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Análise Psicológica (1989), 4 (Vil): 573-582

A Observação Psicológica
na Criança de Idade Escolar
- Indicações do Exame Psicológico
em Saúde Mental Infantil

MARIA DA GRAÇA BARAHONA (*)

INTRODUÇÃO com efeito, contribuir para a clarificação e


melhoria da colaboração do psicólogo com os
A psicóloga signatária deste texto trabalha restantes profissionais. Nesse sentido, a
numa equipe multi-disciplinar de consulta solicitação criteriosa do exame psicológico é
certamente um objectivo importante a atingir
externa do Centro de Saúde Mental Infantil e
Juvenil de Lisboa, colaborando com os diversos neste domínio.
elementos d a equipe n o atendimento, A colaboração entre psicólogos e outros
técnicos implica o dar a conhecer a sua prática
estabelecimento de diagnóstico e administração
de tratamentos, a crianças em idade escolar. e os seus instrumentos. Com efeito, mostrar o
nosso trabalho e o que dele se pode retirar para
Ao longo dos já muitos anos de experiência
a persecução dos objectivos da equipe é,
e de realização de exames psicológicos, foi
pensamos, tornar possível um diálogo com os
possível sistematizar e elaborar teórica e
outros técnicos, que se espera ser frutuoso e não
metodologicamente essa prática, partes I, I1 e
unívoco.
I11 deste trabalho.
Ao realizar as avaliações anuais de trabalho,
tal como é hábito na equipe, analisaram-se I. ALGUMAS CARATER~STICAS
algumas centenas de dossiers clínicos que DO MÉTODO CL~NICO
incluiam exames psicológicos, solicitados como
prova complementar de diagnóstico e orientação O objecto da psicologia clínica é o indivíduo
terapêutica. Desse modo foram recolhidos e a sua subjectividade; é o estudo sistemático
inúmeros dados respeitantes ao pedido de e, tão completo quanto possível, de casos
exame; procurou-se dar resposta a interrogações individuais. Para efectivar esses estudos, a
tais como: ((Quando se deveria solicitar o exame psicologia clínica elaborou diferentes
e porquê?», ((Porque nos era pedido o exame?». metodologias.
Organizaram-se e ordenaram-se os dados - Por limitação dos objectivos desta exposição
as respostas obtidas - segundo certos critérios - a observação psicológica da criança em idade
que são expostos no capítulo IV. Pretendeu-se, escolar - vou restringir-me aos métodos
relacionados com a prática de uma consulta
(*) Psicóloga. Equipe 3, Centro de Saúde Mental externa dispensaria1 de um Centro de Saúde
Infantil e Juvenil de Lisboa. Mental. Excluo, portanto, outro tipo de

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observações tais como: as longitudinais, as interrogativa de estar alerta e aberto para todo
observações puras ou naturalistas, as e qualquer facto que possa ser significativo.
experimentais, as laboratoriais, etc. Tâmbém não Na observação clínica não há fenómenos
abordarei as técnicas de observação indirecta ou inesperados, a iludir ou a eliminar, mas tão só
seja, a recolha da história pessoal ou anamnese fenómenos cujo valor deve ser controlado e
e a entrevista clínica com os pais (referentes ao explicado, se necessário, recorrendo-se a novas
pedido e a motivação para a consulta). Deste observações.
modo, vou partir do princípio que já se obteve É neste sentido que se pode afirmar que em
um vasto leque de informações sobre a criança psicologia clínica não há erros, não há boas ou
e sobre o problema que esta apresenta. más respostas, a não ser na cotação de provas
O ponto de vista que seguirei é o de que a standardizadas; mesmo nessas provas, para além
observação é um procedimento exploratório, do erro ou dos insucessos constatados, realça-
heurístico e sequencial, exercido num contexto -se a importância de analisá-los e dar-lhes um
clínico e relacional. significado ou descobrir o seu valor.
Referirei três atitudes: O olhar do observador aprendeu a «olhar»
1 a atitude - A natureza da observação e as e a seleccionar os dados pela experiência clínica
técnicas utilizadas são função do pedido ou que adquiriu e pela cultura teórica que detém.
problema posto pelo caso, ou das dúvidas e Os sinais ou fenómenos recolhidos na
incertezas relativas ao que já se sabe (pela observação são portanto seleccionados em
anamnese, pela entrevista com os pais). função da sua significação suposta, ou seja, a
Pretende-se uma informação complementar em observação clínica é sempre interpretativa em
relação ao que já se obteve ou então, uma função das hipóteses sucessivas que são
confirmação do que já se sabe. elaboradas e dos sistemas de referência que o
Recorre-se, portanto, a várias técnicas de psicólogo detém.
observação ou estratégias de actuação que são Na actividade clínica, o referencial é sempre
as vias, os instrumentos, ou os desvios que duplo. Existe um referencial teórico formal e um
permitem prosseguir a interacção, enriquecendo- referencial da chamada psicologia comum, feito
-a,de modo a que os objectivos de compreender de estereotipos, na base dos quah se estabelecem
a situação e de dar uma resposta ao pedido as interacções quotidianas. O observador
sejam atingidos. também não perde nunca um outro referencial
Quer se trate de uma primeira observação, metodológico: por um lado, uma base
quer de um pedido de exame psicológico, as experimental, pelo qual O S dados são
diferentes técnicas são utilizadas considerados objectivos (mas não em absoluto)
progressivamente no tempo, ou seja, o psicólogo e rigorosos (mas não rígidos); por outro lado,
vai testando sucessivas hipóteses. Uma vez valoriza o espírito clínico pelo qual esses
estabelecido o que se sabe, o objectivo é aquilo mesmos dados são relativizados e ponderados
que se pretende saber a mais. na sua referência a individualidade e A
As questões a que se procura dar resposta subjectividade.
geram hipóteses e respectivos ajustamentos de O olhar do observador não deve ser, no
métodos, ou escolha de técnicas necessárias para entanto, demasiado selectivo ou seja, não deve
as confirmar ou infirmar. Vai-se testar qualquer ser ritualizado, rotineiro, pretensamente
«coisa» de concreto, e não uma criança objectivo, ao observar exclusivamente os
abstractamente. O olhar do observador é, assim, fenómenos que sejam coerentes com as
um olhar dirigido pelas hipóteses iniciais. hipóteses iniciais colocadas, afastando os factos
Compete aliás ao psicólogo, avaliar se as discordantes. O técnico deve, ao contrário,
hipóteses formuladas são do seu domínio ou tentar obter o máximo de informação possível,
competência prática e teórica. alternando com maleabilidade as hipóteses
2" atitude - A observação clínica, além de iniciais e precavendo-se contra outras, que
testar hipóteses que dirigem a observação de possam estar só latentes ou implicitamente
modo sistemático, implica ainda uma atitude formuladas e que actuariam como preconceitos.

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3" atitude - Pode-se considerar, como já se presente ou análise sincrónica e análise do
afirmou, que se o psicólogo dirige a observação passado ou diacrónica) e de relacionar os
deve também deixar-se dirigir por ela, ou seja, diferentes dados quantitativos e qualitativos
pelo observado. obtidos.
Se observar clinicamente é estar atento e Esta integração e relacionação realiza-se tal
explorar os fenómenos significativos, é também como anteriormente, por via de uma referência
ser sensível ao afeed-back))e a equação pessoal- operacional e de uma referência teórica. De
-relaciona1 que se estabelece com a criança. facto, o psicólogo nunca deve perder de vista
O psicólogo é um participante na interacção; a ligação com o problema posto pela criança.
não é um mero aparelho registador objectivo e Nesse sentido o relatório final é uma procura
passivo. A criança não é só um mero reagente de solução; deve, portanto, ser sempre um
ti situação de observação, é também um agente projecto de acção visando um certo número de
sobre o observador, obrigando-o a uma decisões relativas ao futuro do cliente, tentando
adaptação constante. A relação estabelecida na dar uma resposta ao pedido inicial.
observação clínica, que é também de A interpretação refere-se a teoria ou teorias
complementaridade, não permite pois ao utilizadas para a compreensão e explicação do
psicólogo a aplicação rígida ou como receita das problema posto. O psicólogo deve utilizar estas
técnicas que dispõe. A situação de observação referências de modo crítico, estando
não é neutra nem estática. A atitude da criança particularmente atento a sua utilização errónea,
impõe, muitas vezes, a escolha do material e o assim como a posições de fanatismo de escolas.
modo como se desenrola a observação. A função do psicólogo ao elaborar a síntese
Convém ainda lembrar que, mesmo e do caso é estabelecer um conjunto de descrições
sobretudo quando se aplicam testes, a regra e de hipóteses, tanto sobre a personalidade do
fundamental é obter o máximo da criança. cliente, como sobre as situações a que este está
Quando se realiza uma abordagem psicométrica, confrontado. Essas descrições excluem a mera
desde que as condições de validação das provas inventariação ou justaposição de dados
se mantenham, a atitude do observador deve ser parcelares, mesmo que numéricos.
empática, participativa, e estimuladora. A O psicólogo deve, pelo contrário tentar incidir
tradicional atitude estrita e rigidamente a sua análise sobre a estrutura dinâmica do
psicométrica cede a uma atitude mista, indivíduo, indivíduo único, considerado na sua
predominantemente clínica. totalidade concreta. E, como se trata de
observação de crianças, a perspectiva de
prognóstico, que é também de futuro e de
As três atitudes referidas poder-se-ão mudança, torna-se inseparável do diagnóstico
sintetizar na seguinte citação de Piaget: «É tão actual.
difícil não falar quando interrogamos uma
criança. É tão difícil evitar sobretudo ao mesmo
tempo a sistematização devida a s ideias pré-
-concebidas e a incoerência devida a ausência 11. TRÊS TIPOS DE OBSERVAÇÃO DIRECTA
de qualquer hipótese directriz)).
Uma vez abordadas algumas considerações
sobre o método clínico, proponho-vos uma
Já vimos que a observação é já por si classificação de três tipos de observação,
interpretativa; no entanto, uma vez esta baseada numa graduação do seu carácter mais
realizada, o psicólogo vai reelaborar e
ou menos sistemático:
reinterpretar os dados recolhidos, no sentido de
efectuar uma síntese final. É uma fase do -Entrevista livre, não armada - sem
t r a b a l h o em q u e se estabelece um introdução de material, baseada
psicodiagnóstico o u avaliação global exclusivamente na interacção verbal e
(«assessment»). conduzida de modo mais ou menos directivo.
A tarefa mais importante é a de integrar os Neste tipo de observação convém lembrar
vários momentos da observação (análise do que nos referimos A criança em idade escolar,

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já capaz de falar de si, das dificuldades que (os testes) correspondem a aquisições importan-
apresenta, dos projectos possíveis para a tes desta etapa do desenvolvimento. As provas
resolução do seu problema. psicométricas e as observações armadas,inserem-
A análise que esta observação permite não -se portanto num contexto da vida «normal» da
é específica do psicólogo; habitualmente criança que é, por um lado, o da entrada para
recolhem-se dados sobre o tipo de contacto, a escola com a obrigatoriedade de realizar
o humor, a mímica, os projectos, sentido da trabalho e de adquirir conhecimentos; por
realidade, sonhos, fantasias,... É um tipo de outro, corresponde a etapa de acesso a jogos
observação utilizada para estabelecer um socializados, implicando o cumprimento de
primeiro contacto com a criança, para regras, a semelhança das instruções dos testes.
permitir uma relação. A observação pode assim ser proposta num
- Observação armada, sistemática - com duplo sentido - de trabalho, se bem que não
introdução de material e de tarefas escolar - e de atitude Iúdica e socializada por
consideradas como mediadoras ou como via de regras. A atitude lúdica acresce-se o
suportes da interacção. prazer de funcionar de modo adequado,
É habitualmente uma observação dirigida adaptado ao solicitado e o mais rico possível.
a certos aspectos específicos seleccionados em De facto, se para o psicólogo os testes são
momentos anteriores do processo clínico sempre os mesmos, a criança, essa, é sempre
(anamnese, entrevista livre). única e diferente; a tarefa de a conhecer é, deste
Consiste habitualmente no exame neuro- modo, sempre apaixonante.
-motor, da linguagem (introdução de Para a criança mostrar conhecimentos, atingir
imagens, livros,...) e actividades gráficas e objectivos, criticar ou melhorar respostas, actuar
lúdicas (material expressivo, brinquedos, sem penalizações face a um adulto disponível
jogos,...) e ainda da observação pedagógica e empático - eis uma situação que é certamente
(execução de certas tarefas escolares básicas, diferente, estimulante e terapêutica em si
observação de cadernos e de provas,...). mesma.
- Observação armada com introdução de
tarefas estandardizadas - implicando 111. O QUE SE OBSERVA
condições de validade, de fidelidade e de NOS TRÊS TIPOS DE OBSERVAÇÃO
sensibilidade, segundo os critérios habituais
da metodologia psicométrica. É, portanto, o O psicólogo face a uma criança e ao
momento da introdução dos testes - do problema de Saúde Mental que a família, a
exame psicológico propriamente dito. É o escola ou técnicos lhe colocam, desenvolve um
momento em que o psicólogo encontra a sua conjunto de estratégias de observação
especgicidade e identidade. progressivas, visando estabelecer um diagnóstico
A propósito do método dos testes, global, um prognóstico e um projecto
lembraria somente que é um método terapêutico que dê uma resposta efectiva ao
experimental na etapa inicial de construção pedido inicial.
laboriosa das provas e um método clínico, Realçarei seguidamente, alguns dados de
quer na aplicação das provas, quer na observação concreta que podem ser obtidos pela
interpretação dos resultados. Um teste é, observação psicológica.
portanto, simultaneamente um instrumento
de medida científica e um instrumento de 111. 1. - Na observação livre, não armada
observação clínica - mediador da relação. podem-se observar os comportamentos e
No que se refere a criança e especialmente outros aspectos qualitativos.
a criança em idade escolar, a observação com Poder-se-a analisar a capacidade de
aplicação de testes é também um momento separação da mãe e as atitudes para com
de encontro previligiado. ela ao longo da observação (natural,
Com efeito, realizar um trabalho, executar próxima, distante, isolada, calada, de
uma tarefa, seguir regras de um «jogo a sério» oposição, passiva,...).

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Do mesmo modo podem-se descrever a A observação formal de cadernos, livros
atitude e contacto com o observador, quer e trabalhos realizados na escola, fornece
seja no início quer no decurso da indicações sobre a limpeza, conservação e
observação, registando as alterações ordenação do material, os riscos, rabiscos,
significativas. traços repetidamente apagados, cantos das
Devem-se anotar também os aspectos folhas e folhas rasgadas, dão-nos sinais
físicos da criança: sobre o modo de investir a aprendizagem
- Desenvolvimento estato-ponderal; e o modo de funcionamento na escola e
em grupo.
-Vitalidade e sinais de estado de saúde
O conteúdo dos cadernos dão-nos
geral,
indicações sobre a psicomotricidade e a
- Harmonias ou desarmonias; traços ou qualidade da ortografia e caligrafia (segue
características específicas; a linha, dimensão das letras, respeito do
-Apresentação no vestir, limpeza. quadriculado, regressões ou progressões no
Descrição do humor - se é estável, lábil, decurso do ano). Apercebemo-nos
neutro, alegre, eufórico, triste,... também da qualidade da linguagem escrita
através dos textos, composições,...
Descrição da mímica - se é móvel e
Tipo de ensino ministmdo - se é mais ou
expressiva ou, pelo contrário é estática;
menos tradicional, se se realizam exem’cios
natural ou exagerada; adequada ou não ao
propedêuticos no primeiro ano, se há
estado de humor; se apresenta tiques,
momices, esgares,... mecanização ou, pelo contrário,
actividades livres e imaginativas.
Atitudes da criança face aos seus
A relação e atitude dos professores pode
problemas - evitamento ou outras também ser observada, pelo grau de
defesas, grau de ansiedade, capacidade de dificuldade do trabalho proposto, pelo
exprimir interesses, preferências, projectos
grau de exigência ou tolerância nas
(riqueza, variedade, adequação ao sexo,
correcções e pelos reforços
idade e meio sócio-cultural).
predominantemente negativos ou positivos
Sentido da realidade, ou modo como a tais como: críticas, traços vermelhos,... ou,
criança se situa no espaço, no tempo e pelo contrário, felicitações,...
também, como domina referências Finalmente a constatação do nível de
concretas como nome, idade, data de aprendizagem conseguido e a detecção de
nascimento, morada, composição da eventuais lacunas pedagógicas, podem
família, trabalho dos pais, data do dia,... conduzir a uma melhor compreensão da
Descrição da linguagem, analisando a criança e a indicações práticas em diálogo
compreensão e verbalização - se é com a escola.
espontânea, lacónica, mútica; se utiliza
vocabulário rico, pobre, rebuscado; se a 111. 3 . - Na observação armada com
frase é bem construída, se há perturbações introdução de testes - o que se observa e
da articulação,... e como se observa, suscita neste caso,
controvérsias várias. Com efeito,
111. 2. - Na observação armada com generalizaram-se as críticas de que têm sido
introdução de material, pode-se referir como alvo os testes: crítica de fixismo, de rigidez,
exemplo os dados obtidos na observação de excluirem a relação,... Constata-se a
pedagógica e na observação de existência de uma crise - de método, dos
psicomotricidade (coordenação, práxias, testes e da sua aplicação, mas também, uma
estabilidade, lateraiização,...). No que se crise do diagnóstico.
refere h primeira trata-se de uma apreciação Tal situação suscitou, no entanto, um
não aprofundada, diferente da efectuada por movimento positivo de melhor conhecimento
professores e na qual realçamos: das provas e dos seus postulados;

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aprofundou-se a discussão sobre o valor, da árvore (Koch), da família (Corman),...
limites, significado e perigos dos A interpretação das motivações profundas
instrumentos utilizados; avaliou-se a do desenho e/ou das histórias relatadas na
mitificação de alguns conceitos que foram base da sua execução, pode ser utilizada
clarificados e relativizados (noção de QI, a semelhança do método de associação
entre outros). Desse modo, pensa-se que a livre, substituindo as associações verbais.
observação psicológica com a introdução das
Pode-se analisar a integração do esquema
provas estandardizadas que são os testes,
corporal através do desenho da figura
pode e deve realizar uma síntese global dos
humana; o mesmo desenho permite avaliar
diferentes modos e tipos de observação já
referidos, que integre e unifique a um coeficiente intelectual (prova de
Goodnough).
multiplicidade de dados obtidos.
Pela sua formação globalizante, o A cópia de figuras geométricas pode ser
psicólogo clínico parece-nos particularmente analisada clinicamente ou do ponto de
apto a elaborar tal síntese integrativa. vista psicométrico, em provas
Proponho seguidamente exemplificar e instrumentais referentes a organizacão
refutar, mediante a exploração e análise da grafo-motora e espacial (provas de Baby-
actividade gráfica, as críticas e especialmente -Bender, Bender, Figura Complexa de Rey,
as acusações de rigidez e fixismo que são Graham-Kendall,...).
atribuídas, por vezes, ao exame psicológico. A cópia por modelo de traços e figuras
Julga-se, pelo contrário, que a maleabilidade geométricas (traço vertical, horizontal,
e o «vai-vem» constante da atitude e da círculo, quadrado, triângulo e losango)
análise do psicólogo, lhe permite utilizar de constituem «itens» característicos de
modo flexível e unificador, os três tipos de sucessivas idades em escalas de
observação e os vários referenciais teóricos de desenvolvimento (Brunet-Lézine, Terman,
que tenho vindo a falar, consoante o N. E. M. I.); foram ainda objecto de
problema a que se pretende responder e as estudos genéticos permitindo observar a
hipóteses a confirmar ou infirmar. que nível-tipo a criança aborda a sua
O discurso do psicólogo elaborado a estes reprodução, para além do sucesso ou
três níveis de observação pertence ao seu insucesso da execução.
campo de actuação e competência; o terceiro A análise do comportamento da criança
nível é-lhe especrpco e exclusivo. Assim, na e da sua adaptação 6 tarefa gráfica pode
actividade gráfica: fornecer indícios significativos do seu
funcionamento psíquico; por exemplo:
O Pode-se analisar a qualidade formal do
grafismo espontâneo quanto ao traço e às -recusa a tarefa;
formas - se é rico, estruturado,detalhado, -acede de modo passivo ou entusiasta,
pobre, colorido, obsessionalizado ou bloqueia-se face a figura humana, ini-
desorganizado; se há elementos apenas bição inicial e adaptação longa e difíca
justapostos e incoerentes ou um tema - adapta-se e segue a instrução ou perde
global integrado,... o objectivo desorganizando-se ou
O Pode-se analisar a simbologia do espaço ainda, executa ludicamente «a seu belo
ou o modo como é utilizada a superfície prazer));
-
da folha se é toda preenchida ou só em -dispersa a atenção e não «ouve» a
parte; em que local da folha; se existe ou instrução;
não um preenchimento compulsivo de -execução insegura, procurando o apoio
vazios,... ou aprovação do observador;
O Pode-se também analisar o conteúdo for- -capacidade de crítica e melhoria ou,
mal e cromático como valor expressivo ou pelo contrário, aceitação dos resultados
como valor de projecção da personali- medíocres, acrítica e puerilmente
dade: provas projectivas do tipo desenho valorizados;

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- fatigabilidade e deterioração da execu- exames médicos, considerados não
ção ou, contrariamente, capacidade em necessários.
manter um nível regular de realização. A iatmgênizaçãopode assim ser evitada,
mediante a utilização de uma metodologia
mais «neutra», não psiquiatrizante, sem a
IV. INDICAÇ6ES DE EXAME PSICOLÓGICO utilização mítica e despendiosa de
aparelhos complicados, mas com as
O psicólogo ao avaliar uma situação por si vantagens da objectivação - dados
próprio, selecciona e utiliza as diferentes formas numéricos, folhas de cotação, trabalhos
de observação já referidas, introduzindo, se realizados,...
necessário, as provas - testes que ihe parecem Motivar para acções terapêuticas certos
mais úteis e operacionais. No entanto, é pais, sem queixas, que são enviados por
frequentemente solicitado para a realização de outros serviços ou técnicos, com os quais
exames psicológicos, a título de podem estar em desacordo quanto ao
complementariedade, em relação a outras diagnóstico e tratamento.
metodologias utilizadas numa equipe
multidisciplinar de Saúde Mental Infantil. Neste caso, a introdução de ((terceiro
elemento))que é a tecnologia da psicologia
Nestes casos, o exame é realizado como técnica
clínica, permite uma desconflituaiização e
auxiliar especializada.
O pedido de exame psicológico deve ser então
uma implicação positiva dos pais no
fundamentado e introduzido criteriosamente, tal
processo.
como se verifica para qualquer outro exame e, Tranquilização e acção terapêutica junto
nomeadamente, pelo facto do número de de crianças inteligentes, com graves
psicólogos existentes nas equipes ser insucessos escolares ou pesadas inibições
extremamente diminuto em relação, por exemplo ou/e com pais hiper-exigentes-
ao número de pedopsiquiatras. A sua -controladores, mediante:
disponibilidade para a realização destes exames - a valorização de uma relação positiva,
deve ser consequentemente muito bem avaliada facilitada pelo uso de material
e ponderada em relação a outras tarefas próprias mediador (objecto contra-fóbico de
do psicólogo clínico que não é, lembre-se, um menor carga persecutória?);
mero testólogo - aplicador de provas
- o prazer, objectiva e até numericamente
complementares, por mais que estas sejam,
demonstrável, de funcionar adequada-
como devem sê-10, valorizadas.
mente ao longo do exame;
Como já referimos, da análise crítica das
razões do pedido de centenas de exames - o reforço de uuto-estima, face aos resul-
realizados, estabeleceram-se alguns critérios de tados obtidos, uma vez que estes po-
indicação efectiva de pedido de exame. Desse dem ser sempre considerados positivos.
modo explicitaremos:
IV. 2. - Pedidos directos referentes a
IV. 1. - Pedidos indirectos, ou seja, com aspectos precisos e parcelares do
objectivos mediatos sobre os pais: funcionamento mental da criança:
Thanquilizar os pais e desdramatizar a Pedidos para precisar o nível intelectual
situação, face ao receio excessivo de - nas situações limites, tanto do ponto de
deficiência ou de doença mental, actual vista psico-patológico (pré-psicoses,
ou futura, no filho. desarmonias evolutivas) como do
Avaliar a situação clínica de crianças cujo, rendimento cognitivo; com efeito, nestes
pais dramatizam as queixas, especialmente casos, é necessário uma avaliação pelos
as de instabilidade, de comportamento, de testes, mais normativa e quantificável,
mau rendimento escolar, tendo por isso do que a obtida pela observação clínica;
tendência a exigir múltiplas acções e - em situações de insucesso escolar grave

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(mais de duas repetências) para inrirmar e as não relacionadas com a
ou confirmar a hipótese de debilidade escolaridade, são bem sucedidas;
e para estabelecer um diagnóstico e - Diagnóstico diferencial entre pré-
prognóstico que oriente a escolha de -psicose-situaçõesdesarmónicas e certas
indicações reeducativas, pedagógicas ou organizações neuróticas como as
terapêuticas; histerias graves.
-em situações em que o diagnóstico No primeiro caso, predomina a
preciso de estado deficitário é irregularidade de funcionamento e a
necessário para justificar oficialmente desorganização; no segundo, observa-
subsidias e ajudas sociais. -se em geral um déficit mais ou menos
Pedidos para avaliação das capacidades ligeiro e global, comportamentos de
instrumentais ou funções específicas tais excitação e exuberância, sem
como: praxias, gnosias, lateralização, desorganização franca.
estruturação espacial, temporal, rítmica e -Diagnóstico diferencial entre psicose,
grafo-motora. debilidade e instabilidade.
Habitualmente, a criança não se
Apesar de serem aspectos raramente avaliados adapta a observação; mas se o
isoladamente, torna-se por vezes operacional e psicólogo não «desiste» do caso como
urgente avaliar certos graus de maturidade ou sendo não testável, se utilizar as provas
estabelecer diagnósticos relativamente As do ponto de vista predominantemente
chamadas disfunções (disortografia, dislexia, clínico e não exclusivamente
canhotismo,...). São situações em que se impõe psicométrico, obtém-se, por vezes, uma
um aconselhamento preventivo e em tempo útil, colaboração por «lampejos», em
por exemplo, saída ou não do jardim infantil sucessivos e rápidos momentos que,
para ingressar na escola, repetir ou não uma habitualmente, fornecem dados de
classe,... observação elucidativos;
IV. 3. - Pedidos visando informações - Investigação de componentes e indícios
suplementares ou confirmativas sobre o orgânicos, em situações clínicas
funcionamento mental global e sobre o diversas, mediante certas provas
diagnóstico dqerencial: específicas ou mediante sinais de
organicidade estudados e que devem ser
Diagnóstico diferencial entre debilidade, sinalizados. De notar que na criança
psicose e pré-psicose-desarmonias não se pode obter índices de
evolutivas, avaliando quantitativamente a deterioração mental como no adulto;
vertente mais ou menos acentuadamente
deficitária. -Informações suplementares ou
confirmativas sobre a organização
-Avaliar se existe déficit global ou em psicopatológica, a estrutura dinâmica
sectores e se se observam irregdaridades da personalidade, a temática dos
de funcionamento, por exemplo, conflitos e a utilização das defias.
realizações aberrantes, como sejam A análise, mediante as provas
resultados positivos ou negativos, projectivas, permite uma melhor
acentuando a variabilidade inter e intra- diferenciação entre as diferentes
-testes (análise do ((scater))); organizações neuróticas e respectiva
-Diagnóstico diferencial entre debilidade gravidade psicopatológica.
e situações de grave inibição e
depressão, quer seja no plano IV. 4. - Pedidos referentes ao projecto
intelectual, verbal (mutismo ou pré- terapêutico e a orientação-seguimento do
-mutismo) ou estritamente escolar. caso.
No caso da exclusão da debilidade, as
provas de realização, as de factor «g» Pedidos de análise e discussão de casos

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particularmente complexos e graves, em CONCLUSÃO
que se procura um interlocutor na escolha
da decisão terapêutica e/ou na escolha do Como breve conclusãa saliente-se que o
objecto principal da intervenção. Por psicólogo ao utilizar, nas observações que
exemplo, escolha prioritária da criança, da realiza, os instrumentos que lhe são específicos,
famíía, escolha prioritária de ludoterapia, manipula valores e insere-os num contexto
de psicomotricidade, de reeducação sdcio-político e cultural; a metodologia clínica
pedagógica... não é, portanto, neutra, implica, como muitas
Pedidos para precisar certas indicações outras, uma referência a normas, normas de
terapêuticas e respectivasjusti$caçÕm. Por desenvolvimento, de normal e patológico, de
exemplo, obter informações mais precisas adaptação - desadaptação.
sobre o sistema de defesas (grau de Verifica-se que essas normas e respectivo
rigidez), sobre a maleabilidade estrutural contexto em que estão inseridas têm sido
da personalidade e sobre as capacidades criticadas negativamente, obrigando o psicólogo
de «insight», no caso de indicação de a uma reflexão útil e necessária sobre a sua
psicoterapia analítica. prática e sobre os instrumentos que utiliza.
Com efeito, esta consciência crítica tem
Pedido de exames mais ou menos permitido demonstrar a vitalidade da psicologia
claramente formulados ou em que clínica. Convém por isso salientar que ao
posteriormente se torna manifesto a alongarmo-nos no processo de observação não
solicitação do psicólogo para co-participar esquecemos o primado da intervenção
e intervir paralelamente na resposta terapêutica, como objectivo principal da nossa
terapêutica diversificada (apoiando os actuação.
pais, ou intervindo no exterior junto dos Acentue-se mais uma vez que se intervém
professores, dos monitores dos A. T. terapeuticamente ao longo de todo o processo
L.,...). de pedido de consulta. No entanto, prolongar
ou multiplicar a avaliação poderá ser um modo
de esconder a dificuldade em formular um
IV. 5. - Pedidos relativos a processos de diagnóstico (que será neste caso estéril) e em
investigação e a estudos clínicos sistemáticos. estabelecer um projecto terapêutico (que não
São situações habituais em Laboratórios de será efectivo nem concretizável). Com efeito,
Psicologia com funções específicas de lembre-se que a observação é um meio, um
investigação, separados ou não da prática mero «desvio», para se atingir a finalidade
clínica quotidiana; mas são também terapêutica. Tenhamos a coragem de não nos
solicitações frequentes de equipes com demitirmos e de sermos, diversificada e
vocação terapêutica, que se preocupam com criticamente, verdadeiros intervenientes em
a avaliação rigorosa das acções desenvolvidas. Saúde Mental Infantil.
Nestes casos, é necessário obter uma
avaliação quantitativa e estandardizada BIBLIOGRAFIA
psicometricamente, de modo a permitir
critérios de comparação de objectivos, Anzieu, D. (1970). Les méthodes projectives. Paris:
mediante a repetição do exame (teste-reteste) P. U. E
com a mesma metodologia (por exemplo, Binet, A. (1903). L’étude experimental de
comparação de grupos testemunha e grupos l’intelligence. Schleicher.
experimentais). Fraisse, P., Piaget, J. & Reuchlin, M. (1967). h i t é
de psychologie experimentale - Hktoire et
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