Você está na página 1de 14

Bernardo Gonçalves Fernandes

Conforme a decisão, a Constituição Federal, em seu art. 49, UI e em seu art.


83, prevê que é da competência do Congresso Nacional autorizar 0 Presidente e 0
Vice-presidente da República a se ausentarem do País quando a ausência for por
período superior a 15 dias. Logo, afronta os princípios da separação dos Poderes
e da simetria a norma da Constituição estadual que exige prévia licença da Assem­
bléia Legislativa para que 0 Governador e 0 Vice-governador se ausentem do País
por qualquer prazo. Nesses termos, os Estados-membros não podem criar novas
ingerências de um Poder na órbita de outro que não derivem explícita ou implicita­
mente de regra ou princípio previsto na Constituição Federal.44
Além disso, no que tange às funções típicas e atípicas, temos no quadro abaixo
que:

Órgão Função típica Função atípica

• Chefia de Estado, de Governo • Natureza legislativa: editar medidas provisórias


e da administração pública com força de lei (art. 62 da CR/88) e Leis Delegadas
(art. 68 da CR/88).
Executivo
• Natureza (viés) Jurisdicional: exercício do con
tencioso administrativo, embora, por óbvio, não
seja uma função judicial strictosensu.

• Legislar; • Natureza executiva: definir sua organização, pro­


• Fiscalização via CPIs e contá­ ver cargos, gerenciar servidores (conceder férias,
bil, financeira, orçamentária e licenças etc)
Legislativo
patrimonial do Estado • Natureza Jurisdicional: Julgamento pelo Senado
nos crimes de responsabilidade, nos termos do art.
52,1 elida CR/88).

■ Julgar-função jurisdicional • Natureza legislativa: elaborar regimento interno


para cada tribunal (art. 96,1, o da CR/88);
• Natureza executiva: administrativa, concessão de
Judiciário
licença/férias para magistrados e serventuários, pro­
vimento dos cargos de magistrados, entre outras
nos termos do art. 96,1, b, c, d, e. í da CR/88)

8. FUNDAMENTOS DO ESTADO BRASILEIRO

8.1. Introdução
A doutrina constitucional tradicional afirma que os incisos do art. 1° da Cons­
tituição de 1988 constituiríam os valores fundamentais e estruturantes do Estado
brasileiro. Para a doutrina, devem ser entendidos como postulados normativos

44. ADI 5373 MC/RR, STF. Plenário. Rei. Min. Celso de Mello, julgado em 09.05.2019 (Informativo 939).

342
Princípios Fundamentais (Estruturantes) da Constituição de 1988

interpretativos - isto é, princípios instrumentais.45 Em nossa opinião, coadunado


com uma adequada leitura sobre os princípios, apenas pontuamos, mais uma vez,
que os mesmos princípios são efetivamente normas jurídicas vinculantes.

8.2. Soberania

0 conceito de soberania tem seu nascimento no século XVI, como elemento es­
sencial para estruturação e formação do Estado Moderno. Aqui, a soberania emerge
eminentemente como um poder acima dos demais poderes.
A primeira tentativa de teorização se deu com Bodin, em 1576. A soberania será
ligada a noção de summa potestas. Aqui, 0 soberano é 0 monarca que não mais
se submete a nenhum outro poder, seja dos senhores feudais, seja até mesmo do
Papado. Esse conceito da Teoria do Estado foi fundamental para 0 processo de uni­
ficação do poder, com a eliminação das guerras civis ou religiosas, 0 que conduzirá
a um desenvolvimento econômico do Estado e da sociedade. Só em 1762, todavia,
Rousseau irá reelaborar 0 conceito, passando a adjetivá-lo necessariamente e, por­
tanto, afirmando uma soberania popular. Aqui a vontade popular soberana é ilimi­
tada no seu poder de criação do Direito.

Kelsen afirma que a soberania é qualidade do poder do Estado, sendo absolu­


ta, já que nenhuma outra manifestação pode se contrapor à vontade estatal.
Por isso mesmo, a doutrina tradicional irá afirmar que a soberania tem como
características ser:
1) Una: um poder acima de todos os outros;
2) Indivisível: aplicável a todos os acontecimentos internos ao Estado;
3) Inalienável: se 0 Estado a perder, ele desaparece; e
4) Imprescritível: não há limite de duração, existindo tão quanto exista 0 Es­
tado.4647

Há, então, quem divida a soberania em duas: (a) SOBERANIA EXTERNA: referente
à representação dos Estados em uma ordem internacional (relação de coordenação
e não sujeição); e (b) SOBERANIA INTERNA: responsável por delimitar a supremacia
estatal perante a sociedade na ordem interna (relação de subordinação e poder
máximo interno)4'.

45. NOVELI NO. Marcelo, Direito constitucional, p. 345.


46. "A imprescindibilidade do uso do idioma nacional nos atos processuais, além de corresponder a uma exigên­
cia que decorre de razões vinculadas à própria soberania nacional, constitui projeção concretizadora da norma
inscrita no art. 13, caput, da Carta Federal, que proclama ser a língua portuguesa'o idioma oficial da República
Federativa do Brasil7'(HC n° 72.391 -QO, Rei. Min. Celso de Mello, julgamento em 8-3-95, Plenário, DJE de 17-3-95).
47. Um debate sobre o tema da soberania ocorreu na análise pelo STF da intitulada Lei Geral da Copa (Lei n°
12.663/2012). No julgamento da ADI n°4976 decidiu o STF em 07.05.2014que:l - A disposição contida no art. 37,
§ 6o, da Constituição Federal não esgota a matéria relacionada à responsabilidade civil imputável á Administração,

343
Bfrnardo Gonçalves Fernandes

Canotilho bem reconhece que, hoje, a ideia de soberania popular é noção um­
bilicalmente relacionada ao princípio democrático/8 Mas diversos fatores, notada-
mente a globalização (seja ela econômica, política, cultural, tecnológica, ambiental,
entre outras), têm atuado como flexibilizadores da ideia de soberania e conduzido
o conceito a uma crise. Nesse sentido, atualmente, o Direito comunitário, que não
se apresenta como Direito nacional nem mesmo como (o tradicional) Direito inter­
nacional, traz para o seio do debate sobre a soberania reflexões, que demonstram
uma relativização do conceito clássico. Assim sendo, na União Européia, embora
ainda em processo de desenvolvimento (lento e gradual), temos a soberania dos
Estados membros convivendo com uma soberania da União Européia (ideia de uma
soberania dual ou compartilhada, até então sem precedentes).

8.3. Cidadania
Cidadania refere-se à participação política das pessoas na condução dos negó­
cios e interesses estatais. Fato é que o conceito de cidadania sofre uma gradativa
ampliação ao longo dos anos, principalmente a partir da Segunda Guerra. Antes,
ser cidadão era ter capacidade para votar e ser votado (o que, diga-se, ainda é
válido para a dogmática do Direito Constitucional). Porém, hoje, compreende-se
que a cidadania se expressa por outras vias, além da política, se desenvolvendo
também por meio dos direitos e garantias fundamentais, ou da tutela dos direito
e interesses difusos/9 Assim sendo, podemos afirmar que a cidadania não é algo
pronto e acabado, mas se apresenta como processo (um caminhar para) de parti­
cipação ativa na formação da vontade política e afirmação dos direitos e garantias
fundamentais, sendo ao mesmo tempo um status e um direito.

pois, em situações especiais de grave risco para a população ou de relevante interesse público, pode o Estado
ampliar a respectiva responsabilidade, por danos decorrentes de sua ação ou omissão, para além das balizas
do supramencionado dispositivo constitucional, inclusive por lei ordinária, dividindo os ônus decorrentes dessa
extensão com toda a sociedade. II - Validade do oferecimento pela União, mediante autorização legal, de garantia
adicional, de natureza tipicamente securitária, em favor de vítimas de danos incertos decorrentes dos eventos
patrocinados pela FIFA, excluídos os prejuízos para os quais a própria entidade organizadora ou mesmo as viti­
mas tiverem concorrido. Compromisso livre e soberanamente contraído pelo Brasil à época de sua candidatura
para sediar a Copa do Mundo FIFA 2014. (...) V - É constitucional a isenção fiscal relativa a pagamento de custas
judiciais, concedida por Estado soberano que, mediante política pública formulada pelo respectivo governo, bus­
cou garantir a realização, em seu território, de eventos da maior expressão, quer nacional, quer internacional.
Legitimidade dos estímulos destinados a atrair o principal e indispensável parceiro envolvido, qual seja, a FIFA,
de modo a alcançar os benefícios econômicos e sociais pretendidos. VI - Ação direta de inconstitucionalidade jul­
gada improcedente. Conforme o Ministro Luís Roberto Barroso/a análise da lei eni debate configuraria hipótese
típica de autocontenção judicial. Nesse sentido, a visão do julgador em relação a essa decisão política não poderia
se sobrepor a decisões de conveniência e oportunidade tomadas pelos agentes públicos eleitos. Explicou que,
caso não se configurasse inconstitucionalidade evidente, de direitos fundamentais e das regras da democracia,
não haveria razão para que o STF se sobrepusesse à valoração feita pelos agentes políticos". ADI 4976 julg. em
07.05.2014. Rei. Min. Ricardo Lewandowski.
48. CANOTILHO, José Joaquim Gomes, Direito constitucionale teoria do Constituição, 2. ed., p. 281.
49. "Ninguém é obrigado a cumprir ordem ilegal, ou a ela se submeter, ainda que emanada de autoridade judicial.
Mais: é dever de cidadania opor-se à ordem ilegal; caso contrário, nega-se o Estado de Direito."(HC n° 73.454, Rei.
Min. Maurício Corrêa, julgamento em 22-4-96,2a Turma, DJ de 7-6-96).

344
Princípios Fundamentais (Estruturantes) da Constituição de 1 988

8.4. Dignidade Humana

Falar em dignidade da pessoa humana não é uma novidade na História da hu­


manidade. Estudos indicam que já na China Imperial, século IV a.C., confucionistas
afirmavam que cada ser humano nasce com uma dignidade que lhe é própria, sen­
do-lhe atribuída por ato da divindade.50 Aqui, bem como nas diversas tradições que
se seguiram, inclusive cristãs, o homem é tomado como um ser especial, dotado de
uma natureza ímpar perante todos os demais seres, razão pela qual não pode ser
instrumentalizado, tratado como objeto, nem mesmo por outros seres humanos.
Na Antiguidade, todavia, encontraremos culturas que afirmaram que a digni­
dade (do latim, dignitas) é expressão da posição social ocupada pelo indivíduo e
pelo grau de reconhecimento que os demais componentes daquela comunidade
atribuíam a um sujeito. Sob esse prisma, existiríam, então, pessoas mais ou menos
dignas socialmente.5*
No período da Escolástica, Santo Tomás de Aquino irá conjugar dignidade com o
fato de que o ser humano foi criado à semelhança de Deus, razão pela qual reside
sua especialidade e, como consequência, sua capacidade de autonomia, autodeter­
minação, dando-lhe vontade própria, e, assim, liberdade por natureza.
Apenas com Kant, no lluminismo alemão, veremos a dessacralização da ideia
de dignidade humana. A partir da defesa da autonomia moral do indivíduo, o fi­
lósofo alemão afirmará que o homem deve ser levado a sério, sendo sempre o
fim maior das relações humanas e nunca um mero meio.52 Influenciados por Kant,
então, a grande maioria dos teóricos do Direito Constitucional identificará a noção
de que a dignidade representa o reconhecimento da singularidade e da individua­
lidade de uma determinada pessoa, razão pela qual ela se mostra insubstituível e
igualmente importante para a ordem jurídica.
Hegel,53 por sua vez, irá sofisticar ainda mais a noção de dignidade humana
quando concebe que esta é fruto de um complexo processo de reconhecimento.
A ideia de reconhecimento surge no discurso filosófico a partir do pensamento de
Hegel, ao trabalhar a dialética do senhor e do escravo, na Fenomenologia do Espiri­
to. Aqui, o reconhecimento surge como uma luta. Assim, a mente existe como cons­
ciência individual. Cada consciência é incapaz de reconhecer autonomia em outra
consciência; mais que isso, ela rouba essa autonomia, escravizando-a - impondo

50. SARLET, Ingo Wolfgang, Dignidade da pessoa humana, p. 212.


51. SARLET, Ingo Wolfgang, Dignidade da pessoa humana, p. 212.
52. KANT, Immanuel, Fundamentação da metafísica dos costumes.
53. O Termo tem sua origem no alemão. Anerkennung, derivado do verbo anerkennen. criado no século XVI a partir do
latim, agnoscere. Aqui, o significado é o de identificar uma pessoa ou uma coisa, ou característica, por meio de um
saber prévio, seja este produto ou não de uma experiência direta. Mas o conceito filosófico do termo apresenta
uma modificação, uma vez que se ultrapassa aqui a ideia de uma “identificação cognitiva de uma pessoa" mas
deve ser entendido como "atribuição de um valor positivo a essa pessoa, algo próximo do que entendemos por
respeito". (AS5Y, Bethânia: FERES JÚNIOR, João, Reconhecimento, p. 705).

345
Bernardo Gonçalves Fernandes

sobre ela sua visão de mundo e seus projetos para garantir o reconhecimento.
Desse modo, em um primeiro momento, o escravo é obrigado, pela força, a reco­
nhecer no senhor o autor das idéias que guiam suas próprias ações; ao passo que o
senhor não reconhece o escravo - senão como objeto, meio para atingir suas idéias
e projetos. Mas esse reconhecimento conquistado pela força acaba por perder seu
efeito: "ele só é reconhecimento efetivo quando aquele que reconhece o valor do
outro também tem seu próprio valor honrado por ele".54 Isso nos revela que a reci­
procidade é condição essencial dessa dinâmica.
Destacamos, portanto, uma diferença fundamental com o pensamento de Kant.
Na Fundamentação da Metafísica dos Costumes, Kant irá despir o sujeito de todos
os seus predicados contingentes, reduzindo o homem ao ser racional, que toma
decisões morais autônomas, levando em conta apenas o fato de ele partilhar um
mundo com outros indivíduos igualmente racionais e potencialmente autônomos.
Com isso atinge o imperativo categórico. Hegel, por outro lado, por partir da con­
tingência do particular, afirma que reconhecer o outro como racional - e com isso,
autônomo - transforma o ponto de partida de Kant num problema crucial. E esse
problema somente pode ser solucionado através de percurso de desenvolvimento
que culminará nas instituições complexas do Mercado e do Estado.
Para o Direito, a redescoberta da ideia de dignidade humana vem acompanha­
da de diversos documentos internacionais, na qual é citada, como por exemplo no
Estatuto (ou Carta) da Organização das Nações Unidas (1945), na Declaração Univer­
sal dos Direitos do Homem (1948), bem como na Constituição italiana (1948) e na
Lei Fundamental da República Federal Alemã (1949). Ela representa, de certo modo,
uma contraposição aos horrores vividos durante 0 período das Guerras Mundiais,
sobretudo da 2a Guerra mundial.55
Na tradição do Direito alemão, isso significou, principalmente, afirmar que to­
dos têm direito a serem tratados como pessoas, sendo respeitados de modo igual

54. ASSY, Bethãnia; FERES JÚNIOR, João. "Reconhecimento''. BARRETO, Vicente de Paulo (Coord.). Dicionário de Filoso­
fia do Direito. São Leopoldo / Rio de Janeiro: Unisinos / Renovar, 2006, p. 706.
55. Outros exemplos: Declaração dos Direitos dos Povos Indígenas (art. 15,1). Declaração sobre Educação e Forma­
ção em Direitos Humanos (art. 5o, 1), Convenção Internacional dos Direitos das Pessoas com Deficiência (art. 1),
Convenção Internacional de Proteção das Pessoas contra o Desaparecimento Forçado (art. 19, 2), Convenção
Internacional sobre os Direitos da Criança (art. 28, 2), Convenção contra Tortura e Outros Tratamentos ou Pe­
nas Cruéis, Desumanos ou Degradantes (preâmbulo), Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as
Formas de Discriminação Racial (preâmbulo), dentre outras. (...) a utilização do termo não aparece somente em
textos constitucionais ocidentais. Ao contrário, são diversas as constituições que, mundo afora, expressam a preo­
cupação em preservar o entendimento do que esteja caracterizado como dignidade, elevando tal conceito ao pa­
tamar jurídico-constitucional. São exemplos as Constituições do Afeganistão (art. 24), China (art. 38), Azerbaijão
(art. 13, lll), Iraque (art. 37,1o, a), Irã (art. 2o, 6), Bahrein (art. 18),Cazaquistâo(art,45), Paquistão (art. 14), Kuwait
(art. 29), Tailândia (section 4), Armênia (art. 13), Turquia (art. 17), Suécia (art. 2°), Finlândia (art. 1°), Suíça (art 7°),
Montenegro (art 25), Polônia (art. 30), Romênia (art. Io, 3), Rússia (art. 7°), Sérvia (art. 19), Japão (art. 24), Holanda
(art. 11), África do Sul (art. 10), dentre outras. A dignidade da pessoa humana em processos criminais no STF: valor
intrínseco, autonomia e valor comunitário. LOURENÇO, Cristina Sílvia Alves, BALHE GUEDES, Maurício Sullivan, p.
10,2014.

346
PrincIpios Fundamentais (Estruturantes) da Constituição de 1988

os seus direitos fundamentais (direitos humanos) independentemente de sexo,


raça, língua, religião ou opiniões políticas, condições de nascimento, econômicas e
sociais. Isso, é claro, vem no sentido de combater a noção nazista de Untermensch
(subumano), que afirmava uma desigualdade eugênica em prejuízo dos arianos/

Para os italianos, a dignidade não é tão intangível e sua adjetivação não se faz
com referência ao "humano", mas, sim, fala-se em uma "dignidade social" e está liga­
da ao desenvolvimento "segundo as próprias possibilidades e a própria escolha, uma
atividade ou uma função que concorra ao progresso material e espiritual da socieda­
de" (art. 4°, § 2» da Constituição italiana de 1948). Isso significa atar à ideia de digni­
dade a um conceito "econômico-social" e, por isso mesmo, associá-la ao "trabalho"
como forma de dignificação do homem. A preocupação aqui não é com a pessoa em
si (a partir de bases jusnaturalistas), como acontece na doutrina alemã, mas no pro­
cesso de inserção dessa pessoa no tecido social; isto é, a pessoa assume não apenas
um direito, mas também um dever de contribuir para 0 progresso da sociedade com
seu trabalho. Ao que parece, essa vertente da ideia de dignidade parece ter ficado
olvidada por alguns juristas brasileiros que importaram a matriz alemã.
Fato é que muitos autores registram uma dificuldade em conceber um conceito
pacífico do que seja a dignidade humana, como reconhece Sarlet/ Isso se deve,
principalmente, porque tais autores não conseguem - ou talvez não queiram - lan­
çar mão de uma leitura, primeiro, dessacralizada do Direito moderno - razão pela
qual assumem concepções jusnaturalistas e valores ético-religiosos no intuito de
substancializar seu argumento, procurando uma forma de perenidade na fluidez
da modernidade; e segundo, rigorosa paradigmaticamente -, dessa forma falta-lhes
uma teoria do Direito.
Mas, partindo das noções afirmadas pela teoria constitucional majoritária - ain­
da que pesem as críticas feitas, bem como as incoerências internas a essa teoria
com fortes heranças germânicas e bases axiológicas, a dignidade da pessoa huma­
na (art. 10, lil da CR/88) é erigida à condição de meta-príncípio5®. Por isso mesmo,
esta irradia valores e vetores de interpretação para todos os demais direitos
fundamentais, exigindo que a figura humana receba sempre um tratamento moral
condizente e igualitário, sempre tratando cada pessoa como fim em si mesma,
nunca como meio (coisas) para satisfação de outros interesses ou de interesses de
terceiros.59

56. ALEXY, Robert, El concepto y Ia volidez dei derecho.


57. SARLET, Ingo Wolfgang, Dignidade do pessoa humana, p. 217.
58. A dignidade da pessoa humana seria classificada por alguns doutrinadores como sendo um"sobreprincípio", na
medida em que atua ria "sobre" outros princípios. No RE 898060 julgado em 21 e 22.09.2016: “O Supremo Tribunal
Federal afirmou que o sobreprincípio da dignidade humana, na sua dimensão de tutela da felicidade e realização pes­
soal dos indivíduos a partir de suas próprias configurações existenciais, impõe o reconhecimento, pelo ordenamento
jurídico, de modelos familiares diversos da concepção tradicional."
59. “O principio fundamental consagrado pela Constituição Federal da dignidade da pessoa humana apresenta se
em uma dupla concepção. Primeiramente, prevê um direito individual protetivo, seja em relação ao próprio Es­
tado, seja em relação aos demais indivíduos. Em segundo lugar, estabelece verdadeiro dever fundamental de

347
Bernardo Gonçalves Fernandes

Sendo assim, para os teóricos do constitucionalismo contemporâneo, direitos -


como vida, propriedade, liberdade, igualdade, dentre outros -, apenas encontram
uma justificativa plausível se lidos e compatibilizados com o postulado da dignidade
humana. Afirmam, portanto, que a dignidade seria um superprincípio, como uma
norma dotada de maior importância e hierarquia que as demais,6*5 que funcionaria
como elemento de comunhão entre o Direito e a moral, na qual o primeiro se fun­
damenta na segunda, encontrando sua base de justificação racional.6’
Por isso mesmo afirmam alguns autores, que questões limites como eutanásia,
aborto e feto anencefálico fazem remissão (remetem) a uma discussão da digni­
dade humana, uma vez que são muitas vezes lidas na forma de uma colisão entre
direitos à liberdade, à integridade corporal e à vida biológica.*
62 Daí ressalta-se, con­
61
60
forme Ingo Sarlet, "a função integradora e hermenêutica do princípio da dignidade
da pessoa humana que serviría de parâmetro para a aplicação, interpretação e
integração não apenas dos direitos fundamentais e das demais normas constitu­
cionais, mas de todo o ordenamento jurídico". Afirma o autor que, de "modo todo
especial, o princípio da dignidade da pessoa humana acaba por servir de referen­
cial inarredável no âmbito da indispensável hierarquização axiológica inerente ao
processo de criação e desenvolvimento jurisprudencial do Direito, justamente no
âmbito dessa função do princípio da dignidade da pessoa humana, pode-se afirmar
a existência não apenas de um dever de interpretação conforme a Constituição e os
direitos fundamentais, mas acima de tudo, de uma hermenêutica que, para além do
conhecido postulado do in dubio pro libertati, tenha sempre presente o imperativo
segundo o qual em favor da dignidade não deve haver dúvida"63.
Em outra linha de raciocínio, temos a (importante) leitura de Dworkin sobre a
dignidade humana.64 Esta, na realidade, busca conciliar os princípios da igualdade
e da liberdade, afirmando duas dimensões da dignidade: 1») por meio do reco­
nhecimento da importância de cada projeto de vida individual; e 2») por meio da
proteção da autonomia individual na persecução desse projeto de vida. Para tanto,
falar em dignidade da pessoa humana somente faz sentido se entendido como vista
pelo prisma da garantia de iguais liberdades subjetivas para ação. Partindo dessa
perspectiva, podemos tentar recolocar a dignidade da pessoa humana como condi­
ção de legitimação não apenas dos direitos fundamentais, mas de todo 0 ordena­
mento jurídico, sem correr os riscos de esbarrar com questões de fundamentação

tratamento igualitário entre semelhantes. Esse dever configura-se pela exigência do indivíduo respeitar a digni
dade de seu semelhante tal qual a Constituição Federal exige que lhe respeitem a própria." (MORAES, Alexandre
de, Direitos humanos fundamentais, p. 46).
60. SIQUEIRA Jr„ Paulo Hamilton, Dignidade da pessoa humana, p. 710.
61. Todavia, um alerta: proceder assim é ignorar os riscos de retroceder á tradição jusnaturalista, ou pior, apagar os
traços de autonomia sistêmica que separa o direito e a moral. Ver: HABERMAS, Jürgen. A inclusão do outro, 2002.
62. VIEIRA, Oscar Vilhena, Direitos fundamentais: uma leitura da jurisprudência do STF, p. 69.
63. SARLET, Ingo, Dignidade da Pessoa Humana e novos Direitos na Constituição Federal de 1988, p. 106,2005.
64. DWORKIN, Ronald, Is Democracy Possible here?, p. 9-11. CORDEIRO. Karine, Direitos Fundamentais Sociais, p. 75,
2012.

348
Princípios Fundamentais (Estruturantcs) da Constituição ot 1988

moral ou assumir uma via de volta ao jusnaturalismo. Mais que afirmar que o ser
humano deve ser tratado como um ser único, individual, como faz boa parte dos
juristas nacionais, a leitura de Dworkin busca justificar-se na própria autofundação
do Direito moderno.
Além disso, para o ex-professor de Oxford, o respeito à dignidade acaba por
legitimar o próprio governo, no sentido de que apenas os governos que demons­
tram igual consideração e respeito por cada uma das pessoas sob seu domínio (isso
implica, obviamente, em atender aos dois princípios da dignidade citados acima)
podem ser considerados legítimos65.
já Habermas identificará tal proposição com o código da modernidade (.liberda­
de e igualdade') e buscará explicar como se dá tal processo de produção de normas
jurídicas legítimas, no qual cada sujeito é ao mesmo tempo autor e destinatário das
normas.66 Isso é fundamental e, por isso parece ser uma leitura mais adequada, já
que não busca assentar a noção de dignidade humana sob um conjunto de valores
que reflete apenas uma visão particular de mundo - mais exatamente a tradição
judaico-cristã.6' Ao se abrir a porta para uma fundamentação normativa própria do
Direito, participantes de outras concepções podem tomar assento nessa prática
comunicativa, sentindo-se igualmente coautores das normas a que se submetem.
Verdade é que a jurisprudência do STF ainda não desenvolveu um entendi­
mento do que seja a dignidade de maneira sistematizada. Apesar disso, a doutrina
vem fazendo esforços hercúleos no sentido de dotar as decisões de uma lógica e
coerência, extraindo delas uma doutrina sobre a dignidade da pessoa humana.68

65. DWORKIN. Ronald, Is Democracy Possible here?, p. 90-140. É interessante que, em sua obra Justice for Hedgehogs,
Dworkin eleva ao máximo a dimensão axiológica da dignidade da pessoa humana, considerando-a o valor que
unifica a ética (o que se deve fazer para viver bem) e a moralidade (como se deve tratar os outros), legitima a ordem
política e orienta a interpretação de diversas questões como justiça, igualdade e liberdade. Justice for Hedgehogs,
p. 204-255,2011.
66. HABERMAS, Jürgen, Facticidad y validez.
67. Basta ver a afirmação de Luis Roberto Barroso: "O princípio da dignidade da pessoa humana identifica um espaço
de integridade moral a ser assegurado a todas as pessoas por sua só existência no mundo. Relaciona-se tanto
com a liberdade e valores do espirito quanto com as condições materiais de subsistência.'Gestação de fetos anen
cefálicosepesquisas com células tronco: dois temas acerca da vida e da dignidade na Constituição, p. 15.
68. No julgamento do HC n° 71.373-4 RS, o STF entendeu por solucionar um suposto conflito entre dignidade humana
e direito á intimidade, no que diz respeito a possibilidade (ou não) de condução coercitiva do suposto pai em
sede de processo de investigação de paternidade. Já em recente decisão, afirmou o STF que: “É lícito ao Poder
Judiciário impor ã Administração Pública obrigação de fazer, consistente na promoção de medidas ou na execução
de obras emergenciais em estabelecimentos prisionais para dar efetividade ao postulado da dignidade da pessoa hu­
mana e assegurar aos detentos o respeito à sua integridade física e moral, nos termos do que preceitua o art. 5°. XLIX,
da CF, não sendo oponível à decisão o argumento da reserva do possível nem o princípio da separação dos poderes.
(...) O quadro revelaria desrespeito total ao postulado da dignidade da pessoa humana, em que havería um processo
de “coisificação” de presos, a indicar retrocesso relativamente á lógica jurídica atual. A sujeição de presos a penas a
ultrapassar mera privação de liberdade prevista na lei e na sentença seria um ato ilegal do F.stado, e retiraria da sanção
qualquer potencial de ressocialização." RE 592.581 /RS Pleno do STF, julg. em 13.08.2015, Ê interessante que em pes­
quisa realizada no sítio eletrônico do STF, tendo por parâmetro o período de 01 de janeiro de 2010a 31 de dezembro
2013, o termo "dignidade da pessoa humana" aparece empregado em 108 acórdãos, 1.51S decisões monocráticas, e
1 questão de ordem. A dignidade da pessoa humana em processos criminais no STF. LOURENÇO, Cristina Silvia Alves,
BALHE GUEDES, Maurício Sullivan, p. 10,2014.

349
Bernardo Gonçalves Fernandes

0 Ministro Luís Roberto Barroso em sede doutrinária já afirmou que para


finalidades jurídicas, a dignidade da pessoa humana pode ser dividida em três
componentes: valor intrínseco, que se refere ao status especial do ser humano
no mundo; autonomia, que expressa o direito de cada pessoa, como um ser
moral e como um indivíduo livre e igual, tomar decisões e perseguir o seu pró­
prio ideal de vida boa; e valor comunitário, convencionalmente definido como a
interferência social e estatal legítima na determinação dos limites da autonomia
pessoal.69*

Aqui é interessante salientar que esses componentes, trabalhados pelo Minis­


tro, foram usados de forma explícita para a fundamentação de recente decisão
do STF sobre a possibilidade de estrangeiro residente no país ter direito de ser
beneficiário da assistência social prevista no art. 203, V da CR/88. No caso, afirmou
0 STF que 0 substrato do conceito de dignidade humana pode ser decomposto
nos três elementos acima elencados: a) valor intrínseco, b) autonomia e c) valor
comunitário.
Nesses termos, como "valor intrínseco", a dignidade requer 0 reconheci­
mento de que cada indivíduo é um fim em si mesmo. Impede-se, de um lado, a
funcionalização do indivíduo e, de outro, afirma-se 0 valor de cada ser humano,
independentemente das escolhas, situação pessoal ou origem. Assim, deixar de­
samparado um ser humano que não tem condições de se sustentar pelo simples
fato de ele ser oriundo de outro país seria uma desconsideração desse valor.
já como "autonomia", a dignidade protege 0 conjunto de decisões e atitudes re­
lacionado especificamente à vida de certo indivíduo. Para que determinada pessoa
possa mobilizar a própria razão em busca da construção de um ideal de vida boa, é
fundamental que lhe sejam fornecidas condições materiais mínimas. Nesse aspecto,
a previsão do art. 203, V, da CR/88 também funciona como um meio de assegurar
esta concepção de vida digna, cabendo ao Estado brasileiro dar essa sustentação
até mesmo ao estrangeiro.'0
já no que tange ao “valor comunitário", restou estabelecido na decisão que
0 estrangeiro residente no País, inserido na comunidade, participa do esforço
mútuo, na construção de um propósito comum. Esse laço de irmandade nos faz,
de algum modo, responsáveis pelo bem de todos, até mesmo daqueles que ado­
taram 0 Brasil como novo lar e fundaram seus alicerces pessoais e sociais nesta
terra. Desde a criação da nação brasileira, a presença do estrangeiro no País foi
incentivada e tolerada. Não seria coerente com a história estabelecer diferencia­
ção tão somente pela nacionalidade, especialmente quando a dignidade está em

69. BARROSO, Luís Roberto. A dignidade do pessoa humana no direito constitucional contemporâneo: a construção de
um conceito jurídico à luz da jurisprudência mundial, p. 112,2012.
70. RE 587970/SP STF. Plenário. Rei. Min. Marco Aurélio, julgado em 19 e 20.04.2017 (repercussão geral).

350
Princípios Fundamentais (Estruturantes) da Constituição oe 1988

xeque em momento de fragilidade do ser humano — idade avançada ou algum


tipo de deficiência?1
Por último, também é muito comum a afirmação de que existiría um certo
"consenso sobreposto" sobre a aplicação da dignidade da pessoa humana, mas não
existiría uma delimitação de como se daria sua concretização e densificação. Seria
a dignidade um conceito tão amplo e aberto de tal modo que qualquer prática seria
justificável com base nela? Acreditamos que não.
Por isso, para alguns doutrinadores, parâmetros mínimos de aferição (vetores
ou "dimensões") devem ser sempre defendidos para a consecução normativa (ade­
quada) da dignidade da pessoa humana, sobretudo para que não seja amesquinha-
da. Na obra adotamos esses vetores. São eles:
1) Não Instrumentalização: concepção de que o ser humano não pode ser
instrumentalizado (coisificado) ou seja, não pode ser tratado como um meio
para a obtenção de determinado fim (Kant). 0 ser humano deve ser "um fim em
si mesmo". Aqui, um exemplo interessante pode ser encontrado em uma decisão
do Tribunal Constitucional Alemão, pois, segundo Habermas, em recente obra, "a
inviolabilidade da dignidade da pessoa humana dominou a esfera pública alemã
em 2006, quando 0 Tribunal Constitucional Federal considerou inconstitucional a
Lei de Segurança Aérea promulgada pelo parlamento Alemão. Na época, 0 parla­
mento tinha em mente 0 cenário de 11 de setembro, ou seja, 0 ataque terrorista
às torres gêmeas do World Trade Center. Com isso, pretendia autorizar as forças
armadas a, em situação semelhante, abater aviões de passageiros transfor­
mados em bomba, de modo a proteger um número indefinidamente maior de
pessoas ameaçadas em solo. Porém, segundo a concepção do Tribunal, a morte
de passageiros por meio de órgãos estatais seria inconstitucional. 0 dever do
Estado de proteger a vida das potenciais vítimas de um ataque terrorista não
pode vir antes do dever de respeitar a dignidade dos passageiros. (...) 0 eco do
imperativo categórico de Kant é evidente nessas palavras do Tribunal. 0 respei­
to à dignidade humana de cada pessoa proíbe 0 Estado de dispor de qualquer
indivíduo apenas como meio para outro fim, mesmo se for para salvar a vida de
muitas outras pessoas7172.
2) Autonomia Existencial: cada pessoa deve ter 0 direito de fazer suas esco­
lhas essenciais de vida e agir de acordo com suas escolhas desde que elas não
sejam práticas ilícitas (ou não prejudiquem de forma indevida direitos de terceiros).
Portanto, essa dimensão nos garante a liberdade existencial, ou seja, a possibili­
dade dos mais variados projetos de vida, concepções de vida digna em meio ao
pluralismo razoável em que vivemos;

71. RE 587970/SP STF. Plenário, Rei. Min. Marco Aurélio, julgado em 19 e 20.04.2017 (repercussão geral).
72. BVerG, 1357/05 de 15 de fevereiro de 2006. HABERMAS, Jürgen. Sobre a Constituição da Europa, p. 08-09,2011.

351
Bernahoo Gonçalves Fernandes

3) Direito ao Mínimo Existencial: direito (derivado do constitucionalismo social)


a que existam condições materiais básicas para a vida. Seja esse mínimo de condi­
ções trabalhado de forma absoluta (dado a priori) ou relativa (contextualizado em
diferentes formas e modos), 0 fato é que ele acaba sendo pressuposto não só para
a vida em si, mas para uma vida digna como condição até mesmo para 0 exercício
das liberdades privadas (autonomia existencial) e públicas (direitos políticos). 0
próprio STF atualmente já reconheceu que em algumas situações não estaríamos
submetidos à "reserva do possível", tendo em vista a necessidade proeminente de
concretização de determinados direitos fundamentais sociais mínimos.
4) Direito ao Reconhecimento: aqui temos a concepção de que as injustiças
podem se dar não apenas no campo da redistribuição de bens, mas também no
campo do reconhecimento.” Aqui 0 olhar que as pessoas lançam sobre as outras
pessoas (0 olhar que nós lançamos sobre "0 outro" ou "0 tarjado" de diferente)
pode diminuí-las em sua dignidade. Temos, com isso, a necessidade de respeitar
as identidades singulares”. Para Axel Honneth os padrões de reconhecimento
(intersubjetivo) ocorrem em três etapas: "a) na esfera das relações primárias (a
forma de reconhecimento relaciona-se ao amor e à amizade; b) na dimensão das
relações jurídicas (0 reconhecimento se identifica com 0 direito. Com isso, direito
acaba por constituir uma etapa fundamental do reconhecimento intersubjetivo e
de afirmação da visibilidade, na medida em que a adjudicação de direitos repre­
senta uma dimensão indispensável da cidadania); e c) na comunidade valorativa
(a maneira de reconhecimento é a solidariedade através da autocompreensão
cultural de uma sociedade que determina critérios pelos quais se orienta a estima
social das pessoas)"7*.

8.5. Valores Sociais do Trabalho e da Livre Iniciativa

Supostamente correlacionado à noção de dignidade da pessoa humana, o va­


lor social do trabalho impõe a abstenção do Estado no que concerne à concessão
de privilégios econômicos a uma pessoa ou grupo. Cada indivíduo deve poder*

73. É interessante aqui que a Lei n° 12.966 de 12.04,2014, alterou a Lei no 7.347/85 (Lei da Ação Civil Pública), para
incluira proteção à honra eá dignidade de grupos raciais, étnicos ou religiosos. Portanto, atualmente a dignidade
e a honra de grupos raciais, étnicos ou religiosos pode ser objeto de Ação Civil Pública.
74. Aqui remetemos o leitor para interessante debate sobre o tema travado por Nancy Fraser e Axel Honneth.
Nancy Fraser estabelece uma certa separação {perspectiva dualista da análise dos conflitos sociais) entre as
demandas por reconhecimento e as demandas por red istribuição. Já Axel Honneth defende que todos os con­
flitos sociais advêm da luta por reconhecimento e, com isso, não concorda com a separação feita por Fraser.
Para ele, essa dicotomia suprime ou pelo menos negligencia as lutas por reconhecimento presentes em todos
os conflitos por igualdade legal. Sobre o Tema ver: Fundamentos de uma Teoria da Constituição Dirigente, MO­
REIRA. Nelson Camatta, p 34-67, 2010. FRASER, Nancy, Reconhecimento sem ética? In: SOUZA, Jessé; MATTOS
Patrícia (orgs.) Teoria Crítica do Século XXI, São Paulo, 2007. HONNETH, Axel, Luta por reconhecimento: A gramá­
tico moral dos conflitos sociais, 2a Ed. 2009.
75. MOREIRA, Nelson Camatta Fundamentos de uma Teoria da Constituição Dirigente, p. 57-58,2010. HONNETH, Axel,
Luta por reconhecimento: A gramática moral dos conflitos sociais, 2" Ed. 2009.

352
Princípios Fundamentais (Estruturantes) da Constituição de 1988

compreender que, com seu trabalho, ele está contribuindo para o progresso da
sociedade, recebendo a justa remuneração e condições razoáveis de trabalho. 0
trabalho é, então, também um direito social (art. 6° da CR/88), recebendo proteção
constitucional em diversos aspectos (art.70 ao 11 da CR/88).

A noção de livre iniciativa, por sua vez, está coligada à liberdade de empresa e
de contrato, como condição mestra do liberalismo econômico e do capitalismo/6 A
livre iniciativa é reproduzida também no plano da ordem econômica (art. 170) e tem
como finalidade assegurar condições de dignidade e de justiça social (distributiva).
Todavia, 0 uso dessa liberdade não é absoluto, sendo direcionada sempre para a
função social da empresa.76 77
Como recente exemplo sobre a livre iniciativa e livre concorrência prevista no
art.170 da CR/88, temos julgados do STF em que 0 Pretório Excelso decidiu que a
proibição ou restrição por lei municipal da atividade de transporte privado indivi­
dual por motorista cadastrado em aplicativo é inconstitucional, por violação aos
princípios da livre iniciativa e da livre concorrência.78

Nas decisões, afirmou o STF, que a liberdade de iniciativa, garantida pelos arts.
1o, IV, e 170 da CR/88, consubstancia cláusula de proteção destacada, no ordenamen­
to pátrio, como fundamento da República. Por essa razão, é possível o controle judi­
cial de atos normativos que afrontem as liberdades econômicas básicas. Segundo o
constitucionalismo moderno, é necessário que haja uma restrição da interferência do
poder estatal sobre o funcionamento da economia de mercado. O "rule of law" deve

76. "É certo que a ordem econômica na Constituição de 1988 define opção por um sistema no qual joga um papel
primordial a livre iniciativa. Essa circunstância não legitima, no entanto, a assertiva de que o Estado só intervirã na
economia em situações excepcionais. Mais do que simples instrumento de governo, a nossa Constituição enun­
cia diretrizes, programas e fins a serem realizados pelo Estado e pela sociedade. Postula um plano de ação global
normativo para o Estado e para a sociedade, informado pelos preceitos veiculados pelos seus artigos 1 °, 3° e 170.
A livre iniciativa é expressão de liberdade titulada não apenas pela empresa, mas também pelo trabalho. Por isso
a Constituição, ao contemplá-la, cogita também da 'iniciativa do Estado’; não a privilegia, portanto, como bem
pertinente apenas à empresa. Se de um lado a Constituição assegura a livre iniciativa, de outro determina ao Es­
tado a adoção de todas as providências tendentes a garantir o efetivo exercício do direito à educação, à cultura e
ao desporto [artigos 23, inciso V, 205,208,215 e 217, § 3o, da Constituição]. Na composição entre esses princípios
e regras há de ser preservado o interesse da coletividade, interesse público primário. O direito ao acesso à cultura,
ao esporte e ao lazer, são meios de complementar a formação dos estudantes."(ADI n° 1.950, Rei. Min. Eros Grau,
julgamento em 3-11 -05, Plenário, DJ de 2-6-06). No mesmo sentido: ADI n° 3.512, Rei. Min. Eros Grau, julgamento
em 15-2-06, DJ de 23-6-06.
77. "O princípio da livre iniciativa náo pode ser invocado para afastar regras de regulamentação do mercado e de
defesa do consumidor." (RE n° 349.686, Rei. Min. Ellen Gracie, julgamento em 14.06.2005,2aTurma, 07 de 5-8-05).
Ver também: "Em face da atual Constituição, para conciliar o fundamento da livre iniciativa e do princípio da livre
concorrência com os da defesa do consumidor e da redução das desigualdades sociais, em conformidade com
os ditames da justiça social, pode o Estado, por via legislativa, regular a política de preços de bens e de serviços,
abusivo que é o poder econômico que visa ao aumento arbitrário dos lucros." (ADI n° 319-QO, Rei. Min. Moreira
Alves, julgamento em 03.03.93, Plenário, D7de 30-4-93).
78. ADPF 449/DF, Rei. Min. Luiz Fux; RE 105411O/SP,STF. Plenário. Rei. Min. Roberto Barroso, julgem 8 e 09.05.2019
(repercussão geral). O STF julgou inconstitucional a Lei n” 10.553/2016, do Município de Fortaleza, que vedou a
utilização de carros cadastrados ou não em aplicativos (ADPF 449/DF). Além disso, o STF considerou inconstitu­
cional a Lei n° 16.279/2015, do Município de São Paulo, que igualmente proibia o uso de veículos cadastrados em
aplicativos (RE 1054110/SP)

353
Bernardo Gonçalves Fernandes

se sobrepor a iniciativas estatais autoritárias que sejam destinadas a concentrar pri­


vilégios, a impor monopólios ou a estabelecer salários, preços e padrões arbitrários
de qualidade. Tais iniciativas são arbitrárias e restringem a competição, a inovação, o
progresso e a distribuição de riquezas.79
Nesse sentido, o processo político por meio do qual as regulações são editadas
é frequentemente capturado por grupos de poder interessados em obter proveitos
superiores aos que seriam possíveis em um ambiente de livre competição. Um re­
curso político comumente utilizado por esses grupos é o poder estatal de controle
de entrada de novos competidores em um dado mercado, a fim de concentrar
benefícios em prol de poucos e dispensar prejuízos por toda sociedade. Assim, o
exercício de atividades econômicas e profissionais por particulares deve ser prote­
gido da coerção arbitrária por parte do Estado.80
Afirmou ainda o STF, que a proibição dos aplicativos de transporte afronta ainda
o princípio da busca pelo pleno emprego, que está consagrado como princípio seto­
rial no art. 170, VIII, da CR/88. Isso porque essa proibição impede a abertura do mer­
cado a novos entrantes eventualmente interessados em migrar para a atividade.81

Na decisão, presente no informativo 937 do STF, 0 ministro Roberto Barroso as­


severou que vivemos um ciclo próprio do desenvolvimento capitalista, em que há a
substituição de velhas tecnologias e velhos modos de produção por novas formas
de produção, num processo chamado de inovação disruptiva, por designar idéias
capazes de enfraquecer ou substituir indústrias, empresas ou produtos estabele­
cidos no mercado. Nesse cenário, é muito fácil perceber 0 tipo de conflito entre
os detentores dessas novas tecnologias disruptivas e os agentes tradicionais do
mercado: players já estabelecidos em seus mercados, por vezes monopolistas, são
ameaçados por atores que se aproveitam das lacunas de regulamentação de novas
atividades para a obtenção de vantagens competitivas, sejam elas regulatórias ou
tributárias. A melhor forma de 0 Estado lidar com essas inovações e, eventualmen­
te, com a destruição criativa da velha ordem, não é impedir o progresso, mas sim
tentar produzir as vias conciliatórias possíveis.
0 Ministro Roberto Barroso destacou ainda em seu voto, os três fundamentos
pelos quais considerou inconstitucionais as leis municipais (dos municípios de For­
taleza e de São Paulo) impugnadas.
Em primeiro lugar, a Constituição estabelece, como princípio, a livre iniciativa.
A lei não pode arbitrariamente retirar determinada atividade econômica da liber­
dade de empreender das pessoas, salvo se fundamento constitucional autorizar a

79. ADPF 449/DF, Rei. Min. Luiz Fux; RE 1054110/SP, STF. Plenário. Rei. Min. Roberto Barroso, julg em 8 e 09.05.2019
(repercussão geral).
80. ADPF 449/DF, Rei. Min. Luiz Fux; RE 1054110/SP, STF. Plenário. Rei. Min. Roberto Barroso, julg em 8 e 09.05.2019
(repercussão geral).
81. ADPF 449/DF, Rei. Min. Luiz Fux; RE 1054110/SP, STF. Plenário. Rei. Min. Roberto Barroso, julg em 8 e 09.05.2019
(repercussão geral).

354
Princípios Fundamentais (Estruturantes) da Constituição oe 1988

restrição imposta. A edição de leis ou atos normativos proibitivos, pautada na exclu­


sividade do modelo de exploração por táxis, não se amolda ao regime constitucio­
nal da livre iniciativa. Em segundo lugar, a livre iniciativa significa livre concorrência.
A opção pela economia de mercado baseia-se na crença de que a competição entre
os agentes econômicos e a liberdade de escolha dos consumidores produzirão os
melhores resultados sociais. Por fim, é legítima a intervenção do Estado, mesmo em
um regime de livre iniciativa, para coibir falhas de mercado e para proteger o con­
sumidor. Entretanto, são inconstitucionais a edição de regulamentos e o exercício
de fiscalização que, na prática, inviabilizem determinada atividade. A competência
autorizada por lei para os municípios regulamentarem e fiscalizarem essa atividade
não pode ser uma competência para, de maneira sub-reptícia ou implícita, interdi­
tar, na prática, a prestação desse serviço.82
Por último, destacamos a recente Lei n° 13.874 de 2019 que institui a Declaração
de Direitos de Liberdade Econômica e estabeleceu garantias de livre mercado.
Assim sendo, foi positivada a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica,
que estabeleceu normas de proteção à livre iniciativa e ao livre exercício de ativi­
dade econômica e disposições sobre a atuação do Estado como agente normativo
e regulador, nos termos do inciso IV do caput do art. 1», do parágrafo único do art.
170 e do caput do art. 174 da CR/88.

8.6. Pluralismo Político


0 pluralismo político decorre de um desdobramento do princípio democrático,
autorizando em uma sociedade a existência de uma constelação de convicções de
pensamento e de planos e projetos de vida, todos devidamente respeitados, isso
significa que 0 Estado não pode desautorizar nem incentivar nenhum. Todos têm
0 mesmo direito e liberdade de existência e proliferação no ambiente social. Traz
também a noção e 0 respeito à alteridade, nos fazendo sempre perceber que 0
diferente é necessário.
0 pluralismo é um traço do pensamento liberal e, por isso mesmo, os direitos
fundamentais são condições sine qua non para a manutenção dessa ordem plural
no interior do Estado. Intolerâncias, então, constituem práticas que devem ser repri­
midas pelo Direito e pelo Estado. Por último, é necessário salientar que 0 pluralismo
político se apresenta não só como abertura para opções políticas (expressão de
pensamentos e sua manifestação, abertura ideológica com 0 adequado respeito
aos mais variados projetos de vida), mas também como a possibilidade de partici­
pação em partidos políticos.

82. ADPF 449/DF, Rei. Min. Luiz Fux; RE 1054110/SP, STF. Plenário. Rei. Min. Roberto Barroso, julg em 8 e 09.05.2019
(repercussão geral).

355

Você também pode gostar