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8.1. Introdução
A doutrina constitucional tradicional afirma que os incisos do art. 1° da Cons
tituição de 1988 constituiríam os valores fundamentais e estruturantes do Estado
brasileiro. Para a doutrina, devem ser entendidos como postulados normativos
44. ADI 5373 MC/RR, STF. Plenário. Rei. Min. Celso de Mello, julgado em 09.05.2019 (Informativo 939).
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8.2. Soberania
0 conceito de soberania tem seu nascimento no século XVI, como elemento es
sencial para estruturação e formação do Estado Moderno. Aqui, a soberania emerge
eminentemente como um poder acima dos demais poderes.
A primeira tentativa de teorização se deu com Bodin, em 1576. A soberania será
ligada a noção de summa potestas. Aqui, 0 soberano é 0 monarca que não mais
se submete a nenhum outro poder, seja dos senhores feudais, seja até mesmo do
Papado. Esse conceito da Teoria do Estado foi fundamental para 0 processo de uni
ficação do poder, com a eliminação das guerras civis ou religiosas, 0 que conduzirá
a um desenvolvimento econômico do Estado e da sociedade. Só em 1762, todavia,
Rousseau irá reelaborar 0 conceito, passando a adjetivá-lo necessariamente e, por
tanto, afirmando uma soberania popular. Aqui a vontade popular soberana é ilimi
tada no seu poder de criação do Direito.
Há, então, quem divida a soberania em duas: (a) SOBERANIA EXTERNA: referente
à representação dos Estados em uma ordem internacional (relação de coordenação
e não sujeição); e (b) SOBERANIA INTERNA: responsável por delimitar a supremacia
estatal perante a sociedade na ordem interna (relação de subordinação e poder
máximo interno)4'.
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Canotilho bem reconhece que, hoje, a ideia de soberania popular é noção um
bilicalmente relacionada ao princípio democrático/8 Mas diversos fatores, notada-
mente a globalização (seja ela econômica, política, cultural, tecnológica, ambiental,
entre outras), têm atuado como flexibilizadores da ideia de soberania e conduzido
o conceito a uma crise. Nesse sentido, atualmente, o Direito comunitário, que não
se apresenta como Direito nacional nem mesmo como (o tradicional) Direito inter
nacional, traz para o seio do debate sobre a soberania reflexões, que demonstram
uma relativização do conceito clássico. Assim sendo, na União Européia, embora
ainda em processo de desenvolvimento (lento e gradual), temos a soberania dos
Estados membros convivendo com uma soberania da União Européia (ideia de uma
soberania dual ou compartilhada, até então sem precedentes).
8.3. Cidadania
Cidadania refere-se à participação política das pessoas na condução dos negó
cios e interesses estatais. Fato é que o conceito de cidadania sofre uma gradativa
ampliação ao longo dos anos, principalmente a partir da Segunda Guerra. Antes,
ser cidadão era ter capacidade para votar e ser votado (o que, diga-se, ainda é
válido para a dogmática do Direito Constitucional). Porém, hoje, compreende-se
que a cidadania se expressa por outras vias, além da política, se desenvolvendo
também por meio dos direitos e garantias fundamentais, ou da tutela dos direito
e interesses difusos/9 Assim sendo, podemos afirmar que a cidadania não é algo
pronto e acabado, mas se apresenta como processo (um caminhar para) de parti
cipação ativa na formação da vontade política e afirmação dos direitos e garantias
fundamentais, sendo ao mesmo tempo um status e um direito.
pois, em situações especiais de grave risco para a população ou de relevante interesse público, pode o Estado
ampliar a respectiva responsabilidade, por danos decorrentes de sua ação ou omissão, para além das balizas
do supramencionado dispositivo constitucional, inclusive por lei ordinária, dividindo os ônus decorrentes dessa
extensão com toda a sociedade. II - Validade do oferecimento pela União, mediante autorização legal, de garantia
adicional, de natureza tipicamente securitária, em favor de vítimas de danos incertos decorrentes dos eventos
patrocinados pela FIFA, excluídos os prejuízos para os quais a própria entidade organizadora ou mesmo as viti
mas tiverem concorrido. Compromisso livre e soberanamente contraído pelo Brasil à época de sua candidatura
para sediar a Copa do Mundo FIFA 2014. (...) V - É constitucional a isenção fiscal relativa a pagamento de custas
judiciais, concedida por Estado soberano que, mediante política pública formulada pelo respectivo governo, bus
cou garantir a realização, em seu território, de eventos da maior expressão, quer nacional, quer internacional.
Legitimidade dos estímulos destinados a atrair o principal e indispensável parceiro envolvido, qual seja, a FIFA,
de modo a alcançar os benefícios econômicos e sociais pretendidos. VI - Ação direta de inconstitucionalidade jul
gada improcedente. Conforme o Ministro Luís Roberto Barroso/a análise da lei eni debate configuraria hipótese
típica de autocontenção judicial. Nesse sentido, a visão do julgador em relação a essa decisão política não poderia
se sobrepor a decisões de conveniência e oportunidade tomadas pelos agentes públicos eleitos. Explicou que,
caso não se configurasse inconstitucionalidade evidente, de direitos fundamentais e das regras da democracia,
não haveria razão para que o STF se sobrepusesse à valoração feita pelos agentes políticos". ADI 4976 julg. em
07.05.2014. Rei. Min. Ricardo Lewandowski.
48. CANOTILHO, José Joaquim Gomes, Direito constitucionale teoria do Constituição, 2. ed., p. 281.
49. "Ninguém é obrigado a cumprir ordem ilegal, ou a ela se submeter, ainda que emanada de autoridade judicial.
Mais: é dever de cidadania opor-se à ordem ilegal; caso contrário, nega-se o Estado de Direito."(HC n° 73.454, Rei.
Min. Maurício Corrêa, julgamento em 22-4-96,2a Turma, DJ de 7-6-96).
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sobre ela sua visão de mundo e seus projetos para garantir o reconhecimento.
Desse modo, em um primeiro momento, o escravo é obrigado, pela força, a reco
nhecer no senhor o autor das idéias que guiam suas próprias ações; ao passo que o
senhor não reconhece o escravo - senão como objeto, meio para atingir suas idéias
e projetos. Mas esse reconhecimento conquistado pela força acaba por perder seu
efeito: "ele só é reconhecimento efetivo quando aquele que reconhece o valor do
outro também tem seu próprio valor honrado por ele".54 Isso nos revela que a reci
procidade é condição essencial dessa dinâmica.
Destacamos, portanto, uma diferença fundamental com o pensamento de Kant.
Na Fundamentação da Metafísica dos Costumes, Kant irá despir o sujeito de todos
os seus predicados contingentes, reduzindo o homem ao ser racional, que toma
decisões morais autônomas, levando em conta apenas o fato de ele partilhar um
mundo com outros indivíduos igualmente racionais e potencialmente autônomos.
Com isso atinge o imperativo categórico. Hegel, por outro lado, por partir da con
tingência do particular, afirma que reconhecer o outro como racional - e com isso,
autônomo - transforma o ponto de partida de Kant num problema crucial. E esse
problema somente pode ser solucionado através de percurso de desenvolvimento
que culminará nas instituições complexas do Mercado e do Estado.
Para o Direito, a redescoberta da ideia de dignidade humana vem acompanha
da de diversos documentos internacionais, na qual é citada, como por exemplo no
Estatuto (ou Carta) da Organização das Nações Unidas (1945), na Declaração Univer
sal dos Direitos do Homem (1948), bem como na Constituição italiana (1948) e na
Lei Fundamental da República Federal Alemã (1949). Ela representa, de certo modo,
uma contraposição aos horrores vividos durante 0 período das Guerras Mundiais,
sobretudo da 2a Guerra mundial.55
Na tradição do Direito alemão, isso significou, principalmente, afirmar que to
dos têm direito a serem tratados como pessoas, sendo respeitados de modo igual
54. ASSY, Bethãnia; FERES JÚNIOR, João. "Reconhecimento''. BARRETO, Vicente de Paulo (Coord.). Dicionário de Filoso
fia do Direito. São Leopoldo / Rio de Janeiro: Unisinos / Renovar, 2006, p. 706.
55. Outros exemplos: Declaração dos Direitos dos Povos Indígenas (art. 15,1). Declaração sobre Educação e Forma
ção em Direitos Humanos (art. 5o, 1), Convenção Internacional dos Direitos das Pessoas com Deficiência (art. 1),
Convenção Internacional de Proteção das Pessoas contra o Desaparecimento Forçado (art. 19, 2), Convenção
Internacional sobre os Direitos da Criança (art. 28, 2), Convenção contra Tortura e Outros Tratamentos ou Pe
nas Cruéis, Desumanos ou Degradantes (preâmbulo), Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as
Formas de Discriminação Racial (preâmbulo), dentre outras. (...) a utilização do termo não aparece somente em
textos constitucionais ocidentais. Ao contrário, são diversas as constituições que, mundo afora, expressam a preo
cupação em preservar o entendimento do que esteja caracterizado como dignidade, elevando tal conceito ao pa
tamar jurídico-constitucional. São exemplos as Constituições do Afeganistão (art. 24), China (art. 38), Azerbaijão
(art. 13, lll), Iraque (art. 37,1o, a), Irã (art. 2o, 6), Bahrein (art. 18),Cazaquistâo(art,45), Paquistão (art. 14), Kuwait
(art. 29), Tailândia (section 4), Armênia (art. 13), Turquia (art. 17), Suécia (art. 2°), Finlândia (art. 1°), Suíça (art 7°),
Montenegro (art 25), Polônia (art. 30), Romênia (art. Io, 3), Rússia (art. 7°), Sérvia (art. 19), Japão (art. 24), Holanda
(art. 11), África do Sul (art. 10), dentre outras. A dignidade da pessoa humana em processos criminais no STF: valor
intrínseco, autonomia e valor comunitário. LOURENÇO, Cristina Sílvia Alves, BALHE GUEDES, Maurício Sullivan, p.
10,2014.
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Para os italianos, a dignidade não é tão intangível e sua adjetivação não se faz
com referência ao "humano", mas, sim, fala-se em uma "dignidade social" e está liga
da ao desenvolvimento "segundo as próprias possibilidades e a própria escolha, uma
atividade ou uma função que concorra ao progresso material e espiritual da socieda
de" (art. 4°, § 2» da Constituição italiana de 1948). Isso significa atar à ideia de digni
dade a um conceito "econômico-social" e, por isso mesmo, associá-la ao "trabalho"
como forma de dignificação do homem. A preocupação aqui não é com a pessoa em
si (a partir de bases jusnaturalistas), como acontece na doutrina alemã, mas no pro
cesso de inserção dessa pessoa no tecido social; isto é, a pessoa assume não apenas
um direito, mas também um dever de contribuir para 0 progresso da sociedade com
seu trabalho. Ao que parece, essa vertente da ideia de dignidade parece ter ficado
olvidada por alguns juristas brasileiros que importaram a matriz alemã.
Fato é que muitos autores registram uma dificuldade em conceber um conceito
pacífico do que seja a dignidade humana, como reconhece Sarlet/ Isso se deve,
principalmente, porque tais autores não conseguem - ou talvez não queiram - lan
çar mão de uma leitura, primeiro, dessacralizada do Direito moderno - razão pela
qual assumem concepções jusnaturalistas e valores ético-religiosos no intuito de
substancializar seu argumento, procurando uma forma de perenidade na fluidez
da modernidade; e segundo, rigorosa paradigmaticamente -, dessa forma falta-lhes
uma teoria do Direito.
Mas, partindo das noções afirmadas pela teoria constitucional majoritária - ain
da que pesem as críticas feitas, bem como as incoerências internas a essa teoria
com fortes heranças germânicas e bases axiológicas, a dignidade da pessoa huma
na (art. 10, lil da CR/88) é erigida à condição de meta-príncípio5®. Por isso mesmo,
esta irradia valores e vetores de interpretação para todos os demais direitos
fundamentais, exigindo que a figura humana receba sempre um tratamento moral
condizente e igualitário, sempre tratando cada pessoa como fim em si mesma,
nunca como meio (coisas) para satisfação de outros interesses ou de interesses de
terceiros.59
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tratamento igualitário entre semelhantes. Esse dever configura-se pela exigência do indivíduo respeitar a digni
dade de seu semelhante tal qual a Constituição Federal exige que lhe respeitem a própria." (MORAES, Alexandre
de, Direitos humanos fundamentais, p. 46).
60. SIQUEIRA Jr„ Paulo Hamilton, Dignidade da pessoa humana, p. 710.
61. Todavia, um alerta: proceder assim é ignorar os riscos de retroceder á tradição jusnaturalista, ou pior, apagar os
traços de autonomia sistêmica que separa o direito e a moral. Ver: HABERMAS, Jürgen. A inclusão do outro, 2002.
62. VIEIRA, Oscar Vilhena, Direitos fundamentais: uma leitura da jurisprudência do STF, p. 69.
63. SARLET, Ingo, Dignidade da Pessoa Humana e novos Direitos na Constituição Federal de 1988, p. 106,2005.
64. DWORKIN, Ronald, Is Democracy Possible here?, p. 9-11. CORDEIRO. Karine, Direitos Fundamentais Sociais, p. 75,
2012.
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moral ou assumir uma via de volta ao jusnaturalismo. Mais que afirmar que o ser
humano deve ser tratado como um ser único, individual, como faz boa parte dos
juristas nacionais, a leitura de Dworkin busca justificar-se na própria autofundação
do Direito moderno.
Além disso, para o ex-professor de Oxford, o respeito à dignidade acaba por
legitimar o próprio governo, no sentido de que apenas os governos que demons
tram igual consideração e respeito por cada uma das pessoas sob seu domínio (isso
implica, obviamente, em atender aos dois princípios da dignidade citados acima)
podem ser considerados legítimos65.
já Habermas identificará tal proposição com o código da modernidade (.liberda
de e igualdade') e buscará explicar como se dá tal processo de produção de normas
jurídicas legítimas, no qual cada sujeito é ao mesmo tempo autor e destinatário das
normas.66 Isso é fundamental e, por isso parece ser uma leitura mais adequada, já
que não busca assentar a noção de dignidade humana sob um conjunto de valores
que reflete apenas uma visão particular de mundo - mais exatamente a tradição
judaico-cristã.6' Ao se abrir a porta para uma fundamentação normativa própria do
Direito, participantes de outras concepções podem tomar assento nessa prática
comunicativa, sentindo-se igualmente coautores das normas a que se submetem.
Verdade é que a jurisprudência do STF ainda não desenvolveu um entendi
mento do que seja a dignidade de maneira sistematizada. Apesar disso, a doutrina
vem fazendo esforços hercúleos no sentido de dotar as decisões de uma lógica e
coerência, extraindo delas uma doutrina sobre a dignidade da pessoa humana.68
65. DWORKIN. Ronald, Is Democracy Possible here?, p. 90-140. É interessante que, em sua obra Justice for Hedgehogs,
Dworkin eleva ao máximo a dimensão axiológica da dignidade da pessoa humana, considerando-a o valor que
unifica a ética (o que se deve fazer para viver bem) e a moralidade (como se deve tratar os outros), legitima a ordem
política e orienta a interpretação de diversas questões como justiça, igualdade e liberdade. Justice for Hedgehogs,
p. 204-255,2011.
66. HABERMAS, Jürgen, Facticidad y validez.
67. Basta ver a afirmação de Luis Roberto Barroso: "O princípio da dignidade da pessoa humana identifica um espaço
de integridade moral a ser assegurado a todas as pessoas por sua só existência no mundo. Relaciona-se tanto
com a liberdade e valores do espirito quanto com as condições materiais de subsistência.'Gestação de fetos anen
cefálicosepesquisas com células tronco: dois temas acerca da vida e da dignidade na Constituição, p. 15.
68. No julgamento do HC n° 71.373-4 RS, o STF entendeu por solucionar um suposto conflito entre dignidade humana
e direito á intimidade, no que diz respeito a possibilidade (ou não) de condução coercitiva do suposto pai em
sede de processo de investigação de paternidade. Já em recente decisão, afirmou o STF que: “É lícito ao Poder
Judiciário impor ã Administração Pública obrigação de fazer, consistente na promoção de medidas ou na execução
de obras emergenciais em estabelecimentos prisionais para dar efetividade ao postulado da dignidade da pessoa hu
mana e assegurar aos detentos o respeito à sua integridade física e moral, nos termos do que preceitua o art. 5°. XLIX,
da CF, não sendo oponível à decisão o argumento da reserva do possível nem o princípio da separação dos poderes.
(...) O quadro revelaria desrespeito total ao postulado da dignidade da pessoa humana, em que havería um processo
de “coisificação” de presos, a indicar retrocesso relativamente á lógica jurídica atual. A sujeição de presos a penas a
ultrapassar mera privação de liberdade prevista na lei e na sentença seria um ato ilegal do F.stado, e retiraria da sanção
qualquer potencial de ressocialização." RE 592.581 /RS Pleno do STF, julg. em 13.08.2015, Ê interessante que em pes
quisa realizada no sítio eletrônico do STF, tendo por parâmetro o período de 01 de janeiro de 2010a 31 de dezembro
2013, o termo "dignidade da pessoa humana" aparece empregado em 108 acórdãos, 1.51S decisões monocráticas, e
1 questão de ordem. A dignidade da pessoa humana em processos criminais no STF. LOURENÇO, Cristina Silvia Alves,
BALHE GUEDES, Maurício Sullivan, p. 10,2014.
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69. BARROSO, Luís Roberto. A dignidade do pessoa humana no direito constitucional contemporâneo: a construção de
um conceito jurídico à luz da jurisprudência mundial, p. 112,2012.
70. RE 587970/SP STF. Plenário. Rei. Min. Marco Aurélio, julgado em 19 e 20.04.2017 (repercussão geral).
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71. RE 587970/SP STF. Plenário, Rei. Min. Marco Aurélio, julgado em 19 e 20.04.2017 (repercussão geral).
72. BVerG, 1357/05 de 15 de fevereiro de 2006. HABERMAS, Jürgen. Sobre a Constituição da Europa, p. 08-09,2011.
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73. É interessante aqui que a Lei n° 12.966 de 12.04,2014, alterou a Lei no 7.347/85 (Lei da Ação Civil Pública), para
incluira proteção à honra eá dignidade de grupos raciais, étnicos ou religiosos. Portanto, atualmente a dignidade
e a honra de grupos raciais, étnicos ou religiosos pode ser objeto de Ação Civil Pública.
74. Aqui remetemos o leitor para interessante debate sobre o tema travado por Nancy Fraser e Axel Honneth.
Nancy Fraser estabelece uma certa separação {perspectiva dualista da análise dos conflitos sociais) entre as
demandas por reconhecimento e as demandas por red istribuição. Já Axel Honneth defende que todos os con
flitos sociais advêm da luta por reconhecimento e, com isso, não concorda com a separação feita por Fraser.
Para ele, essa dicotomia suprime ou pelo menos negligencia as lutas por reconhecimento presentes em todos
os conflitos por igualdade legal. Sobre o Tema ver: Fundamentos de uma Teoria da Constituição Dirigente, MO
REIRA. Nelson Camatta, p 34-67, 2010. FRASER, Nancy, Reconhecimento sem ética? In: SOUZA, Jessé; MATTOS
Patrícia (orgs.) Teoria Crítica do Século XXI, São Paulo, 2007. HONNETH, Axel, Luta por reconhecimento: A gramá
tico moral dos conflitos sociais, 2a Ed. 2009.
75. MOREIRA, Nelson Camatta Fundamentos de uma Teoria da Constituição Dirigente, p. 57-58,2010. HONNETH, Axel,
Luta por reconhecimento: A gramática moral dos conflitos sociais, 2" Ed. 2009.
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compreender que, com seu trabalho, ele está contribuindo para o progresso da
sociedade, recebendo a justa remuneração e condições razoáveis de trabalho. 0
trabalho é, então, também um direito social (art. 6° da CR/88), recebendo proteção
constitucional em diversos aspectos (art.70 ao 11 da CR/88).
A noção de livre iniciativa, por sua vez, está coligada à liberdade de empresa e
de contrato, como condição mestra do liberalismo econômico e do capitalismo/6 A
livre iniciativa é reproduzida também no plano da ordem econômica (art. 170) e tem
como finalidade assegurar condições de dignidade e de justiça social (distributiva).
Todavia, 0 uso dessa liberdade não é absoluto, sendo direcionada sempre para a
função social da empresa.76 77
Como recente exemplo sobre a livre iniciativa e livre concorrência prevista no
art.170 da CR/88, temos julgados do STF em que 0 Pretório Excelso decidiu que a
proibição ou restrição por lei municipal da atividade de transporte privado indivi
dual por motorista cadastrado em aplicativo é inconstitucional, por violação aos
princípios da livre iniciativa e da livre concorrência.78
Nas decisões, afirmou o STF, que a liberdade de iniciativa, garantida pelos arts.
1o, IV, e 170 da CR/88, consubstancia cláusula de proteção destacada, no ordenamen
to pátrio, como fundamento da República. Por essa razão, é possível o controle judi
cial de atos normativos que afrontem as liberdades econômicas básicas. Segundo o
constitucionalismo moderno, é necessário que haja uma restrição da interferência do
poder estatal sobre o funcionamento da economia de mercado. O "rule of law" deve
76. "É certo que a ordem econômica na Constituição de 1988 define opção por um sistema no qual joga um papel
primordial a livre iniciativa. Essa circunstância não legitima, no entanto, a assertiva de que o Estado só intervirã na
economia em situações excepcionais. Mais do que simples instrumento de governo, a nossa Constituição enun
cia diretrizes, programas e fins a serem realizados pelo Estado e pela sociedade. Postula um plano de ação global
normativo para o Estado e para a sociedade, informado pelos preceitos veiculados pelos seus artigos 1 °, 3° e 170.
A livre iniciativa é expressão de liberdade titulada não apenas pela empresa, mas também pelo trabalho. Por isso
a Constituição, ao contemplá-la, cogita também da 'iniciativa do Estado’; não a privilegia, portanto, como bem
pertinente apenas à empresa. Se de um lado a Constituição assegura a livre iniciativa, de outro determina ao Es
tado a adoção de todas as providências tendentes a garantir o efetivo exercício do direito à educação, à cultura e
ao desporto [artigos 23, inciso V, 205,208,215 e 217, § 3o, da Constituição]. Na composição entre esses princípios
e regras há de ser preservado o interesse da coletividade, interesse público primário. O direito ao acesso à cultura,
ao esporte e ao lazer, são meios de complementar a formação dos estudantes."(ADI n° 1.950, Rei. Min. Eros Grau,
julgamento em 3-11 -05, Plenário, DJ de 2-6-06). No mesmo sentido: ADI n° 3.512, Rei. Min. Eros Grau, julgamento
em 15-2-06, DJ de 23-6-06.
77. "O princípio da livre iniciativa náo pode ser invocado para afastar regras de regulamentação do mercado e de
defesa do consumidor." (RE n° 349.686, Rei. Min. Ellen Gracie, julgamento em 14.06.2005,2aTurma, 07 de 5-8-05).
Ver também: "Em face da atual Constituição, para conciliar o fundamento da livre iniciativa e do princípio da livre
concorrência com os da defesa do consumidor e da redução das desigualdades sociais, em conformidade com
os ditames da justiça social, pode o Estado, por via legislativa, regular a política de preços de bens e de serviços,
abusivo que é o poder econômico que visa ao aumento arbitrário dos lucros." (ADI n° 319-QO, Rei. Min. Moreira
Alves, julgamento em 03.03.93, Plenário, D7de 30-4-93).
78. ADPF 449/DF, Rei. Min. Luiz Fux; RE 105411O/SP,STF. Plenário. Rei. Min. Roberto Barroso, julgem 8 e 09.05.2019
(repercussão geral). O STF julgou inconstitucional a Lei n” 10.553/2016, do Município de Fortaleza, que vedou a
utilização de carros cadastrados ou não em aplicativos (ADPF 449/DF). Além disso, o STF considerou inconstitu
cional a Lei n° 16.279/2015, do Município de São Paulo, que igualmente proibia o uso de veículos cadastrados em
aplicativos (RE 1054110/SP)
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79. ADPF 449/DF, Rei. Min. Luiz Fux; RE 1054110/SP, STF. Plenário. Rei. Min. Roberto Barroso, julg em 8 e 09.05.2019
(repercussão geral).
80. ADPF 449/DF, Rei. Min. Luiz Fux; RE 1054110/SP, STF. Plenário. Rei. Min. Roberto Barroso, julg em 8 e 09.05.2019
(repercussão geral).
81. ADPF 449/DF, Rei. Min. Luiz Fux; RE 1054110/SP, STF. Plenário. Rei. Min. Roberto Barroso, julg em 8 e 09.05.2019
(repercussão geral).
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82. ADPF 449/DF, Rei. Min. Luiz Fux; RE 1054110/SP, STF. Plenário. Rei. Min. Roberto Barroso, julg em 8 e 09.05.2019
(repercussão geral).
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