia de unidade costuma expulsar o que não agrada às classes dirigentes: ora o
índio, ora o negro, ora o camponês, ora o pobre e assim por diante p. 61

no imaginário das elites republicanas [monteiro lobato], o povo era mesmo uma entidade de
identificação impossível, a menos que se transformasse num caricato ou monstruoso objeto de riso.
p. 61

os tipos humanos resultantes de toda uma história de miséria biológica e social transformam-se
numa espécie de essência figurativa disso que nem a monarquia nem a república conseguiram
ideologicamente configurar: o povo brasileiro. Progressivamente, textos sobre a paisagem humana
nacional, sejam feitos por estrangeiros ou por brasileiros, vão inscrevendo no imaginário das elites
uma imagem teratológica do povo. Era isto o que se refletia quase sempre no olhar intelectualizado
de observadores. p. 62

no Brasil, a visão monstruosa do povo nacional pelas elites eurodirigidas confluiu fortemente para
os conteúdos do padrão de programação que ajudou a consolidar, entre fins da década de 60 e
começo da de 70, a televisão como meio de comunicação hegemônico. p. 63
predominam hoje dois padrões de programação: o 'de qualidade', ou seja, esteticamente clean, bem
comportado em termos morais e visuais e sempre fingindo jogar do lado da 'cultura', e o do
grotesco, em que se desenvolvem as estrategias mais agressiva pela hegemonia de audiência. p. 64

a principal matéria-prima para os conteúdos discursivos da tevê são as 'representações sociais', no


sentido de forma de conhecimento a partir do senso comum e orientada para a figuração de uma
realidade qualquer. Na fronteira do individual com o social, essas representações incorporam
conteúdos (opiniões, atitudes, informações) realistas e imaginários, relativos à vida cotidiana,
reorganizando-os numa modalidade de saber adaptada à fácil comunicação. p. 64

a representação social em vigor contém potencialmente a metáfora de um 'corpo social', apoiada em


imagens e fantasias comuns a todos os membros da coletividade. p. 64

a televisão literalmente incorpora-se à ideia que o indivíduo tende a fazer de si mesmo e de seus
pares. p. 64

e essa ideia, na TV aberta, privilegia fortemente a ótica do grotesco. Primeiro, porque suscita o riso
cruel, que parece assumir contemporaneamente foros de liberdade de pensamento. p. 65

o grotesco chocante – esta é a modalidade dominante nas programações televisivas para a grande
massa – permite encenar o povo e, ao mesmo tempo, mantê-lo à distância. Dão-se voz e imagem a
energúmenos, ignorantes, ridículos, patéticos, violentados, disformes, aberrantes, para mostrar a
crua realidade popular, sem que o choque daí advindo chegue às causas sociais, mas permaneça na
superfície irrisória dos efeitos. p. 65

a audiência, entretanto, não é vítima, e sim cúmplice passivo de um ethos a que se habituou. p. 65

[COLLOR] O apelo latente à animalidade – presente na constante invocação da força corporal –


para resolver problemas nacionais, como inflação, corrupção, etc., e a exibição 'brega' de façanhas
esportivas, querelas familiares e anacrônicas atitudes de corte imperial concorriam para a atuação de
um grotesco atuado. p. 68

na passagem da economia de mercado à sociedade de mercado, dá-se uma permeação de todas as


esferas da existência pelo marketing. p. 68

o que efetivamente consome o espectador de tevê é o ato de ver, de espiar, de satisfazer-se


escopicamente. (…) A mirada concentra-se sobre o chocante na televisão do mesmo modo que
sobre o malabarista de feira pública ou sobre o acidente na beira da estrada. p. 68

só que, na tevê, o olhar é economicamente captado com vistas a uma rentabilidade de mercado, de
natureza publicitária. p. 68

aos poucos, todas as imagens programadas dentro desse sistema mercadológico tendem a seguir
apenas a lógica da captação do olhar, por mais grosseira ou rebarbativa que seja. p. 69

o choque do grotesco, pregnante em sua evocação vitalista da corporalidade, excita o olhar do


espectador. p. 69

esse excesso redunda numa banalização sistemática dos conteúdos televisivos, que aponta
fatalmente para o grotesco como uma espécie de solução estética. p. 69
na modernidade tardia que experimentamos, expande-se um imaginário teratológico e
escatológico, como consequência das mutações identitárias e da instabilidade das
representações, constantes fontes de ameças para o humanismo tradicional. p. 69

concreta ou metaforicamente, a bestialização dá a tônica. p. 74

como já sustentava Lima Barreto, 'o Brasil não tem povo, tem público' p. 74

*
REPÚBLICA DAS MILÍCIAS

Considerava a violência que praticava instrumento em defesa de um ideal coletivo. P. 7

Sobretudo depois dos anos 1960, quando ladrões e criminosos passaram a ser vistos como uma
grande ameaça aos moradores das metrópoles, ideias semelhantes de uma justiça retaliativa vinham
seduzindo muita gente nas cidades brasileiras. p. 7

Crenças como essa se popularizaram entre policiais, levando à formação de diferentes arranjos.
Policiais e vigilantes se organizaram em todo o Brasil. No Rio de Janeiro e no Espírito Santo, foi
criada a Scuderie Le Cocq, em homenagem ao detetive Milton Le Cocq, morto em ação em 1964.
Em São Paulo, nos anos 1980, grupos de justiceiros começaram a agir. Em diversas regiões do país,
formaram-se batalhões especiais de polícia que exibiam caveiras como símbolo de sua coragem e
letalidade no combate aos traficantes de drogas que estavam se armando e controlando territórios p.
8

Durante o período democrático, com a propagação desses grupos armados, o Brasil se tornaria o
país com a maior taxa de homicídios no mundo, mesmo sem estar envolvido em guerras, conflitos
civis, étnicos ou religiosos p. 8

Desde a redemocratização, em 1985, alguns grupos militares se ressentiram da perda de


protagonismo e se uniram em torno de ideais que só vieram à tona depois da eleição de Bolsonaro
em 2018. Durante anos, esses movimentos ficaram longe do debate público, com as instituições, a
imprensa e os políticos praticamente alheios, como se a democracia, reconquistada a duras penas
com a Nova República, pudesse se perpetuar por inércia, sem que fossem necessários cuidados e
ajustes. p. 23

A defesa de uma polícia violenta não era novidade nem no Rio nem no Brasil; pelo contrário, tinha
lastro no passado. Mas naquele 2002, apesar da violência sofrida pela cidade, defender os excessos
cometidos por autoridades e criticar de forma ostensiva o estado de direito pareciam atitudes
anacrônicas. A democracia não tinha completado duas décadas e despertava esperanças de que a
Nova República ainda produzisse uma sociedade mais justa e civilizada p. 40

Medidas mais racionais e inteligentes, assim como ações preventivas do Estado, deveriam se
consolidar como as políticas públicas mais apropriadas para as cidades, como se o processo
civilizatório caminhasse sempre para a frente. Figuras populistas e truculentas que defendiam o
extermínio pareciam datadas, fadadas a ser deixadas falando sozinhas. p. 40

A aposta da família Bolsonaro foi outra, e acabou vingando. Em suas trajetórias políticas, Jair e
seus filhos eleitos se dedicaram a defender grupos que compartilhavam com eles esses e outros
ressentimentos e revoltas. A defesa criminosa dos paramilitares e da ação imoral das polícias,
presente em toda a carreira parlamentar do clã Bolsonaro, foi menosprezada por grande parte dos
eleitores, como se não passassem de falas tresloucadas, sem consequência. Mesmo diante de várias
manifestações de apologia ao crime, seus colegas parlamentares evitavam puni-los, permitindo
impropérios cada vez mais radicais. p. 40

Em agosto de 2003, por exemplo, o deputado federal Jair Bolsonaro defendeu abertamente, na
Câmara dos Deputados, o assassinato de suspeitos: “Sr. presidente, sras. e srs. deputados, desde que
a política de direitos humanos chegou ao país a violência só aumentou e passou a ocupar grandes
espaços nos jornais. A marginalidade tem estado cada vez mais à vontade, tendo em vista os
neoadvogados para defendê-la. Quero dizer aos companheiros da Bahia — há pouco ouvi um
parlamentar criticar os grupos de extermínio — que enquanto o Estado não tiver coragem de adotar
a pena de morte, o crime de extermínio, no meu entender, será muito bem-vindo. Se não houver
espaço para ele na Bahia, pode ir para o Rio de Janeiro. Se depender de mim, terão todo o meu
apoio, porque no meu estado só as pessoas inocentes são dizimadas. Na Bahia, pelas informações
que tenho — lógico que são grupos ilegais —, a marginalidade tem decrescido. Meus parabéns!” p.
40

GENESE. Em 1969, o urbanista Lúcio Costa, depois de ajudar a conceber Brasília com o arquiteto
Oscar Niemeyer, criou o Plano Piloto para a ocupação da Baixada de Jacarepaguá. Nos anos 1980,
o mercado percebeu que a região era a bola da vez. Grandes torres de edifícios e shoppings centers,
com espaço para uma réplica da Estátua da Liberdade, em meio a praias, lagoas e vegetação
intocada, aqueceram a procura e a especulação imobiliária. O plano de Lúcio Costa foi desvirtuado
e depois renegado por ele, atropelado pelo culto ao consumo, que viria com tudo nos anos
seguintes, reproduzindo na região uma Miami brasileira de gosto duvidoso, burguesa como São
Paulo, sem o charme aristocrático da zona sul carioca. P. 55

Em 1970, a cidade tinha 4,3 milhões de habitantes. Passou para 5,8 milhões de habitantes em 1990
— 1,5 milhão de pessoas a mais. As regiões mais tradicionais, no centro, norte e sul, chegaram a
perder habitantes. Quase todo o crescimento — 1,3 milhão dos novos habitantes — se concentrou
na zona oeste. Jacarepaguá e Barra da Tijuca, por exemplo, passaram de 241 mil habitantes para
680 mil habitantes. Já os bairros de Bangu, Campo Grande, Santa Cruz e Guaratiba saltaram de 700
mil habitantes para 1,6 milhão de habitantes. O modelo de negócios das milícias nasceu nessas duas
grandes áreas da zona oeste, e ali prosperou. p. 55

As comunidades no entorno da Barra da Tijuca e na Baixada de Jacarepaguá representavam esse


ideal de segurança, associado à moralidade tradicional das pequenas cidades rurais, em
contraposição ao vale-tudo e à malandragem predominantes no mundo urbano. Durante o comando
de Octacílio em Rio das Pedras, a punição dos criminosos era garantida por um violento grupo de
extermínio local. Longe de ser uma particularidade de Rio das Pedras, esse brutal sistema de
autodefesa dos bairros pobres se reproduziu em diversas cidades do Brasil. Nos anos 1970 e 1980,
essas figuras surgiram aos montes com o discurso de que matavam “bandidos” em defesa dos
“trabalhadores”. p. 57

Na Baixada Fluminense, esses grupos foram representados por políticos que viriam a se tornar
lendários, como é o caso de Tenório Cavalcanti, deputado federal pelo Rio nas décadas de 1950 e
1960, morador de Duque de Caxias e conhecido como Rei da Baixada e Homem da Capa Preta, que
não se separava de sua metralhadora, apelidada de Lurdinha. A violência era o instrumento para a
garantia da ordem. Nos anos 1970, esses grupos atuaram junto com a Polícia Militar em diversas
cidades. Nos anos 1980, diante das muitas mortes de autoria desconhecida na Baixada Fluminense,
o jornal Última Hora atribuía esses extermínios ao misterioso Mão Branca, mito criado pelos
próprios matadores para se livrar da responsabilidade pelos crimes. p. 58

Na mesma década, esses grupos se associaram a empresários e comerciantes para a venda de


segurança, e por vezes também a policiais. Ganharam o nome de Polícia Mineira. O sociólogo José
Cláudio de Souza Alves vê nesses grupos a origem das milícias. Em São Paulo, nesse período, os
matadores eram conhecidos como justiceiros ou “pés de pato” e atuaram na capital e na região
metropolitana, chegando a formar quase mil pequenos grupos de extermínio ao longo da década. p.
58

Policiais assumiram o controle da associação de bairro, que já arrecadava mensalidades para mediar
a compra de lotes e terrenos. Eles criaram novos negócios e passaram a influenciar não somente
instituições políticas, mas também corporações policiais. Profissional e organizado, o grupo
assumiu o papel de governo terceirizado de Rio das Pedras, cobrando taxas dos moradores pela
gestão e segurança. Nessa época, final dos anos 1990, o pequeno núcleo que havia surgido com
cerca de quatrocentas pessoas à margem de Rio das Pedras já possuía quase 40 mil habitantes. p. 59

O Rio vivia tempos de otimismo no começo dos anos 1950. No livro Cidade partida, Zuenir
Ventura lembra desse “território edênico” do passado, talvez idealizado, quando “João Gilberto e
Roberto Menescal, ainda dois jovens compositores, andavam todas as noites de Copacabana à
Urca”, tocando violão e conversando sobre o movimento depois batizado de bossa nova. p. 90

“Qualquer senhora respeitável nada tinha a temer dos destituídos, que raramente ousariam assustá-
la”, escreveu o jornalista Paulo Francis em seu livro de memórias p. 90

A bossa nova, cujo marco inaugural é o lançamento do LP Chega de saudade, de João Gilberto, em
1959, simboliza a atmosfera do período. O Rio parecia gestar um Brasil moderno e urbano, como se
a sofisticação dos acordes de jazz e dos compositores eruditos, aliada ao talento dos sambistas do
morro, concretizasse um projeto utópico tipicamente brasileiro. Em algum momento, contudo, a
face otimista dessa mistura cultural desandou, assim como as utopias. As coisas começaram a fugir
ao controle nas cidades, como se os novos centros não estivessem prontos para lidar com o passivo
dos quatro séculos de história de um Brasil rural, patriarcal e escravista. p. 90

Os habitantes dos bairros com pouca infraestrutura urbana e moradias precárias, vindos das zonas
rurais, com baixa educação formal e sem treinamento para os empregos, eram vistos como ameaça à
tranquilidade dos moradores dos bairros tradicionais e dos subúrbios, mais adaptados ao contexto
urbano. Uma tensão entre as classes e culturas, demarcada nos territórios, começou a assombrar o
cotidiano carioca. p. 91

A criminalidade tornou-se um problema típico desse novo Brasil, sobretudo depois dos anos 1960.
As identidades rurais e patriarcais, que tinham formado a cultura tradicional ao longo dos séculos,
precisariam ser reinventadas no país que se urbanizava em alta velocidade, de forma improvisada e
sem planejamento, no Rio, em São Paulo e em outras grandes cidades. p. 91

Uma polícia violenta e disposta a ir à guerra para defender a “parte civilizada”, os mais ricos e
brancos, dessas ideias ameaçadoras, seria o contraponto identitário para a formação dos conflitos,
estabelecendo no imaginário da cidade o desenho da disputa entre mocinhos e bandidos. p. 91

AVESSO DO CIDADÃO DE BEM. Esse mal-estar produziu um caldeirão de emoções explosivas:


medo, ressentimento, raiva, num processo que definiria a atuação violenta da polícia e dos grupos
criminosos nos anos que viriam, retroalimentando um ciclo de tragédias cotidianas, retratadas nos
jornais, nos rádios, nas conversas de bares, nos almoços familiares. O bode expiatório, que criava
essa sensação de vulnerabilidade, era o bandido, palavra que cunhou uma marca forte, capaz de
estigmatizar os jovens negros, moradores das favelas, que se tornariam os maiores alvos dessa
guerra. p. 91
Em 1957, uma reportagem em tom alarmista publicada no jornal Última Hora dá uma ideia do
clima que a cidade começava a viver com os crimes: “Um bandido em cada esquina, uma quadrilha
em cada bairro, quer na zona norte, sul, centro ou mesmo rural, desencadeando avassaladora onda
de assaltos — oferecendo à imprensa e à polícia registros patéticos —, transformaram o Rio numa
cidade sitiada pelos ‘gângsters’ — por dez ‘gângsters’, para sermos mais precisos. Seus retratos
estão expostos no quadro de ‘procurados pela polícia’ e para eles estão voltadas as atenções gerais”.
p. 91

O medo abriria espaço para o surgimento de esquadrões da morte, grupos de extermínio e


justiceiros, que começaram a se articular para eliminar os suspeitos e, assim, trazerem de volta a
tranquilidade perdida. Era esta a aposta principal: a violência libertaria os habitantes da violência. p.
91

policiais assassinos, em vez de serem vistos como criminosos, seriam aceitos pelas instituições e
ganhariam aplausos de parte da população p. 92

O primeiro grupo a se organizar para a prática de extermínio se formou em 1957, quando o general
do Exército Amaury Kruel, chefe de polícia do Distrito Federal, achou necessário responder às
pressões da Associação Comercial e da população, atemorizadas com o crescente aumento do crime
de roubo. p. 92

Depois da criação desse grupo, surgiram nos jornais notícias e fotos de corpos de diversos
suspeitos, apontados como ladrões. A imprensa apelidou esses policiais de “Esquadrão Suicida” e
destacou a coragem e o desprendimento de homens que não temiam a morte no enfrentamento dos
“marginais”. O entusiasmo dos jornalistas cessou no ano seguinte, em fevereiro de 1958, quando
um motorista da TV Tupi apareceu morto no Morro do Jacaré depois de uma incursão de policiais
do TVRAMA. Como voltaria a ocorrer no futuro — e o corporativismo dos jornalistas explica isso
—, a morte de um profissional da imprensa gerou comoção e debates sobre os excessos cometidos
pela polícia p. 92

Um padrão, no entanto, começou a se estabelecer. A indignação diante de mortes indevidas era


breve e incapaz de gerar mudanças estruturais. O medo pesava mais na balança, assim como a
solução violenta proposta pelas polícias p. 92

As atividades do SDE se estenderam para outros departamentos, como a Invernada de Olaria,


delegacia localizada no bairro de Olaria, na zona norte, conhecida pela truculência de seus policiais.
O nome do departamento era uma referência a um matadouro de bois que funcionava na cidade no
século XIX. Também teve o apelido informal de Casa do Diabo. Em 1962, a instabilidade política
favoreceu a defesa de ações populistas e violentas. A Invernada atuava como o braço armado do
governador Carlos Lacerda, sob as ordens do coronel Gustavo Borges. Denúncias dos jornais da
época falavam de extermínios e desovas de corpos pelo grupo no rio Guandu. p. 92

A situação se agravou depois do golpe militar de 1964, quando os controles policiais foram
flexibilizados. No Rio, em agosto daquele ano, houve o assassinato do investigador Milton Le Cocq
de Oliveira numa troca de tiros com Manoel Moreira, criminoso conhecido como Cara de Cavalo.
Le Cocq comandava a Delegacia de Vigilância. A busca dos policiais por vingança desencadeou
práticas violentas na interminável guerra da polícia contra o crime. Os planos de extermínio de
bandidos passaram a ser defendidos publicamente nas páginas dos jornais. A caçada a Cara de
Cavalo, que durou pouco mais de um mês, foi um acontecimento histórico da imprensa policial.
Começou com uma carta-manifesto com o título “10 x 1”, no jornal Última Hora, escrita por
policiais. Fazia referência a um mórbido placar, com o número de criminosos que seriam
assassinados para cada policial alvejado p. 93
A esperada mistura emancipadora entre o rural e o urbano parecia descambar para um confronto
entre ricos e pobres, brancos e negros, asfalto e favela, em que os primeiros tentavam dominar os
segundos. p. 93

As caçadas a bandidos se tornaram mais comuns, principalmente nas metrópoles do Rio de Janeiro
e de São Paulo. Em homenagem a Milton Le Cocq, policiais civis do Rio formaram em 1965 a
Scuderie Le Cocq, grupo de extermínio que tinha como símbolo uma caveira, duas tíbias cruzadas e
as iniciais E.M., de Esquadrão da Morte. Sem disfarçar o cinismo, esses policiais diziam que as
letras significavam Esquadrão Motorizado, grupo onde Le Cocq havia trabalhado. Suspeitos eram
mortos nos bairros pobres e apareciam nos jornais com alarde, como se policiais e jornalistas
quisessem informar, pedagogicamente, com esses extermínios, que “o crime não compensa”. p. 93

Nessa escalada, em maio de 1968, a barbárie oficial subiria mais um degrau. Na madrugada de 6 de
maio, uma pessoa que se identificou como porta-voz do Esquadrão da Morte e se denominou Rosa
Vermelha telefonou para os plantonistas dos jornais cariocas, informando que havia um “presunto”
em uma estrada da Barra da Tijuca. Repórteres foram ao local e encontraram o corpo de um homem
de cerca de vinte anos, sem documentos, com marcas de tortura, dois tiros na nuca e dois nas
nádegas (que na cultura policial são tiros de esculacho). As mãos estavam amarradas para trás e no
pescoço havia um fio de náilon, usado para sufocar a vítima antes da execução. Junto ao cadáver,
estava a caveira com as duas tíbias cruzadas, um cartaz com as iniciais E.M. e a frase: “Eu era
ladrão de carros”. p. 93

O fio de náilon no pescoço se tornaria uma das assinaturas das mortes cometidas pelo grupo. p. 94

em julho de 1969 o estado da Guanabara criou o Grupo de Operações Especiais, depois


transformado na Coordenadoria de Recursos Especiais da Polícia Civil — o mesmo grupo que em
2019 faria sobrevoos de helicóptero disparando contra comunidades pobres. No ano de sua
fundação, doze policiais foram retratados pela imprensa como os Doze Homens de Ouro.
Pertenciam ao grupo, entre outros, Mariel Mariscot, José Guilherme Godinho (Sivuca) — anos
depois eleito com o bordão “Bandido bom é bandido morto” — e Euclides Nascimento Marinho. A
caveira e as tíbias cruzadas também eram símbolo do grupo. A quantidade de escândalos e o
envolvimento de alguns desses homens com o crime organizado — principalmente com o jogo do
bicho — provocaram a desmobilização da equipe original em novembro de 1970. p. 94

A ideia de matar bandidos como uma solução saneadora, contudo, nunca perdeu o apelo e se
espalharia por outros estados brasileiros, com a criação de diversas modalidades de esquadrões da
morte. Em 1968, policiais civis de São Paulo, liderados pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury,
foram ao Rio de Janeiro trocar experiências com colegas, para montarem uma sucursal paulista
desse tipo de grupo de extermínio. p. 94

O porta-voz do esquadrão de São Paulo, autodenominado Lírio Branco, também passou a telefonar
para as redações informando onde estavam os “presuntos”. No Espírito Santo, a Scuderie Le Cocq,
associada aos bicheiros locais, tornou-se uma força política relevante, decisiva para transformar o
pequeno estado capixaba no mais violento do Brasil por décadas p. 95

Os policiais matadores valiam-se da tensão política que mobilizava as Forças Armadas nos anos da
ditadura militar. p. 95

As táticas de violência e tortura policial foram replicadas e aperfeiçoadas nos porões da ditadura,
aproximando das Forças Armadas a banda podre da polícia. A aproximação forneceu aos grupos de
matadores uma justificativa nobre para seus crimes. Eles matariam e torturariam em defesa da
pátria, contra o comunismo. Muitos policiais que agiam em grupos de extermínio ingressaram na
máquina de guerra urbana, atuando no combate a opositores nos dez Departamentos de Operações
de Informação (DOIs) espalhados pelo país, somados aos policiais do Destacamento de Ordem
Política e Social (Dops) e aos militares do Centro de Informações do Exército (CIE), Centro de
Informações de Segurança da Aeronáutica (Cisa) e Centro de Informações da Marinha (Cenimar),
órgãos que formavam a espinha dorsal da repressão. A Polícia Militar, reformulada em 1969,
assumiu papel crescente nos confrontos travados nos territórios pobres das favelas, morros e
periferias. p. 96

foram implementadas técnicas que, já no período democrático, eram usadas pela Polícia Militar
para combater o crime comum, como simulações de tiroteios para justificar homicídios de
criminosos — prática surgida no DOI-Codi paulista p. 96

A proximidade entre os policiais matadores e os porões do Exército trouxe a reboque a influência


dos bicheiros — que já era forte em ambas as instituições — para o coração do poder do Estado. A
mistura de violência policial e militar com a contravenção formou a base da rede clandestina de
violência paramilitar que está na origem dos modelos milicianos. p. 96

O bicho era uma contravenção lucrativa e disseminada na cidade desde a primeira metade do
século XX. Vendia um produto bastante caro à antiga sede da Monarquia e da capital da
República: o sonho do enriquecimento e da ascensão social em um lance de sorte. Respeitados
desde épocas machadianas, os bicheiros do Rio dispunham de credibilidade entre os clientes.
Sempre pagavam as apostas em dia, uma questão de honra que garantia a longevidade dos
negócios. Também tinham bons contatos no poder. Havia dois motivos para essa relação
próxima. Primeiro, os apontadores do bicho estavam espalhados por todos os cantos da
cidade. Nenhuma estrutura empresarial ou de Estado tinha tamanha capilaridade, o que
tornava os apontadores peça fundamental na comunidade de informações. Tanto os policiais
como os funcionários dos serviços de Inteligência se abasteciam com as dicas preciosas desses
informantes. p. 97

Em segundo lugar, por ser uma atividade ilegal, essa relação também rendia uma mesada, para que
os representantes da lei não os incomodassem. p. 97

O general-chefe da Polícia do Rio, por exemplo, Amaury Kruel, criador da equipe que daria origem
ao primeiro grupo de extermínio dentro da corporação, foi retirado do cargo nos anos 1950, acusado
de favorecer o bicho. O próprio Milton Le Cocq, um dos ícones da polícia do Rio, cuja morte
inspiraria a formação dos grupos de extermínio como Scuderie Le Cocq e derivados, foi atingido
numa troca de tiros quando defendia um apontador do jogo do bicho. O contraventor tinha pedido a
proteção de Le Cocq para evitar que o proxeneta Cara de Cavalo seguisse extorquindo sua banca.
Depois de armar o flagrante, Le Cocq foi morto durante a perseguição ao criminoso. p. 97

A proximidade do bicho com a máfia já tinha origem pelo menos desde 1963, quando Antonio
Salamone, um dos chefes da Cosa Nostra siciliana, se refugiou no Brasil depois de cometer um
atentado na Itália que resultou na morte de sete policiais. O bicheiro carioca Castor de Andrade o
acolheu e lhe ofereceu um emprego de fachada na Tecelagem Bangu, de sua propriedade. Ainda por
influência de Castor, Salamone conseguiu, durante os anos 1970, asilo e cidadania brasileira do
então ministro da Justiça, Armando Falcão p. 97

APROXIMAÇÕES ESTÉTICAS. Alguns bicheiros cariocas cativaram o público pela via


cultural e emocional, bancando duas das maiores paixões nacionais: o futebol e o samba.
Castor de Andrade, por exemplo, foi patrono e presidente de honra do Bangu Atlético Clube,
que chegou a ser campeão carioca em 1966. No samba, foi patrono da Mocidade Independente
de Padre Miguel no período em que a agremiação conquistou cinco títulos do Carnaval. Na
Baixada Fluminense, em 1976, o bicheiro Anísio Abraão, de Nilópolis, levou o carnavalesco
Joãosinho Trinta para a Beija-Flor, transformando a escola numa potência popular. Seu
primeiro título no grupo especial, já naquele ano, foi obtido com um samba-enredo que falava
do jogo do bicho, “Sonhar com o rei dá leão”. p. 98

O Carnaval e o dinheiro ilegal também aproximaram os bicheiros dos políticos da Nova República
— sempre de olho nos financiamentos de campanha — e de autoridades da segurança e do
Judiciário, diversas vezes fotografadas nos camarotes dos bicheiros no Carnaval. P. 98

Quando, na segunda metade dos anos 1970, os movimentos guerrilheiros já haviam sido derrotados
e a mão de obra dos porões da ditadura estava à deriva, os bicheiros estenderam a mão a esses
oficiais. Muitos se sentiam abandonados e injustiçados por seus superiores. São diversos os
exemplos de policiais e de militares recrutados pelas hostes da contravenção, muitos deles narrados
no livro Os porões da contravenção, de Aloy Jupiara e Chico Otavio. p. 98

O capitão Guimarães tinha apoio de outro agente histórico da repressão: o coronel Freddie Perdigão
Pereira, carrasco da Casa da Morte e idealizador do atentado a bomba no Riocentro, em 1981, cujo
objetivo era frear a transição para a democracia. A tragédia só não se efetivou porque o artefato
explodiu no colo dos militares encarregados do ato terrorista. Perdigão usava o mesmo pseudônimo
pelo qual era conhecido na Casa da Morte: dr. Roberto. Antes do atentado do Riocentro, esse grupo
de oficiais, parte do Serviço Nacional de Informações (SNI) do governo João Baptista Figueiredo,
estouraria cerca de quarenta bombas em diversas cidades do Brasil e explodiria mais de cem bancas
de jornal na tentativa de frear o processo de Abertura. p. 99

No Rio de Janeiro, o capitão Guimarães continuava aproveitando suas costas quentes para ascender
no jogo do bicho. Em 1983, foi eleito presidente da escola de samba Vila Isabel. O bicheiro
Waldemir Garcia, o Miro, junto com seu filho, Waldemir Paes Garcia, o Maninho, patronos da
escola, preferiram evitar o confronto com o ex-araponga e foram patrocinar o Salgueiro. Apesar
dessas tensões, a visão estratégica do capitão, assim como sua autoridade e conexões, ajudou a
unificar e organizar os negócios, criando uma confederação do crime, aos moldes das máfias
norteamericanas de Chicago e Nova York. Um dos principais movimentos se deu em 1987, com a
criação da Liga das Escolas de Samba do Rio (Liesa), formada pelas dez agremiações do Carnaval
ligadas à contravenção. A Liesa representava, acima de tudo, o pacto entre os grandes empresários
do jogo, que dividiram os territórios e organizaram os ganhos, garantindo um período de trégua e de
expansão para a jogatina. O Clube Barão de Drummond — o nome é uma referência ao dono do
zoológico onde o jogo do bicho foi criado, no século XIX — era o tribunal que zelava pelas leis do
pacto. p. 100

Todas essas articulações entre poderosos do submundo prosperaram mesmo depois da Abertura. O
projeto se reinventou, adequando-se às novas realidades. Se não havia mais por que se preocupar
com comunistas e guerrilheiros, os anos 1980 e 1990 possibilitaram ao submundo do crime se
envolver com a guerra às drogas e com a ameaça representada pelos traficantes nas comunidades
pobres localizadas no entorno da aristocrática zona sul do Rio. A encrenca era imensa, e a figura do
bandido, com todos os significados que a palavra concentra, tornou-se o inimigo comum, o novo
bode expiatório. A guerra mudou de inimigo, mas a rede de policiais formada durante a ditadura
seguiu influente e as conexões com os bicheiros continuaram valiosas para o financiamento dessa
luta. Também foi preciso lançar um conceito que legitimasse os crimes da polícia, cujos excessos
continuavam tolerados. Em vez de lutar pela defesa da pátria, a polícia passou a matar além do
limite em nome do “cidadão de bem”. p. 100

GEN. EULINHO ZAPHI. assumiu ideais herdados dos subterrâneos do regime militar, nos
quais autoridades planejavam conflitos em segredo, compartilhados apenas entre os
integrantes de uma espécie de irmandade que acreditava agir em nome da salvação do Brasil.
Essa cultura de heróis invisíveis, guerreiros de uma batalha inglória, surgiu nos anos 1960 e
1970 nos porões da ditadura, nas batalhas das polícias e das Forças Armadas contra a
guerrilha urbana e os opositores do regime p. 179

ENREDO DE CHANCHADA. Em 1999, quando um novo Inquérito Policial Militar foi aberto
sobre o caso, o coronel Freddie Perdigão — que encerraria sua carreira nas fileiras do jogo do
bicho — foi acusado de ter planejado o atentado do Riocentro e o general Newton Cruz de
prevaricação por não ter impedido o crime. p. 181

Levava com frequência a mulher e as duas filhas com ele para o trabalho e passou algumas noites
de Natal com a família nas dependências do DOI. Essa mistura de médico e monstro tinha lugar em
sua personalidade porque Ustra acreditava ser o responsável por salvar o Brasil do comunismo, uma
guerra além de tiros e canhões (…) Não se tratava somente de vencer no campo de batalha, mas de
ganhar a mente das massas p. 184

Era essa guerra ideológica contra o marxismo que um grupo de militares, entre os quais Ustra,
acreditava estar perdendo durante a abertura política e depois que a democracia foi estabelecida p.
184

Os militares queriam convencer as massas de que representavam a ordem, a tradição e o progresso,


enquanto os esquerdistas da democracia submetiam os brasileiros à ideologia subversiva e
revolucionária criada pelo marxismo. O outro lado era numeroso e se tornaria cada vez mais
influente, assumindo cargos em escolas, universidades, jornais, na cultura e na política. Muitos dos
que formariam essa nova elite tinham vindo da luta contra a ditadura e carregavam as marcas da
tortura. De acordo com o livro Brasil: nunca mais, pelo menos 1800 pessoas foram vítimas de
tortura durante o regime militar. Na Nova República, muitas seriam alçadas à elite política e
cultural brasileira. p. 184

De FHC, em 1995, ao impeachment de Dilma, em 2016, os militares tiveram que aturar 21 anos de
governos de ex-subversivos. Ustra, mesmo depois de aposentado, seguiu nas trincheiras, travando
uma guerra ideológica para salvar as massas da “doutrinação esquerdista”. Sua atuação se deu em
duas frentes. Na sociedade civil, colaborou em 1998 com a criação do grupo Terrorismo Nunca
Mais, contraponto à ONG Tortura Nunca Mais, criada pela Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese
de São Paulo. No grupo conhecido como Ternuma, Ustra era o encarregado de fazer a conexão
entre membros da rede, ou seja, pessoas da comunidade de informações, militares, familiares e
viúvas da ditadura. p. 185

Na segunda frente, o ex-chefe do DOI coordenava e escrevia livros. Seu primeiro projeto recebeu o
nome de Orvil (“livro” escrito ao contrário), que pretendeu ser uma resposta ao Brasil: nunca mais.
O Orvil foi um produto coletivo feito pelos integrantes da seção de informações do Exército,
iniciado em 1985 a pedido do ministro do Exército, Leônidas Pires Gonçalves. Os autores narravam
as ofensivas dos comunistas para tomar o poder no Brasil, desde a criação do Partido Comunista no
país, em 1922, passando pela Intentona, em 1935, até a luta armada pós-1964. A quarta e mais
recente tentativa, dizia o livro, estava em pleno vigor na Nova República. E seria a mais perigosa,
porque não ocorreria pela força, e sim pelo controle das instituições culturais, com os comunistas
assumindo postos em escolas, universidades, jornais, nas burocracias do governo. O livro foi
finalizado em 1987 com quase mil páginas, mas teve sua publicação vetada por Leônidas. Cópias
do original passaram a circular de mão em mão entre a irmandade de militares inconformados, com
toda a fleuma das teorias da conspiração compreendidas apenas por alguns poucos iluminados. p.
185
Depois do Massacre do Carandiru, em que 111 presos foram mortos por policiais em São Paulo,
episódio ocorrido em 1992, Bolsonaro afirmou: “Morreram poucos, a PM tinha que ter matado
mil”. Repetia que os direitos humanos serviam apenas para defender marginais e, em sua obsessão
por imagens escatológicas, para a divulgação de seu site fez uma camiseta com a frase: “Direitos
humanos: esterco da vagabundagem”. p. 187

Os novos inimigos urbanos, em vez de subversivos e comunistas, passaram a ser os negros, os


pobres, os jovens, os moradores de favelas e os suspeitos de vender drogas. Nessa guerra, a morte
do oponente não era problema, mas caminho para a vitória. A guerra continuava. Os inimigos
deveriam ser eliminados pelos verdadeiros patriotas, dispostos a matar em defesa do Brasil, contra o
comunismo e contra os bandidos comuns p. 188

Havia uma afinidade profunda entre as ideias olavistas sobre a revolução gramsciana e a doutrina da
guerra revolucionária contida no livro de Brilhante Ustra A verdade sufocada. Na edição ampliada
de 2007, Ustra incluiu um trecho de O jardim das aflições, de Olavo, na conclusão. Ao longo dos
anos 2000, Olavo foi figura importante também em diálogos constantes com as Forças Armadas.
Fez conferências para oficiais e para o Estado-Maior do Exército, teve textos publicados no site do
grupo Terrorismo Nunca Mais, do qual Ustra foi um dos fundadores. Em 1999, Olavo recebeu a
Medalha do Pacificador, principal condecoração do Exército, entregue pelo general Gleuber Vieira,
comandante no governo de Fernando Henrique Cardoso. p. 195

Em 2001, Olavo de Carvalho recebeu a Medalha do Mérito Santos Dumont, concedida pela
Aeronáutica. Um revisionista entusiasmado e seguidor das ideias de Ustra e de Olavo foi o general
Hamilton Mourão, vice-presidente do Brasil no governo Bolsonaro. p. 195

como duas personalidades distintas podiam conviver em um único indivíduo? Habitavam o mesmo
corpo o médico e o monstro? O matador e o homem cordial? Claro que eu não estava diante de
pessoas com dupla personalidade. O carisma e a violência não eram traços opostos, mas
complementares na formação dessas autoridades que mandavam nos bairros p. 204

Bolsonaro venceu a eleição de 2018 porque parte dos brasileiros foi seduzida pela ideia da
violência redentora. p. 205

file:///C:/Users/LEANDRO/Desktop/
A_republica_das_milicias_by_Bruno_Paes_Manso_Manso_Bruno_Paes-1.pdf

AS VISÕES DE POVO NO JORNAL NOTÍCIAS POPULARES E NO CONCEITO DE


POPULISMO - Larissa Raele CESTARI

apesar de situados em diferentes posições do espectro político e com motivações e intenções


diversas, as visões de povo, tanto da elite liberal paulista representada por Notícias Populares
[fundado por empresário udenista] quanto dos formuladores [uspianos] do conceito de populismo,
carregam aspectos em comum, inclusive na ambiguidade com que as classes populares são tratadas:
ora passivas e manipuladas; ora reconhecidas como cidadãs, aptas a reivindicar seus direitos. p. 1

No período entre 1945 e 1964, a redemocratização e o crescimento da urbanização e da


industrialização colocaram em pauta o tema da incorporação das classes populares na política
brasileira p. 1
Nesse contexto, em outubro de 1963, o empresário e líder udenista Herbert Levy, representante da
elite liberal paulista e um dos líderes da ofensiva contra o governo Goulart, lançou o jornal Notícias
Populares p. 2

Voltado para leitores das classes populares urbanas de São Paulo, o objetivo da criação do jornal era
impedir que esses setores se politizassem à esquerda e dessem seu apoio ao governo Goulart p. 2

jornalista romeno exilado no Brasil, Jean Mellé levou o projeto de criação de um jornal popular
anticomunista para o empresário Herbert Levy, então presidente nacional da União Democrática
Nacional (UDN), principal partido de oposição ao governo Goulart. p. 3

Herbert Levy era dono de um conglomerado econômico que envolvia atividades relacionadas ao
capital financeiro (proprietário do Banco da América), agrícola (café) e comercial (…) Destacava-
se como um dos líderes da oposição liberal ao governo Goulart, formando, na UDN, o grupo de
direita chamado “banda de música”. Como deputado federal, integrava a Ação Democrática
Parlamentar, bloco interpartidário que fazia oposição intransigente a todas as propostas do governo
e das esquerdas, entendidas como comunistas. Também compunha o grupo paulista do Instituto de
Pesquisa e Estudos Sociais (IPES), participando, desde 1963, de reuniões conspiratórias com
políticos e militares para derrubar João Goulart. p. 3

em 19 de abril de 1963, foi criada a Editora Notícias Populares S.A., mas a primeira edição do
jornal só sairia em 15 de outubro daquele ano p. 4

Em entrevista concedida à Gisela Goldenstein, em 30 de agosto de 1974, Luis Fernando Levy [filho
do dono] explicava os motivos para a criação de Notícias Populares: “Na verdade a ideia de fazer
Notícias Populares nasceu quando, neste trabalho de contra-ofensiva, nós verificamos que um dos
instrumentos de ação perigosos [...] era a Ultima Hora [...] que ao lado da alimentação, vamos dizer,
que davam para o povo, que era sexo, crime, sindicatos, jogavam ideias, distorciam fatos, enfim,
dirigiam a opinião dos trabalhadores, através desse órgão de comunicação. Nós, em contrapartida,
não tínhamos acesso ao populismo, não só porque os sistema de comunicação com o povo do
pessoal empresarial é sempre mais complicado e mais difícil, como também porque nós não
tínhamos aquilo que eles queriam ´beber´, que era um jornal popular. Então nasceu a ideia de fazer
um jornal, dando o que normalmente recebiam, sem o algo a mais... o ingrediente político que a
Ultima Hora dava debaixo da orientação dirigida na ocasião” (Goldenstein, 1987, p.79) p. 5

A tarefa de Mellé seria adequar a linguagem e a mensagem de Notícias Populares às características


culturais que ele supunha ser dos seus leitores. A fórmula encontrada por ele, traduzindo a imagem
que tinha do povo, foi mesclar elementos tradicionais da imprensa sensacionalista, que ele
acreditava ser o chamariz para os leitores, com temas políticos contemporâneos. E apostando que o
leitor popular compra jornal por impulso, a primeira orientação de Mellé foi fazer da manchete de
Notícias Populares e da primeira página o carro-chefe do jornal (GOLDENSTEIN, 1987). Assim, a
primeira página do dia 26 de outubro de 1963 trazia como manchete, “São Paulo pára segunda-
feira! Estourou a greve dos táxis”. E como títulos: “Pelé esmurrado”; “Sangue e tragédia: tiros e
facadas matam duas crianças”; “Sofia Loren vive drama de Marilyn”; “Ademar inicia reforma:
degola na pasta da Fazenda”. p. 6

nas editorias de polícia, esporte e cotidiano, recorria-se a técnicas da indústria cultural,


especialmente à linguagem sensacionalista cujo tom informal, misturando irreverência e indignação,
trazia como marca a dramatização do conteúdo e o seu apelo moral p. 7

Nas matérias, as representações do povo e de elementos da cultura popular, como o samba, são
feitas de forma caricaturizada, transformando-os em estereótipos da desordem e da irracionalidade,
chegando à animalização (“Isidora rosnava”). Ao mesmo tempo, os editores pressupunham um
leitor interessado nos elementos espetaculares, apelando para um tom emotivo e para julgamentos
morais. P 9

Notícias Populares, representante de um segmento da elite liberal paulista, procurou explicar as


ações políticas populares por meio da ênfase na ideia de manipulação conjugada à ignorância e
incapacidade do povo. p. 20

A dificuldade dessas duas tradições, a acadêmica e a liberal, em reconhecer o povo como sujeito
político dotado de autonomia foi, a meu ver, decorrente da incompatibilidade entre as suas
expectativas em relação à democracia no período e as especificidades que o processo assumia no
Brasil. Ao negar atributos de cidadania ao povo, sob argumentos de manipulação, demagogia,
controle social, ambas as tradições, por motivos diferentes, desqualificavam a experiência
democrática inaugurada em 1946. p. 20

as ideias inerentes ao conceito de populismo consolidaram-se na linguagem corrente da sociedade,


servindo de base muitas vezes para argumentos antidemocráticos baseados em uma cultura política
que continua retomando a velha frase, proferida diversas vezes pelos liberais udenistas
representados por Notícias Populares: “o povo errou, o povo não sabe votar, temos que consertar os
erros do povo”. p. 23

file:///C:/Users/LEANDRO/Desktop/Dialnet-
AsVisoesDePovoNoJornalNoticiasPopularesENoConceito-6716312.pdf

*
Este mundo é um pandeiro: a chanchada de Getúlio a JK – Sérgio Augusto

nada de dramas atravessando o ritmo. Na passarela cinematográfica, só a alegria comandava o


espetáculo. Atraindo filas e mais filas de espectadores religiosamente fiéis ao seu humor quase
sempre ingênuo, às vezes malicioso e até picante, o filmusical carnavalesco impô-se [nos anos 40 e
50] como um entretenimento de massa de singular expressividade. p. 13

em nenhum outro momento de sua trajetória o cinema brasileiro se relacionou tão intensa e
carinhosamente com o grande público como nos tempos em que Oscarito e Grande Otelo formavam
uma dupla do barulho na Atlântida, apesar de suas notórias precariedades, eram mitificados como
uma versão tropical da Metro. p. 14

recheada com números musicais, apresentados por Emilinha Borba, Luiz Gonzaga, Nelson
Gonçalves, Ciro Monteiro e outras estrelas radiofônicas da época. p. 14

como água e azeite, música (poesia) e ficção (prosa) não se misturavam nas chanchadas.
Geralmente, mal se podia distinguir qual de fato funcionava como suporte ou apêndice: se os
números musicais (autônomos entre si) ou as peripécias que os entremeavam. p. 14

um dos maiores experts no gênero, Carlos Manga fixa quatro situações básicas ou 'estágios' [das
tramas]: 1) mocinho e mocinha se metem em apuros; 2) cômico tenta proteger os dois; 3) vilão leva
vantagem; 4) vilão perde vantagem e é vencido. Ainda segundo Manga, esse esquema sofria apenas
uma alteração notável: quando o mocinho, a princípio sereno e cândido, revela-se, por força das
circunstâncias, um espertalhão. p. 15

o macete medular da chanchada era a troca – de objetos e identidades. Em torno da troca, vale
lembrar, armava-se a intriga de Carnaval de Fogo, não por acaso reconhecida como a chanchada-
modelo. O mocinho, Ricardo (Anselmo Duarte), tomava o lugar do Anjo (José Lewgoy) ao apossar-
se de sua cigarreira, perdida na entrada do Copacabana Palace. p. 15

Trocava-se e roubava-se de tudo nas chanchadas (…) Até posições sociais mudavam de mão. p. 15

sim, as chanchadas pareciam cópias, naturalmente inferiores, de modelos importados de


Hollywood. p. 16

de qualquer modo, as chanchadas transpiravam brasilidade por quase todos os fotogramas – e não
apenas por colocar em relevo aspectos e problemas cotidianos de sua claque, como a carestia, a falta
de água, as deficiências do transporte urbano, a demagogia eleitoreira, a corrupção política, a
indolência burocrática. Até quando pretendiam ser meros pastiches de tolices estrangeiras, algo lhes
traia a inconfundível nacionalidade. Se, como a Metro, possuísse um dístico, o da Atlântida não
seria ars gratia artis (arte pela arte), mas bem que poderia ser ridendo castigat mores (rindo
purificamos os costumes) – que Oscarito e Grande Otelo na certa traduziriam para 'rindo castigamos
os mouros'. p. 17

essa saudável cumplicidade do cinema brasileiro com seu público doméstico se estabeleceu e
consolidou à revelia da mídia impressa, onde as chanchadas eram tratadas aos pontapés. Não
surpreende, pois, que o seu apelido tenha saído das páginas dos jornais e das revistas como um
estigma, só mais tarde tornando-se um rótulo sem timbre pejorativo, que também floresceu em
Portugal, no México, na Argentina, em Cuba e na Itália. p. 17

nem a chanchada foi inventada no Brasil. Até a palavra veio de fora (…) tudo indica que, antes de
se estabelecer aqui, ela tenha feito baldeação na Argentina. Em sua infância etimológica, significou
'porcaria, depois peça teatral sem valor, destinada apenas a produzir gargalhadas', pondo assim em
relevo sua proximidade com 'chancho', sinônimo de porco e sujo nos países ibero-americanos. p. 17

só alguns anos atrás, a chanchada teve a sua assimilação pelo cinema referendada no Novo
dicionário Aurélio: 'peça ou filme sem valor, em que predominam os recursos cediços, as graças
vulgares ou a pornografia'. p. 17

definição do fim dos anos 1950: “comédia popularesca, em geral apressada e desleixada, com
interpolações musicais” p. 18

o Brasil cosmopolita, erguido das cinzas do Estado Novo e fruto de nossa sintonização mais efetiva
com a sociedade de consumo, produziu dois prodigios culturais praticamente simultâneos e mais ou
menos interligados. Um foi a chanchada e o outro, a Rádio Nacional. p. 18

invocar a intervenção da Censura não era prática incomum. Só em fevereiro de 1949, dois críticos
apelaram para a brigada dos catões. Um deles, confortavelmente protegido pelo anonimato, por
temer que os 'abusos' de Pra lá de boa (1949) fossem 'repetidos'. O outro, Moniz Vianna, por
acreditar na hipótese de um controle de qualidade dos filmes coordenados pela Polícia Federal. p.
21

vigiava-se a saúde moral dos espectadores com o mesmo ardor da época em que os cinemas, ainda
malvistos por parte da população, eram obrigados a ressaltar nos seus anúncios que o espetáculo em
execução era 'inteiramente moral, familiar a instrutivo'. p. 22

quando, nos últimos meses de 1949, a Censura [puniu] com uma suspensão a dupla Oscarito/Dercy
Gonçalves, o crítico teatral Osvaldo M. de Oliveira soltou foguetório em sua coluna: “Finalmente
teve início um movimento moralizador em volta da pornografia no teatro de revista […] Agora,
felizmente a censura vem agindo” p. 22

outro crítico, Salvyano Cavalcanti, definiu a chanchada como “um disparate vulgar combinando um
pouco de sexo e frases de duplo sentido”, a seu ver “influência do baixo teatro, da burleta e do
radiologismo mais ruim” p. 24

a dramaturgia brasileira da segunda metade do século XIX. Premido pela concorrência do


vaudeville parisiense e da opera italiana, o teatro brasileiro deu a volta por cima apelando para as
comédias de costumes, que não raro parodiavam os seus êmulos estrangeiros. Como tantos
chanchadeiros, Arthur Azevedo também foi acusado pela imprensa de sua época de precipitar a
decadência do teatro nacional, ao aceder sem resistências às exigências do público. p. 25

TEATRO DE REVISTA E FANTÁSTICO? O espectador médio daquele tempo, como vivia a


repetir Machado de Assis, amava as coisas que o alegravam. E alegrava-se com mais entusiasmo
ainda ao identificar pedaços de seu cotidiano em espetáculos que procuravam conciliar o vaudeville
e a opereta, numa alquimia que, sob a designação de teatro de revista, conheceu um século de
consagração praticamente ininterrupta. p. 26

LINGUAGEM DA CHANCHADA É OUTRA ASTÚCIA DAS ESTRATÉGIAS SENSÍVEIS


ANTIPETISTAS. Encontrara o circo o seu legítimo sucessor urbano. No lugar do palhaço,
pontificava o compère, embalado por marchas, jongos e lundus. Políticos corruptos, agiotas
implacáveis, malandros cativantes, casais românticos e jornalistas matreiros eram os destaques de
sua fauna, frequentemente enriquecida por clones da cena política nacional. p. 26

Embora alguns de seus precursores tenham se iniciado na profissão como assistentes e até mesmo
como diretores de chanchadas, por muito tempo o Cinema Novo manteve com ela uma relação
abertamente edipiana. p. 27

Glauber Rocha, sobre a chanchada: “vulgaridade escrota escrachada subdesenvolvida canalha


democrática nacionalista anárquica e libertatória” p. 27

como e em que proporção determinados grupos sociais estabeleceram uma forte identidade
com a chanchada. p. 29

as estruturas sociais de um país geram suas próprias concepções de mundo por intermédio de seus
agentes culturais (…) e toda produção simbólica está sujeita às mais insuspeitas contaminações. p.
29

sobre Carnaval Atlântida, de 1953: “nenhuma outra fita do gênero brincou tão explicitamente com
as labaredas da carnavalização, provocando a mais expressiva vitória simbólica do popular sobre o
culto, da farsa sobre o épico, do esculacho sobre o solene” p. 122

*
Pornochanchando – vários autores

A pornochanchada nasceu no Rio de Janeiro, mas foi na marginalidade do centro da capital paulista
que encontrou um terreno fértil para a prosperidade ainda no final da década de 1960, expandindo-
se até o começo da década de 1980 quando começou a perder força para a concorrência de materiais
pornográficos (estrangeiros e nacionais) que começaram a circular no Brasil. p. 8

deboche e prazer afloraram como possíveis armas contra a ditadura e, inclusive por isso, o gênero
fílmico perdeu vigor a partir da “abertura” política. p. 8
* Claudio Bertolli * MESMO MOVIMENTO DO ANTI-PT: Analisando os discursos dos generais-
presidentes fica evidente que, inicialmente, tentou-se empregar um tom próximo ao messiânico para
criar um fantasioso consenso popular em defesa do que era oficialmente denominado de revolução.
p. 19

Estes valores eram referendados por Costa e Silva em discursos levados à população por cadeias de
rádio e televisão e tinham a função de se opor à minoria de indivíduos que almejava “destruir a
pátria”, a qual o presidente denunciava como sendo “os comunistas, os terroristas, os subversivos,
os inimigos do povo e da civilização cristã”. p. 21

As primeiras produções de pornochanchada deram-se no ano de 1969 com a estreia de duas


iniciativas cariocas, Adultério à Brasileira, de Pedro Carlos Rovai e Os Paqueras, de Reginaldo
Farias. Fruto de empréstimos da tradição da chanchada nacional e do cinema erótico europeu,
sobretudo o italiano, foi designada primeiramente como comédia erótica, chanchada erótica e, em
seguida, o rótulo que a consagrou: pornochanchada. p. 24

Apesar de desqualificado tanto pelos críticos que apoiavam quanto pelos que se opunham ao regime
ditatorial, este gênero alcançou grande sucesso de público, sendo que três anos depois de sua
estreia, o centro de produção desses filmes foi transferido para a região conhecida como Boca do
Lixo paulistana, a qual tinha como eixo principal a Rua do Triunfo. No final da década de 70, a
Boca era responsável pela produção de cerca de 90% de todas as pornochanchadas, o que também
representava mais de 40% da produção cinematográfica nacional, e isso sem contar com o
patrocínio da Embrafilme p. 24

as pornochanchadas podem ser avaliadas como forma de descompressão de um cotidiano regido


pelo autoritarismo e também como exercício narcisíco p. 24

O malandro e as malandragens engendradas na conquista sexual e as estratégias adotadas por


personagens masculinos e femininos para a obtenção de vantagens de todo tipo exerciam uma
atração peculiar sobre o público. p. 24

Carlo Mossy foi um dos mais destacados personagens na arte de contornar as dificuldades criadas
pelos serviços de censura, tentando reduzir os cortes de cenas e diálogos de suas realizações
cinematográficas. Como diretor de Bonitas e gostosas (1979), um filme composto de cinco
episódios, ele inseriu no final de cada segmento a presença de um personagem que criticava
acaloradamente os valores expostos na tela, defendendo os princípios morais e cívicos esposados
pelo governo militar. p. 25

Em outra pornochanchada, Giselle (1980), na qual Mossy trabalhou como produtor e ator, projetou-
se na tela, tanto no início quanto no final da produção, um texto que advertia tanto o público quanto
os censores sobre os motivos de apresentação de um grande número de cenas eróticas e da
exploração dos (des) caminhos assumidos por uma família da elite nacional: “Assim como na antiga
civilização romana, como em Sodoma e Gomorra, todas as vezes que uma sociedade está em
decadência, a principal característica é a falta de valores morais, a promiscuidade sexual, o
desamor, as frustrações e os desencontros. Os dias que hoje estamos vivendo não diferem muito
daqueles que antecedem a destruição daquelas sociedades. Em “Giselle” retratamos através de uma
célula da nossa sociedade, a família, uma família qualquer, um momento da nossa realidade atual.
Uma realidade de desencontros, desamores, promiscuidades, procuras e frustrações através do sexo,
que por modismo e desinformações, passou a ser algo sem nenhum valor, ao mesmo tempo em que
inconscientemente, é uma tábua de salvação” p. 25
Isto somava-se a enredos simples – se não precários – e uma linguagem de fácil entendimento,
permitindo aos produtores empenhar-se no lançamento de peças fílmicas com títulos chamativos,
como A mulher que disputa (1974), As cangaceiras eróticas (1974), Cada um dá o que tem – nunca
tantas deram tanto em tão pouco tempo (1975), A noite das taras (1980), Quando abunda não falta
(1984), Senta no meu que eu entro na tua (1986), Emoções sexuais de um jegue (1986) e Minha
cabrita, minha tara (1986). p. 26

O pendor pelo escracho também incitava os produtores a copiarem e alterarem o sentido de cenas de
filmes estrangeiros conceituados ou mesmo se apropriarem de trilhas musicais internacionais,
provavelmente sem pagar os devidos direitos de uso. Além disso, foi frequente conferirem títulos a
peças que parodiavam os nomes de filmes estrangeiros de sucesso na época, como A banana
mecânica (1974), Bacalhau (1975), Nos tempos da vaselina (1979), Giselle (1980), Rabo, a missão
(1985) e Gemidos e sussurros (1987) p. 26

A confluência de todos esses recursos viabilizou que várias pornochanchadas atraíssem um público
numericamente bem maior do que comparecia aos cinemas para assistir às produções chanceladas
pela Embrafilme, e mesmo os filmes norte-americanos. A viúva virgem (1972) levou mais de 2,3
milhões de espectadores ao cinema no prazo de oito meses e Ainda agarro esta vizinha (1974), mais
de 3,4 milhões nos primeiros seis meses após seu lançamento (Seligman, 2000, p. 56). p. 26

FIM DOS ANOS 1980. A pornochanchada morria ao mesmo tempo em que nascia o pornô nacional
p. 27

a pornochanchada desdobrou-se na exploração de um conjunto de subtemas que guardavam a


proposta de exaltar a eficiência do confronto bem humorado entre a desordem promovida pelos
personagens “modernos” em contraposição à ordem que era ferreamente exaltada pelos
“tradicionais”. p. 29

o comum era o enredo enfatizar a atuação perturbadora e positiva de malandros urbanos dedicados à
quebra das regras sociais dentro do seu próprio território de sociabilidade, como em A super fêmea,
Ainda agarro esta vizinha, Bonitas e gostosas, Me deixa de quatro e Onda nova, ou então conferir
destaque a tipos que migraram temporariamente de espaços metropolitanos nacionais ou
estrangeiros para pequenas cidades interioranas, circunstância que gerava sustos e apreensões entre
os “nativos”, como aconteceu em A árvore dos sexos e Giselle. O caminho oposto, quando um
caipira deslocava-se para o ambiente metropolitano, também foi explorado, destacando-se neste
sentido O bem dotado – o homem de Itú e Nos tempos da vaselina p. 29

Sacerdotes cristãos e professoras, por exemplo, foram adotados pela pornochanchada como
indivíduos que apregoavam preceitos éticos extemporâneos e que, com frequência, eles próprios
não incorporavam em suas vidas privadas p. 29

No rol dos donos do poder, aqueles que detinham o poder econômico também foram alvos de
críticas, já que adotavam valores tradicionais acima de tudo para ressaltar que corporificavam uma
“classe superior”, portanto diferenciada da “massa”. A tendência nestas fitas era o proprietário de
alguma empresa – grande ou pequena – ser ríspido com seus funcionários e não raramente explorar
sexualmente os trabalhadores e seus familiares, transformando o ambiente de trabalho e mesmo
suas residências em pontos de encontros escusos. p. 30

ganhou dimensões heróicas o tipo malandro que, aliás, predominava na maior parte das encenações
do gênero cinematográfico. O trabalho cotidiano e as relações sociais tradicionais engendradas entre
os patrões e seus empregados eram apresentados na tela como condições indesejadas e que
deveriam ser evitadas a todo custo; ficou implícito na maior parte das tramas analisadas que o
mundo formal do trabalho correspondia a uma espécie de escravidão e somente fora deste contexto
é que a vida e os prazeres por ela ofertados poderiam ser realmente desfrutados. p. 31

Nos enredos das pornochanchadas, as maneiras de fugir aos compromissos do trabalho


multiplicavam-se sem limites. p. 32

a família foi avaliada como polo reprodutor da cultura tradicional e, portanto, como instituição
opressora. p. 32

uma parcela significativa das pornochanchadas chama a atenção pelo fato de as mulheres
mostrarem-se personagens ativas, que sobrepujam o pendor masculino no comando das ações,
inclusive as de ordem sexual p. 34

Claro está que elas igualmente incorporavam vários estigmas culturais, como a mulata boazuda, o
caipira inocente e incapaz de viver numa cidade grande, a loira burra, o brasileiro malandro, o
homossexual obrigatoriamente efeminado e a perspectiva de vida orientada pelas aventuras sexuais
p. 36

** CAIO LAMAS ** Piadas de duplo sentido. Títulos apelativos e sem nexo algum com a trama.
Olhares maliciosos. Personagens perturbados. Sintetizadores abundantes na banda sonora. Câmeras
que vão e voltam em chicote durante uma cena. Atores de performance duvidável e uma produção
de notável precariedade técnica. p. 41

mesmo que à revelia de certos setores que reivindicavam uma atuação mais firme diante das
comédias eróticas e dos demais filmes denominados pornochanchadas, esses eram geralmente
liberados pela Censura para maiores de 18 anos, com poucos cortes em palavrões e cenas de
exposição do corpo feminino. p. 45

o final de qualquer história geralmente era um elemento muito importante a ser considerado pelos
censores. A partir dele determinado filme poderia ser integralmente vetado ou não: se determinado
personagem tivesse uma conduta considerada repreensível, mas ao final fosse penalizado na trama,
o filme poderia sofrer sanções leves; caso contrário, poderia até mesmo deixar de circular nas salas
de exibição p. 53

** LUCIANA ROSAR E WILLIAM CORRÊA ** as pornochanchadas traziam em si toda a carga


da cultura em que se inseriram, moldando as relações sexuais expostas nas películas conforme as
tendências normativas do período e contribuindo, de tal maneira, para a contínua doutrinação do seu
público. Nesse sentido, elas puderam agir como instrumentos normatizadores de posturas misóginas
p. 69

tendo como ponto de partida a construção estética da mulher desinibida, característica das narrativas
cinematográficas da pornochanchada. p. 69

o espectador consome simbolicamente uma sexualidade que não consegue vivenciar, a não ser em
seu imaginário. Além disso, os filmes mostram o sexo sob uma óptica técnica que implica na
valorização do capaz contra o incapaz, com soluções correndo ao nível individual. O que vale aqui é
o trambique, o sonho do casamento bem-sucedido, o prêmio na loteria, etc (MANTEGA, 1979, p
84-85).

** RENAN ROSSINI ** A generalização do olhar masculino sobre as mulheres é incorporada pelas


câmeras p. 84
tanto a chanchada como a pornochanchada são “crônicas de costumes” da sociedade e apresentam
certa “ingenuidade maliciosa” p. 84

“O gênero foi uma espécie de reflexo da sociedade brasileira, representando o seu machismo, suas
piadas, sua atração pelas mulheres ‘boazudas’, o sexo como afirmação. E essas características,
inerente a todas as classes sociais, seriam percebidas e de certa forma admitidas ou confirmadas,
principalmente pelo público mais popular, de menor poder aquisitivo” (GOMES, 2010, p. 10).

se tornou um sinônimo do cinema da classe média que tinha, em si, os defeitos e qualidades do
público que retratava p. 88

A insinuação, carro chefe do gênero, tem papel fundamental na constituição do estilo de filme (…)
apenas através dela que os diretores conseguiam fazer seus filmes serem exibidos nos cinemas,
escapando da censura. p. 95

assim como a censura do governo, a censura do inconsciente também é passível de falha, revelando
o aparecimento de sintomas p. 98

não seria a pornochanchada um sintoma da sociedade brasileira? p. 98

a maneira que uma sociedade altamente reprimida encontrou de realizar seus desejos e obter prazer
com suas fantasias proibidas por uma moral opressora. p. 98

** Alvaro Zeini, Erik Ceschini e Panighel Benedicto ** Dentre os principais estereótipos utilizados
nas pornochanchadas tem-se a personagem masculina tida como “o garanhão”, o conquistador de
mulheres malandro, macunaímico, não necessariamente dotado de beleza física; as mulheres, em
contrapartida, eram constantemente apresentadas como objetos, erotizadas para serem
contempladas, conquistadas e servirem aos prazeres desse conquistador-protagonista. p. 107

característica importante das pornochanchadas: para atingir seus objetivos risíveis ou de


deboche, elas utilizam-se da transgressão, além das personagens inconvenientes que não
respeitam regras nem convenções sociais p. 109

ex.: O ponto de vista masculino se torna ainda mais explícito na cena em que o incontrolável
Rodolfo – já em posse da cueca que o torna sexualmente insaciável – ataca uma reunião de
feministas e acaba por fazer sucumbir até mesmo a líder desse encontro. É uma cena singular no
sentido de que uma ideologia (a feminista) é posta à prova por algo que é mostrado pelo filme como
um comportamento natural, um instinto – o sexo. p. 109

Embora exista em outros gêneros, na comédia o estereótipo determina, com maior recorrência,
marcas físicas dos personagens, tornando-os caricaturas reincidentes. p. 117

O uso de estereótipos, reincidente em toda a história do cinema, mostrou-se uma receita rentável
para a construção e divulgação das pornochanchadas,a qual se constituía por um conteúdo de fácil
elaboração que visava popularidade. p. 117

** Muriel Amaral ** No campo social, as perversões não são interpretadas apenas pelo viés da
sexualidade, e trazem à tona alguns referentes como a não aceitação “da proibição imposta pela lei e
pelos seus efeitos (...) justificando todo um programa, toda uma maneira de existir como garantia de
usufruir de um gozo que no final pode se reduzir simplesmente ao gozo de transgredir”
(Szpacenkopf, 2002, pp.36-37). p. 123
, a pornochanchada tem o mérito de trazer à tona os tabus para as telas do cinema, nem sempre os
problematizando, mas, ao menos, expondo-os aos espectadores. p. 131

O recalque, aquilo que foi posto no limbo da memória e da lembrança emerge, surge como sintoma
do trauma realizado, como uma manifestação que atormenta e incomoda o universo consciente e
civilizado. As repressões e as manifestações das sexualidades e dos desejos nas produções culturais
das décadas de 1960 e 1970 no Brasil se tornam um exemplo visível desse recalque em que, mesmo
havendo a possibilidade de veiculação e divulgação de assuntos sobre sexualidades e tabus, havia
censuras e restrições. p. 132

A pornochanchada seria uma simbologia do retorno desse recalque que não foi simbolizado, mas
sim, somatizado por um movimento de castração, imposto e outorgado do desejo como sendo algo
abjeto e indiscutível, uma vez que, nem todas as representações das sexualidades eram pertinentes
nas produções culturais no período da ditadura militar pelo cinema. p. 132

** Marcelo Bulhões ** PARÓDIA DE VANDRÉ. não é rara na pornochanchada como discurso de


inversão e perversão de sentido de matrizes cinematográficas dominantes, fundamentalmente, a do
cinema de mainstream hollywoodiano. p. 154

O movimento da paródia é, pois, um afirmar para negar, um ingerir para fagocitar. p. 154

na paródia deve haver necessariamente subversão ou inversão de significado do texto parodiado. p.


154

** Célio Losnak **

PAREI NA 169

file:///C:/Users/LEANDRO/Desktop/pornochanchando-online.pdf

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