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Encontro Nacional Especial de Formadores para Reitores e Psicólogos (as)

de Seminários

SOFRIMENTO PSÍQUICO NA FORMAÇÃO


Cesar Teixeira Castilho1
William Cesar Castilho Pereira 2
Introdução:

Este texto propõe apresentar algumas questões para o debate em torno do tema
“sofrimento psíquico na formação da vida presbiteral e religiosa”. Os episódios de
sofrimento ocorrem no dia-a-dia dos seminários, entre formadores e formandos.
Muitos sintomas são depositados em cada sujeito individualmente. Daí o risco, numa
época de mudanças como a nossa, de se recusar, por recalque ou má fé, analisarmos
as implicações institucionais que atravessam tais sofrimentos. Nosso propósito é de
ampliar o debate sobre o tema do sofrimento psíquico, tanto nas questões
potencializadoras, quanto nos não-ditos, da dimensão espiritual, afetiva,
socioeconômica e intelectual e da corporiedade/saúde. Que impactos e transformações
vivem os sujeitos, formadores e formandos, nos seminários diocesanos ou religiosos?

O sofrimento é uma das experiências mais marcantes no memorial do ser


humano. Acompanha a vida do recém nascido, da criança, do jovem, do adulto e do
idoso. Quase sempre ocorre entre os amigos ou entre os rivais. Está presente nas
diversidades culturais e raciais, nas dificuldades socioeconômicas, nas experiências de
trabalho, nas diferenças sexuais, nos sintomas físicos e nas crises relacionadas a ideais
existenciais e espirituais. O sofrimento afeta diretamente a dimensão psíquica do ser
humano.
O sofrimento psíquico extrai as forças afetivas do sujeito, produzindo o
enfraquecimento pessoal e de realização no trabalho, no matrimônio ou na experiência
celibatária. Geralmente, com exceções de situações traumáticas, o sofrimento psíquico
dos sujeitos caracteriza-se como um efeito silencioso acumulativo, principalmente,
das relações amorosas interpessoais com a instituição. As sucessivas perdas e
frustações afetivas acarretam desgaste orgânicos, exaustão de comportamentos
“hétero” ou auto-agressivos, trazendo como consequências pessoas exauridas,
cansadas, desiludidas e desgastadas.

1
Professor da Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG) e Faculdade de Ciências Médicas de
Minas Gerais (FCMMG). Professor na PUC Minas. Professor Associado à Pós-Graduação da
Université de Paris-Sud (Paris 11). Pós-Doutor pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Doutor em Ciências do Esporte e Motricidade pela Université de Paris-Sud (Paris 11). Mestre pela
UFMG. Autor de livros e artigos.

2
Psicólogo Clínico. Analista Institucional. Doutor pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Professor Aposentado da Pontificia Universidade Católica de Minas Gerais. Assessor Ad Hoc do
Conselho Episcopal Latino-Americano, Bogotá. (CELAM) e da Conferência Nacional dos Bispos do
Brasil (CNBB). Autor de livros e artigos.

1
O sofrimento psíquico é um estado de profunda angústia, desamparo ou
abandono. Circunstancialmente, o sinal de angústia acarreta sintomas graves no
sujeito, inclusive, ocasionando quadros de depressão3. Nesse ínterim, há pessoas que
podem enclausurar-se no isolamento por resignação, por complexos de culpa ou por
estratégia de auto aniquilamento e insuficiência. Outras ainda, podem recolher-se na
solidão por vaidade, como aversão ao mundo e aos amigos. A solidão que emerge
desses desacertos, porém, nada produzem senão ressentimentos, tristeza e angústia. O
ódio acumulado nesses períodos transforma-se em destruição de si e do outro.
Por outro lado, a solidão é uma tarefa central da ascese emancipatória 4.
Mergulhar-se não é repetir o já sabido, mas debruçar-se sobre o ainda desconhecido
ou simplesmente esquecido, desocultando sua verdade ou recordando sua realidade.
A experiência de solidão remete à individuação e à ruptura com o estado de
fusão com o outro. Somos seres separados e não unificados. A experiência de solidão
é a capacidade de amar com independência e autonomia, elaborando a dor do hiato
entre o eu e o outro. Há uma fecundidade na experiência de solidão. Sustentá-la é ter
consciência de si mesmo e buscar o outro como realidade díspar. O outro como
companheiro e como aquele que aponta para a diferença, não como avalista do
próprio desejo ou como aquele que sempre concorda com os nossos anseios.
Os místicos escolheram o caminho da fecundidade da solidão -- o caminho do
5
Nada . A força que nasce da debilidade angustiante do sujeito produz a experiência
de Deus, o amor ao próximo e a dimensão do Reino de Deus espelhado nos pátios dos
gentios, nos espaços temporais e históricos: verdadeira arquitetura divina e humana.

2. As vicissitudes do sofrimento na formação:

As sucessões de alternâncias do sofrimento durante o período da formação de


presbíteros, religiosos e seminaristas converteram-se nas ultimas décadas, em objetos
de amplos estudos6, pesquisas, reflexões e debates em diferentes saberes

Para a Organização Mundial da Saúde, (OMS) a depressão constitui um transtorno mental frequente,
caracterizado por tristeza, perda de interesse, ausência de prazer, oscilações entre sentimentos de culpa
e baixa autoestima, além de distúrbios do sono ou do apetite. Também há a sensação de cansaço e de
falta de concentração. A depressão pode ser crônica ou recorrente e dificultar sensivelmente o
desempenho no trabalho, na escola e a capacidade para enfrentar a vida cotidiana. Na sua forma mais
grave, pode levar ao suicídio. Deve ser tratada com medicamentos, mas, as pessoas, também precisam
de acompanhamento psicoterápico. Ver: Temas de saúde: Depressão. Disponível, em
http://www.who.int/topics/depression/es/.

4
Existem pelo menos dois tipos de ascese: a sacrificante e a emancipatória. No final desse texto
pretendemos aprofundar melhor esse tema.

5
S. Joao da Cruz. Obras Completas. Petrópolis; Vozes, 2002. Op.cit, p.359.

6
MORANO, C. D. La aventura del celibato evangélico. Gasteiz/Vitória: Frontera – Hegian. 2004.
PEREIRA, William Castilho. Sofrimento psiquico dos presbiteros. Dor institucional. Editora Vozes.
Petrópolis. 2012. ALMADA Roberto. O Cansaço dos bons. Cidade Nova. São Paulo. 2013. CUCCI,
Giovanni . La fuerza que nace de la debilidad. Sal Terrae. Santander. 2014

2
antropológicos, sociais, psicológicos e teológicos. Nossa intenção, neste item, é
registrar as manifestações mais profundas do ser humano, o silêncio de sua dor e as
inevitáveis crises que desenrolam no período de sua interminável formação, tanto
inicial quanto permanente.

Para os autores citados, tanto o formador quanto o formando, passam por


diversas fases no trabalho formativo exigindo elaboração de significativas perdas,
como: perda de ilusão quanto a vocação; luto de benefícios sonhados, status e
prestígios; debilidades físicas; amargura de não se sentir amado ou prestigiado pela
autoridade e crises relacionadas à competência acadêmica e às crenças espirituais. A
síndrome de sofrimento psíquico caracteriza-se por atravessar distintas fases e
diferentes sintomas pessoais e institucionais: a dor é sempre do sujeito e de sua
vinculação com a instituição.

Para fazer jus às expectativas adequadas ou desmedidas do outro ou da


instituição, a pessoa intensifica a dedicação e passa a fazer tudo exigentemente,
visando a demanda alheia. Ambição exagerada de ser amado leva à compulsão por
desempenho. A imposição interna irresistível leva o indivíduo a realizar, sem medida,
desastrosos relacionamentos afetivos interpessoais, no trabalho e na espiritualidade.
Pode ser consciente ou inconsciente, independente dos resultados. É a fase de excesso
de entusiasmo dos sujeitos, vivido sobre grande ilusão frente ao olhar do outro, de
energia amorosa e expectativas irreais. Nesse contexto, a experiência vocacional sem
profundo conhecimento, pode acarretar desilusões e graves desfeitos.

Alguns seminaristas conseguem perceber que há algo estranho, mas não


enfrentam a situação temendo deflagrar uma crise: por exemplo, a experiência de
medo do desamparo. Surgem os primeiros sintomas físicos: problemas no trato
digestivo, respiratório, alergias, síndrome de fibromialgia, crises de ansiedade,
perturbação do sono, alimentar, entre outros.

Nesta fase ocorrem dúvidas e perguntas recorrentes: se vale a pena o ideal


escolhido que está almejando; se tem sentido colaborar com os demais quando esses
não solidarizam em nada a sua dor; se é interessante continuar lutando contra as
barreiras burocráticas e legalistas da organização. Os obstáculos crescem
demasiadamente e decrescem as forças e energias vitais para transpô-los. Nesse
período podem aparecer problemas emocionais, fisiológicos, psíquicos, acadêmicos,
pastorais e espirituais.

Isolamento, fuga dos conflitos através de vícios e negação das próprias


potencialidades modificam a percepção. Amigos ou passatempos são desvalorizados.
A autoestima passa a ser medida apenas pelo olhar exigente de si mesmo ou de
projeções dos superiores. O embotamento emocional é visível, quer dizer, o indivíduo
se torna desconectado, perde a energia, a sensibilidade e tem dificuldade em
responder ao cotidiano da vida afetiva comunitária, cognitiva e espiritual. Quem era
tão dedicado em seus sonhos e ativo revela-se amedrontado, tímido e apático. Atribui

3
a culpa ao mundo e sente-se cada vez mais inútil. Surgem a indiferença, a
desesperança, a exaustão e a prostração física e espiritual – a acídia da fé.

A exigência da perfeição ocupa quase todo o tempo do imaginário do sujeito.


A renúncia ao lazer é vista como ato de heroísmo e é bem vista pelos pares. Torna-se
intolerante, julga os outros incapazes, relaciona-se de forma exigente ou
indisciplinado. A pessoa vive ensimesmada: os contatos sociais são quase
insuportáveis e, por isso, evitados. Muitos recorrem ao isolamento da Internet em
busca de afetos ocultos, obscenos e proibidos. A perspectiva temporal restringe-se ao
presente e a vida limita-se ao funcionamento mecânico do cotidiano. Excede-se na
vida sexual, na alimentação ou mesmo em rituais obsessivos entre exigências
litúrgicas ou em práticas espiritualistas rigorosas. Reacendem Transtornos Obsessivos
Compulsivos (TOC) litúrgicos que tamponam desejos proibidos e obscenos.

Há ainda um enfoque da síndrome do sofrimento psíquico relacionada ao luto


ou ao rosário de perdas que o sujeito é convocado a reelaborar durante o percurso de
sua formação presbiteral. Compõe-se de sentimentos de frustração e desânimo,
advindos do inevitável confronto com as limitações próprias e externas. Dilata-se
imaginariamente, a figura de autoridade do reitor ou do bispo diocesano. O formando
mede o próprio valor apenas pela aprovação do desempenho e pela impressão que lhe
causa tais personagens. A dependência da avalição externa não permite perceber os
próprios aspectos propositivos, gerando a sensação de estar sob a constante ameaça de
perdas eminentes. As perdas geram inseguranças, inadaptação, vulnerabilidade,
consequentemente, mais perdas, num processo descendente. Com o transcorrer do
tempo, o sentimento é sepultado e expresso de outra maneira como um sintoma. O
corpo é simbolicamente afetado na lista de sintomas intermináveis. O corpo grita para
o sujeito mudo.

As vicissitudes sobre os sofrimentos dos formadores ou formando, acima


descritas, descortinam aspectos importantes sobre os sintomas mais recorrentes a
partir das queixas de padres e seminaristas da instituição: Institutos, Casa de
Formação ou Seminários. As descrições dos sintomas assumem uma linha
evolucionista do entusiasmo, seguida de lenta, consciente ou inconsciente, desilusão
do sujeito frente ao processo formativo. A sintomatologia é próxima e coerente com a
etimologia da palavra burnout7 na vida religiosa: o declínio ou apagamento gradativo
do ardor vocacional e relacional. Sugere um esvaziamento da fonte motivadora. A
tristeza decorrente da gradativa percepção de uma realidade que não corresponde à
expectativa, leva à experiência de uma exaustão lenta, à semelhança da agonia da
abelha, que se afoga em seu próprio mel.

7
No Brasil, a “Síndrome de Burnout” integra a Lista de Doenças Profissionais e Relacionadas ao
Trabalho (Ministério da Saúde, Portaria no 1339/1999), além de estar registrada nos Anais da
Classificação Internacional de Doenças, 10ª revisão, CID -10, com o seguinte código e descrição: “Z
73.0 - Sensação de estar ‘acabado’”.

4
Nas descrições acima dos sintomas, a tensão afetiva ou sofrimento psíquico é
nitidamente perceptível nos sujeitos particulares: bispos, padres formadores e
seminaristas. Não há nenhuma análise entre os sintomas dos sujeitos particulares com
as estruturas da instituição Igreja: os institutos ou seminários. O peso do sofrimento é
debitado unicamente na conta particular de cada um.
Os registros de autores que desenvolvem a temática da síndrome de burnout8
descrevem com precisão os sintomas, mas teimam em esconder os segredos dos “não-
ditos” e das paixões adoecidas no entorno das organizações das instituições,
particularmente, da Igreja. De outro modo,, estão ocultas as contradições entre afeto e
razão nas relações sociais e no controle do poder de enfretamento das estratégias dos
padres e seminaristas frente à instituição do “Seminário”. Os atores (formadores e
formandos) não tem a quem recorrer, e nem espaço para dizer de seu sentimento em
relação às suas angústias.
A instituição também não revela e nem desdobra suas metas secretas e as
estratégias pelas quais conduz os atores na consecução de seus propósitos. As dores
do burnout são depositadas apenas em cada sujeito, formador ou formando, um por
um, jamais são analisadas como resultado das relações da instituição com os atores
diretamente envolvidos. As divergências quase irreconciliáveis entre exigências da
instituição e anseios dos padres e seminaristas certamente geram tensões, que são
negligenciadas.
Na terceira parte, desse texto, iremos analisar algumas experiências que
ocorrem na formação presbiteral, que são potencializadoras e geradores de vida,
quando, são silenciadas, transformam-se em monstros persecutórios na vida dos
atores: formadores e formandos.

3. Experiências potencializadoras ou silenciadas durante a formação:

3.1. Dimensão Espiritual


O aspecto espiritual é o centro da formação do seminarista e do formador, cujo
o porto seguro deve ser Jesus Cristo. Parafraseando Bento XVI, a profissão do
presbítero é a oração. Rezar é silenciar-se diante de Jesus para deixá-Lo falar.
Segundo Papa Francisco, através da Ratio9,:

“O centro da formação espiritual é a união pessoal com Cristo, que nasce


e alimenta-se em modo particular na oração silenciosa e prolongada.
Através da oração, da escuta da Palavra, da participação assídua nos
sacramentos, na liturgia e na vida comunitária, o seminarista fortifica o
próprio vinculo de união com Deus, à luz do exemplo de Cristo, o qual
tinha como programa de vida fazer a vontade do Seu Pai (cf. Jo 4, 34). No
percurso formativo, o ano litúrgico oferece a mistagogia pedagógica da

8
GIL-MONTE, P.R. El sindrome de quemarse por El trabajo (burnout). Madri: Piramide. 2006.
LAGO, K. & CODO, W. Fatiga por compaixão – sofrimento dos profissionais de saúde. Petrópolis:
Vozes. 2010
9
Ratio Fundamentalis Institutionis Sacerdotalis: O Dom da Vocação Presbiteral. Congregação para o
Clero. L’Obsservatore Romano, Cidade do Vaticano: 8 de dezembro 2016. Página 47. Número 102.

5
Igreja, permitindo aprender a espiritualidade que lhe é própria através da
interiorização dos textos bíblicos e das orações da liturgia.”

A valorização do Kerygma, como experiência crescente e transformadora,


constitui o centro da vida formativa ou pode se transformar num déficit problemático
da vida espiritual. Neste aspecto, é legítima a pergunta pelo tipo de relação que se
estabelece com Deus: qual a qualidade dessa relação? Qual o lugar que ocupa Jesus
Cristo no quotidiano da formação? Quais as implicações de Jesus na fundamentação
da vida comunitária, pastoral, de fé e da dimensão social? No caso em que o
relacionamento com Deus se encontra significativamente "diluído" a experiência de
Deus, do tipo narcisista10, revela a carência de um relacionamento mais significativo
com Jesus de Nazaré.
Observa-se, entre aqueles que entram no seminário, intensa tensões e
fragilidades nas motivações que os levam a se tornar padres, sendo necessário
especificar o chamado de Jesus Cristo durante a formação. A vocação não é
quimicamente pura. São inúmeras as motivações que atravessam a vida dos jovens.
Às vezes se confunde a vocação com a conversão. São muitos os candidatos e
seminaristas que não têm feito um verdadeiro processo de conversão. Muitos pararam
nas primeiras motivações da vida presbiteral: experiências lúdicas na infância sobre
Deus, modelos religiosos da mãe ou do pai, traços de identificação com o pároco,
religiosidade popular, festas folclóricas e devocionais dos santos, pastoral juvenil,
catequese, movimento carismático, no sentido de pertença a um grupo e na própria
atividade paroquial. Nesse sentido, espera-se que o seminário não seja apenas uma
experiência de discernimento da vocação, mas igualmente um espaço para a
conversão.
O espaço e o tempo compartilhados no seminário são oportunidades
fundamentais de escrever o memorial da fé visando reforçar perguntas sobre a vida
espiritual tais como: qual foi a origem de sua fé? Como surgiu e se desenvolveu?
Quais foram os momentos de distanciamento a Jesus? A que estão associados? Do
mesmo modo, outras questões espirituais podem ser aprofundadas: que lugar ocupa
Cristo na sua vida? Nesse território espiritual, a leitura orante e a Lectio Divina
podem ser fortalecidas e daí surgem o sentido da ascese e da disciplina interior, o
fortalecimento do espirito e capacidade de resiliência frente as angustias e frustrações
cotidianas..
Em tal contexto, surge a preocupação pelo lugar que ocupa a santidade entre
os formadores e formandos: é um desejo? Está no horizonte da própria vida? Em
alguns seminários não se entende nem se deduz esse desejo, a santidade é apenas um
10
No quadro narcisista, o excessivo amor a si mesmo, predomina sobre a relação afetiva com o outro.
Nessa condição surgem sintomas graves que se evidenciam nos vínculos interpessoais e comunitários.
A gratificação exagerada com o próprio eu produz um prazer narcisista, isto é, sentimentos de
onipotência com a própria imagem de si, iludindo a experiência de impotência e de fragilidade própria
dos seres humanos. Assim, Deus é arrastado como contrabando pelo sujeito para vivenciar ritos
espiritualistas de fascinação e de autoengano. É o estado maníaco ou eufórico que tampona o silêncio
interior espiritual: a angústia. Há candidatos e padres que não tem predicados psíquicos que possam
visitar a própria alma. Assustam, rapidamente, com os monstros da incompletude.

6
indicativo disciplinar de obediência cega ao reitor. Confunde-se santidade com
perfeição ou práticas espiritualistas, enquanto, luxúria do espírito. Pura vaidade!
A excessiva vaidade desencadeia apenas o fascínio pelos sacramentos, o
esplendor do tabernáculo, a sua cortina dupla, o cibório e o ostensório sem Jesus. A
magia dos confessionários, as procissões e as auriflamas desprovidas de piedade
popular. Os trajes de gala, os mantos, a sotaina, a túnica e a estola apenas como
atração de si.
A precariedade do exercício da oração provocada pelo excesso de trabalho na
vida dos seminários, pode-se inquirir sobre os caminhos da vida espiritual dos futuros
presbíteros. Geralmente, cansados pelo ativismo sem pausa própria da vida cotidiana,
são reforçadas a dicotomia e dissociação entre a fé e a própria vida. A baixa avaliação
que tem o silêncio e a reflexão na sociedade atual favorecem o seu oposto: o barulho,
o glamour, a celebridade, a estética sem ética, a vaidade e o vazio depressivo.
Atualmente, observa-se escassa presença de relação com um diretor ou
acompanhante espiritual. Essa orfandade (desfiliação) traz implicações importantes
para a vida espiritual dos formadores e formandos. Em alguns casos, é o resultado de
uma atitude defensiva que deseja evitar o confronto afetivo e espiritual com outra
pessoa. Há uma enorme carência de confiança que se manifesta como forte
sentimento de perseguição, do que decorre o medo de partilhar as experiências de
vida: crises afetivas, de fé, dúvidas e inquietações. Em outros casos, a ausência do
diretor espiritual deriva dos problemas com a figura paterna, não elaborados, que se
traduzem na construção de uma vida carente de modelo paterno, que não diferencia a
condição de filho em si mesmo, com toda a solidão e a limitada referência pessoal que
isso implica. O encontro esporádico com diretores espirituais impede avaliar e
identificar mais claramente o desenvolvimento dos processos espirituais e os
processos de acompanhamento.
Por outro lado, como estão, atualmente, cada vez mais ausentes as referências
proféticas, esse lugar tem sido ocupado por sacerdotes midiáticos ou com fortes traços
dogmáticos e traje clerical. Como afirma o Papa Francisco11:
“O clerical faz parte de uma elite e não se reconhece no povo. Daí podem advir
mais tarde muitas consequências, sobretudo quando se lida mal com o poder. O
clericalismo é a raiz de muitos problemas, como estamos a ver. Inclusive, por
trás dos casos de abusos, além de outras imaturidades e neuroses, está o
clericalismo.”
Paradoxalmente, tais jovens, experimentam uma espiritualidade mais
intimista, solta, numa versão mais “light”, com forte carga emocional, independente
de Jesus Cristo e do modelo de pastoral diocesano. A busca por ídolos e a
identificação com padres ícones midiáticos ou com modelos idealizados rígidos e
pedantescos provocam escolhas equivocadas e distorcidas, pois deixam os jovens na
condição de adolescentes com identificações do tipo prótese, com caráter rígido
externo e altamente fragilizado no interior de seu Eu. Tipo Denorex12.
11
Papa Francisco. A força da vocação. Paulinas Editor. Prior Velho. 2019.

12
Na década de 80, foi lançado um Shampoo, com o nome de Denorex: no texto publicitário, o locutor
afirmava que o produto parecia remédio, cheirava a remédio, porém era um Shampoo.

7
Ora, há uma relação direta entre os aspectos psíquicos e espirituais da pessoa.
A imaturidade afetiva coincide com a espiritualidade imatura. Em um jovem, a
referência a um “eu ideal” pode prevalecer sobre o mistério de Jesus na cruz e o
mistério pascal, mesmo quando se fale sobre eles explicitamente. A esse respeito, a
separação entre o ideal e a vida, entre o ideal e a experiência humana, que pressupõe o
autoconhecimento e o fato de assumir as próprias fraquezas, limita as possibilidades
de um verdadeiro encontro com Deus e consigo mesmo. Como São João escreve na
sua carta13: “Se alguém disser: “Amo a Deus”, mas odeia o seu irmão, é mentiroso; pois
quem não ama o seu irmão, a quem vê, não poderá amar a Deus, a quem não vê” . (1Jn 4,
20)
Nesse sentido é pertinente identificar na orientação de vários seminários
latino-americano a sensibilidade agregadora entre as áreas espiritual, humana,
cultural, social, econômica e politica. O Reino de Deus tem rosto humano14. Esse tem que
ser o objeto fundamental que condensa a energia amorosa sublimada de quem opta
pela vocação do celibato. Na ausência do ideal (amor) sublimado, é impossível viver a
possibilidade do celibato. A renúncia desviada dos fins sexuais somente poderá ser
sustentada se for direcionada a um projeto altamente valorizado.
Esse projeto tem muito de aventura. E, como em toda aventura, supõe coisas
muito sublimes e também riscos15. É importante que a pessoa que opta por esse chamado
tenha os recursos espirituais, psíquicos e sócio-institucionais para embarcar na
aventura. Encontramos na espiritualidade o caminho de transformação concreta e
construção do Reino de Deus: “Pelos frutos os conhecereis”. A paixão pelo Reino
não deve ser narcisista, pois, Jesus espelha o humano e não apenas a sua divindade: o
cego de nascença, a prostituta, a viúva, o leproso, o enfermo impotente. O Reino de
Deus tem rosto de tudo que se exclui socialmente: crianças de rua, drogados,
homossexuais, indígenas, mulheres violentadas, negros, sem terra, sem teto e
emigrantes excluídos. O celibatário escolheu identificar-se não com Deus e, sim
preferencialmente, com o amor apaixonante ao Reino. Ele escolhe não a absoluta
perfeição enquanto pureza, ausência de prazer e, sim, o prazer transbordante da
ternura, da fertilidade dos relacionamentos geradores de sentido e bem-estar, da arte,
da beleza e da arquitetura do Reino de Deus.

3.2. Dimensão Afetiva

O Documento da Ratio dedica longas páginas de reflexão sobre a dimensão


humano-afetiva. As diretrizes chamam atenção que o “Seminário” não é um mero
13
Todas as citações bíblicas do presente texto foram extraídas da edição impressa de: BÍBLIA
Tradução oficial da CNBB. Brasília: Edições CNBB, 2018.

14
MORANO, C. D. La aventura del celibato evangélico. Gasteiz/Vitória: Frontera _ Hegian. 2004.
15
MORANO, Op.cit. 2004.

8
prédio, burocrático e frio. Mas, antes de tudo é uma comunidade afetiva de formação.
Os elementos psicológicos no âmbito da afetividade são muito importantes para a
pessoa do seminarista e do formador.
No campo da afetividade, são apreciadas diferentes questões que podem
tornar-se problemáticas: alguns seminaristas/formadores desenvolvem relações
interpessoais inapropriadas entre si, criando uma co-dependência ou proximidade
exagerada, limitando a liberdade pessoal e, assim, confundida com a saudável
amizade. Essa tendência, entre ambos, está relacionada a um baixo conceito de si
(autoestima baixa) e a problemas na esfera da autonomia do sujeito.
As dificuldades de estabelecer limites nos relacionamentos também aparecem
com famílias de leigos que, por vezes, "adotam" o seminarista ou o formador,
fazendo-os sentirem-se mais confortáveis nesse espaço hiperprotetor, síndrome de
Peter Pan16 , do que no âmbito do presbitério diocesano. Há uma produção de eternas
madrinhas na vida do seminarista ou padre com tonalidade maternal e de apoio
financeiro. Na contramão da fraternidade vários optam pelo isolamento e a solidão,
impedidos de compartilhar a própria vida com os colegas. Confundem solidão com
isolamento. O primeiro tem haver com experiência de vida. Enquanto, o segundo está
relacionado com síndrome de abandono. Isolado, o sujeito demanda
perseverantemente proteção e dependência afetiva.
Cresce o número de familiares onde há ausência do pai, produzindo um tipo de
orfandade paterna que poderá substituída de forma exagerada pela figura da
autoridade do formador ou do bispo.
Há casos de famílias onde está presente a violência doméstica, incluindo
experiências de abuso físico, sexual ou psicológico. Em geral, os candidatos não têm a
oportunidade de fazer uma boa elaboração de suas relações familiares e dos pais
introjetados da infância. Nesse sentido, o trabalho de análise da família de origem e da
experiência com a figura materna e paterna é uma fonte inesgotável de
desenvolvimento psíquico e espiritual. Nesse contexto a Ratio 17 exorta a proteção dos
menores e o acompanhamento das vitimas, sobretudo, para aqueles que pedem a
admissão a um seminário ou que já apresentaram o pedido para receber as Ordens.
No geral, no campo da sexualidade, se detecta um escasso conhecimento das
fontes e modos de excitação sexual e, consequentemente, do desejo sexual, que
aparece reprimido ou negado. Frequentemente, não são entendidos os sintomas e
manifestações da sexualidade em relação à história pessoal e aos vestígios que ela
deixou. Há candidatos que têm uma visão da sexualidade redutiva e privada de sua
pessoa, pois veem-na como um prazer egoísta dissociado da própria vida afetiva com
o outro (alteridade). Nestes casos, é detectada dificuldade para viver a dimensão
afetiva como virtude e valor. Como modo de compensação, podem surgir relações
com mulheres viúvas ou que atravessam graves conflitos no casamento que adquirem
um caráter de amizade sem limites. Em situações de homossexualidade encoberta ou
reprimida são estabelecidas relações ambíguas entre padres e jovens em contextos

16
CUCCI, Giovanni. La crisi dellÁdulto – La sindrome di Peter Pan. Cittadella Editrice. Assisi. 2012.
17
Op. Cit. página, 84. Número: 202.

9
paroquiais que, frequentemente adotam características disfarçadas de lobismo
sexual18. Em ambas situações, tanto a heterossexualidade, como homossexualidade,
trata-se de compulsão desenfreada do gozo sexual. A sexualidade do sujeito abarca a
personalidade inteira e pode transformar-se num vício próprio de uma realidade que
perdeu a sua dimensão afetiva. É uma paixão exagerada de si mesmo, por tanto, um
distúrbio narcisista, de poder e de vaidade: a luxúria. A luxúria é uma espécie de
corrupção e de perversão. No corrupto e no perverso, o “encontro” sexual não é, de
maneira nenhuma, o dominante, mas está em primeiro lugar a questão do poder, do
domínio, da violência (o ódio erotizado), do descontrole e da busca narcisista de
reconhecimento.
A dimensão afetiva/sexual entre duas pessoas do mesmo sexo, como entre
duas pessoas do sexo oposto não deve ser usada de maneira a explorar, objetificar ou
dominar. O estupro, a violência, a luxúria homossexual ou heterossexual, ou qualquer
uso prejudicial do poder, do prestígio, do status contra o outro, minimamente
resistente ou incapacitado em razão orgânica, etária, econômica ou posição clerical,
social e de gênero, jamais é justificado. Todo ato sexual exige mútua
responsabilização e liberdade.
Os problemas que ocorrem na área da afetividade não são apenas sintomas
individuais. As pessoas também manifestam sintomas como expressão da precária
organização da diocese, que os facilitam, e até mesmo os produzem. Quando existem
dioceses que estão em crise ou têm dificuldades de relacionamento entre o bispo e o
clero, essa situação pode se deslocar na vida psicoafetiva dos membros do seminário.
O “Seminário” constitui-se numa verdadeira caixa de ressonância da diocese. É
essencial, então, identificar as múltiplas causalidades desses desconfortos.
Por outro lado, cresce o interesse pela formação humana e pelo conhecimento
sobre temas da afetividade. A vontade de procurar ajuda espiritual e psicológica é
maior do que no passado e está relacionada ao reconhecimento da realidade em
dimensões que precisam ser revistas e aprofundadas. Muitos seminaristas e
formadores querem conhecer melhor seus problemas e dificuldades para alcançar sua
superação.
A introdução gradual de equipes de ciências humanas, sobretudo, de mulheres,
na formação inicial e permanente é promissora, embora ainda incipiente. O valor dado
à psicoterapia, por bispos e coordenadores de seminários, tem implicações
importantes para os processos de elaboração dos conflitos afetivos.
Na área da sexualidade, o valor do dom do celibato motiva muitos padres a
aprofundarem sua vida afetiva, na biografia pessoal e escuta de própria sexualidade.
Os escândalos que ocorreram na Igreja envolvendo abuso sexual tiveram um efeito
propositivo ao ampliarem a percepção da necessidade de autoconhecimento como
oportunidade de crescimento. Tais situações levaram à dessacralização dos padres e a
um renovado interesse pelos temas da afetividade e da sexualidade, pelo

18
Lobismo no sentido de angariar simpatia, influenciar pessoas para agirem conforme o interesse de
alguém. Seduzir o outro em beneficio próprio .

10
conhecimento da origem destes atos e o desejo de pesquisar o campo das perversões
ou parafilias.

3.3. Dimensão Socioeconômica e Intelectual

Segundo pesquisas socioeconômicas19 com familiares de candidatos ao


seminário, constata-se que, mais de 50%, é proveniente da zona rural/de cidades
pequenas e, que, gradativamente, cresce as vocações em cidades médias/grandes.
Algumas características populacionais podem ser peculiares desse perfil. A título de
exemplo registro: contínua peregrinação e ocupação profissional mutável; nível
precário de instrução, insegurança econômica e necessidade de contribuição
financeira por parte de diversos integrantes da família.
Além disso, sabe-se que, historicamente, esse é o perfil socioeconômico que
apresentou mais forte religiosidade popular e piedade devocional, maior adesão às
festas folclóricas, romarias, novenas de devoções aos santos, e daí, muitas das
vocações persistem nos seminários com esse traço religioso. Assim, cabe perguntar:
que relação esse perfil estabelece com o desenvolvimento da fé a Jesus Cristo, com a
opção presbiteral, com a linha teológica e pastoral e com o próprio carisma de ser
padre diocesano? Nessa luz, vale a pena refletir sobre a origem da vocação, o
desenvolvimento psicossocial dos candidatos e a perseverança deles no ministério
sacerdotal.
Quanto a origem social, 70,0% dos pesquisados é proveniente especialmente
das classes médias-baixas e baixas, semelhantemente a grande parte dos presbíteros
brasileiros. Isso explica, também, porque parte dos integrantes do grupo pesquisado
tem contribuído, financeiramente, com seus familiares. Some-se a tudo isso, o lugar
geográfico de origem, a escolaridade e o status profissional dos pais. Dados como
região de procedência, profissão e escolaridade dos pais das famílias dos seminaristas
fazem lembrar, também, a origem simples de grande parte dos padres do Brasil. Pode-
se constatar que a maioria dos pais trabalha em atividades rurais, como lavradores e
pequenos agricultores. São seguidos, com uma grande diferença percentual, pelos
comerciantes ou trabalhadores autônomos -- profissão procurada por muitos daqueles
que deixam o campo e não têm outra formação. Verifica-se que essas famílias
trabalham em setores que exigem pouca ou nenhuma formação profissional. Algumas
raras exceções são observadas pelo exercício do magistério ou de atividades que
requerem formação técnica.
As pesquisas citadas confirmam um baixo capital cultural dos pais. A questão
do analfabetismo e da baixa escolaridade dos progenitores, geralmente incide,
fortemente, na formação cognitiva dos filhos. O hábito de leitura, por exemplo, é uma
construção que vem da infância, influenciada, sobretudo, por mães e pais. Pais

19
Conferência Nacional dos Bispos do Brasil. Pesquisa sobre o Perfil do Presbítero Brasileiro.
Subsídio apresentado na 56ª Assembleia Geral da CNBB. Aparecida. Abril. 2018.

PEREIRA, William Castilho, pesquisas que venho realizando, há mais de 30 anos, como assessor, de
dezenas de congregações religiosas e dioceses do Brasil.

11
analfabetos ou de baixa escolaridade - fruto de uma vergonhosa divisão de classe
social - têm dificuldade ou mesmo lhes é impossível auxiliar suas crianças nos
estudos. O que, esse conjunto de situação geográfica, social, racial e educacional,
produz na subjetividade das famílias?
Quando são tênues os estímulos ao enriquecimento intelectual
consequentemente, serão pouco o cultivo e desenvolvimento de formas de vida ativas
e reflexivas. A ausência de aprofundamento intelectual teológico crítico abre espaço,
como compensação, para a acomodação burguesa, de elevado consumo e competição
carreirista, além da manutenção de uma pastoral sacramentalista, clerical e de alta
formalidade doutrinal.
Os estudos têm apontado que vários seminaristas e novos sacerdotes têm
ojeriza à formação continuada. Iniciam o ministério presbiteral com aversão aos
estudos. Parece que a vida acadêmica nos institutos teológicos produziu um grave
efeito colateral pedagógico: “pensar, nunca mais”! Alguns professores não têm
capacitação nem metodologia didática, isto é, lecionam por seus méritos espirituais ou
do senso comum, mas carecem de mínima preparação pedagógica.
Observa-se intensa precariedade de recursos de linguagem, tanto falada,
quanto escrita, o que requer providências que favoreçam melhor desempenho na
comunicação das mensagens do Evangelho. De forma adicional, há dificuldades para
incorporar a aprendizagem de outras línguas, além da língua nativa. Há um claro
apelo da Ratio20 sobre a questão linguística: “É vivamente aconselhado o conhecimento
de ao menos uma língua moderna...
É importante analisar o amor próprio e suas consequências, luzes e sombras,
na personalidade de cada um dos formandos e do formador: baixa autoestima,
inibição intelectual (na atividade da escrita, na expressão do pensamento, e
comunicação), insegurança afetiva, submissão, medos e auto ou hetero-agressividade.
Mas, também, a formação pode ser um espaço de sublimação. Muitas
vocações, como vimos acima, são originarias de contextos psíquicos muito precários e
de ambientes familiares autoritários. Por outro lado, vários conseguem revisitar todas
essas experiências de infância, elaborando, por meio de mecanismos psíquicos,
potencialidades resilientes no campo intelectual, psicoafetivo e de ideais do segmento
de Jesus Cristo.
Assim, constata-se que cresce em vários institutos acadêmicos, estimulados
por reitores, o desejo de conhecimento de diversos temas e perspectivas nos diferentes
campos do saber. Nesse sentido, muitos seminaristas têm se preparado para tornar-se
bons pregadores e comunicadores da Palavra, respondendo às exigências da
atualidade, no entendimento de que o mundo precisa ser conhecido em seus diversos
aspectos e a partir de diferentes perspectivas.
Há um grande número de professores presbíteros e formadores que aderiram à
formação continuada: encontros de presbíteros diocesanos, congressos, pós-graduação
lato sensu e stricto senso. Como consequência, é mais sólida, entre eles, a consciência
da importância do saber, preparando-se para o acolhimento das dificuldades humanas
em um contexto de superficialidade e intensas mudanças. Aprecia-se a abertura ao
20
Op. Cit. página 76. Número: 183.

12
saber e ao diálogo com leigos e leigas que conhecem e compreendem questões de
diversa natureza: teológicas, pastorais, sociais, históricas, intelectuais, psicológicas e
políticas.
3.4. A Dimensão da Corporeidade e da Saúde

Chamamos de corpo as complexas dimensões biológicas, fisiológicas,


químicas e físicas que atravessam órgãos e tecidos do organismo humano. A
corporeidade, por sua vez, é a experiência do corpo como realidade fenomenológica,
relacional, histórica e de gênero. Portanto, o corpo é sempre mudo, enquanto, a
corporeidade é um conjunto simbólico que anuncia o desejo do sujeito humano.
Segundo Scliar (2007)21, o conceito de saúde reflete as conjunturas social,
econômica, política e cultural. Sendo assim, a saúde não possui a mesma
representação para todas as pessoas. Dependerá da época, do lugar, da classe social,
dos valores individuais, de concepções científicas, religiosas, filosóficas. O mesmo
pode ser dito das doenças.
O conceito de saúde universal foi definido, como: “A saúde é um estado de
completo bem-estar físico, mental e social, e não consiste apenas na ausência de
doença ou de enfermidade”. (OMS, 1946).
Quando questionados sobre seu próprio estado atual de saúde física e mental,
observa-se a seguinte frequência, entre os formandos entrevistados22: 52,4% avaliaram
como bom, apreciaram como razoável 19,0%; calcularam como regular 14,3%;
estimaram como excelente 11,9%; e, finalmente, 2,4% não responderam.
A grande maioria, 56,6%, respondeu que faz algum tipo de exercício físico,
enquanto, 32,3% afirmaram que não praticam nenhum, 11,1%, disseram, às vezes.
Essa porcentagem acima, não deixa de sinalizar uma alerta sobre uma possível vida
sedentária do grupo e as consequências físicas e psíquicas que tudo isso acarreta.
Hoje, a maioria dos profissionais de saúde indicam como fonte de inúmeras
enfermidades a falta de exercício físico.
Os que têm prática de correr e caminhar, representam 30,0%, seguidos por
aqueles que treinam em academia, 70,0%. As atividades físico/esportivas entre os
entrevistados são cada vez mais individuais? Estariam em declínio os tipos de
entretenimento que envolvem relação com o outro ou com um grupo comunitário?
Como é utilizado os espaços esportivos (campo de futebol, academia) para a prática
de atividades físicas coletivas?
O número de 53,3% dos formandos entrevistados disse que fazem
acompanhamento médico periódico, enquanto, 26,7%, número significativo,
afirmaram que não realizam tal procedimento. Já 20,0%, responderam, que procuram
o médico em casos esporádicos.

21
SCLIAR, Moacyr. História do conceito de saúde. PHYSIS: Rev. Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v.
17, n.1, p. 29-41, 2007.

22
Pesquisas coordenadas pelo nosso grupo de estudos sobre o tema.

13
Quanto ao acompanhamento de algum profissional da área da saúde mental
durante a experiência de formação, 75,% responderam que fazem acompanhamento
em grupo e, vários, também, realizam terapia individual. Esse dado é extremamente
auspicioso, pois revela um declínio: no passado recente, as instituições dos seminários
associavam experiências terapêuticas de saúde mental à loucura ou a graves
desequilíbrios. A juventude atual tem vivenciado certa mudança cultural que os leva
a refletir sobre as relações sociais, psicoafetivas, espirituais, sobre angustiantes
conflitos que se apresentam ao sujeito contemporâneo.
Outro tema pesquisado junto aos entrevistados foi a questão do sono. O
homem/a mulher são considerados seres diurnos, por desenvolver suas atividades
pessoais e profissionais durante o dia e dormir ou descansar no período noturno. O
estilo de vida, entretanto, extremamente agitado e urbano e algumas tarefas exigentes,
como as atividades cognitivas, relativas à distribuição do trabalho ou escalas de
trabalho, especialmente as mudanças de horários não convencionais, tendem a
inverter esse padrão biológico natural inerente ao ser humano. Essa inversão do ritmo
biológico pode implicar graves problemas, como déficits cognitivos, motores e
psicológicos, prejudicando, em geral, a saúde física, mental e social do ser humano
(JAMAL, 2004; KOYAMA et al., 2012; VETTER et al., 2012).
A restrição ou privação de sono e os distúrbios de sono são queixas frequentes
dos seres humanos. Sintomas como cansaço, fadiga, desânimo e dores generalizadas
fazem parte do cotidiano daqueles que apresentam distúrbios do sono. Segundo a
American Academy of Sleep Medicine (AASM, 2005)23, existem mais de 80 distúrbios
do sono, e os mais frequentes e comuns na prática clínica são: SAOS, insônia,
Movimento Periódico das Pernas (MPP), Síndrome das Pernas Inquietas (SPI),
bruxismo, pesadelo e sonambulismo.
Quem dorme mal, ou de modo insuficiente, não contempla as diferentes fases
do sono, podendo sofrer consequências danosas à qualidade de vida. Assim, os
entrevistados apresentaram as seguintes preocupações que alteram o ritmo de sono:
preocupações com a vida acadêmica; problemas pessoais (questões afetivas, sexuais,
solidão, exigências frente a autoridade; o uso demasiado de computadores e celulares;
barulho/ruído; mudança a rotina de horário e preocupações com os familiares.
Questionados se se sentem obesos, 53,3%, afirmaram que não; 46,7%
declararam estar acima do peso. É importante ressaltar que o uso frequente das
aptidões mental/intelectuais exige do formando estar fisicamente preparado para a
intensa rotina de atividades acadêmicas e a vida comunitária. É mérito dar atenção às
atividades físicas, recreativas e culturais, pois o desenvolvimento de tais atividades é
um grande aliado, dado que o dia a dia de um estudante é, muitas vezes, estressante e
cansativo.
A Organização Mundial de Saúde (OMS) reconhece a obesidade como uma
epidemia. De acordo com a Federação Mundial do Coração (FMC), 1,1 bilhões de
adultos e 22 milhões de crianças no mundo são obesas [ CITATION Cam16 \l 1046 ].
Um estudo chamado National Health and Nutrition Examination Survey (NHANES-
23
AMERICAN ACADEMY OF SLEEP MEDICINE - AASM. International classification of sleep
disorders. 2nd ed. Westchester, III: American Academy of Sleep Medicine, 2005.

14
II, 1976-1980) indica que, nos EUA, 20% dos meninos e 22% das meninas com idade
entre 12 e 19 anos estão com sobrepeso. A obesidade ainda permanece como um
relevante problema clínico a ser compreendido e solucionado.
Mesmo no Brasil, um país em vias de desenvolvimento, sujeito à desnutrição e
com várias iniciativas governamentais de combate à fome, grande parte da população
está obesa, sobretudo os jovens. Segundo a Pesquisa de Orçamentos Familiares
(POF), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), cada vez mais o
excesso de peso aparece no perfil dos jovens na faixa etária de 10 a 19 anos (IBGE,
2009).
A obesidade é classificada como doença multicausal, ou seja, deve ser tratada
com olhares multidisciplinares sendo que aspectos emocionais normalmente são
negligenciados pela literatura médica. No entanto, tanto fatores emocionais, quanto
fatores afetivos são desencadeadores da compulsão alimentar e da manutenção da
obesidade. Segundo pesquisas britânicas (CAMPOS, 2016), um em cada três jovens
entre 15 e 24 anos ataca a chamada junk food (comida nociva, de baixo valor nutritivo
e alto valor calórico) para compensar problemáticas afetivas.
Quanto aos diagnósticos apresentados pelos respondentes tem-se a seguinte
frequência: dores nas articulações, síndrome de fibromialgia e dores de coluna;
irritabilidade, depressão, ansiedade e estresse; bronquite, rinite, asma e sinusite;
aspectos gastrointestinais, como, úlcera, azia, gastrite.
Frente aos dados apresentados pelos entrevistados, é perceptível e mais
frequentes, as queixas de corte emocional (psíquico), com fortes conversões físicas.
Isso, mostra o que afirmamos logo no início dessa parte: a importância de
entendermos que o corpo é meramente um anteparo da corporeidade. Em outras
palavras: há um forte componente afetivo nos sintomas físicos. A dor é um grito dos
diversos sintomas do sujeito e da relação dele com a instituição.

4. Ao Modo de Conclusão
4.1. Ascese Sacrificante:
Há pelo menos duas concepções filosóficas de educação da fé nos
“Seminários”. A primeira, baseia-se na ascese sacrificante, a outra, na ascese
emancipatória. Etimologicamente, ascese vem do grego, e significa exercício. Tudo
na vida necessita de exercício para que seja alcançado. O ser humano convive com
contínuo limite: no exercício físico, na prática de um idioma, na atividade culinária,
artística, intelectual e até o estar amando. A formação é sustentada num tripé:
exercício espiritual, a vida comunitária e intelectual/pastoral.
Como todo exercício, a espiritualidade exige experiência metódica. É como
aprender qualquer arte. No contexto espiritual, com o tempo, o importante não é
aprisionar-se num método, mas, a atitude de oração. Posteriormente, esta transforma-
se numa experiência de Deus.
O escopo da ascese sacrificante é sem dúvida a perfeição. No critério
sacrificante, o modelo de perfeição canaliza as luzes e exclui as sombras. Lida mal
com os conflitos básicos do ser humano: a afetividade/sexualidade, a agressividade e

15
a rivalidade entre irmãos e os superiores. A consequência é a exclusão negando a
compaixão e a misericórdia.
A ênfase do critério de avaliação espiritual é exterior e visível: observância do
horário, número de participantes, tom de voz, gestos, aparência física devocional,
código de normas iguais ou manuais de piedade comuns.
Estão presentes nesse modelo: o nivelamento de tudo e de todos; a desatenção
as singularidades e as diferenças; a monotonia e a ausência de criatividade. Tais
características promovem, ao longo do tempo, o sofrimento psíquico entre formadores
e formandos. Entra em cena, o conformismo, o cansaço e a anemia espiritual.
Ora, a energia que serviria para viver esses ideais possíveis da dimensão da
pessoa do Coração de Cristo é gasta com a negação de componentes importantes da
nossa humanidade. A vida pode tornar-se dramática, inútil e ridícula. Os ritos
litúrgicos tornam-se obrigação, meros preceitos a serem cumpridos e rigorosamente
executados. Desaparecem o sabor e as oportunidades de crescimento humano e,
consequentemente, de uma consistente espiritualidade formativa.

4.2. Ascese Emancipatória.

Há algum tempo, a Igreja recomendava aos cristãos a ascese sacrificante que


compreendia na anulação do desejo do sujeito, o auto sacrifício do corpo e os ritos
obsessivos de oração fortalecidos de fantasias persecutórias: posição masoquista.
Contemporaneamente, recomenda-se a ascese emancipatória. Esse modelo de
Igreja ou de educação da fé, considera a pessoa humana como potencial que se integra
através da realização corpórea, psíquica, social e espiritual. A ascese emancipatória
convida a pessoa a voltar-se sobre si mesma, como condição de estender-se em
direção ao outro. “Amar ao próximo como a si mesmo”. Voltar-se para si mesmo é viver
o Mistério da Encarnação. Este movimento constitui-se no diálogo entre a graça e a
natureza, nos dons do Espírito e da pessoa. Busca compatibilizar os dons e
dificuldades que habitam dentro cada ser humano: luzes e sombras.
A segunda recomendação da ascese emancipatória é o compromisso com o
dom da vida, que pressupõe a responsabilização com o outro. O outro como
lembrança constante do rosto de Deus que não deseja sacrifícios e sim, misericórdia.
(Mt 9, 13.): “Misericórdia eu quero, não sacrifício”. Coração que reconhece a própria
miséria e se solidariza da miséria do outro. Sofre com o outro. Corde – Coração,
ternura: “cuidado com a vida”.
A misericórdia não anula a vontade humana de fazer o mal ao outro e a si
mesmo. Nem renuncia a combatê-lo. A misericórdia se recusa eticamente
compartilhar a somar ódio ao ódio, egoísmo ao egoísmo, a cólera à violência. A
misericórdia não modifica a estrutura psíquica do sujeito, como se percebe na vida de
vários santos e místicos. A misericórdia escuta com afeto as lacunas humanas.
Proporciona espaço de consolação e de transfiguração de sujeitos.
A misericórdia não é uma virtude imposta. É uma escolha de homens e
mulheres livres e responsáveis. Ela acontece pelo distanciamento e a possibilidade,
que dele provém, de uma análise menos emotiva e mais realista das situações. A

16
misericórdia trás para agenda do cotidiano a Palavra. A Palavra desliza nas
experiências de amor, de ódio, de rivalidade e elabora as angustias e as frustrações
idealizadas.
A ascese emancipatória pode tornar as pessoas mais apaziguadas, agradecidas,
profundas, tolerantes, abertas afetivamente e receptivas ao relacionamento com o
outro. A experiência espiritual exige recursos psíquicos e teológicos. Algumas vezes,
o espiritualismo, na prática da oração, pode levar sujeitos a inumeráveis desvios ou
autoenganos24, como: alienação, delírios de perseguição, submissão, fundamentalismo
intolerante e fechamento narcísico e vaidoso. A ascese emancipatória exige
humildade, conhecimento e apaziguamento da história pessoal, silêncio, descoberta
amorosa de si, do outro e de Deus.
O sofrimento psíquico do sujeito, também, está relacionado a escolha de
concepção filosófica, educacional e teológica de fé. A organização do “Seminário” só
será verdadeiramente humana se for consequência da largueza e não da estreiteza do
coração e da prodigalidade. Caso contrário, ela não passará daquilo que, hoje,
lamentavelmente, temos que constatar: uma vivência de sofrimento psíquico. Para
alguns bispos, formadores e formandos apenas um fardo intolerável, só suportado por
força de dracônica autodisciplina, desastres pessoais ou apenas uma vantagem,
quando não expressão de soberba e autossuficiência.
Mas, realmente, há silenciosas experiências saudáveis, possibilidades humanas
de vida, cheia de belíssimas chances e severos riscos, pois, alguns bispos, formadores
e formandos apostam numa ascese emancipatória.

5. Bibliografia:

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disorders. 2nd ed. Westchester, III: American Academy of Sleep Medicine, 2005.

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24
MORANO, Crer depois de Freud. 2003, p.110.

17
MORANO, C. D. Crer depois de Freud. Loyola. 2003, p.110.

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Clero. L’Obsservatore Romano, Cidade do Vaticano: 8 de dezembro 2016.

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