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T extos C lássicos .........................


Nº DOI: 10.18065/RAG.2018v24n3.14

TEXTOS CLÁSSICOS

SOBRE NORMA, SAÚDE E DOENÇA. SOBRE


ANOMALIA, HEREDITARIEDADE E PROCRIAÇÃO
Kurt Goldstein (1934)*

Um organismo que atualiza suas peculiarida- uma decisão quanto ao conceito de norma. Além
des essenciais ou, o que significa a mesma coisa, disso, tal discussão parece oportuna para o nosso
encontra seu meio adequado e as tarefas que nele principal problema, porque os conceitos de saúde
surgem, é “normal”. Uma vez que essa realização e doença de modo algum dizem respeito apenas ao
ocorra num meio específico, de modo comporta- médico, mas ao campo da biologia por inteiro.
mental ordenado, pode-se indicar o comportamento Pode-se declarar como certo que qualquer
ordenado sob essa condição como comportamento doença é uma anormalidade, mas não que toda
normal. anormalidade é uma doença. Não importa como
nós definimos normalidade, há certamente muitos
desvios da norma que não significam estar doente.
Sobre a determinação da normalidade Mas o que é estar doente? Muitos vão concor-
dar com Albrecht (1) que uma definição geral de
SAÚDE E DOENÇA. Muitas tentativas foram conceitos como normal, saudável e doente não é
realizadas para determinar a normalidade. De acor- possível, e que esses conceitos são determinados
do com uma visão idealista, considera-se uma pes- pela convenção tradicional, assim naturalmente
soa como normal, ou mais ou menos anormal, con- sendo afligidos pelos problemas dessas convenções.
forme o grau em que ela corresponde a um certo Segundo Jaspers (2), doença é um conceito de valor
ideal filosófico. Assim Hildebrand desejaria que o que depende mais da concepção predominante em
conceito de norma fosse formado de acordo com um sua respectiva esfera cultural do que do julgamento
tipo ideal, como o de um herói. Qualquer conceito do médico. A decisão de se um fenômeno é pato-
de norma idealista é de pouca utilidade, porque ele lógico não tem, segundo ele, significância factual.
sempre irá divergir de acordo com a respectiva fi- O psicopatologista cuidadoso, por exemplo, de fato
losofia de vida. Além disso, ele sempre carrega um não daria ênfase a um julgamento tão geral como
caráter extrínseco, porque o seu quadro de referên- “doença”. Eu não gostaria de ter problemas com
cia não é orientado por qualquer realidade, mas esse argumento enquanto ele permanece puramen-
ao invés disso, teria que se justificar na realidade. te acadêmico. No entanto, me parece questionável
Mesmo se o conceito idealista de norma fizesse jus- se a ciência natural poderia ficar sem o conceito de
tiça às “constantes” das espécies, ao formar o ideal doença, o qual, afinal, expressa um fato, por mais
de acordo com essas constantes, ele ainda poderia que seja difícil formular esse fato precisamente. Ou-
falhar no que diz respeito ao individual. tros, Mainzer por exemplo, dizem que a doença é
O que nós precisamos não é apenas um concei- “de modo algum uma categoria da ciência da vida,
to geralmente válido de norma, o qual deve evitar o mas apenas um conceito médico ou pré-médico”.
“subjetivo”, mas um conceito com base no qual os Em nossa discussão, iremos desconsiderar aque-
fatos concretos possam realmente ser compreendi- les que buscam determinar a doença externamente –
dos. Com base nisso, um conceito estatístico da nor- como algo que, por assim dizer, recai sobre o paciente.
ma parece quase mais útil. Este conceito certamen- Nós lidaremos apenas com aqueles que consideram
te pode ser muito valioso para propósitos práticos doença como uma mudança do organismo. Assim nós
específicos que requerem formulações relativas à estamos, de fato, mais interessados com o problema
média. Mas ele não pode ser utilizado para deter- de estar doente e menos com o da doença1.
minar se um determinado indivíduo é considerado
normal ou anormal. O conceito estatístico da norma DOENÇA NÃO DETERMINÁVEL QUANTO
não faz justiça ao indivíduo. Entretanto, de acordo AO CONTEÚDO, NEM COMO DESVIO DE UMA
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com a nossa discussão anterior, nós apenas pode- NORMA SUPER-INDIVIDUAL. Vários estudos co-
mos nos satisfazer com um conceito de norma que mumente buscam determinar doença como um des-
seja adequado a esse propósito. vio, quanto ao conteúdo, da condição do organismo
Antes de poder elaborar isso detalhadamen- durante o estado de saúde, ou como um desvio de
te, nós queremos discutir primeiro, de modo mais uma norma que deve ser determinada em relação ao
aprofundado, outro conceito, ao qual isso está rela- conteúdo. A ambiguidade do conceito de doença se
cionado de diversas formas – o conceito de saúde e, mostra então, como uma consequência da ambigui-
o de seu oposto, doença. Dessa forma, nós espera-
1 Ainda, por uma questão de simplicidade, nós utilizaremos de modo
mos obter o material que nos tornará aptos a tomar geral o termo doença para o fenômeno ao qual estamos nos referindo.

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dade do conceito de norma. De uma “norma média” liaridade mudada, de um “comportamento desorde-
ou uma “norma idealista”, certamente é, em geral, nado”, a observação do tipo de reação que pertence
impossível derivar uma definição de doença em re- à catastrófica. As mudanças objetivamente verificá-
lação ao conteúdo. Estritamente no que diz respeito veis dos particulares, no pulso, temperatura, etc.,
ao conteúdo, não há, baseado nisso, diferença fun- são para o médico praticamente apenas uma con-
damental de longo alcance entre o organismo sadio firmação da exatidão de sua afirmação. E do mes-
e o doente. Mas é questionável se há justificativa em mo modo, o próprio paciente experiencia a doença
dizer, como Mainzer o fez, que “não há diferença em primariamente como uma mudança básica em sua
relação à vida sadia e a doente”. Em nossa opinião, a atitude com relação ao ambiente, como incerteza e
vida normal tem algo a ver com comportamento or- ansiedade – as manifestações subjetivas da condi-
denado. Nesse caso, seria possível que embora possa ção catastrófica.
não haver diferença entre a vida sadia e a doente, Essa caracterização mostra que o estar doen-
com relação ao conteúdo, ainda poderia haver di- te não é experienciado, nem pelo médico nem pelo
ferença em relação à forma. Possivelmente todas as paciente como uma mudança com relação ao con-
tentativas de determinar a doença até agora estavam teúdo, mas sim como uma perturbação no curso dos
condenadas ao fracasso porque procuravam por processos da vida. Por conseguinte, nem todo des-
determinações em relação ao conteúdo. Estas não vio da norma, quanto ao conteúdo, se mostra uma
podem ser encontradas com base em uma “norma” doença. Ele se torna, realmente, uma doença ape-
super-individual. O possível fracasso ao determinar nas quando, como L. Friedmann afirma corretamen-
a doença por meio desse procedimento nos leva, en- te, carrega consigo dano a e perigo para o organismo
tão, a assumir que a doença não é uma categoria da todo. Usando uma descrição provisória e mais ge-
ciência da vida. Tal resultado deveria tornar suspeita ral, que requer uma determinação mais específica,
a premissa original. Como é possível pensar que e podemos dizer: Uma condição pode ser designada
doença e a saúde poderiam não ser conceitos biológi- como doença quando ela põe em perigo a “existên-
cos! Se nós desconsiderarmos, por um momento, as cia”. Assim, estar doente aparece como uma per-
condições complicadas no homem, essa afirmação turbação da função, através da qual as mudanças
certamente não é válida para os animais, nos quais a quanto ao conteúdo podem meramente ocasionar
doença geralmente decide se o organismo do indiví- o sentimento de adoecimento. Consideradas nelas
duo “será ou não será”. Basta pensar sobre o prejuízo mesmas, as mudanças não precisam ser doença.
que a doença traz para a vida do animal não domesti- Fenômenos patológicos são a expressão do fato de
cado, ou seja o animal que não se beneficia da prote- que relações normais entre organismo e ambiente
ção do homem! Se a ciência da vida é supostamente mudaram por meio de uma mudança no organismo,
incapaz de compreender o fenômeno da doença, de- e de que assim muitas coisas que eram adequadas
ve-se duvidar seriamente da sua apropriação, e em para o organismo normal já não são mais adequadas
verdade, das categorias intrínsecas de uma ciência para o organismo modificado.
assim construída. Doença é choque e perigo para a existência.
Mas, vamos deixar de lado, pelo menos por Assim, uma definição de doença requer uma con-
enquanto, esse problema de definição e vamos ver cepção de natureza do indivíduo como ponto de
como os próprios pacientes e os médicos distin- partida. A doença aparece quando um organismo
guem saúde e doença. Eu acredito que eles proce- é mudado de tal forma que, mesmo em seu meio
dem primeiro não focando no conteúdo. Certamen- “normal” apropriado ele sofre reação catastrófica.
te, o médico assim como o paciente podem ficar Isso se manifesta não apenas em perturbações espe-
desconfiados quanto a saúde, quando reconhecem cíficas da performance, correspondendo ao local do
desvios do comportamento usual no que diz respei- defeito, mas em perturbações bastante gerais por-
to ao conteúdo, como por exemplo, fadiga anormal, que, como vimos, o comportamento desordenado
palpitação do coração, náusea, dor de cabeça, pés em qualquer área coincide sempre com um com-
inchados, etc. Mas nem para o médico nem para portamento mais ou menos desordenado em todo
o paciente essas manifestações são doenças em si, o organismo.
mas no máximo, sinais de que uma doença pode Com essa definição de doença como uma per-
existir. A experiência de estar doente não contém turbação do curso dos processos, nós estamos, em
necessariamente qualquer tipo definido de mudan- geral, em concordância com alguns autores. Assim,
ça quanto ao conteúdo. E o médico, quando deci- por exemplo, nós podemos concordar com Lubarsch
de se está lidando com um caso de doença, é, na (3), que caracteriza a doença como uma perturbação
maior parte, guiado por um critério completamente do equilíbrio vital, ou com Ribbert (4) que a chama
diferente da prova de uma mudança no conteúdo. de o resultado da insuficiência ou completa falta de
No mínimo, o bom médico procederá dessa forma adaptação a influências nocivas, ou com Schilling
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enquanto sua apreensão ingênua de saúde e doença (5), para quem a doença é uma perturbação do curso
não for tendenciada pelo conhecimento de inume- biológico ordenado no organismo, sendo que essa
ráveis detalhes científicos. perturbação não pode mais ser removida por meio
do grau usual de regulação. Nosso ponto de vista é
A DEFINIÇÃO DE DOENÇA PRESSUPÕE particularmente próximo ao de Aschoff (6) e ao de
UMA CONCEPÇÃO DE NATUREZA DO INDIVÍ- Grothe (7). Aschoff define a doença como qualquer
DUO. Agora, qual é a base para o julgamento: “Ele perturbação no curso dos processos biológicos “por
está doente”? Trata-se da observação de uma pecu- meio da qual o organismo é posto em perigo em sua

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Análise Fenomenal: Exemplificada por um Estudo da Experiência de “Realmente se Sentir Compreendido”

existência biológica”. Com relação a essa definição, pelo aumento do funcionamento de outras. Assim,
parece-nos que a caracterização da existência como a performance total pode permanecer essencialmen-
biológica, no sentido comum da palavra, é muito te inalterada. Mas, essa pressuposição é muito du-
limitada. Entretanto, eu não posso concordar com a vidosa. Seria possível concebe-la apenas enquanto
objeção de Friedmann de que essa definição é mui- se considera as performances do organismo como
to limitada porque o clínico inquestionavelmente compostas por performances partitivas e, enquanto
conhece condições patológicas que não colocam a se assumir, por assim dizer, um agente especial para
existência em perigo. Essa objeção seria válida ape- a regulação do todo com o auxílio do qual uma per-
nas caso se pensasse sempre em morte quando se formance perdida poderia ser substituída por outra.
pensa sobre perigo para a existência. Mas a objeção Porém, caso se considere cada performance como
não se sustenta caso se considere que perigo sem- dependente do todo, como uma expressão especial
pre significa colocar em perigo a atualização das do todo, não é, então de fato, possível assumir uma
“potencialidades de performance” essenciais para o substituição per se. Na verdade, a substituição pa-
organismo do indivíduo. Esse perigo pode se mani- rece ocorrer apenas sob um exame superficial. Nós
festar em perturbações objetivas como também em obtemos essa impressão quando, apesar de um defei-
experiências subjetivas. Mas pode também existir to, o organismo continua a realizar performances um
objetivamente sem que a pessoa se torne subjetiva- tanto adequadas, de modo que o indivíduo não apa-
mente consciente disso. rece mais como estando essencialmente perturbado.

DOENÇA COMO UM “RESPONSIVIDADE A RESTAURAÇÃO DA SAÚDE. Uma análise


DEFEITUOSA”. O nosso ponto de vista, provavel- cuidadosa mostra que o antigo modo de performan-
mente, está mais próximo ao de Grothe. Nós con- ce e o antigo modo de fazer um acordo com o antigo
cordamos completamente com ele quando o autor meio nunca é alcançado pelo paciente. Nós conside-
diz que a doença pode ser determinada apenas por ramos muito importante tornar esse ponto comple-
meio da norma que permite levar a completa indi- tamente claro. O leitor pode estar surpreso por nós
vidualidade concreta em consideração, uma norma rejeitarmos a suposição de qualquer compensação
que faz do indivíduo mesmo a sua medida; em ou- para as performances perdidas (apesar do fato de
tras palavras, uma norma pessoal, individual. Se- nós termos defendido uma relativa independência
gundo Grothe, o indivíduo é a medida de sua pró- de longo alcance das performances de seu substrato
pria normalidade. A saúde é definida pelo fato de normal, e apesar do fato de nós considerarmos qual-
que “a manifestação da vida de um indivíduo se quer performance como uma do organismo todo).
ajusta completamente às suas exigências biológicas Em primeiro lugar, a observação em si torna
que emergem do encontro das “potencialidades de essa conclusão atraente. Mas se opor à ideia de
performance” fisiológicas com sua situação externa compensação não contradiz o nosso ponto de vista
de vida”. Esse “ajustamento” é descrito como res- sobre a relação da performance para o com o subs-
ponsividade. Doença é “uma responsividade defei- trato. Por mais que estejamos convencidos da rela-
tuosa que resulta objetivamente em prejuízos na tiva independência da performance individual de
capacidade e na duração da performance, e subje- um determinado substrato localizado, nós estamos
tivamente, em sofrimento”. Qualquer tentativa de igualmente certos de que as performances normais
determinar saúde e doença sobre essa base torna são limitadas à integridade estrita do organismo
pré-requisito, certamente, a determinação da “na- todo, no que diz respeito à sua organização estru-
tureza” individual da pessoa em questão. Funda- tural. Em uma formação que é qualitativamente e
mentados em nossas exposições anteriores, nós não estruturalmente tão diferenciada quanto o organis-
vemos, nesse ponto, dificuldades para o ponto de mo, não há algo como a compensação. Se as perfor-
vista de Grothe. Mas, outra dificuldade surge. mances perdidas retornam, isso é possível por meio
Se recuperar a saúde consistisse em realizar da restituição do dano ou por meio da execução de
uma suficiente remoção dos desvios da norma do performances que são similares apenas em seu efei-
indivíduo que foram causados pela doença, então to. Mas, nós sempre encontraremos uma simultânea
a saúde poderia ser recuperada apenas por meio de perda de outras performances ou a da restrição do
uma restituição completa do estado normal anterior meio. Recuperar a saúde, enquanto o defeito perma-
(restitutio ad integrum). Isso, todavia, limitaria in- nece, é possível apenas sob certas limitações. Uma
cisivamente o conceito de saúde, se comparado ao vez que o principal critério para recuperar a saúde
uso comum do termo. Além disso, indubitavelmen- é a restituição da ordem, qualquer outra mudança
te há pessoas que não se consideram doentes, por remanescente pode, a princípio, não ser percebida,
mais que o defeito possa permanecer. Grothe escapa enquanto não prejudica ou prejudica apenas em pe-
dessa dificuldade, mas apenas aparentemente, ao queno grau o comportamento ordenado. Nós vere-
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afirmar que o paciente é capaz de compensar, atra- mos mais adiante que essa ordem depende, no en-
vés de adaptação morfológica e funcional, o desvio tanto, de um mínimo de performances essenciais.
de sua norma individual no que diz respeito à ca- A saúde não é restaurada, como Grothe afirma,
pacidade e duração de performance. O paciente fica por meio da compensação ou da substituição das
bem apesar do defeito residual, porque ele substitui perturbações quanto ao conteúdo. Pelo contrário,
as performances perdidas por outras. Essa ideia está ela é restaurada se uma relação entre as performan-
baseada na pressuposição de que a deficiência no ces preservadas e as perturbadas for alcançada, a
funcionamento de uma parte pode ser compensada qual torna (apesar dos defeitos residuais) a “respon-

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sividade” possível novamente. Essa relação é in- ma norma super-individual, enquanto que a partir
dependente de um ferimento em um determinado da norma individual isso pode ser muito bem feito.
substrato. Se certas mudanças não indicam perigo, Se o indivíduo perdeu conteúdos essenciais, ele se
então elas não geram uma doença, mas são apenas torna doente. Ficar bem novamente, apesar dos de-
desvios que permanecem irrelevantes contanto que feitos, sempre envolve uma certa perda na natureza
o indivíduo esteja apto para lidar com as demandas essencial do organismo. Isto coincide com o reapa-
psicológicas e físicas de seu meio pessoal apesar recimento da ordem. Uma nova norma individual
dessas mudanças – em outras palavras, não esteja corresponde a essa reabilitação.
ameaçado em sua “existência”. O quanto a restauração da ordem é importante
Esse é o caso, para mencionar alguns exem- para a recuperação pode ser visto a partir do fato de
plos de Grothe, quando o coração é muito pequeno, que o organismo parece ter uma tendência primá-
na albuminúria fisiológica ou na vaso-motilidade ria de preservar, ou obter, capacidades que tornem
anormal. Indivíduos com essas mudanças parecem isso possível. O organismo, antes de tudo, parece
saudáveis porque eles estão adaptados a um meio determinado a começar a ganhar constantes nova-
pessoal muito específico. O fato de que a adaptação mente. Nós podemos encontrar na cura (com defei-
ao meio pessoal é o requisito básico para a saúde to residual) mudanças em vários campos quando
deles se mostra quando eles ficam doentes na medi- comparados com a antiga natureza do organismo;
da em que essa adaptação não se faz presente, por mas, o comportamento mostra que o caráter das
exemplo, na medida em que demandas “normais” performances é novamente “constante”. Nós acha-
médias são feitas a eles. De modo similar, mesmo mos constantes tanto no campo corporal quanto no
um indivíduo normal pode ficar doente quando de- mental. Por exemplo, se comparado com o compor-
mandas além de suas potencialidades médias são tamento anterior, nós achamos uma mudança na
feitas a ele. pulsação, na pressão sanguínea, na quantidade de
Não se trata de uma objeção válida contra essa açúcar no sangue, nos limiares, nas performances
definição de doença afirmar que com base nela, por mentais, etc., mas essa modificação é uma das cons-
exemplo, um paciente com uma úlcera no estôma- tantes formadas recentemente nos respectivos cam-
go ou um tumor maligno pode ser designado como pos. Essas novas constantes garantem uma nova
saudável, na medida em que nenhuma perturbação ordem. Nós podemos entender o comportamento
em sua responsividade se tornou óbvia. Primeiro, do organismo recuperado apenas se considerarmos
a afirmação de que não há perturbações pode ser esse fato. Nós não devemos tentar interferir nessas
traçada, até certo ponto, como uma insuficiência novas constantes, porque criaríamos assim novas
de observação por parte do paciente assim como desordens. Nós aprendemos que a febre nem sem-
do médico. Segundo, tal objeção é injustificada a pre deve ser combatida, mas que um aumento da
partir do nosso ponto de vista porque é demasiado temperatura pode ser entendido como uma dessas
míope considerar, como ela faz, o organismo apenas constantes que são necessárias para tornar a cura
em sua situação presente e não considerar que cada possível. Nós aprendemos a tratar de modo similar
fenômeno pode ser devidamente avaliado apenas certas formas de aumento da pressão sanguínea ou
quando relacionados como partes da vida total do certas mudanças psicológicas. Há muitas alterações
indivíduo, particularmente no que diz respeito ao de constantes que, hoje, nós ainda tentamos remo-
seu futuro. Nós podemos designar uma pessoa com ver por sua suposta nocividade, enquanto seria me-
esse estigma como estando saudável apenas se nós lhor não interferir.
não esperamos nenhuma perturbação da responsi- Uma compreensão mais profunda da natureza
vidade no futuro. Se esse for o caso – e decidir isso das neuroses, assim como das lesões cerebrais, tem
é realmente o requisito básico de um diagnóstico nos mostrado que desvios da norma nem sempre são
médico – nós certamente devemos designar o pa- sinais de adoecimento. Ao contrário, alguns deles
ciente como doente. pertencem aos processos no paciente que o prote-
Assim, estar bem significa ser capaz de com- gem de certos perigos naturalmente envolvidos na
portamento ordenado que pode prevalecer apesar mudança para uma nova normalidade. Nós apren-
da impossibilidade de certas performances que demos a considerar certos desvios como uma neces-
eram possíveis antigamente. Mas o novo estado de sidade para o bem-estar. Eles pertencem ao tipo de
saúde não é o mesmo que o anterior. Essa observa- mudança do meio que permite um comportamento
ção marca a principal diferença entre o nosso pon- relativamente ordenado, e, assim, protege o organis-
to de vista e o de Grothe. Assim como uma deter- mo de demandas com as quais ele não possa lidar.
minada condição no que diz respeito ao conteúdo
pertence ao antigo estado de normalidade, também
uma determinada condição no que diz respeito ao Resumo do nosso conceito de saúde e doença.
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conteúdo pertence à nova normalidade; mas, é cla-


ro, os conteúdos de ambas diferem. Essa conclusão, 1. O bem-estar consiste em uma norma indi-
que segue como uma coisa natural a partir do nosso vidual de funcionamento ordenado, expressa em
conceito de organismo que também é determinado constantes definidas, responsividade e em decidi-
quanto a conteúdos, torna-se de extrema importân- damente em modos de comportamento incontesta-
cia para a atitude do médico em quanto àqueles que velmente preferidos (natureza essencial, adequação
recuperaram sua saúde. A doença não pode ser de- individual, média individual de processos de equa-
terminada quanto aos conteúdos a partir de nenhu- lização, etc.).

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2. Doença é um funcionamento desordenado, perturbações subjetivas, assim como as objetivas,


ou seja, responsividade defeituosa, do organismo reaparecem imediatamente quando o paciente reas-
individual em comparação com a norma desse in- sume a posição antiga, a posição normal do corpo.
divíduo como um todo. Essa desordem é doença na Aparentemente, a anormalidade de postura se tor-
medida em que ameaça a auto atualização. nou um pré-requisito para performances melhores,
3. A mudança no conteúdo não constitui a tornou-se a nova situação preferida. Assim, nós
doença, mas é um indicador da existência de desar- consideramos as anormalidades da postura como
ranjo funcional do todo. processos de compensação, assim como Poetzl as
4. Cura é um estado de funcionamento orde- considerou. Manifestamente, a compensação surge
nado recém-atingido, ou seja, responsividade, arti- em alguns casos por meio de uma inclinação em
culado sobre uma relação especificamente formada direção ao lado adoecido e, em outros, em direção
entre performances preservadas e comprometidas. ao lado saudável.
Essa nova relação opera na direção de uma nova Como esse comportamento pode ser explica-
norma individual, de nova constância e adequação do? Como qualquer outro tipo de defeito, um de-
(conteúdos). feito cerebelar resulta em dois tipos de sintomas.
5. Toda cura com defeitos residuais implica Primeiro, sintomas que consistem em perturbações
em alguma perda na “natureza essencial”. Não há de certas performances; segundo, aqueles que con-
substituição real. sistem em uma desordem geral do comportamento
Em sua tendência de manter performances total que é determinado pelo fenômeno catastró-
ótimas e de obter um novo funcionamento ordena- fico, correspondendo à inadequação das reações.
do, o organismo doente ou se adapta a um defeito Por meio da postura anormal, não apenas as perfor-
menos relevante cedendo a ele ou se ajusta a um mances específicas são melhoradas, mas também
defeito maior ao reorganizar a performance danifi- as reações catastróficas são diminuídas. Uma nova
cada à custa de outras (troca). Em ambos os casos, a ordem existe que pode ser atingida de dois modos.
nova ordem necessita de uma restrição ou diminui- Um deles é o organismo ceder ao puxão do tônus.
ção das potencialidades de performance (natureza Por meio da inclinação do corpo na direção do lado
essencial) e do meio. do puxão, uma posição na qual estímulos iguais
produzem efeitos iguais nos dois lados é atingida2.
OS DOIS TIPOS DE ADAPTAÇÃO A UM DE- Mas essa mudança é de valor para o organismo
FEITO. Ao que parece, a adaptação a um defeito ir- apenas caso essa posição oblíqua não se torne uma
reparável toma, essencialmente, direções opostas. perturbação em si, por exemplo, se tornar impos-
Ou o organismo se adapta ao defeito, ou, por assim sível manter o corpo todo em equilíbrio. Portanto,
dizer, se rende a ele, ou se resigna a performances a inclinação na direção do lado adoecido aparece
defeituosas mas ainda aceitáveis que ainda podem apenas em pacientes com danos pequenos. Apenas
ser realizadas, e se renuncia a certas mudanças do nesses casos o antigo modo de procedimento é pre-
meio que correspondem às performances defeituo- servado. O mesmo ocorre com a hemiambliopia. O
sas; ou o organismo encara o defeito, se reajusta de outro modo é observado quando o dano é tão gran-
forma que o defeito, em suas consequências, é man- de que o paciente cairia imediatamente se ele se in-
tido em cheque. Nós, de fato, mencionamos esses clinasse na direção do lado adoecido. Posteriormen-
dois tipos de comportamento em nossa discussão te, nós temos uma postura anormal na direção do
sobre as sequelas das lesões no sulco calcarino. Lá lado oposto, ou seja, do lado saudável. O, anormal,
nós vimos que os resultados de cada um desses dois puxão do tônus na estimulação do lado adoecido é
tipos de comportamento estão relacionados ao grau equilibrado da tal forma que, devido a postura anor-
do distúrbio. O mesmo pode ser verificado em mui- mal – que, nesse caso, significa esforço anormal – a
tos e diferentes campos. estimulação comum do ambiente no lado saudável,
Nós queremos demonstrar isso, aqui, com um agora, também se torna efetiva com força anormal.
exemplo particularmente instrutivo. Em pacientes Dessa maneira, um estado de equilíbrio é obtido
com lesão em um lado do cerebelo, nós sempre novamente, nesse caso por meio de uma mudança
encontramos um “puxão no tônus” em direção ao no tipo de comportamento, por meio de um novo
lado adoecido. Todos os estímulos que são aplica- ajustamento, como ocorre quando há destruição
dos a esse lado são percebidos com uma intensi- completa da calcarina na hemianopsia. Esse tipo de
dade anormal, com um anormal “voltar-se para o adaptação é mais ativa, mais voluntária. Gradual-
estímulo”. Isso leva a desvios no caminhar, a uma mente, no entanto, ela se torna tanto uma questão
predisposição a cair, apontar em direções erradas, de costume, que então o paciente dificilmente fica
etc., sempre na direção do lado adoecido. Geral- consciente da postura anormal. Ele apenas sabe que
mente, os pacientes exibem simultaneamente uma assim ele se sente melhor.
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anormalidade de postura na forma de uma inclina- Os dois tipos de adaptação não são igualmen-
ção do corpo, especialmente da cabeça. Na medida te importantes para o organismo como um todo. O
em que o paciente permanece nessa postura anor- primeiro envolve mais segurança, é mais automáti-
mal ele se sente relativamente à vontade, tem me- co, e geralmente é acompanhado por uma melhora
nos perturbações subjetivas do equilíbrio, menos não tão grande quanto o outro. O segundo envolve
vertigem, etc. Suas performances objetivas, como menos segurança, requer mais comportamento voli-
caminhar, apontar, etc. são melhores. Os desvios
2 Nós teríamos que ir muito longe para explicar isso mais detalhadamen-
podem desaparecer completamente. No entanto, as te (cf. Goldstein, “Das Kleinhirn” (8).

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tivo, e por isso leva mais facilmente a flutuações; no que animais, depois da amputação de membros,
entanto, no campo em especial a performance pode não podem lidar com todas as demandas que eles
melhorar mais. Uma vez que, como vimos, o ponto “normalmente” podem encontrar. Essas limitações
principal é atingir um comportamento ordenado, são facilmente esquecidas porque prestamos aten-
nós percebemos que, na medida em que a perfor- ção, antes de tudo, à restauração das performances
mance em um determinado campo seja suficiente particularmente importantes. Por exemplo, presta-
boa, o primeiro, o tipo mais seguro de adaptação, -se atenção à restauração da locomoção nos animais
ocorre. O segundo tipo aparece apenas quando o depois da amputação da perna ou do funcionamen-
primeiro não mais alcança o propósito, ou seja, se to de um certo músculo após um transplante no ho-
ele não atingir uma performance suficientemente mem, etc. Nós sabemos que, após um transplante, a
boa em um determinado campo, ou se como nós energia restaurada é raramente mais que um terço
já dissemos, um comprometimento insuportável do da energia de controle do músculo e que os mús-
todo do organismo venha a ocorrer. culos transplantados sofrem fadiga anormal nas
Nesses dois diferentes tipos de adaptação, performances originalmente “normais”. É fácil ha-
nós estamos lidando com regras gerais às quais é ver enganos em experimentos com animais e uma
preciso estar atento. Somente assim que sintomas adaptabilidade de longo alcance ser presumida de-
aparentemente contraditórios em lesões de mesmo vido ao esquecimento de que os animais não vivem
caráter ser tornam inteligíveis. Isso vale tanto para em sua situação natural. É o cuidado humano que
fenômenos em seres humanos doentes quanto para os salva de certas tarefas, assim a limitação resul-
experimentos com animais. tante não se torna aparente. Então, por exemplo,
Se nós analisarmos os vários tipos de ajusta- nos experimentos de Cannon, os animais não eram
mento e, particularmente, a significância da de- expostos às “normais” variações de temperatura, à
manda do meio para o desenvolvimento da adapta- normal luta por comida, à necessidade normal de
ção, a lei básica que domina a vida do organismo se escapar de inimigos, ao perigo normal de sangrar
torna especialmente clara. É de extrema importân- até a morte (9), porque as condições do laboratório
cia para o organismo atingir uma condição que seja eram favoráveis nesses aspectos. Ainda assim esses
adequada à sua “natureza”, nesse caso à sua natu- animais eram inquestionavelmente defeituosos em
reza modificada. Com base nesse ponto de vista, o muitos aspectos. Eles estavam, na verdade, muito
ajustamento pode ser entendido, porque só então as menos protegidos contra a influência do frio e do
performances são possíveis. Assim, pode acontecer calor, eles não podiam manter uma temperatura
de a adaptação ao defeito não operar muito na di- corporal constante e independente da temperatura
reção de recuperar performances antigas, mas, ao do mundo externo e fenômenos similares.
invés disso, ir na direção de atingir comportamento O reajustamento é possível apenas se, simul-
ordenado. Das performances que em si ainda são taneamente, é feita provisão para a restrição reque-
possíveis, aquelas que podem ser utilizadas dentro rida do meio, de tal forma que nenhum estímulo,
da estrutura do novo comportamento ordenado são que poderia ocasionar uma reação catastrófica,
atualizadas, ou pelo menos as que não o perturbam. possa afetar o organismo. Nós vimos anteriormente
O comportamento ordenado é visado, mesmo à cus- como pacientes com lesões cerebrais gradualmente
ta de certas performances que ainda poderiam ser adquirem esse novo meio, e a forma como eles o
possíveis se fosse um meio diferente. fazem. Mas eles podem obter um novo meio apenas
se um parceiro torne isso possível ao providenciar
A TENDÊNCIA EM DIREÇÃO À PRESERVA- um ambiente adequado para sua nova condição.
ÇÃO COMO UMA EXPRESSÃO DA DECADÊNCIA Produzir esse estado é o objetivo da prática médica
DA VIDA. Nessa condição patológica, a tendência a em geral. Na medida em que a terapia médica não
preservar o estado atual pode se tornar o meio de so- erradica o dano, ela consiste apenas em rearranjo
brevivência. Se o biólogo descansa sua teoria sobre as do meio. Para evitar malentendidos, eu gostaria de
observações dessas condições, então um impulso em pontuar que o termo “rearranjo do meio” deve ser
direção à autopreservação pode aparecer como uma entendido no sentido mais amplo. Assim, ele inclui
característica essencial do organismo, enquanto, na a necessidade de tomar certas drogas continuamen-
verdade, a tendência em direção à autopreservação te, permanecer em um certo modo de vida, evitar
é um fenômeno da doença, da “decadência da vida”. situações de indulgências nos reinos somáticos e
A necessidade de obter um novo meio adequado psicológicos, de renunciar ou de entrar em certas
depende de dois fatores, assim como a vida em geral. relações humanas, etc. Nós iremos ver, na discus-
Ela depende, antes de tudo, da “natureza do organis- são sobre a atuação na esfera biológica, quais difi-
mo” em si, tanto quanto do mundo. Aqui, porém, esta- culdades extraordinárias são encontradas.
mos particularmente interessados no segundo fator, a Antes de nos determos sobre outras conse-
significância do “mundo”. O organismo mudado deve quências de nossa perspectiva, nós temos que co-
encontrar, no “mundo”, um novo “meio”. mentar sobre o caráter individualista que nossa des-
Em nossa discussão sobre os processos na le- crição de saúde parece ter. A adequação, no sentido
são no calcarino nós apontamos que o reajustamen- de “responsividade”, manifesta-se na melhor capa-
to ocasionado pelo defeito é sempre acompanhado cidade de performance do respectivo indivíduo. En-
por uma limitação das performances ou uma restri- quanto nossa descrição se abstém completamente
ção do meio. O mesmo fenômeno ocorre em todas de indicar os conteúdos das performances, ela é,
as curas em que um defeito permanece. É sabido por outro lado, independe de qualquer concepção a

409
priori de homem, permitindo uma ênfase tanto nos CONHECIMENTO BIOLÓGICO E AÇÃO
aspectos de sua natureza individual quanto coleti-
va. Nossa determinação não traz nenhuma decisão Aqui nós encaramos uma das tarefas mais di-
a esse respeito e certamente não é “individualista” fíceis. Nós temos que decidir qual curso deve ser
no sentido de ser egocêntrica. O nosso problema tomado. Obviamente, não é suficiente basear essa
não é a pessoa enquanto um indivíduo, mas a indi- decisão nas mudanças que o paciente as manifes-
vidualidade. É bem possível que a atitude social, o ta. Em vez disso, é imperativo considerar a perso-
caráter da associação concreta a um grupo, pertença nalidade pré-mórbida do paciente por inteira e sua
essencialmente ao homem. Se isso é verdade, então transformação por mudanças irreparáveis.
essa atitude pertence à norma individual dos hu- A imperfeição de todo conhecimento biológi-
manos e a saúde será mantida apenas quando essa co, sua incompletude em princípio, se mostra em
característica essencial, entre as outras, for realiza- toda a sua severidade quando ele se torna a base
da. Eu, pessoalmente, adoto esse posicionamento. de nossas ações. Nós não podemos evitar essa difi-
Caso, porém, essa atitude não pertença à norma, culdade dizendo que a concepção que nós obtemos
então a exigência por comportamento social seria acerca do organismo não é mais do que um símbolo
totalmente inadequada, e iria, portanto, ser incom- e que ela se torna o fundamento de nossas ações
patível com o comportamento ordenado e também como uma ficção, no sentido de uma filosofia do
com a saúde. Não importa qual decisão seja tomada “como se” (Vaihinger).
sobre essa questão, o conceito de norma, que nós Alguns médicos conceberam a prática médi-
desenvolvemos aqui, poderá ser empregado. ca como sendo determinada por tais ficções. Mas
Uma vez que o comportamento ordenado tem ela não pode se dar dessa maneira. Orientada por
uma significância extraordinária para o organismo ficções, não se pode nunca chegar a uma ação defi-
ferido, a restrição do meio sob certas condições pode nida. Nossa cognição, de fato, não é ficção. Embora
ser tornar tão grande que a restrição em si pode, por a cognição seja, é claro, limitada pela extensão do
sua vez, tornar-se uma causa de reações catastrófi- estado de conhecimento e assim estando sujeito a
cas. Esse pode ser o caso se a limitação incapacita o alterações, ela ainda é real. Não há outra realidade
organismo de executar outras performances “essen- para a pessoa em ação. Para a prática médica, o cor-
ciais”. Por exemplo, quando certas atividades men- po de conhecimento, em um dado momento, é na
tais que se mostram indispensáveis ao paciente se verdade a realidade.
tornam impossíveis devido a alguma incapacitação Enquanto, por um lado, a situação nos impele
corporal, então a vida, em tal forma limitada, tor- a agir, por outro lado, a ação em si se torna uma
na-se inadequada a ele. Assim, não raro, pelo que fonte de saber para nós. Não obstante, toda certeza
pode ser chamado de uma medida de proteção da surge da verificação que o conhecimento encontra
natureza, o paciente é poupado de uma catástrofe na ação ou de sua correção por meio da ação. Assim
ao não perceber sua mudança. Por exemplo, essa o conhecimento médico, e provavelmente todo co-
perda da percepção aparece na lesão cortical ou em nhecimento biológico, está estreitamente amarrado
doenças corporais muito sérias como tuberculose, à ação; entretanto, não no sentido de um pragma-
câncer no útero, etc. Nos casos mais sérios, o pa- tismo determinado por normas alheias, mas como
ciente perde a consciência por completo. ação ditada pela realidade, que por sua vez pode
Mas há situações limite nas quais um dano ser alcançada apenas por meio do conhecimento.
corporal severo existe de fato, mas a consciência A relação entre esse tipo de ação e conhecimento
da condição ainda não desapareceu. Nessas situa- não é para ser uma estranha entre dois fatores in-
ções, podem surgir conflitos psicológicos intensos. dependentes, como a comum conexão entre teoria e
Então nós constatamos a tendência em direção à aplicação prática na ciência médica. Antes, conheci-
autodestruição como a possibilidade de adaptação mento e ação estão inter-relacionados de um modo
suprema, apesar de fatal para o indivíduo. E, com dialeticamente determinado. Conhecimento sem
isso, o suicídio ocorre como uma expressão do cho- ação não é conhecimento e ação sem conhecimento
que catastrófico mais sério, causado pela realização não é ação. Ambos se originam mutuamente, no tes-
da impossibilidade de existência. Essa situação de te de suas capacidades de gerar frutos, assim como
conflito se torna muito importante para as delibe- em suas adequações à realidade e suas aptidões
rações em qualquer tratamento médico. Esse trata- para manter a natureza ao invés de perturba-la ou
mento terá sempre que ser guiado pela atenção ao distorce-la. No médico, para dizer concretamente,
fato de se a restrição do meio, que todos os tratamen- conhecimento e ação surgem juntos em suas apti-
tos ocasionam, não limita, para o indivíduo, as pos- dões para ajudar a preservar, o máximo possível, o
sibilidades de auto atualização além do ponto que ser humano vivo em sua natureza específica.
é suportável. Assim, algumas vezes será necessário Essa “ação da cognição” demanda decisão livre
tolerar uma certa perturbação, um “sintoma”, por por causa da incompletude do conhecimento bioló-
ser mais suportável que a redução de performances gico sempre existente. Aqui, a concepção holística
mais essenciais resultante de grandes limitações do manifesta sua significância bastante única para a
meio. Por outro lado, é preciso haver demandas tão medicina na relação entre médico e paciente. Se re-
altas quanto possível, porque apenas assim a res- cuperar a saúde significa perda da essência, isso im-
ponsividade ocorre de fato. Demandas muito baixas plica maior dependência do ambiente, vínculos mais
podem se mostrar um obstáculo para a produção de fortes com os eventos ambientais; um declínio do
performances ótimas (10). comportamento de vida multiforme, para um com-

410
portamento mais limitado, compulsivo e mecânico; paciente, existe de maneira similar quando se lida
uma desintegração de uma organização pessoalmen- com qualquer ser vivo. E visto que estamos tão dis-
te padronizada, unicamente direcionada, para rea- tantes de um conhecimento da natureza essencial
ções governadas pela lei da causalidade. Em resumo, dos animais, nós não deveríamos interferir em seus
isso significa limitação da liberdade. Isso, entretanto, modos de vida sem estarmos conscientes desse pro-
implica que decisões médicas sempre requerem uma blema.
invasão sobre a liberdade de outra pessoa. Nossa discussão nos levou a um assunto que
Assim todo o complexo problema do conceito parece muito distante dos tópicos biológicos co-
de liberdade entra na prática médica. As dificulda- muns. Com os conceitos de liberdade e responsa-
des são agravadas, visto que em qualquer tratamen- bilidade nós entramos em uma esfera espiritual e,
to a livre decisão do paciente em si não deve ser aparentemente, nos removemos da ciência natural.
desconsiderada. Assim, o paciente frequentemente Sem dúvida, essa não é a primeira referência des-
tem a escolha de querer aceitar uma limitação do se tipo que nós fizemos durante nossa tentativa de
meio – correspondente à mudança causada pela compreender o comportamento humano. Afinal, li-
doença – e a resultante limitação da liberdade, ou berdade é meramente a expressão daquele tipo de
uma limitação menor e em vez disso maior sofri- comportamento que a análise de pacientes com le-
mento. Se o paciente suporta mais sofrimento, ele sões cerebrais nos levou a considerar como um atri-
vai ganhar em possibilidades de ações, uma vez que buto essencial da natureza humana. Nós devemos
as medidas terapêuticas podem ser capazes de redu- encontrar estes problemas espirituais na discussão
zir o sofrimento, mas ao mesmo tempo diminuem a seguir sobre o conceito de anomalia.
as performances. Ele deve escolher entre uma falta
de liberdade maior e sofrimento maior. É bastante
óbvio que essa não é uma alternativa superficial, SOBRE ANOMALIA E ESPÉCIES
mas essa decisão toca profundidades metafísicas.
Assim, com frequência, é na doença que o indiví- A suposição de que uma mudança qualitativa
duo revela sua verdadeira natureza. do conteúdo é parte da recuperação com defeitos
Dar conselho ou, o que é ainda mais, orienta- residuais abre caminho para uma discussão sobre
ção, em tal situação, ultrapassa a competência do a relação entre doença e anomalia. Anomalia sem-
médico? Em qualquer ocasião ele estará apto para pre representa um desvio de conteúdo da norma em
fazer isso apenas se ele estiver totalmente convic- alguma forma definida. Também, ao lidar com o
to de que a relação médico-paciente não depende problema da anomalia, nós queremos discutir pri-
apenas do conhecimento da lei da causalidade, mas meiramente as condições no homem. Certamente,
trata-se de um acordo entre duas pessoas, em que há anomalias em animais. Porém em primeiro lu-
uma deseja ajudar a outra a obter um padrão que gar, elas são, normalmente, muito mais difíceis de
corresponde, na medida do possível, à sua natu- descrever porque nós somos muito menos treinados
reza. Essa ênfase sobre o relacionamento pessoal para identifica-las. Essa dificuldade começa mesmo
entre médico e paciente delimita, de modo impres- quando nós somos confrontados com membros de
sionante, o contraste entre o ponto de vista da me- “raças” com as quais estamos menos familiarizados.
dicina moderna e a mera mentalidade das ciências E em segundo lugar, é quase impossível determinar,
naturais dos médicos na virada do século. Por mais em animais, a natureza das espécies tão claramente
que sempre pareça que o médico esteja interferindo para que um desvio dela pudesse ser caracteriza-
apenas em eventos corporais ou mentais, ele deve do com qualquer grau de certeza. Essa dificuldade
ter em mente que qualquer interferência efetiva, ocorre devido à interferência do homem, a exemplo
não importa o quanto aparentemente seja superfi- da procriação, alimentação, etc. A chamada pureza
cial, deve afetar a natureza essencial do paciente. das espécies, que indubitavelmente é em essência
Ele deve lembrar que qualquer interferência, uma um produto de procriação humana, certamente não
vez que brota da liberdade, afeta a liberdade de ou- pode ser considerada um critério.
tra pessoa. Do ponto de vista holístico, essa afirma- Anomalia difere da doença de duas formas.
ção é auto evidente. Ela não necessariamente implica em um choque
Desse modo, a ação nos leva não apenas a uma para o ser do indivíduo. Ela requer para a sua com-
compreensão mais profunda em geral, na medida preensão, além de uma maior referência ao indi-
em que nós verificamos nossas ideias com relação às víduo, também referência a uma unidade social
partes do processo, por meio dos efeitos que nossas maior. Certamente, a individualidade em geral deve
ações têm, mas também a uma compreensão mais ser vista apenas dentro de um quadro maior de re-
profunda da natureza do organismo específico em lações sociais; e sua “responsividade” é, ao mesmo
questão. A impossibilidade de alcançar o fenômeno tempo, determinada por essa relação. Nós vimos
da doença de um modo que não seja introduzindo que a recuperação, apesar do defeito, requer a coo-
o fator da liberdade nos leva ao reconhecimento de peração de homens parceiros ou, em termos mais
um atributo importante do homem, a saber, o reco- gerais, ela deve ser incorporada na comunidade de
nhecimento de sua potencialidade para a liberdade, homens parceiros.
sua necessidade de realizar sua natureza por meio Entretanto, o oposto também pode ser verda-
da livre decisão. deiro: A falta de responsividade pode surgir de uma
No entanto, essa dificuldade de agir, devido perturbação da relação com o campo social mais
à responsabilidade pela natureza específica de um amplo. Tal aspecto desempenha um papel impor-

411
tante, por exemplo, na origem de muitas doenças -científico ingênuo sobre a natureza humana vem
mentais. Para a anomalia, a relação com o campo à tona. Há conflito com essa ideia, aparentemente,
social é ainda mais primário. A anomalia pode ser quando encontramos, em certas “raças” humanas,
compreendida apenas com referência à norma “su- costumes e observâncias que aparentam ser “inu-
per-individual”3. Porém, enquanto essa norma per- manas” para os civilizados e quando várias raças se
manece determinada, por assim dizer, apenas nega- permitem críticas mútuas. É exatamente por meio
tivamente em comparação com a norma individual, de tais exemplos é possível demonstrar que essas
e na medida em que esse conceito “super-indivi- críticas, com frequência, não correspondem aos fa-
dual” é preenchido com conteúdos inerentemen- tos, ou seja, as experiências e motivações em com-
te alienígenas, mais tempo iremos permanecer na portamentos grupais podem ser completamente di-
esfera dessas abordagens atomísticas que nós rejei- ferentes daquelas supostas; ou, em termos gerais,
tamos. Além disso, nesse caso é conveniente visar demonstrar que esses “achados” eram erros que
o protótipo dessa “entidade” mais compreensiva. surgiram de uma abordagem isolante.
Ao nos orientarmos por esse protótipo, a “anoma- Caso, por exemplo, nós destacarmos uma ca-
lia” pode se tornar compreensível como um fenô- racterística de seu contexto natural no padrão de
meno que pode aparecer sob certas circunstâncias vida de um povo “primitivo” e a submetermos a um
que podem ser definitivamente reveladas. Em nossa princípio de mensuração intrinsecamente estran-
tentativa de chegar em tal protótipo compreensivo, geiro a ela, nós deveremos chegar à mesma falsa
nós somos confrontados com dificuldades ainda generalização que ocorre na teoria do reflexo. Para
maiores que na determinação do todo individual. É descrever corretamente e compreender a estrutura
possível, de acordo com Uexkuell, definir as espé- de um fenômeno individual, nós temos que nos vol-
cies como aquele número de diferentes indivíduos tar para o padrão total ao qual ele pertence. Com
que, quando cruzados, ainda podem produzir uma esse quadro de referência em mente, vários fenôme-
prole capaz de viver e se propagar (11). Aqui nós nos “inumanos” se tornaram muito humanos! Essa
notamos, assim como na norma individual, que a descoberta significa que o cuidado é imperativo.
potencialidade “para ser” é a base para a determi- Nesse ponto, ainda estamos nos primeiros passos
nação do protótipo. Não se pode negligenciar que o da pesquisa empírica, embora as últimas décadas
conceito de potencialidade – “para ser” – é de certa de pesquisa antropológica, em especial, tenham
forma indefinido. Particularmente no que diz res- trazido muito avanços. Nós precisamos superar o
peito ao homem, ele requer que a sua complicada hábito de julgar “outros” povos a partir de nossos
natureza psicofísica seja inteiramente levada em padrões, nós deveríamos tentar entender esses fe-
consideração. nômenos mais a partir de sua natureza pertencente;
Com relação ao todo superordenado, conceitos e, então, muitas peculiaridades, que num primei-
como “tribo”, “família”, “espécies”, “raça”, “nação”, ro momento apareçam como diferenças entre nós
“estado” e “humanidade” ainda estão por ser defini- e os “outros”, serão nada mais que modificações de
dos. O problema surge conforme eles podem ser for- aspectos essenciais da natureza humana que ocor-
mas genuínas de Ser, que facilitam a compreensão rem sob certas circunstâncias – como expressão do
do Ser individual – o objeto com o qual nós estamos desenvolvimento especial de traços humanos (12).
preocupados em última instância. Certamente, nós Por exemplo, é muito fácil mostrar que, nos
não podemos acabar com os problemas que aqui es- chamados homens primitivos, vários traços expe-
tão envolvidos. Contudo, uma compreensão da ano- rienciaram um desenvolvimento diferente daquele
malia, seus efeitos no indivíduo e seu manejo pela nos chamados homens civilizados. No entanto, te-
sociedade pode ser obtida apenas através de uma mos que ser cautelosos ao inferir, a partir dessas di-
clarificação desses conceitos. ferenças de desenvolvimento, organizações e raças
Anomalia deve ser considerada em dois aspec- “superiores” ou “inferiores”. Nós discutiremos em
tos: por um lado, do ponto de vista da mais ampla seguida qual significado, caso exista, essas palavras
“entidade” à qual o indivíduo anômalo pertence por podem ter. Na medida em que novas experiências
“natureza”; e por outro lado, do ponto vista da co- nos ensinarão que indivíduos de origens completa-
munidade mais específica em que ele vive. Nesse mente diferentes podem se desenvolver de modos
caso, isso significa: de um lado a “humanidade” e muito parecidos, se forem criados no mesmo am-
do outro as comunidades específicas, a exemplo de biente, as conclusões sobre raças inferiores e su-
“nação”, “raça”, etc. periores serão cada vez mais descartadas. Então o
A primeira classificação, definição da anoma- fenômeno da diferença na cor da pele, com certeza,
lia como desvio da natureza humana em geral, será não será mais motivo para a construção de diferen-
mais simples que a segunda, cujo caráter é bastante ças de valor.
problemático. Certos fenômenos serão imediata- A decisão sobre se e em que grau, se é que
mente considerados como não humanos, como des- há algum, essas diferenças podem existir pode ser
vios do “humano”. Dificilmente há discordância de abordada apenas por meio de uma verdadeiro co-
que certas peculiaridades são traços característicos nhecimento da natureza essencial dos respectivos
de todo ser humano. Aqui um conhecimento pré- grupos. Nós estamos aqui não apenas bem no co-
meço de nosso conhecimento, mas também diante
3 Através da incorporação da existência do indivíduo dentro de um todo
mais compreensivo, o Ser nunca é destacado da natureza do indivíduo e, de uma selva de confusão que é artificialmente pre-
mais ainda, a existência desse todo super-ordenado pode não se manifestar servada por todos os tipos de preconceitos, os quais
em lugar algum, mas sim no indivíduo propriamente dito. Nós queremos em parte são certamente consequência de, e manti-
enfatizar esse ponto expressamente.

412
dos por, deficiências morais. Parcialmente, porém, samente anômalos, age desse modo irresponsável.
eles possuem sua origem nos erros do procedimen- Qualquer procedimento, para ser biologicamente
to isolante. Uma visão adequada, holisticamente justificado, teria que empregar metodologicamente
orientada, com certeza iria revelar muitos erros a referência holística de duas maneiras. Primeiro,
nesse campo. Eu não deveria falhar, nesse ponto, ao decidindo sobre a possibilidade de haver maior ou
enfatizar que muitos autores, na atual controvérsia menor valor de uma raça e, segundo, estimando o
sobre questões raciais, abusam de conceitos como perigo potencial das anomalias para a comunidade:
“natureza essencial” e “referência holística”. esse perigo pode ser mais representado por meio de
O protótipo do organismo e a “natureza essen- sua massa hereditária do que por meio de sua exis-
cial” que estamos apontando em nossas análises tência pessoal. Isso tudo exemplifica o erro que sur-
não tem relação alguma com avaliações doutrina- ge ao tomar como absolutos os fenômenos obtidos
das por alguma ideologia que não seja nada além através de procedimentos isolantes.
de expressão de credo político e preconceito. Todos
os teoremas até agora desenvolvidos para sugerir
inferioridade ou superioridade, como peculiares a HEREDITARIEDADE E PROCRIAÇÃO
um grupo ou entidade particulares, são baseados
em equívocos e abusos daquilo que é de fato ho- Na interpretação atomística dos processos he-
lístico. Em vez de investigar cuidadosamente o que reditários, a tentativa de explicar a origem de um
realmente pertence à natureza essencial de um gru- indivíduo através da soma de fatores hereditários
po – além de padrões histórico-econômicos – eles separados nos apresenta, no processo comum, uma
introduzem axiomas não-científicos, a exemplo do analogia completa com o procedimento da reflexo-
mito do sangue e outros. Todas as noções desse tipo logia. De fato, ninguém falhará ao admirar os expe-
são totalmente injustificadas quando ilegitimamen- rimentos de Mendel e ao apreciar o conhecimento
te ligadas à metodologia e a resultados da pesquisa que adquirimos por meio deles no que diz respeito
empírica moderna ou aos postulados sobre as rela- à hereditariedade e características partitivas – espe-
ções entre o todo e as partes. cialmente quando se adiciona a isso os experimen-
Essas confusões com relação ao julgamento da tos mais recentes que têm mostrado a possibilidade
“natureza” de uma raça, ou até mesmo a decisão so- de destacar, de modos sutis, características circuns-
bre a existência ou não de algo como a raça, tornam critas em experimentos da hereditariedade.
particularmente difícil o julgamento correto da ano- Mas assim como não há um caminho que par-
malia. Esse julgamento exigiria fundamentos cien- ta dos reflexos para alcançar uma compreensão do
tíficos que ainda não possuímos. Geralmente, ele é organismo como um todo, também não há um ca-
orientado em torno de achados acidentais no am- minho direto partindo das características partitivas,
biente concreto. Esses últimos são avaliados confor- que a genética aponta através da análise, para uma
me a média de peculiaridades somáticas e mentais e, compreensão da gênese de um indivíduo! Se nós
também, conforme os preconceitos predominantes. pensamos que essa conexão direta existe, comete-
Por isso, é possível que as mesmas anomalias se- mos o engano de considerar certas peculiaridades
jam avaliadas de formas diferentes com o passar do como características para o indivíduo. Ao contrário,
tempo. Na avaliação de uma anomalia, a questão da peculiaridades especiais obtém sua significância
perturbação por ela está notavelmente em primeiro quando são consideradas dentro de seu “pertenci-
plano. Nesse ponto, nossas considerações coincidem mento” funcional ao todo de um indivíduo. Assim
novamente com o procedimento de decidir sobre o como H. F. Jordan enfatizou, não é verdade que es-
que doença é. Neste último caso, o quadro de refe- tamos lidando com a herança de elementos inde-
rência é o “Ser” do indivíduo, ao passo que nas ano- pendentes, mas ao invés disso com características
malias, trata-se do Ser de uma entidade maior, cuja totais. Segundo ele, o efeito do gene pode ser en-
existência pode ser ameaçada por choques catastró- tendido apenas a partir de sua relação com o todo.
ficos originados por perturbações provenientes do No entanto, mesmo nos resultados do tipo ato-
indivíduo anômalo – agora ou no futuro. místico de experimentos genéticos, características
Se a anomalia é tal que o indivíduo em ques- totais, essenciais, dos respectivos organismos são
tão continuamente encontra, no meio em que vive, manifestas. O mero fato de que fatores dominantes
tarefas que não pode realizar, então, por sua vez, a e recessivos existem indica que alguns fatores estão
anomalia se torna perigosa para ele. Ele é forçado mais vinculados à natureza essencial que outros.
a recuar – a limitar seu meio – ou ele irá perecer Características recessivas provavelmente ocorrem
de contínuas reações catastróficas às quais é ex- devido ao fato de que o cruzamento de uma criatu-
posto. De modo algum, ele será capaz de se “atua- ra com outra que possui outros traços dominantes,
lizar” essencialmente. Na medida que a atualização causa misturas que não possuem o mesmo potencial
for possível, ele muito provavelmente representará hereditário. Ao competir com fatores dominantes,
um fator de perigo para a comunidade, embora isso os recessivos não podem se tornar efetivos, ou po-
possa, frequentemente, ser apenas supostamente o dem apenas com dificuldades e, por isso, aparecem
caso. Então a comunidade chegará a conclusão de apenas quando há um cruzamento com um animal
que tem o direito de se livrar desse indivíduo. Cada que possui uma afinidade com esse traço particular.
teórico de raça que, assumindo a existência de raças Provavelmente, os fatores hereditários domi-
“superiores” ou “inferiores”, deseja excluir os mem- nantes são os traços que estão relacionados com
bros da raça “inferior” considerando-os pernicio- aquilo que chamamos de “constantes”. Mas eles

413
constituem o indivíduo apenas na respectiva con- inferiores, deve sua origem particularmente a essa
catenação conforme se dão através da maior ou me- falha ao reconhecer o caráter atomístico do método
nor efetividade dos fatores recessivos. O conheci- de isolamento. A genética praticamente não provou
mento dos fatores e do valor de sua hereditariedade em lugar nenhum ser tão fatal quanto nesse méto-
no procedimento experimental nos oferece, porém, do simplificado de “transferência”. Para começar, os
informações muito preliminares no que diz respei- geneticistas negligenciaram o fato de que os experi-
to à gênese do indivíduo. Geralmente, esse fato é mentos de procriação ocorreram sob condições não
negligenciado porque os experimentos genéticos naturais. Eles estavam preocupados com procriação
exatos são feitos com animais, ou até mesmo com consanguínea planejada, com a criação de “linha-
plantas, nos quais não é apenas difícil, mas quase gens puras” e com a seleção de atributos que não
impossível alcançar algo como a individualidade, foram escolhidos considerando se eles eram rele-
e também porque onde nossa perspectiva é tão in- vantes para a natureza essencial. Logo, foi possível,
fluenciada por nosso interesse em elementos arti- em última análise, gerar criaturas com proprieda-
ficialmente selecionados que, por consequência, o des arbitrariamente destacadas.
experimentador vê apenas isso. Os experimentos que a genética realmente rea-
A decisão sobre o que é uma característica do- lizou não eram experimentos sobre hereditarieda-
minante ou recessiva pressupõe o conhecimento da de, no sentido de uma observação experimental da
natureza do indivíduo ao qual elas pertencem. As- gênese natural, mas experimentos do tipo prático,
sim, não deve surpreender o fato de que a avaliação com todos os seus característicos aspectos positivos
do fenômeno real se torna cada vez mais difícil e e negativos. Enquanto a procriação não está preo-
que novos fatores superordenados têm que ser con- cupada com o conhecimento da natureza essencial
tinuamente introduzidos para que se possa reter o das criaturas e o modo de sua hereditariedade, mas,
conceito atomístico genético original. em vez disso, com a reprodução de características
Algumas citações de artigos recentes podem específicas úteis para o homem, os experimentos
mostrar que nossos comentários críticos estão de úteis – tão úteis quanto a dominação da natureza
acordo com as observações mais recentes de ge- por meio da tecnologia. Os experimentos fornece-
neticistas célebres.4 “Não se deve esquecer que o ram um certo esclarecimento acerca da essência da
gene do indivíduo age apenas em interação com natureza, mas apenas na medida que eles revelaram
os outros elementos constitucionais do genótipo e até onde tal aplicação de força da natureza é supor-
com a situação de vida” (Johannsen (14)). “Todos tável, o que por sua vez revela certas características
os detalhes fenotípicos são determinados pelo tipo das criaturas. Por fim, eles nos forneceram algumas
configuracional ao qual eles pertencem... Provavel- informações a respeito dos cuidados que são neces-
mente não é exagero dizer que cada gene, no germo- sários para tornar a existência nesse “estado frontei-
plasma, influencia várias ou possivelmente muitas riço” possível.
partes do corpo; em outras palavras, o germoplasma Se a tarefa da genética e eugenia humanas
inteiro é ativo no desenvolvimento de cada parte do fosse a procriação de seres humanos com deter-
corpo” (Lloyd-Morgan). “Na drosophila, um grande minadas características, independentemente da
número de fatores, pelo menos cinquenta, partici- natureza essencial do homem, poder-se-ia admitir
pam na formação de uma cor de olho... A obser- que os resultados da experimentação com plantas
vação cuidadosa revelou que cada gene individual seriam aplicáveis aos humanos. Com certeza, esses
não influencia apenas uma característica, mas mui- experimentos em humanos dificilmente renderiam
tas, provavelmente o corpo todo” (Jennings (15). o sucesso esperado. O ser humano provavelmente
Poll (16) escreve: “O caráter atomístico da concep- não poderia viver de fato na situação fronteiriça
ção genética demanda fortemente a compensação em que os experimentos pertinentes têm que colo-
em forma de uma perspectiva holística tal como a cá-los. Os limites de capacidade da existência po-
teoria da diferenciação ou ‘Melistik’. O ‘unio mys- dem ser ultrapassados ao mesmo tempo e muitas
tica’ das unidades não ocorre com base em uma reações catastróficas resultariam das propriedades
união secundária de partículas pré-existentes (‘Me- que a “procriação” pretendida não poderia atingir.
ronten’). Essa ideia assume uma desarticulação pri- A procriação poderia obter os resultados almejados
mária dos membros (‘Melonten’), a independência apenas se ela se voltasse para, e visasse as carac-
da qual pode tornar-se perceptível apenas secunda- terísticas essenciais para o humano. Mas então ela
riamente”. Essas palavras de Poll indicam o conteú- teria que ser completamente diferente.
do holístico da genética moderna. Porque me faltam Em todos esses experimentos, é negligencia-
experiências próprias suficientes sobre esse tema do o fato de que uma das características essenciais
no meu campo, eu não me atrevo a decidir se, a par- para o ser dos humanos é a individualidade e a li-
tir dessa perspectiva, o gene é reconhecido como berdade, e que estas só podem ser encurtadas até
uma “parte” obtida por meio de um determinado um certo ponto sem que haja ameaça à capacida-
método de modo similar ao que apresentamos sobre de de sua existência. A realidade do intelecto, da
os reflexos. autodeterminação, que mesmo em sua forma mais
Um dos muitos erros dos geneticistas, a saber, primitiva representam características essenciais do
aplicar aos seres humanos as leis deduzidas de ex- homem, condenam ao fracasso qualquer experi-
perimentos de procriação em plantas ou em animais mento de procriação do tipo comum.
No entanto, se a regulação das condições da
4 Cf. também as discussões de Uexkuell (13) sobre as espécies, raça, etc.,
com as quais nós estamos em ampla concordância. hereditariedade não visa características específicas,

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mas aspira aperfeiçoar a raça humana por meio da (3) Lubarsch, O., Allgemeine Pathologie, Wiesbaden, 1905.
eliminação de indivíduos em más condições físicas,
tal esforço pressupõe um conhecimento profundo (4) Ribbert, A., Das Wesen der Krankheit, Bonn, 1909.
da significância das peculiaridades individuais
(5) Schilling, V., “Ueber die Erweiterung des Krankheits-
para as naturezas humanas. E quem se aventuraria
begriffes in der internen Medizin durch die verfein-
a tomar qualquer decisão a esse respeito no atual
erten neuen Untersuchungsmethoden,” Verh. d. Ge-
estado de pesquisa! Mesmo no campo de estudo
sell. f. inn. Med. 41. Kongr., pp. 144-160, 1929.
onde, relativamente, nós conhecemos os efeitos
mais nocivos de mudanças patológicas na progênie, (6) Aschoff, L. Vortraege ueber Pathologie, Jena, 1925.
se nós considerarmos o problema sem parcialidade
perceberemos que nada definido foi determinado. (7) Grothe, A., Grundlagen aerztlicher Betrachtung,
A razão disso é que não foi nem determinado nem Springer, Berlin, 1921.
previsto quando e onde a anormalidade se torna no-
civa, ou, talvez, extremamente valiosa para o indi- (8) Goldstein, K., “Das Kleinhirn,” Handb. d. norm. u.
víduo e a comunidade. path. Physiol., X, pp. 223-317, 1927.
Por exemplo, vamos considerar apenas a dis-
(9) Kroetz, C., “Allgemeine Physiology, etc., “Handb. d.
cussão sobre a esterilização de maníaco-depressi-
norm. u. path. Physiol, XVI, pp. 1729-1821, 1931.
vos, a disposição para a qual a doença é indubi-
tavelmente hereditária em um certo grau. Quem (10) Goldstein, K., “Ueber die Plastizitaet des Organis-
gostaria de duvidar da capacidade – se não supe- mus, etc.,” Handb. d. norm. u. path. Physiol., XV,
rioridade – de muitos indivíduos com maiores ou pp. 1132-1174, 1931.
menores predisposições maníaco-depressivas. Se
alguém se considera justificado em interferir na au- (11) Uexkuell, von, J., Theoretical Biology, Harcourt,
todeterminação humana, mesmo no que se refere à Brace, New York, 1926.
progênie, pode-se fazer isso apenas com risco. Po-
rém nós não deveríamos recorrer à natureza “ine- (12) Goldstein, K., “Die Bedeutung der Psychopathologie
rente” para a justificação de tal procedimento, no der Sprache fuer die Anthropologie und Etnologie,”
que diz respeito à fundamentação do que nós ainda Intern. Kongr. f. Anthrop. u. Ethnol., London, 1934.
não possuímos e podemos dificilmente esperar pos-
suir, conhecimento. (13) Uexkuell, von, J., Theoretical Biology, Harcourt,
Tendo dito tudo isso, deve parecer incomu- Brace, New York, 1926.
mente difícil obter a atitude correta para as nossas (14) Johannsen, W., Exakte Erblichkeitslehre.
condutas com anomalias no sentido de um desvio
da média ou, mais ainda, de um tipo ideal. A situa- (15) Jennings, H. S., Prometheus; or Biology and the Ad-
ção é um pouco diferente se nós considerarmos a vancement of Man, Dutton, New York, 1925.
anomalia do ponto de vista da norma individual.
Será preciso encontrar um meio mais adequado _______, The Biological Basis of Human Nature, Norton,
para o anômalo. A sociedade terá que fazer isso a New York, 1930.
partir do ponto de vista duplo, a saber, proteger-se
dos perigos da anomalia e ao mesmo tempo capa- (16) Poll, H., “Genetik und Melistik als Grundlage des
citar o indivíduo anômalo para existir. Em última aerztlichen Denkens,” in: Einheitsbestrebungen in
análise, não há diferença essencial entre essas duas der Medizin, Dresden und Leipzig, 1933.
perspectivas. Portanto, torna-se necessário para a
sociedade proteger-se somente enquanto o anôma-
lo não viva no meio adequado. Se ele vive em um
meio adequado, ele não é perigoso, porque ele está
em um estado ordenado. Esse resultado parece im-
portante para nós porque ele oferece o critério para
o único modo correto de ação biológica. De fato, Nota Biográfica
pode-se extinguir aquilo que se considera anômalo.
Mas então surge a questão sobre se ao fazer isso, as Kurt Goldstein (1878-1965) nasceu em Katowice,
ações estão de acordo com a “Essência do Ser”, se Silésia. Neurologista e psiquiatra de origem judai-
está sendo feita justiça à liberdade – aquela caracte- ca, foi pioneiro da moderna Neuropsicologia. Fez
rística que nossa discussão do fenômeno da doença sua formação inicial em Filosofia, em Heidelberg
e da anomalia provou ser muito característica da (era primo do filósofo Erns Cassirer); posteriormen-
natureza humana. te Medicina, em Breslau, onde foi assistente de la-
boratório de Ludwig Edinger e estudou com Carl
Wernicke. Seu nome está mais associado à “teoria
Bibliografia organísmica” ou “teoria holística”, derivada de sua
experiência com soldados com lesões cerebrais na
(1) Albrecht, E., “Grundprobleme der Geschwulstlehre”, Primeira Guerra, e de sua principal obra, Der Aufbau
Frankf. Ztschr. F. Path., I, pp. 221-247, 1907. des Organismus (1934). Em 1933, com a ascensão
do NSDAP ao poder na Alemanha, ele é encarcera-
(2) Jaspers, C., Allgemeine Psychopathologie, Springer, do por uma semana em Berlim, onde lecionava, e só
Berlin, 1923. é libertado com a condição de abandonar o país. Foi

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em Amsterdam, graças ao apoio da Fundação Rock-
feller que escreveu sua principal obra, emigrando
em 1935 para os Estados Unidos, onde lecionou e
foi co-editor do Journal of Humanistic Psychology,
e ali permanecendo até seu falecimento em 1965.

Tradução: Jennifer da Silva Moreira (Universidade


Federal do Paraná)

Revisão: Pedro Luís Tizo Santos (Universidade Fe-


deral do Paraná).

Recebido em 25.07.2017
Aceito em 30.11.2017

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