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A FANTASIA DO REAL NO CONTEXTO DA EDUCAÇÃO INFANTIL: DESCOBRINDO


SENTIDOS E SIGNIFICADOS PARA UMA EDUCAÇÃO DIFERENCIADA

Denise Watanabe, Rosimeire Marques Gonçalves, Tony Aparecido Moreira, José Milton de Lima

Universidade Estadual Paulista - FCT/UNESP. Departamentos: Educação Física, Pedagogia e Educação, Campus
Presidente Prudente - SP. Email: de.wtnb@gmail.com.
Agência Financiadora: PIBIC/CNPq.

RESUMO
Este artigo expõe resultados de uma pesquisa de Iniciação Científica realizada em algumas salas de
Educação Infantil de uma escola periférica de um município do interior paulista. Com o objetivo de
estimular a imaginação infantil e ampliar o repertório lúdico das crianças e das professoras
utilizou-se brincadeiras; histórias; personagens imaginários; fotos; observações; anotações no
diário de campo; diálogos, questionários e entrevista com as crianças e as professoras. De
natureza qualitativa e fundamentada na Sociologia da Infância, adotou-se a metodologia da
pesquisa-intervenção, com vista a levantar reflexões teóricas e práticas que colaborassem com
transformações na realidade. Como resultados destacam-se uma efetiva participação das crianças
nas brincadeiras e atividades; avanços nas relações com a pesquisadora e com os pares infantis; a
maior valorização do espaço educativo e das culturas infantis pelos envolvidos na pesquisa e a
solicitação de crianças e de adultos para que a pesquisa se ampliasse a outras seriações.
Palavras-chave: Sociologia da Infância, Imaginação, Ludicidade, Infância, cultura de pares.

THE REAL FANTASY IN THE CONTEXT OF EARLY CHILDHOOD EDUCATION: DISCOVERING SENSES
AND MEANINGS FOR A DIFFERENTIATED EDUCATION.

ABSTRACT
This article presents results of a survey of scientific research carried out in some early childhood
classrooms of a school municipality of peripheral state of São Paulo. In order to stimulate
children's imagination and broaden the Repertoire of the teachers and children's playful used
jokes; stories; imaginary characters; pictures; observations; Notes on field journal; dialogues,
questionnaires and interviews with the children and the teachers. Qualitative in nature and based
on the Sociology of childhood, adopted the methodology of intervention research, with a view to
raising the theoretical and practical reflections that collaborate with changes in reality. As results
are an effective participation of children in games and activities; advances in relations with the
researcher and with infant pairs; the greater appreciation of space education and child cultures by
those involved in the research and the request of children and adults for the survey if widen other
rankings.
Keywords: Sociology of childhood, Imagination, Playfulness, Childhood, culture-pairs.

Colloquium Humanarum, Presidente Prudente, v. 11, n. 2, p.01-18, mai/ago 2014. DOI: 10.5747/ch.2014.v11.n2.h153
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INTRODUÇÃO reconhecido e por ter a oportunidade de


Este artigo expõe resultados de uma expressar sua imaginação e seus sentimentos
pesquisa de Iniciação Científica intitulada “No durante as atividades - e o pesquisador - por
mundo da criança: resgatando a fantasia do ser e/ou fazer a diferença naquele momento
real no contexto da Educação Infantil”, e pensar em uma pesquisa que pudesse
financiada pelo CNPq e realizada em algumas transformar aquela realidade/contexto.
salas de Educação Infantil – I e II de uma Entretanto, em momento algum, se
escola periférica de um município do interior pretendeu culpar ou mesmo julgar essas
paulista. Surgiu em 2011, ao constatar - por professoras ou quaisquer pessoas envolvidas
meio de intervenções e observações - que com a pesquisa pelos problemas e desafios
algumas salas daquele contexto encontrados no contexto, já que os
apresentavam algumas dificuldades e problemas relacionados à educação brasileira
entraves para incentivar e ampliar a são complexos e requerem estudos mais
imaginação infantil, assim como uma amplos.
carência – por parte dos alunos - em O intuito era incentivar e ampliar a
expressá-la nas brincadeiras e nas atividades imaginação, além de enfatizar a sua
propostas. importância, já que, por meio da imaginação
Durante um momento de – possibilitada pelas experiências e vivências
brincadeiras, um aluno expressou de forma reais - as crianças podem compreender
imaginativa que era um “super-herói”. No situações; superar medos; ajustar
entanto, obteve como resposta de sua experiências, sentimentos e emoções;
professora: “- se você é um super-herói então aprender sobre si e sobre o outro, entre
eu sou a Hebe”. Após perceber o recuo da outros.
criança - o bolsista inicial aproximou-se com Para Ferreira (2008, p. 18):
uma capa improvisada e iniciou um diálogo [...] a fantasia do real, longe
de ser um “erro de
amigável: - Eu sou um super-herói! Ao
adaptação”, permite à
perceber que lhe davam voz e oportunidade criança compreender,
interpretar e agir no meio
para se expressar, o aluno novamente deu
social, sendo um recurso
“asas à imaginação”: - Você é um super- que permite experimentar e
ajustar experiências e
herói? Eu também!
emoções através da
Ambos se aventuravam pela escola, mutação/confronto do/com
o real; um recurso no
felizes. O aluno – por ter o seu direito de fala
caminho da criança como

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“actor e construtor social [...] contribui para a


de si própria” (SARMENTO, emergência da
2001: 9), com o pleno uso objectividade nas crianças,
de capacidades de uma vez que permite
transfigurar a linearidade colocar lado a lado
do espaço do tempo e de realidades possíveis,
“si”. elaborar julgamentos
morais e aprender com a
experiência “de um outro”,
A imaginação está relacionada com a
ainda que imaginário,
linguagem simbólica, com símbolos captados conseguindo a criança
distinguir claramente o
do mundo real através das experiências
mundo real e o mundo da
vividas - transpostas do real para o imaginação.
imaginário - por meio da escuta ou
Além de estudos sobre o imaginário, a
observação de cenas, de sons, de imagens,
Sociologia da Infância representa uma área
de objetos. Esse fato demonstra que a
que enfatiza a necessidade de valorizar a
imaginação não acontece de forma natural
criança e a infância. Nela, encontramos os
ou no vazio social, mas tem relação com as
quatro eixos estruturadores das culturas
vivências e experiências, com as mediações e
infantis idealizados por Sarmento (2002), os
contextos ao qual a criança está inserida. Ela
quais organizam “*...+ formas específicas de
é inerente à “*...+ formação e
inteligibilidade, de representação e de
desenvolvimento da personalidade e
simbolização do mundo” (DELGADO apud
racionalidade de cada criança concreta” o
REVISTA EDUCAÇÃO, 2013, p. 23). Elementos
que “*...+ acontece no contexto social e
das “culturas da infância” (ou culturas
cultural que fornece condições e as
infantis) que se constituem “*...+ capacidade
possibilidades desse processo” (SARMENTO
das crianças em construírem de forma
2002, p. 3).
sistematizada modos de significação do
Segundo as ideias de Held e
mundo e de acção intencional, que são
interpretadas por Stort (1989, p. 50) “*...+ o
distintos dos modos adultos de significação e
real vem em primeiro lugar e o imaginário,
acção” (SARMENTO, 2002, p. 4).
em segundo”, ou seja, são das experiências
As culturas da infância marcam e
(diversificadas, ricas e significativas) do
expressam, mesmo que de formas
mundo real que se torna possível expandir a
divergentes, algumas características
imaginação. Ferreira, fundamentado em
presentes no cotidiano infantil,
Harris (1996, 2002 apud FERREIRA, 2008, p.
representados pelos quatro eixos
18) enfatiza que a imaginação:
estruturadores das culturas infantis: a

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ludicidade (brincar), a fantasia do real essas produções podem ser


analisadas como expressões
(imaginação), a interactividade (interação
de uma cultura geracional
com os pares ou com o adulto) e a reiteração construída no interior de e
no diálogo com a cultura
(um tempo que pode ser contabilizado de
mais ampla.
forma recursiva, sem prejuízos à brincadeira).
Cada eixo estruturador possui características O primeiro eixo estruturador a ser
singulares, mas também podem se inter- destacado é a ludicidade. Comum a todos os
relacionar. seres humanos, ocupa grande parte do
O desafio do pesquisador significa tempo e do cotidiano infantil (embora os
captar e perceber as expressões e produções adultos também brinquem). A diferença é
culturais infantis, ou seja, aguçar o ouvido e o que, pelo fato de os adultos trabalharem
olhar para cada criança, compreendendo e/ou assumirem outras responsabilidades –
suas linguagens e a autenticidade de cada brincar, muitas vezes, assume um papel
uma delas. secundário, restrito a momentos livres ou de
Para Monteiro e Carvalho (2011, p. lazer.
638): Para Sarmento (2004, p. 15):
[...] o desafio do A ludicidade constitui um
pesquisador está em aguçar traço fundamental das
o olhar e ouvir atentamente culturas infantis. Brincar
as crianças e construir não é exclusivo das
ferramentas que captem crianças, é próprio do
suas expressões e que homem e uma das suas
possibilitem a percepção do atividades sociais mais
que têm em comum, suas significativas. Porém, as
produções culturais. As crianças brincam, continua
crianças significam o mundo e abnegadamente.
por meio das linguagens: Contrariamente aos
falar, brincar, desenhar, adultos, entre brincar e
imaginar, experimentar o fazer coisas sérias não há
corpo, são expressões e distinção, sendo o brincar
modos de apreensão muito do que as crianças
simbólica do mundo. E elas trazem de mais sério.
o fazem na interação com
outras crianças e com os
Brincar permite o amplo
adultos. Nessa interação a
criança compreende o desenvolvimento social, motriz, cognitivo,
mundo e experimenta
cultural; estimula a atenção, a linguagem;
múltiplas emoções e afetos.
Na medida em que trabalha a socialização com os pares e com os
tomamos suas produções
adultos, entre outros.
simbólicas como legítimas,

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Como afirma Bochorny (2012, p. 82): Não se trata, é claro, de


brincar “no lugar da
As brincadeiras têm
criança” relegando-a ao
influência constante no
humilhante papel de
desenvolvimento das
espectadora. Trata-se de se
diversas faculdades
colocar a seu serviço. É ela
humanas da criança, como
quem comanda. Brinca-se
o pensamento, a
“com ela”, “para ela”, para
imaginação, a atenção, a
estimular sua capacidade
concentração, a memória, a
inventiva, para dar-lhe
socialização, a linguagem, a
novos instrumentos que
personalidade, o domínio
serão usados quando
da vontade, a motricidade;
brincar sozinha, para
elas “preparam” a criança
ensiná-la a brincar.
para lidar com obrigações
Enquanto se brinca, se fala.
sociais (MUKHINA, 1995).
Aprende-se com a criança a
falar com as peças do jogo,
O segundo eixo estruturador é a a compreender seus nomes
e papéis, a transformar um
fantasia do real, que possui estreita relação
erro em uma invenção, um
com a ludicidade. A imaginação, segundo gesto em uma história [...].
Sarmento (2003, p. 3) é “*...+ inerente ao
Assim como a ludicidade, a
processo de formação e desenvolvimento da
imaginação não é restrita apenas às crianças,
personalidade e racionalidade de cada
mas comum a todos os seres humanos.
criança concreta” e *...+ que acontece “no
Sarmento (2003), referenciando Harris
contexto social e cultural que fornece as
(2002), afirma que existe uma transposição
condições e possibilidades desse processo”,
imaginária do real comum a todos, adultos e
ou seja, ela não ocorre no “vazio social”, mas,
crianças. E, embora a imaginação seja maior
através das relações da criança com os pares
nos adultos (devido as suas experiências
infantis, com outros mais experientes do que
serem maiores), isso não significa que ela
ela ou com os adultos.
seja inferior nas crianças.
Rodari (1982) considera a participação
Para Paula (2008, p. 139):
adulta na brincadeira de suma importância,
Perceber a atuação das
já que, pelo fato dele ser mais experiente,
crianças nas relações sociais
contribuiria para potencializar a capacidade e no interior dos espaços
em que circulam
imaginativa das crianças. Na brincadeira, o
diariamente é compreender
adulto ensina a criança a brincar, colocando- que elas produzem sentidos
para as experiências que
se ao seu serviço. Ele proporciona uma forma
vivenciam, tomando como
de incentivá-la. referência o sistema
simbólico que as envolve.
Conforme Rodari (1982, p. 105-106):

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Também partilham seus companheiros nas


significados que, embora aventuras quotidianas… os
diferentes dos adultos, não seus aliados nos momentos
significa que sejam “difíceis”… a expressão (e o
inferiores. alcance) da vontade e do
desejo… a possibilidade de
eliminar os
Para Lima e Lima (2013, p. 212), a
constrangimentos que a
presença da imaginação nas brincadeiras e realidade apresenta e de
viver as oportunidades da
“*...+ nos jogos de imaginação ou de papéis é,
fantasia… explorando (e
sem dúvida, uma maneira privilegiada de aprendendo com) todas as
(suas) contradições e
contato com o outro, o mundo e a cultura.
possibilidades… (re)
Brincando, as crianças se apoderam construindo e (re)
construindo-se…
criativamente de formas e práticas sociais,
aprendendo sobre si mesmas e sobre o
O terceiro eixo estruturador das
mundo em que vivem”.
culturas infantis a ser destacado é a
Além das brincadeiras, histórias e
interactvidade, ou seja, a relação das crianças
atividades para estimular a fantasia do real,
com os “pares” ou com os adultos. O
contamos com o respaldo de dois amigos
conceito de pares refere-se “*...+ a coorte ou
imaginários - o Lipe e a Luci - personagens
o grupo de crianças que passa seu tempo
situados nos enredos das culturas infantis aos
junto quase todos os dias” (CORSARO, 2011
quais nunca foram citadas características
p. 127). As crianças “*...+ criam e participam
físicas.
de suas próprias e exclusivas culturas de
Ferreira (2008, p. 14) enfatiza que,
pares quando selecionam ou se apropriam
É nos meandros das
criativamente de informações do mundo
culturas da infância que
situamos os Amigos adulto para lidar com suas próprias e
Imaginários, as “criações
exclusivas preocupações” (p. 31). O autor
invisíveis”, ou objectos
personificados, a “quem” as define cultura de pares como “*...+ um
crianças dotam de vida e
conjunto estável de atividades ou rotinas,
com os quais interagem; e
cuja fundamentação da sua artefatos, valores e preocupações que as
gênese necessitou de um
crianças produzem e compartilham em
cruzamento
multidisciplinar, com a interação com as demais (CORSARO, 2003;
Psicologia, Medicina e
CORSARO; EDER, 1990 apud CORSARO 2011,
Neurobiologia. “Criações
invisíveis” que, assumindo o p. 128)”.
papel de amigos ou irmãos
das crianças, se tormam

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Para Sarmento (2004 p. 14), a cultura ativamente delas, como atores sociais, como
de pares: construtoras do processo de socialização
[...] permite às crianças junto com os adultos.
apropriar, reinventar e
Ferreira, ao referenciar Sarmento,
reproduzir o mundo que as
rodeia. A convivência com enfatiza que a criança significa:
os seus pares, através da
[...] um actor social da sua
realização de actividades e
própria socialização. Uma
rotinas, permite-lhes
socialização que se funda
exorcizar medos,
na sua interacção com o
representar fantasias e
meio e com os outros,
cenas do quotidiano, que
crianças e adultos, em
assim funcionam como
contextos sociais com
terapias para lidar com
características específicas,
experiências negativas. Essa
num processo através do
partilha de tempo, acções,
qual as crianças aprendem,
representações e emoções
elaboram e assumem
é necessária para um mais
normas e valores da
perfeito entendimento do
sociedade em que vivem
mundo e faz parte do
(cf. Sarmento 2000b e
crescimento.
2003b); um processo
realizado por um sujeito
O quarto e último - mas não menos concreto e singular, com
vontades, saberes,
importante eixo estruturador - é a reiteração.
capacidades, emoções,
Um tempo destinado ao brincar que, quando desejos e afectos que o
identificam como um
prazeroso, parece contabilizado de forma
“produtor cultural único”
diferente dos padrões cronológicos do [...] (SARMENTO, 2007, p. 2
apud FERREIRA 2008, p. 16).
ponteiro do relógio: duas horas “parecem”
apenas cinco minutos. É um tempo recursivo
Apesar das culturas infantis ressaltem
que possibilita recomeçar sem prejuízos a
as diferentes e ativas formas de participação
brincadeira sem perder sua graça e
infantil no mundo ainda é possível encontrar
significado, permitindo recomeçar “várias e
- principalmente nos espaços
várias vezes”, “mais uma vez” ou ainda “de
institucionalizados criados por adultos para
novo”.
as crianças - práticas verticais que valorizam
As culturas infantis funcionam como a
somente o conhecimento dos professores e o
prova da alteridade da infância. Elas
ensino dos saberes, tidos como prioritários,
demonstram que as crianças não são passivas
como os linguísticos. Em decorrência,
ou apenas absorvem e/ou reproduzem a
acabam por desconsiderar as outras
cultura adulta, mas que participam
linguagens, como a imaginação e a

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ludicidade, imprescindíveis para as crianças. conceitos de criança e de infância que


Falta, portanto, compreender importância de surgiram e evoluíram conforme
cada componente, dimensionar seu valor e determinadas sociedades, épocas, processos
incentivá-los. históricos e sociais, visões adultas, os quais
Para Honorato: precisam ser superados.
Os diversos aspectos sobre Entretanto, em momento algum
a criança que aparecem nas
desconsideramos o papel da Educação
diferentes produções
artísticas mostram que a Infantil na vida das crianças. Antes,
imaginação é um lugar de
ressaltamos e reconhecemos a importância
memória. É um lugar de
ação. Será que este lugar desses locais para propiciar, trocar e
está sendo considerado na
fomentar experiências e aprendizagens.
sociedade, na escola, na
família, como significativo Sarmento afirma a importância das
para o desenvolvimento
instituições educacionais e dos espaços
infantil?
domésticos para as aprendizagens de códigos
Os espaços institucionalizados utilizados criativamente e que se constituem
abrigam grande número e concentração de base das culturas infantis:
crianças, o que contribui para que, muitas A relação particular que as
crianças estabelecem com a
vezes, as falas e a participação infantis sejam
linguagem, através da
olvidadas. Apesar de as crianças passarem aquisição e aprendizagem
dos códigos que plasmam e
grande parte de sua infância nesses espaços -
configuram o real, e da sua
que na contemporaneidade tem sofrido utilização criativa, constitui
a base da especificidade das
transformações - ainda é possível perceber
culturas infantis. Ora, esta
uma negatividade da criança. aquisição e aprendizagem é
desenvolvida
Para Sarmento (2003, p. 2-3), essa
predominantemente nas
negatividade está relacionada com a instituições educacionais
(jardins de infância e
construção social da infância pela
escolas), tanto quanto nas
modernidade: “criança é o que não fala interações realizadas no
espaço doméstico, através
(infans), o que não tem luz (a-luno), o que
da educação familiar.
não trabalha, o que não tem direitos (SARMENTO, 2002).
Como afirma Bochorny (2012, p. 73-
políticos, o que não é imputável, o que não
74) “compreender o status da infância nas
tem responsabilidade parental ou judicial, o
agências socializadoras é relevante, uma vez
que carece de razão, etc.” Tais
que são as agências que podem propiciar
entendimentos representam uma série de

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mediações salutares ao desenvolvimento para melhoria da qualidade


do brincar. (2012, p. 82)
integral dos sujeitos *...+”. É preciso,
portanto, compreender o espaço da
Representa, portanto, um grande
Educação Infantil, as crianças e as suas
desafio para as escolas do século XXI e seus
infâncias.
professores superar as práticas e os conceitos
antigos e verticalizados sobre criança e
OBJETIVO
infância.
Os objetivos da pesquisa visavam a
Para Lima e Lima (2003, p. 209):
estimular a imaginação infantil - por vezes
As escolas de Educação
latente - e ampliar o repertório lúdico e Infantil estão sendo
desafiadas, frente à infância
imaginativo das crianças e das educadoras,
do século XXI, a atuarem de
além da tentativa em superar - por meio do maneira distinta da que se
constata no contexto
respaldo teórico da Sociologia da Infância - as
histórico atual. Para tanto,
práticas que não favoreciam ou que não precisam buscar respaldo
em concepções que
incentivavam a fantasia do real e a ludicidade
reconheçam a criança como
como linguagens imprescindíveis para as ator social, superando a
compreensão veiculada por
crianças do contexto escolar.
séculos, que a concebia
Objetivos que exigem como simples receptora da
cultura ou como agente a
aprofundamento teórico e práticas
ser incorporada nos
educativas com “intencionalidade”, que contextos sociais por
intermédio de processos de
valorizem, compreendam e incentivem a
socialização conduzidos
imaginação (e a ludicidade). Como afirma pelos adultos, sem
considerar as
Bochorny (2012), é necessário mediar o
especificidades, as opiniões
processo e perceber os benefícios das ações e os significados por ela
atribuídos para o que lhe
educativas, ou seja:
era proposto.
[...] perceber em que essa
ação pode beneficiar a
Os objetivos propostos visavam
criança e mediar o
processo, tanto quanto for valorizar, incentivar e/ou ampliar a
necessário; vivenciá-la com
imaginação e a ludicidade como
as crianças, para poder
entender como essa imprescindíveis para o amplo
atividade pode propiciar
desenvolvimento infantil - nos aspectos
formas de atuar menos
invasivas e mais assertivas; sociais, culturais, históricos, motores,
oportunizar espaços, tempo
cognitivos, afetivos, entre outros –
e materiais que contribuam

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principalmente no contexto da Educação Intervenção, já que os resultados e avanços


Infantil. que contavam eram aqueles com vista a
transformar gradativamente a realidade.
METODOLOGIA Por qualitativo, Silva (2005, p. 20)
A presente pesquisa está amparada considera:
no Protocolo do Comitê de Ética em Pesquisa [...] que há uma relação
dinâmica entre o mundo
(CEP): Processo nº 71/2009, da FCT/UNESP
real e o sujeito, isto é, um
de Presidente Prudente. vínculo indissociável entre o
mundo objetivo e a
Durante todo o percurso da pesquisa
subjetividade do sujeito que
– suscitamos levantar reflexões sobre os não pode ser traduzido em
números. A interpretação
desafios encontrados pela fantasia do real no
dos fenômenos e a
contexto analisado com vista a contribuir atribuição de significados
são básicas no processo de
para ampliá-la e estimulá-la nas crianças.
pesquisa qualitativa. Não
Para tanto, utilizamos vários recursos, como: requer o uso de métodos e
técnicas estatísticas. O
 Histórias; brincadeiras; atividades
ambiente natural é a fonte
lúdicas; brinquedos; desenho; fotos; direta para coleta de dados
e o pesquisador é o
música; teatro; objetos; amigos
instrumento-chave. É
imaginários - Lipe e Luci – aos quais descritiva. Os
pesquisadores tendem a
nunca foram descritas características
analisar seus dados
físicas; indutivamente. O processo
e seu significado são os
 Observações e anotações no Diário de
focos principais de
Campo; gravações; fotos (tiradas por abordagem.
nós e pelas crianças). Os dados
O uso de recursos metodológicos
coletados foram sistematizados para
diversificados e significativos se justifica pelo
melhor compreensão dos resultados.
fato de a fantasia do real não ocorrer no
 Questionário (realizado em novembro
vazio social, mas conforme as vivências e
de 2013) e entrevistas (efetivadas em
experiências proporcionadas às crianças.
junho de 2014) com vistas a obter um
RESULTADOS
“feedback” das professoras e das
A participação das crianças e a escuta
crianças sobre a pesquisa.
atenta de suas falas foi fundamental para a
De natureza qualitativa e
pesquisa. Além delas, ouvimos e dialogamos
fundamentada na Sociologia da Infância, a
com as professoras participantes na
pesquisa adotou a metodologia da Pesquisa-

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pesquisa. O respeito, a seriedade e a Outro resultado interessante ocorreu


proximidade com os sujeitos envolvidos quando uma criança pediu para contar uma
permitiu observar, recolher e sistematizar “história”. Nela foi possível observar
muitos dados e resultados – destaque para elementos que conciliavam o real e o
aqueles em que houve maior expressividade imaginário. A criança inseriu os amigos da
lúdica e, principalmente, imaginativa. escola, mesclou situações e experiências
Certo dia, uma das crianças trouxe reais (vividas por ela) com histórias de faz de
para a escola uma geleia que parecia uma conta:
“meleca”. As outras crianças pediram para - Era uma vez, Ana Luíza. Ela morava
pegá-la um pouco. Uma delas passou no num castelo com um príncipe que chamava
dedo e disse que iria esfregá-la na “cara”. Kauã (tia, não anota Kauã que ele briga). O
Essa mesma criança queria esfregá-la em príncipe dela foi comprar comida para os
meu rosto: - Ô Denise, eu to cheia de geleia. filhos dela e ela ficou sozinha. Aí aconteceu
A cena despertou o interesse de um temporal e o castelo dela quase
outras crianças, que também vieram com desmontou e o namorado dela não tava lá.
suas mãos sujas, tentando esfregá-las em Socorro! Socorro! O meu castelo tá
mim. Elas corriam e gritavam desmoronando. A princesa procurou o
alvoroçadamente: - Eca! Eca! príncipe e não achava, aí quando ela chegou
Elas tentavam partilhar esse artefato, na casa dela, o castelo tava todo molhado
já que não era comum ver brinquedos na pelo temporal e os passarinhos cantando. Os
escola. Portá-lo, além de causar um “status” filhinhos acordaram com fome e ela deu um
ao dono, ultrapassava as demarcações banho no nenê. Ensaboou aí a mamãe deixou
imaginárias da “tênue linha” entre o eles dormindo, etc... (DIÁRIO DE CAMPO
“escondido” (trazer o brinquedo na escola e 2013).
mostrar às outras crianças que não o A história mesclava vivências reais (re)
portavam) e o “divertido” (o alvoroço e a significadas pela imaginação infantil.
situação causados por esfregá-lo no rosto e Para Honorato:
nos dedos), além de contribuir para fomentar O impulso criador do
cérebro humano não se
as relações com os pares, que, de fato, se
limita a reproduzir: ele
divertiam não somente com o brinquedo, combina, reelabora, cria
com elementos de
mas com o fato de a pesquisadora também
experiências passadas
fazer parte da brincadeira. novas formas e traçados.
Esta atividade criadora é
alicerçada, sobretudo,

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naquilo que a psicologia As crianças - ao perceberem que eram


chama imaginação ou
ouvidas - passaram a se aproximar e a
fantasia. A imaginação se
manifesta por igual em dialogar conosco, o que permitiu recolher
todos os aspectos da vida
muitos dados e resultados. Elas partilhavam
cultural, possibilitando a
criação artística, científica e experiências; expressavam desejos,
técnica.
curiosidades, contentamentos: - Você senta
na nossa mesa? - Eu vou sentar lá na frente!;
Outro resultado que merece destaque
- Senta com “nóis” (DIÁRIO DE CAMPO 2013).
ocorreu ao levarmos uma brincadeira que
Outro fato interessante ocorreu
nomeamos de “bicho que pega”. Era um
quando indagamos às crianças o que elas
pedaço de cartolina recortado em forma de
pensavam sobre a temática da pesquisa, ou
círculo e com canudo de jornal que servia de
seja, sobre a imaginação.
corpo. As crianças deveriam desenhar
Elas responderam: - Imaginação é
(conforme a imaginação) como achavam que
uma coisa que inventa alguma coisa e aí faz o
era esse “bicho que pega”. Muitas crianças
que você pensou. Inventa o que pensou; - Eu
associaram-no com “vampiros”, expressando
assisto um desenho da imaginação que ele
e (re) interpretando imaginativamente fatos,
faz um monte de coisa; - Imaginação é pensar
situações, formas de agir e pensar conforme
alguma coisa para brincar, mas quando
as experiências reais que tiveram ao brincar,
acordar, brincar; dormir quietinho.
assistir TV, ler livros, ouvir histórias, etc. Elas
Pesquisadora: - Mas será que só
corriam uma atrás das outras como vampiros
crianças imaginam?
e falavam: - Vou comer!
Criança: - Não! Adulto também
Com tantos vampiros, resolvemos
imagina (DIÁRIO DE CAMPO, 2013).
perguntar às crianças de onde havia surgido
Mais um resultado a ser destacado
aquela “ideia”.
relaciona-se com a forma de a criança utilizar
Pesquisadora: - Onde você viu
a imaginação para lidar ou superar medos.
vampiro?
Muitos deles são expressos de forma
Criança: - No meu sonho!
imaginária: - O pai de uma criança já matou
Outra criança encosta o seu vampiro
um monte de cobra; - Tenho medo de dragão
no meu pescoço, expressando: - “Delicius”. A
de duas cabeças; - Meu pai e meu irmão tem
mesma criança apontou o seu “vampiro”
medo de tudo; - Minha mãe tem medo de
para a professora e avisou: - “Tô” de olho em
mula sem cabeça; - Eu tenho medo de
você (DIÁRIO DE CAMPO 2013).

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cachorro de quatro patas e cinco cabeças; - Crianças: - Come e morre; - Morreu!


Bicho papão tem amigo? Pesquisadora: - Do que? Crianças: - De tanto
Pesquisadora: - Eu acho que o bicho comer areia; - Argh! Que nojo! Outras
papão está na escola! crianças, após assistirem as cenas, passaram
Criança: - A gente vai morrer! a repeti-las: - O meu morreu; - Tá saindo
Pelo fato do bicho papão ter sido sangue, todo mundo pra trás! Pesquisadora: -
citado pelas crianças e ele constituir-se um Por quê? Crianças: - Porque ele comeu muita
personagem conhecido por cativar os medos terra e formiga; - Tá cheio de sangue, credo; -
infantis, resolvemos perguntar como ele era. O meu tubarão não morreu; - Prô (referindo-
As crianças responderam: - Bicho se à pesquisadora) não morreu? Tá tudo bem
papão é grande; com asas; garras e pega a com ele depois de tanta terra que ele
gente; debaixo da cama; vive na mata; mata; comeu?; - Tá. Outra criança apontou, olhou
come; não tem asas; três pés e três cabeças; para o sangue imaginário e disse: - O tubarão
40 olhos, metade zumbi; bicho papão é tá bravo com os dois. Pesquisadora: - Por
caramujo; medo de lobo (DIÁRIO DE CAMPO quê? Criança: - Porque sim. Porque ele quer
2014). lutar. Pesquisadora: - O tubarão gosta mais
As crianças expressaram a imaginação de formiga ou de peixe? Crianças: - Formiga; -
em diversos momentos, nas brincadeiras, O tubarão vem vindo!; - Tô me divertindo!
durante o recreio. Fizemos um “bilboquê” Algumas crianças saíram do formigueiro e
com copo descartável e decorado com um dirigiram-se para uma área com grama.
tubarão de EVA. Na extremidade colamos um Pesquisadora: - O que o tubarão está
peixe, na qual, as crianças deveriam acertá-lo fazendo? Criança: - Comendo grama. Uma
dentro do copinho. Durante a brincadeira, das crianças escorregou e, em seguida com
algumas crianças cataram seu bilboquê e um sorriso disse: - Comeu e caiu.
levaram até um formigueiro. Utilizando o As outras crianças também
copinho-tubarão, elas começaram a colocar começaram a descer na grama e escorregar.
terra e formiga dentro dele e a se Umas fizeram um barulho, que parecia um
alvoroçarem, chamando a atenção de outras rugido de urso:- Grauuu; - O meu quer comer
crianças que correram para observar o que o bicho prô.
estava acontecendo: - O tubarão tá comendo Outro grupo de crianças - que
terra. Pesquisadora: - Mas e se ele ficar também havia assistido as cenas da formiga -
doente? Criança: - Aí a gente interna ele. se dirigiram à área com grama. Então,
Pesquisadora: - Mas tubarão come formiga? começaram a imitar e também a (re)

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significar o que viram, criando novas formas - Tiram a boca; - A carne; - A perna; - Eu vou
de brincar, cheias de significado. A partir do cortar esse jacaré; - Ele vai cortar a gente no
que viram (real), passaram a (re) expressar meio; - Vou cortar o jacaré - Cortar ele no
outras formas por meio da imaginação: - O meio; - Prô (referindo-se à pesquisadora) ele
meu morreu! vai tirar a unha da gente; - O jacaré do mau; -
Pesquisadora: - Morreu? Por quê? Deixa ele morder; - Vai comer a sua cabeça
Crianças: - Porque comeu um monte (DIÁRIO DE CAMPO, 2014).
de grama; - Prô (referindo-se à Ao expressarem o medo do jacaré, as
pesquisadora), o meu tem umas garras, crianças demonstraram o que fariam com ele
agora ele tá forte! ou o que ele poderia fazer com elas. No
Outra criança colocou o copinho na entanto, elas sabiam que era uma
boca e fez de “telefone”. Depois, colocou-o brincadeira, ou seja, algo da “imaginação”.
na orelha e falou: - Alô? Alô?! (DIÁRIO DE Na outra sala - antes de começar a
CAMPO, 2014). mesma atividade - brincamos que seriam elas
Outra brincadeira que contribuiu para a contar a história do jacaré. As crianças
estimular e compreender sobre a imaginação começaram a “encenar um choro”. Ao
infantil foi quando levamos um cartaz cujo perguntamos o motivo elas responderam que
personagem principal era um jacaré. Nas “tinham medo de jacaré” e “que não sabiam
extremidades do cartaz havia desenhos que contar história”.
deveriam ser escolhidos pelas crianças para Outras professoras que não
realizar as atividades: dança e música do participavam da pesquisa passaram a solicitar
jacaré, brincadeira do vivo ou morto jacaré, que ela se estendesse às outras seriações,
etc. Antes de começar a brincadeira como o Ensino Fundamental Ciclo I: - Vocês
comentamos que na escola havia um jacaré. têm que dar aula para as outras salas
As crianças, eufóricas falavam: - Eu também.
tenho medo! Além das professoras, as crianças
Juntas, elas passaram a expressar uma argumentavam – ao saberem que a pesquisa
sequência de ideias imaginativas sobre o seria efetuada somente o infantil: - Ah, mas
jacaré e o medo dele: - E se eles comem a podia ter aula pra gente; - Por isso que é
nossa barriga e cortam a nossa cabeça; - E difícil a gente ser as mais velhas. A gente não
arrancam a cabeça e cozinham a gente; - E brinca de nada!
tiram nosso dente; - Nosso nariz; - E tira a Diante dessas afirmativas, revolvemos
nossa boca; - Nosso cabelo; - Tiram a orelha; questionar e ouvir os motivos pelos quais as

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crianças solicitavam a pesquisa: - Ah... pra problemas que o dia a dia


lhes apresenta, para resistir
gente brincar, pra gente se divertir.
aos constrangimentos dos
Pesquisadora: - Vocês brincam em seus mundos sociais; que
expressam os seus desejos,
casa?
medos, angústias e desejos
Criança: - Não dá! e que, durante o brincar,
projectam as suas
Pesquisadora: - Por quê?
necessidades e aprendem a
Criança: - Porque só tem eu e a minha moderar as suas emoções.
Que as crianças são capazes
irmã, aí não dá para brincar! (DIÁRIO DE
de se (re) construir e (re)
CAMPO 2013). inventar a realidade, de
acordo com as suas
Outras crianças mais velhas também
vontades e necessidades…
requisitavam as brincadeiras: - Prô, porque eliminando os
constrangimentos reais com
você não dá aula pra gente?; - Porque na
as possibilidades que a
verdade quando a gente entrou aqui não fantasia lhes apresenta.
(FERREIRA, 2008, p. 34)
tinha nada disso (se referindo à pesquisa),
nada, nada. A gente só ficava estudando.
O recreio escolar proporcionou
Pesquisadora: - Mas vocês acham que
momentos valiosos, possíveis por meio da
agora que tem brincadeira na escola ficou
escuta atenta das falas infantis, que
mais legal?
expressavam assuntos variados, como dizer
Criança: - Mas a gente não brinca de
que estavam “gordas”; perguntar se
nada! Só na Educação Física.
“brincaríamos com elas (outras seriações)”;
A brincadeira possui estreita relação
comentar sobre a cultura produzida e (re)
com a imaginação. Brincando, a criança
significada por outras crianças.
aprende a controlar as emoções, os medos,
Duas meninas de braços dados
os sentimentos e anseios, aprende a
durante o recreio. Uma delas segurava um
compartilhar, a imitar a (re) criar, a eliminar
buquê de flores nas mãos e, ambas saíam
os constrangimentos reais através da
andando de um lado para o outro.
fantasia. Para isso, é necessário:
Perguntamos o que faziam e uma das
[...] repensar os tempos de
crianças respondeu que as crianças estavam
brincar, e aceitar que as
crianças são activas nas “brincando de casamento”.
suas aprendizagens e nas
Intrigada para saber onde elas
aprendizagens dos seus
pares; que são criativas e conseguiram aquele ramalhete de flores,
capazes de arranjar
continuei: - Onde elas pegaram flores?
estratégias para superar as
barreiras e resolver

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Rindo, as crianças responderam: - No o que viam ou vivenciavam, mas atribuíram


lixo! novos significados por meio do lúdico e da
O sinal para retornarem para a classe imaginação.
interrompeu a brincadeira de casamento,
mas as mesmas flores que serviram de DISCUSSÃO
ramalhete tiveram outra utilidade – fato As brincadeiras, histórias e atividades
enaltecido por intermédio de outra criança: - propostas pela pesquisa permitiram
A prô ganhou flor de velório e ainda que estimular a imaginação das crianças, que
achou no lixo! assumiram e transmutaram papéis e
A experiência real da criança com um personagens. Elas dividiram o espaço com
“velório” permitiu que ela imaginasse que as vampiros, piratas, princesas, super-herói,
flores da escola - uma espécie de margarida bicho que pega. As crianças brincaram,
de jardim – fossem flores utilizadas em imaginaram, relacionaram-se; conheceram-
velórios. Essas mesmas flores se melhor; internalizaram e (re) significaram
protagonizaram ainda, um “buquê” para regras; superaram medos (algumas histórias
brincar de casamento e por fim, um e personagens levados por nós geraram
“presente” dado à professora. momentos de medo e incertezas, mas foram
Os brinquedos construídos em superados heroicamente pelas crianças).
conjunto com as crianças também se Para Quintero (2002, p. 147)
destacaram. Fato que foi relatado pela [...] tal como afirmou
Florestan Fernandes (1979),
professora: - Tem uma criança que tem essa
a criança poderá ser quem
estrela cadente pendurada na bolsa até hoje. bem quiser mamãe,
filhinha, vovó, um animal
Eu vi uma criança no Facebook (da outra
qualquer ou até mesmo
professora) com essa coroa em casa. Tava uma personagem extraída
da literatura infantil, e o
tendo uma festinha de aniversário e aí a
será conforme as regras
criança tirou uma foto com essa coroa e pôs sociais que internalizou
sobre quem e como são
no Facebook. Porque o pai dele está no
estes entes gerais, o que
Japão, então acho que ele tirou e colocou no fazem e como agem quem
desejam ser. Ademais, pela
Facebook (DIÁRIO DE CAMPO, 2014).
brincadeira a criança se
As crianças - por meio das tornará capaz de construir
significados para as ações
experiências vivenciadas no cotidiano, com
que realiza, utilizando-se de
os pares, ou com crianças e pessoas mais instrumentos e da própria
fala para a organização do
experientes - não se limitaram a (re) produzir
seu brincar. Significados,

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estes, construídos As brincadeiras contribuíram para


socialmente e apropriados
estreitar as relações infantis com os pares,
pelas interações sociais que
estabelece. com a pesquisadora e com as professoras;
assim como ajudaram a ampliar a
Durante todo o percurso da pesquisa -
compreensão sobre a importância das
além de ampliar e estimular a imaginação
vivências lúdico-imaginativas no contexto,
infantil de forma lúdica - uma das prioridades
além de promover e ampliar as culturas
era ouvir as crianças. Havia grande
infantis entre os pares.
familiarização delas conosco e tornou-se
Gradativamente, as crianças
comum e “esperado” o momento de escuta
demonstraram maior criatividade,
partilhado com elas durante o recreio.
envolvimento e imaginação, seja nas falas,
Muller (2010, p.353) afirma que “*...+
nas brincadeiras ou formas de expressarem-
se as crianças interagem no mundo adulto
se. Esclareceu-se - por meio da observação
porque negociam, compartilham e criam
atenta, do diálogo constante, da relação com
culturas, necessitamos pensar em
os pares e com os adultos, dos desenhos, das
metodologias que realmente tenham como
fotos e entrevistas - o quanto os seus
foco suas vozes, olhares, experiências e
mundos são ricos e cheios de significativo e
pontos de vista”. Devido a esse fato, a
que, por meio de suas culturas infantis, elas
pesquisa atendeu a várias falas, ideias e
expressaram suas formas de pensar, de agir e
pedidos das crianças, que contribuíram
de se relacionar; sua alegria, (mas também
ricamente em todo o processo. Nosso
seus anseios, preocupações e desejos); suas
objetivo era realizar pesquisas com as
falas sinceras, cheias de emoção, de
crianças - nossas parceiras - e não apenas
sentimentos e de ensinamentos.
sobre elas.
A pesquisa foi importante para os
No início da pesquisa, em 2011, as
alunos e para as professoras, mas, foi
atividades lúdicas e imaginativas, não eram
essencial para nós, pesquisadores, já que
valorizadas e nem compreendidas como
possibilitou experiências magníficas, permitiu
linguagens imprescindíveis para o amplo
compreender melhor as crianças e suas
desenvolvimento infantil, no que tange os
infâncias; o que desejam o que sentem o que
aspectos sociais, culturais, motores,
pensam sobre nós, adultos na atualidade.
cognitivos, emocionais das crianças.

CONCLUSÕES

Colloquium Humanarum, Presidente Prudente, v. 11, n. 2, p.01-18, mai/ago 2014. DOI: 10.5747/ch.2014.v11.n2.h153
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