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Teoria da Constituição

Aula 3

Análise do conceito de Constituição:

Conceito Político de Constituição em


Carl Schmitt

Lucas Silva Andrade


Doutorando em Filosofia (UFMG)
Mestre em Filosofia (UFMG | com período sanduíche na University of Lethbridge)
Graduado em Direito (PUC Minas)

Áreas de Pesquisa:
- Teoria e Lógica dos Sistemas Normativos
- Filosofia do Direito, Lógica e Argumentação Jurídica
- Racionalidade Prática, Ética e Metaética
Carl Schmitt (1888-1985) é, ao mesmo tempo, um dos autores mais influentes e
controversos em Teoria do Estado, Teoria do Direito Público, Teoria da
Constituição, Teoria do Direito e da Política Internacional. Suas contribuições
centrais estão relacionadas às noções de poder, violência, soberania,
legitimidade, estado de exceção, norma, decisão política e, principalmente para
o caso de nossa disciplina, Constituição. Foi um dos principais teóricos da
Constituição de Weimar de 1918.

Um problema ético central em estudar Carl Schmitt é similar à controvérsia


relacionada ao estudo de outro pensador alemão da primeira metade do século
XX, Martin Heidegger. Essa controvérsia diz respeito a dois pontos: (a) a
filiação de ambos autores ao Partido Nazista em 1933; e (b) a relação
intrínseca entre as soluções teóricas propostas aos problemas que os autores
enfrentaram e como essa soluções deram força tanto filosófica (metafísica)
quanto política ao nazismo.

Assim, o cuidado ético que precisamos ter, uma vez inseridos em um regime
democrático e republicano, é buscar observar como os conceitos de Schmitt
auxiliam na compreensão do fenômeno que explicam, mas sem sermos levados
pela sedução retórica subjacente aos seus escritos. Não necessariamente
observar o fenômeno à luz de Schmitt é aceitar a solução que ele propõe para o
problema político central da ordem social. Dito isso, o pensamento de Schmitt
influenciou autores como Arendt, Habermas, Mouffe, Strauss, Vermeule,
Agamben, entre outros.
O Paradoxo Fundante do Milagre Decisionista na Teologia Política de Carl Schmitt x Filosofia Política de Hobbes

Demanda por necessidade Continuidade da Decisão


Domínio Social da Política do conjunto de agentes Política Fundamental
particulares em viver em
segurança e paz (Hobbes)

1. Decisão fundamental sobre quem é 1. Exercício do poder soberano


Amigo e Inimigo
2. Materialização da Constituição
2. Conflito ininterrupto e desigualdade
permanente Condição política de
contínua guerra e
reafirmação da ordem
pública diante da
Estabelece exceção (Schmitt) Estabelece
Restabelece
Restabelece
Unidade da Ordem Social
Estado
O ponto de partida para entendermos o conceito político de Constituição em Schmitt decorre da influência da
teoria hobbesiana em sua compreensão da natureza e da condição da agência humana. Segundo Hobbes, fora de
uma organização estatal, em um ‘estado de natureza’:

“onde todo ser humano* é inimigo de todo ser humano, o mesmo decorre do tempo em que eles vivem sem outra
segurança além daquela que sua própria força e sua própria invenção lhes fornecerão. Em tal condição não há lugar para
a indústria, porque o fruto dela é incerto: e conseqüentemente nenhuma cultura da terra; nenhuma navegação, nem uso
das mercadorias que podem ser importadas por via marítima; nenhum edifício cômodo; nenhum instrumento para mover e
remover coisas que exijam muita força; nenhum conhecimento da face da terra; nem contagem do tempo; sem artes; sem
letras; nenhuma sociedade; e o que é pior de tudo, medo contínuo e perigo de morte violenta; e a vida do ser humano,
solitária, pobre, sórdida, bruta e curta.” (Hobbes, 1651, p. 78, tradução livre)

Isso porque

“A natureza fez os seres humanos tão iguais nas faculdades do corpo e da mente que, embora às vezes se encontre um
ser humano manifestamente mais forte no corpo ou de mente mais rápida do que outro, ainda assim, quando tudo é
considerado em conjunto, a diferença entre eles não é tão considerável a ponto de um ser humano poder reivindicar para
si qualquer benefício ao qual outro não pode pretender buscar tão bem quanto aquele. Pois quanto à força do corpo,
mesmo o mais fraco tem força suficiente para matar o mais forte, seja por maquinação secreta ou por confederação com
outros que estão em um mesmo perigo que ele.” (Hobbes, 1651, p. 76, tradução livre)

*. Diferentemente do que se fez historicamente, mesmo com um anacronismo, optei por traduzir ‘men’ nessas passagens por ‘seres humanos’. A ideia é focar que a noção de
Hobbes pode ser vista como uma tese sobre a ‘natureza humana’ e evitando que se trate de maneira metonímica o termo ‘homem’ como representativo de tudo que é
humano. Infelizmente, autores tradicionais não tinham preocupações com os termos sensíveis que foram trazidas por movimentos sociais importantes como o feminismo
Sem o Estado:

“[dada a] desconfiança que um possui do outro, não há como nenhum ser humano se assegurar de forma tão
razoável quanto pela antecipação; isto é, pela força, ou artimanhas, para dominar pessoalmente todos os seres
humanos que puder, até que não perceba outro poder grande o suficiente para colocá-lo em perigo: e isso não é
mais do que sua própria conservação exige e geralmente é permitido. Além disso, uma vez que alguns, tendo
prazer em contemplar seu próprio poder nos atos de conquista, buscam mais do que sua segurança exige, os
outros, que de outra forma ficariam felizes em viver sob limites modestos, não deveriam por invasão aumentar
seu poder, pois não seriam capazes, por muito tempo, ficando apenas em sua defesa, para subsistir.” (Hobbes,
1651, p. 77, tradução livre)

Schmitt é ainda mais radical. Intensifica a desigualdade natural dos seres humanos para justificar a busca
das pessoas por formar uma unidade política que torna todos (os amigos) iguais a fim de conjugar
interesses totais da organização social e manter as formas de vida aceitas por ela (Schmitt, 1928/2008, p.
257 ss.). A ideia tem raízes no Primeiro Livro da República e Schmitt propõe aprimorá-la e modificá-la.

Na República, Polemarco diz a Sócrates: “Amigo é aquele que parece e realmente é honesto. Aquele que parece
honesto, mas não é, apenas aparenta ser amigo, sem sê-lo. A definição é a mesma a respeito do inimigo.”
(Platão, 380 a. C./ 2014, 335a, adaptado). Ser ‘realmente honesto’ aqui é agir verdadeiramente pelo bem do outro
que estima ser amigo. Com isso, Sócrates entende que Polemarco estaria afirmando que “amigo é o indivíduo
bom e o inimigo o mau” (Platão, 380 a. C./ 2014, 335a, adaptado). Portanto, a justiça de Polemarco afirma que “é
justo ajudar o amigo e prejudicar o inimigo.” (Platão, 380 a. C./ 2014, 335b, adaptado)
Diferentemente de Hobbes que abre espaço para se pensar as relações de conflito em um estado de
natureza em termos de tendências particulares dos agentes, onde todos são potencialmente inimigos por
serem movidos pelas inclinações que visam a satisfação de interesses particulares, Schmitt entende que

“conceitos de amigo e inimigo devem ser tomados em seu sentido concreto e existencial, e não como metáforas
ou símbolos, não misturados ou enfraquecidos por noções econômicas, morais e outras, e menos ainda em um
sentido privado-individualista e psicologicamente como expressão de sentimentos e tendências privadas.”
(Schmitt, 1932/2009, p. 29)

Ademais, a decisão política fundamental que ‘constitui’ o Estado em Schmitt reintroduz e lida com os
conflitos permanentemente no espaço público. Trata-se da dinâmica das condições de possibilidade de
justificar e legitimar a ordem social. O paradoxo é que ordem e conflito são interdependentes em Schmitt,
pois mesmo que a ordem decorra do Estado que visa eliminar quaisquer conflitos atuais, ele os
reintroduz potencialmente para reafirmar a necessidade de sua existência. O Estado emerge como

“uma unidade política organizada, a qual, na qualidade de totalidade, toma para si a decisão com relação a
amigo-inimigo, juntamente com as decisões primariamente políticas e sob proteção da decisão tomada, surgem
numerosos conceitos secundários de ‘político’”. (Schmitt, 1932/2009, p. 29)

Obs. O debate público, se levado às últimas consequências nas democracias liberais, pode ser lido como
reintroduzindo continuamente a diferença entre amigos x inimigos em termos de situação x oposição. Basta
observar como partidos políticos da oposição extrema atacam quem está na situação (no poder), visando sair da
posição de oposição e assegurar sua posição de poder. Partidos de extrema oposição tornam-se, entre eles,
inimigos públicos e agregam os partidos que deles se aproximam. Essa é a base da democracia na teoria do
agonismo democrático de Chantal Mouffe (2011; 2014), que se baseia em leitura crítica do ‘político’ em Schmitt.
Mas na leitura radical de Schmitt, concebe-se que

“inimigo não é o concorrente ou o adversário em geral. Tampouco é inimigo o adversário privado a quem se odeia
por sentimentos de antipatia. Inimigo é apenas um conjunto de pessoas em combate ao menos eventualmente, i.
e., segundo a possibilidade real e que se defronta com um conjunto idêntico. Inimigo é somente o inimigo público,
pois tudo o que se refere a um conjunto semelhante de pessoas, especialmente a todo um povo, se torna, por
isso, público. Inimigo é hostis, não inimigo em sentido amplo…” (Schmitt, 1932/2009, p. 30)

Não importa mais se a sociedade é composta por agentes puramente egoístas, desde que se unam na
busca da ordem contra o inimigo público. Em termos kantianos, não se trata mais de eliminar o demônio
interno que move o nosso interesse privado, desde que esse demônio interno não sobressaia perante o
senso prudencial em agir conforme a conduta pública que se espera de todos do povo. Citando Kant:

“O problema do estabelecimento do Estado, por áspero que soe, tem solução, inclusive para um povo de
demônios (contanto que tenham entendimento), e formula-se assim:Ordenar uma multidão de seres racionais
que, para a sua conservação, exigem conjuntamente leis universais, às quais, porém, cada um é inclinado no seu
interior a eximir-se, e estabelecer a sua constituição de um modo tal que estes, embora opondo-se uns aos
outros nas suas disposições privadas, se contêm reciprocamente, pelo que o resultado da sua conduta pública é
o mesmo que se não tivessem essas disposições más.» Um problema assim deve ter solução.” (Kant, 1795/2008,
p. 29).
Mas se todos os indivíduos se comportassem publicamente conforme o que prescreve a lei, o Estado não
se mostraria necessário. O conflito, então, é continuamente reintroduzido, seja por uma redefinição
artificial do inimigo público ou por uma contingência que assim demanda. E a soberania não se afirma na
normalidade. Para Schmitt, “soberano é quem decide sobre a exceção” (Schmitt, 1922/2005, p. 5) E:

“É justamente a exceção que torna relevante o tema da soberania, ou seja, toda a questão da soberania. Os
detalhes precisos de uma emergência não podem ser antecipados, nem se pode enunciar o que pode acontecer
em tal caso, especialmente quando se trata realmente de uma emergência extrema e de como ela deve ser
eliminada. A pré-condição, bem como o conteúdo da competência jurisdicional em tal caso, devem
necessariamente ser ilimitados.” (Schmitt, 1922/2005, p. 6-7)

Mas se pensarmos em como um Estado se organiza em torno das suas decisões políticas fundamentais,
abrimos margem para dois conceitos de ‘constituição’ (o real e o ideal). Schmitt afirma:

“O termo “constituição” tem vários sentidos. Em um sentido geral da palavra, tudo, cada homem e coisa, cada
negócio e associação, está de alguma forma incluído em uma “constituição”, e tudo que é concebível pode ter
uma “constituição”. Um conceito distintivo não deriva disso. Uma compreensão adequada exige que o significado
do termo “constituição” seja limitado à constituição do Estado, ou seja, à unidade política do povo. Nesse sentido
limitado, “constituição” pode descrever o próprio estado e, de fato, um estado individual e concreto como unidade
política ou como um tipo e forma concreta e particular de existência estatal. Neste caso, significa a condição
completa de unidade e ordem política. No entanto, “constituição” também pode significar um sistema fechado de
normas e, então, da mesma forma, pode designar uma unidade, porém, não uma unidade existente concreta,
mas sim uma unidade reflexiva, ideal. Em ambos os casos, o conceito de constituição é absoluto porque
expressa um todo (real ou reflexivo).” (Schmitt, 1929/2008, p. 59)
Assim, Schmitt acrescenta ao sentido descritivo uma definição mais precisa das constituições reais. E o sentido
‘normativo’ ele chama de ideal ou reflexivo, pois estabelece aquilo que, pela razão especulativa, deveríamos
aceitar como a constituição. No sentido real ou absoluto, Schmitt define o conceito político de constituição como:

1. “a condição concreta e coletiva da unidade política e ordem social de um Estado particular”. (ibid.)
2. “um tipo especial de ordem política e social… A constituição significa o tipo concreto de supremacia e
subordinação, porque não há na realidade social nenhuma ordem sem supremacia e subordinação…
Constituição é equivalente à forma do Estado” (Schmitt, 1928/2008, p. 60)
3. “o princípio da emergência dinâmica da unidade política, do processo de formação constantemente
renovado e da emergência dessa unidade a partir de um poder e energia fundamentais ou, em última
instância, efetivos… O estado é entendido não como algo existente, que se mantém estático, mas como
algo emergente, que surge e ressurge de novo.” (Schmitt, 1928/2008, p. 61)

Podemos observar a conjunção dos significados em 1, 2 e 3 como definindo a Constituição em sentido


político. É a decisão política fundamental que cria, mantém e modifica continuamente a estrutura política
de uma sociedade. (Sem deixar de frisar que, em Schmitt, a decisão política fundamental está
intimamente conectada com o exercício da soberania diante de exceções e o seu papel na refundação da
distinção política originária entre amigos x inimigos).
Com isso, a teoria de Schmitt foi importante para introduzir uma diferença entre as normas que são efetivamente
constitucionais e, portanto, aplicadas e realizadas politicamente na vontade unificada do ator político soberano,
daquilo que se convencionou chamar de “leis constitucionais”, as quais possuem sentido apenas jurídico-ideal
(não político). Ou seja, são expectativas de direito (ou justiça) em uma organização social. Diz Schmitt:

“Não há sistema constitucional fechado de normas puras, e é arbitrário tratar uma série de disposições
individuais, que se entende como leis constitucionais, como unidade e ordem sistemáticas, quando a unidade
não decorre de uma vontade unificada preestabelecida. É igualmente arbitrário falar em ordem jurídica sem
maiores esclarecimentos. O conceito de ordem jurídica contém dois elementos totalmente diferentes: o elemento
normativo da justiça e o elemento realmente existente da ordem concreta. A unidade e a ordem residem na
existência política do Estado, não em estatutos, regras e qualquer instrumento que contenha normas.” (Schmitt,
1928/2008, p. 65)

Ora, as leis constitucionais seriam apenas leis ideais da justiça em um Estado, sem qualquer papel prático central
em direcionar a realização do que preveem? Tome o exemplo a seguir:
A Constituição de 1988 estabeleceu que todo trabalhador tem direito ao:

Art 7º, IV - salário mínimo, fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender a suas necessidades vitais
básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e
previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo, sendo vedada sua vinculação
para qualquer fim.

Tomado o salário mínimo atual, ele satisfaz o que a Constituição prescreve? Se não é o caso, seria correto
afirmar, nos termos de Schmitt, que se trata apenas de uma lei constitucional e não uma norma constitucional?
Ora, se afirmarmos que se trata de uma norma constitucional, como lidar com sua incompatibilidade com o fato
político do salário mínimo real não satisfazer o que Art. 7º, IV, da CF/88, prescreve? Nas próximas aulas,
buscaremos dar uma resposta para o problema à luz do conceito jurídico ou ideal de normas constitucionais a
partir do paradigma do constitucionalismo liberal e de seus desenvolvimentos. Os temas serão:

(a) Como o conceito jurídico de Constituição pode ganhar força normativa para assegurar as garantias básicas
de uma democracia de base liberal-social?
(b) Quem seria o Guardião com autoridade para fazer valer, em última instância, a Constituição? Como
veremos, essa pergunta foi a base do debate entre Kelsen e Schmitt. Kelsen como o teórico da jurisdição
constitucional e Schmitt como o teórico do decisionismo constitucional.
Referências
Hobbes, T. (1651). Leviathan, or the Matter, Forme, & Power of a Common-wealth Ecclesiasticall and Civill,
McMaster University Archive for the History of Economic Thought,
https://EconPapers.repec.org/RePEc:hay:hetboo:hobbes1651a.

Kant, I. (1795/2008). A paz perpétua: um projecto filosófico. Tradução de Arthur Mourão. Lusofia|press

Mouffe, C. (2011). On the political. Routledge.

Mouffe, C. (2014). Democratic politics and conflict: An agonistic approach. Political power reconsidered: state
power and civic activism between legitimacy and violence, 17-29.

Platão. (380 a.C.) A República. (Pode utilizar qualquer tradução. Adaptei para o texto que escrevi, para fins
didáticos a tradução: Platão. (2014). A República [ou sobre a justiça, diálogo político. Tradução de Anna Lia
Amaral de Almeida Prado. São Paulo: Martins Fontes.]

Schmitt, C. (1922/2005). Political theology: Four chapters on the concept of sovereignty. University of Chicago
Press.

Schmitt, C. (1928/2008). Constitutional theory. Duke University Press.

Schmitt, C. (1932/2009). O conceito do político. Belo Horizonte: Del Rey.

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