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Introdução ao Estudo da

Psicologia
Sueli Machado Pereira de Oliveira

Licenciatura em Pedagogia
Introdução ao Estudo da Psicologia

Sueli Machado Pereira de Oliveira

Licenciatura em Pedagogia

OLIVEIRA, Sueli Machado Pereira de. Introdução ao Estudo da Psicologia. Pedagogia


EaD. IFSULDEMINAS. Muzambinho, 2023
UNIDADE I - INTRODUÇÃO E OBJETIVOS
Sueli Machado Pereira de Oliveira
IFSULDEMINAS – Campus Muzambinho

Objetivos
 Conhecer o desenrolar da Psicologia ao longo da história, desde a Psicologia
Filosófica até a Psicologia Moderna
 Explicar o objeto da Psicologia de acordo com o momento histórico
 Expor os aspectos principais das correntes atuais na área da Psicologia
 Compreender como interagem os campos da Psicologia e da Psicologia da/na
Educação e quais as contribuições da Psicologia para a área Educacional

1. Breve História da Psicologia


Etimologicamente PSICOLOGIA é a junção das palavras PSYCHÉ e LOGOS,
significando o estudo da alma. Pode-se dizer que as bases da psicologia se dá na
Antiguidade, com as ilações de filósofos gregos, tais como: Platão, Sócrates,
Hipócrates e Aristóteles e, por isso, é considerada Psicologia Filosófica.
Platão (427 a.C. – 347 a.C.) considerava a alma incorpórea, indivisível, imortal e
eterna. Para ele, a razão ficava na cabeça e a medula seria a ligação entre a alma e
o corpo. O corpo morre, mas a alma fica livre para ocupar outro corpo – considerado
como uma prisão – do qual a alma é libertada por meio da morte, assim, o corpo seria
o veículo da alma. A tarefa da alma seria a de vencer os prazeres terrenos e, assim,
não cair em tentação. Seria ela, portanto, a responsável pelo comportamento
humano.
Em Sócrates (469 a.C. – 399 a.C.) encontramos as bases do método científico que,
utilizado nos estudos da psicologia a partir de 1879, dá a ela o caráter de ciência.
Para ele, o que separa os homens dos animais é a razão. O instinto corresponde à
irracionalidade.
Hipócrates (460 a.C. – 370 a.C.) relaciona as características da personalidade com
tipos físicos e propõe uma teoria fisiológica para as doenças mentais.
Aristóteles (384 a.C. – 322 a.C.) considerava a psyché como o princípio ativo de tudo
que cresce, se reproduz e se alimenta; é o sopro da vida e por ela vivemos, pensamos
e sentimos. Diversamente de Platão, o corpo humano não é obstáculo, mas
instrumento da alma racional, que é a forma do corpo. Propõe a observação objetiva
do comportamento humano. Explica a associação de ideias através de três princípios
do pensamento lógico: 1- Princípio de Identidade: A é A; 2- Princípio de não
contradição: é impossível A é A e não-A ao mesmo tempo; 3- Princípio do terceiro
excluído: A é x ou não-x, não há terceira possibilidade.
Na Idade Média, devido ao domínio do Cristianismo, os transtornos mentais eram
interpretados como diabólicos ou mágicos, pensamento esse responsável por
retrocessos no progresso científico.
Nos séculos XVI a XVIII, período do Renascimento e da Ilustração, ainda persistia a
ideia de transtornos mentais como algo demoníaco, mas, devido ao avanço das
ciências, entra em cena o humanitarismo que considerava os transtornos como
alterações físicas e não morais.
No final do século XVIII, Franz Joseph Gall (1758-1828), através da frenologia, chama
a atenção para as faculdades mentais e para as funções cerebrais com a defesa de
que as funções mentais dependem da área concreta do cérebro.
Somente no século XIX e como consequência da teoria da evolução de Darwin e o
aumento dos conhecimentos sobre a fisiologia humana, a vida mental consciente
passa a ser aceita como ligada a processos biológicos no corpo.
Considerado o fundador da Psicologia
Experimental, Wilhelm Wundt (1832-1920) Busca introspectiva – auto-observação,
funda o primeiro Laboratório de Psicologia entender o mundo através de suas
próprias ideias, ou de um arcabouço de
em Leipzig na Alemanha, em 1879,
ideias estruturado a partir de uma cultura.
utilizando como método a introspecção Esforço individual de quem busca –
objetiva. A partir daí se desenvolve, de princípio subjetivo.
forma sistemática, a Psicologia Científica.
Os estudos feitos por Wundt e seus colaboradores foram férteis e abundantes
gerando inúmeras publicações. Várias ramificações se formaram, dando origem a
novas escolas que se desenvolveram ao longo do século XX: Estruturalismo,
Funcionalismo, Associacionismo, Behaviorismo, Gestalt e Psicanálise. Cada uma
delas caracterizou-se pela sua definição de psicologia, pelos seus conteúdos e pelos
métodos que empregavam no decorrer de suas atividades.
Wundt e Titchener buscaram estudar os estados elementares da consciência – as
Estruturalismo estruturas do sistema nervoso central.

Método de observação: introspeccionismo.

Estudos James,
William experimentais
pioneiroem
dalaboratório.
escola funcionalista, procurava compreender como ocorre
Funcionalismo
o funcionamento e a adaptação da mente no meio em que estão inseridos os sujeitos.

Para Edward Thorndike a aprendizagem ocorre por associação de ideias – das mais
Associacionismo
simples às mais complexas.

Behaviorismo Nasce nos EUA com Watson. Seu principal representante é Skinner.
Surge na Europa e postula a que o homem deve ser compreendido em sua totalidade.
Gestalt Kurt Lewin, Max Wertheimer, Kurt Koffka, Wolfgang Kohler, Ernst Mach e Christian
von Ehrenfels são seus maiores representantes.

Sigmund Freud. Postula o insconsciente como objeto de estudo e que determinados


Psicanálise
impulsos instintivos seriam de natureza sexual.

Logo em seguida, em 1882, Stanley Hall, que estudou brevemente no laboratório


experimental de Wundt, funda o primeiro Laboratório de Psicologia dos Estados
Unidos e a Associação Americana de Psicologia, sendo seu primeiro presidente.
Nas últimas décadas do século XX ocorre o desenvolvimento da Neurociência e da
Psicologia Cognitivista para a qual os fenômenos mentais estão situados dentro do
cérebro.
A Psicologia Moderna se divide em vários ramos: Organizacional ou Ocupacional,
Forense, Clínica, Evolucionista, Educacional, do Desenvolvimento entre outros.

2. O Objeto da Psicologia
Ao longo do tempo a psicologia foi classificada como Psicologia Filosófica e
Psicologia Experimental de acordo com o seu objeto de estudo.

PSICOLOGIA Período Objeto de Estudo


– da Grécia antiga até Descartes Alma
FILOSÓFICA
– de Descartes até Wundt Mente

PSICOLOGIA Período Objeto de Estudo


– de Wundt até o auge da tecnologia (finais do século XX) Conduta
EXPERIMENTAL
– do final do século XX até atualmente Conduta e Mente

Assim, atualmente a psicologia tem como objeto o estudo científico do


comportamento e dos processos mentais ou psíquicos. Assim, estuda os atos e
reações observáveis, os sentimentos, as emoções, as atitudes, as representações
mentais, as fantasias, a consciência etc.
Se interessa por questões que se relacionam com a personalidade, aprendizagem,
memória, inteligência, funcionamento do sistema nervoso, comunicação interpessoal,
desenvolvimento humano, comportamento sexual, agressividade, comportamento em
grupo, processos psicoterápicos, sono, sonho, prazer, dor etc.
3. Correntes Atuais
Condutivismo
O Condutivismo ou Comportamentalismo se centra em fatos observáveis com foco
no comportamento e na aprendizagem animal, buscando descrever, explicar, predizer
e controlar as interações entre as ações do organismo e o ambiente.
Os estudos de Ivan Petrovich Pavlov (1849-1936), fisiologista russo que se destacou
pelas pesquisas sobre os reflexos condicionados em experimentos com cães,
levaram-no a criar a teoria do Condicionamento Clássico, que abriu caminho para o
desenvolvimento da reflexologia e da psicologia comportamental com ampla
aplicação prática, incluíndo o tratamento de fobias e anúncios publicitários entre
outras aplicações na medicina e nas ciências cognitivas.
Outro expoente é Burrhus Frederic Obras de Skinner
Skinner (1904-1990), psicólogo norte-
americano que analisa o papel do - O Comportamento dos Organismos (1938)
- Walden II (1948)
reforçamento no comportamento. Sua - Ciência e Comportamento Humano (1953)
teoria ficou conhecida como - Comportamento Verbal (1957)
Behaviorismo Radical com grande - Além da Liberdade e da Dignidade (1971)
aplicação na área educacional.
Outros pesquisadores que se destacaram pelas pesquisas com foco no
comportamento observável foram: John B. Watson (1878-1958), Edward Lee
Thorndike (1874-1949) e Edward Chace Tolman (1886-1959).

Para os behavioristas quase todos os comportamentos característicos do ser humano são


aprendidos, sendo este um ser que se desenvolve em função das condições presentes no
meio em que está inserido. Entendem que manipulando os elementos presentes no ambiente
(estímulos ou respostas a partir dos estímulos) pode-se controlar o comportamento.

Humanismo
Essa perspectiva surge nos anos 60, sendo considerada como o ponto médio entre o
Behaviorismo e a Psicanálise, ou seja, no entendimento do humanismo, homens e
mulheres não são vistos como seres levados por um inconsciente (Psicanálise), e
nem mesmo como alguém suscetível e influenciado por fatores externos
(Behaviorismo). Considera que cada um é dono de si mesmo e de seus pensamentos,
sendo único responsável por suas atitudes e escolhas. Acredita no ser humano em
seu comportamento e pensamento e que o amor, a esperança e o medo são naturais
do ser humano.
O desenvolvimento inicial da psicologia humanista teve como precursores os
trabalhos dos teóricos Abraham Maslow (1908-1970) e Carl Rogers (1902-1987).
Maslow criou a Teoria da Motivação Humana também denominada Hierarquia das
Necessidades Humanas, ou simplesmente, a Pirâmide de Maslow.
Na base da pirâmide encontram-
Nece
se as necessidades fisiológicas: ssida
des
alimento, sono, água, roupa, de
Auto
respiração, sexo etc.; seguida rreali
das necessidades de segurança: zaçã
o
moradia, trabalho, da família, da
Necessid
saúde etc.; depois as ades de
Estima
necessidades de pertencimento:
família, amigos, bairro,
comunidade etc.; necessidades Necessidades de
Pertencimento
de estima: autoestima,
autoconfiança, reconhecimento,
respeito aos outros, respeito dos
outros, status etc.; e, por último, Necessidades de Segurança

as necessidades de
autorrealização:
autodesenvolvimento, educação,
Necessidades Fisiológicas
valores, criatividade,
espontaneidade, solução de
problemas, moralidade, etc..
Maslow acreditava que pessoas realmente saudáveis são autorrealizadas por
satisfazerem suas mais altas necessidades psicológicas.
A teoria humanista de Rogers tem como foco as relações interpessoais,
compreendendo que estas estão no cerne da construção da personalidade do
indivíduo. Destaca-se por desenvolver a Abordagem Centrada na Pessoa. Na terapia
o foco é na saúde mental e não na doença; na educação defende o ensino centrado
no aluno. No ensino não-diretivo, a tarefa do professor é facilitar o aprendizado para
que o estudante aprenda o que quiser.

A maior contribuição do Humanismo é a da experiência consciente, a crença na


integralidade entre a natureza e a conduta do ser humano, no livre arbítrio, na
espontaneidade e no poder criativo do indivíduo.

Cognitivismo
Essa perspectiva tem início nos anos 50 e se destaca Jerome Bruner (1915-2016)
que compreende que comportamento e mente são conceitos separados e que a
conduta depende da mente para criar modelos de pensamento que podem ser do tipo
enativo, icônico ou simbólico.
1º estágio - respostas motoras (0-3 anos) - ação como forma de
Enativo representação da realidade. Representar o mundo é tocar, manipular,
deslocar objetos. Aprendizagem de respostas e hábitos. Orientação da
própria ação.
2º estágio (3-9/10 anos) - representação visual da realidade. Recurso a
Modelos de imagens sistematizadoras. Capacidade de reprodução de imagens, ainda
Pensamento Icônico
sem transposição: propriedades exteriores são fixadas através das imagens;
memória visual concreta e específica.

3º estágio (10 anos e mais) - linguagem como forma de representação da


Simbólico
realidade; sistema mais elaborado e especializado de atividade simbólica.

Bruner compara o desenvolvimento da criança à evolução da raça humana


A criança progride da:

Representação enativa (motora), que


corresponde às invenções que
ampliaram as capacidades motoras;

Representação icônica (na forma de


imagens), que corresponde às invenções
que ampliaram os sentidos;

Representação simbólica -
correspondente às invenções que
ampliaram as capacidades intelectuais.

Dentre as correntes da psicologia cognitiva na atualidade uma das principais é a que


aborda um enfoque voltado para o processamento da informação. Utilizando a
metáfora do computador: recebemos a informação através dos sentidos, a
processamos em nosso cérebro e elaboramos uma resposta em formas diversas.
Assim, a cognição se efetiva por meio de uma sequência de fases: a memória
sensorial, a memória operacional e a memória permanente.
George Armitage Miller (1920-2012) é considerado um dos criadores da ciência
cognitiva moderna. Seus estudos sobre a linguagem estão entre os primeiros em
psicolinguística. Demonstrou que a consciência pode manejar sete, mais ou menos
dois, "segmentos" de informação ao mesmo tempo, ou seja, quando pedimos que as
pessoas repitam uma lista aleatória de letras, números e palavras, a tendência de
respostas certas é em torno do número 7. Essa contribuição foi essencial para o
desenvolvimento da programação neurolinguística.
Jean Piaget (1896-1980) é um os principais representantes da psicologia cognitiva,
que ao contrário do que muitos pensam não construiu uma teoria da aprendizagem,
mas uma teoria do desenvolvimento mental humano. Entende a aprendizagem como
o aumento do conhecimento e apenas ocorre aprendizagem quando o esquema de
assimilação passa pelo processo de acomodação. Em outras palavras, para que
alguém aprenda é preciso que haja uma reconfiguração da estrutura cognitiva
(esquemas de assimilação) do indivíduo, resultando em novos esquemas de
assimilação cognitiva.
Grandes áreas de investigação em psicologia cognitiva

O processamento cerebral depende bastante das informações fornecidas pelas


estruturas sensoriais (que podem ser de natureza visual, olfativa, tátil, gustativa,
auditiva e cinestésica (equilíbrio e movimento do corpo) que captam os estímulos
do ambiente, sendo estas a base de nossa compreensão do mundo. Na percepção a
Percepção
atenção e o reconhecimento de padrões são importantes. Assim, muitas vezes
aquilo que chamamos de percepção não é o que os órgãos sensoriais identificaram
inicialmente, mas é uma organização, um arranjo que passa a fazer um sentido para
o cérebro.

É a capacidade de registrar, armazenar e evocar as informações recebidas e


Memória
processadas pelo organismo.

Imagem mental - pode compreender informações de qualquer fonte de estímulos


sensoriais; pode-se experimentar imagens visuais, auditivas, olfativas, e assim por
Representação diante.
do conhecimento
Modelo mental - é um mecanismo do pensamento mediante o qual tentamos
explicar como funciona o mundo real; uma representação da realidade externa.

Refere-se à capacidade de receber, interpretar e emitir informações para o


Linguagem ambiente. Reflete, em boa medida, a capacidade de pensamento e abstração. Ela
se amplia à medida que as funções mentais vão se tornando mais complexas.
É a representação de conceitos na mente através da capacidade cognitiva de
Pensamento compreendê-los, formá-los e organizá-los. Está geralmente associado com a
resolução de problemas, tomadas de decisões e julgamentos.

4. Psicologia da Educação
Foi a capacidade de aprender, reter e transmitir conhecimentos que permitiu ao
gênero Homo se destacar de outras espécies e lutar por sua sobrevivência.

Homo erectus - Homo sapiens - Por


Existiu há 200 mil volta de 200 mil
anos anos

Homo
Homo floresiensis -
neanderthalensis -
Entre 200 mil e 60
Por volta de 250
mil anos
mil a 30 mil anos

Homo
heidelbergensis -
Homo naledi
Entre 600 mil a 200
mil anos

O nome Psicologia da Educação foi cunhado por Thorndike, no ano de 1903 e é uma
subárea de conhecimento dentro da Psicologia e visa contribuir com a produção de
conhecimentos sobre os fenômenos psicológicos que ocorrem no processo ensino e
aprendizagem escolar, em ambiente formal e não formal, na infância, na
adolescência, na idade adulta e na terceira idade, subsidiando a teoria e a prática
educacionais.
As
O ser humano tem potencial para aprender ao longo da vida e não somente
em determinada fase.

pesquisas nas áreas da Psicologia Cognitiva, da Psicologia do Desenvolvimento


e da Neuropsicologia têm colaborado na compreensão de diversos fenômenos que
envolvem principalmente o desenvolvimento e a aprendizagem humanos.
Se baseia em características individuais
versus traços compartilhados pelos
humanos
Mesmo ambiente e educação não produzem
sempre o mesmo resultado, pois temos
características individuais.

Estabilidade versus mudança


Psicologia do Nós podemos nos adaptar a novas situações
Desenvolvimento sem, contudo, esquecer as habilidades e
conhecimentos adquiridos no passado.

Hereditariedade versus ambiente


As pessoas podem ser moldadas pela maneira
como vivem.

A neuropsicologia é um ramo mais


específico das neurociências e seu
propósito é compreender como o
funcionamento do sistema nervoso
central, que engloba outras estruturas
além do cérebro, pode interferir na
cognição e no comportamento humano.

As pesquisas nas áreas da Psicologia Cognitiva, da Psicologia do


Desenvolvimento e da Neuropsicologia oferecem também suporte para melhor
compreensão:
 das estratégias educacionais e de sua eficácia
 dos mecanismos fortalecedores de aprendizagem
 do funcionamento da instituição de ensino e da gestão educacional
 da aprendizagem e do desenvolvimento humano
 do funcionamento da memória
 da inteligência
 da criatividade
 da motivação
 da capacidade comunicativa
 das condutas morais e afetivas
 do ambiente de aprendizagem
 sobre a dificuldade de aprendizagem
Atualmente a Psicologia da Educação tem-se voltado para os processos educativos
de modo mais amplo e com as redes de relações constituídas no interior da escola.
Preocupa-se em compreender não mais o porquê a criança não aprende, e sim, o que
ocorre no processo de escolarização que produz aquele que supostamente não
aprende.

CUNHA, Marcos Vinicius da. A psicologia na educação: dos paradigmas


científicos às finalidades educacionais. Revista da Faculdade de Educação.
v. 24, n. 2. São Paulo, jul-dez., p. 51-80, 1998. Disponível em:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-
25551998000200004. Acesso em: 12 jan. 2023.

Agora leia o texto acima para complementar seus estudos!

REFERÊNCIAS UTILIZADAS
BARBOSA, Deborah R.; SOUZA, Marilene. Psicologia educacional ou escolar?: eis a
questão. Revista Semestral da Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional,
São Paulo, v. 16, n. 1, p. 163-173, jan./jun. 2012.
COELHO, Wilson Ferreira (Org.). As interfaces entre psicologia do desenvolvimento e
psicologia da educação. In: COELHO, Wilson Ferreira (Org.). Psicologia do
desenvolvimento. São Paulo: Pearson Education do Brasil, 2014. Cap. 2. p.31-60
LEFRANÇOIS, G. R. Teorias da aprendizagem: o que o professor disse. São Paulo:
Cengace Learning, 2016. p. 219-232.
MAIA, Christiane Martinatti. História da psicologia e alguns conceitos iniciais. In: MAIA,
Christiane Martinatti. Psicologia do desenvolvimento e da aprendizagem. [livro eletrônico].
Curitiba: InterSaberes, 2017. (Série Pedagogia Contemporânea). Cap. 1, p. 11-24
MEDEIROS, Marcos Pippi de; GUERRA, Gabriela Oliveira. Psicologia da Educação. Rio
Grande do Sul: Universidade Federal de Santa Maria. Centro de Ciências Sociais e Humanas,
2009.
PRADO, Margareth Simone Marques. Psicologia da educação. Cruz das Almas, BA: SEAD-
UFRB, 2017.
Marcos Vinicius da Cunha

Licenciatura em Pedagogia

CUNHA, Marcos Vinicius da. A psicologia na educação: dos paradigmas científicos às


finalidades educacionais. Revista da Faculdade de Educação. v. 24, n. 2. São Paulo, jul-
dez., p. 51-80, 1998. Disponível em:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-25551998000200004. Acesso
em: 12 jan. 2023.
A psicologia na educação: dos paradigmas científicos às finalidades
educacionais
Marcus Vinicius da Cunha1

Resumo:

Este artigo analisa algumas teorias psicológicas e suas contribuições para a


educação. Discute estas teorias sob a concepção de paradigma, originária de Thomas
Kuhn, e propõe que o único critério para aceitá-las ou recusá-las no campo
educacional é o estabelecimento de finalidades educacionais.

Palavras-chave: teorias psicológicas; paradigmas científicos; psicologia


educacional; finalidades educacionais.

1. INTRODUÇÃO

Os currículos dos cursos de formação de professores, em qualquer nível que seja,


abordam temas que dizem respeito à escola, como instituição social, e às relações
mantidas pelos agentes envolvidos no processo de ensinar e aprender. Algumas de
suas disciplinas respondem pelos fundamentos filosóficos, políticos, sociais e legais
do ensino, com ênfase no desenvolvimento histórico da escola e no perfil sociológico
e antropológico da clientela. Outras abrangem aspectos teórico-metodológicos que,
suplementados por atividades de estágio supervisionado, visam a instrumentalizar a
prática docente. Neste universo em que se busca compreender a escola no tempo
histórico e nas circunstâncias imediatas da ordem social, bem como discutir as bases
epistemológicas da pedagogia, apresentam-se ensinamentos pertinentes à psicologia
do educando e do educador para sustentar a relação entre quem ensina, o que é
ensinado e quem aprende.

Com exceção, é claro, das disciplinas estritamente metodológicas, todos os saberes


que contribuem para a formação dos professores pertencem, originalmente, a um
terreno que se distingue da educação escolar. Ciências como a Sociologia e a
Antropologia, por exemplo, possuem esferas próprias de estudo e reflexão, como é
sabido, mas esperam-se delas contribuições para esclarecer problemas do âmbito
educacional. Assim como se recorre à Filosofia para deslindar a tradição do
pensamento ocidental, de modo a elucidar os fundamentos da prática pedagógica,
almeja-se que sociólogos e historiadores, ao analisarem como as instituições sociais
funcionam e se transformam ao longo das épocas, possam auxiliar no posicionamento
da escola na sociedade e no planejamento de seu futuro.

A preocupação central do presente trabalho é discutir como a Psicologia tem servido


e pode servir à educação, considerando que, no conjunto das ciências que
fundamentam o ensino, ela é vista por muitos como a principal subsidiária, uma
ciência auxiliar que teria acabado por assenhorear-se da Pedagogia. A meta principal,
aqui, será buscar entender como se dá a transposição dos conhecimentos de um

1Professor do Departamento de Psicologia da Educação da Faculdade de Ciências e Letras da


UNESP, Araraquara.
determinado corpo científico para os limites da sala de aula, para o que serão
analisadas algumas correntes de pensamento da Psicologia. Embora trate-se de um
propósito bem delimitado, as reflexões desenvolvidas poderão ensejar revisões
críticas quanto às demais Ciências da Educação, bem como a outras teorias
psicológicas não mencionadas.

2. AS NOÇÕES DE PARADIGMA E CIÊNCIA NORMAL APLICADAS À


PSICOLOGIA

Proponho tratar as várias teorias que compõem o campo da Psicologia como


paradigmas, tomando por base A Estrutura das Revoluções Científicas, obra de
Thomas Kuhn que foi publicada no início dos anos sessenta, que suscitou elevada
polêmica entre os estudiosos de Filosofia da Ciência e teve alguns de seus conceitos
posteriormente reformulados pelo autor – especialmente no posfácio que passou a
figurar no livro a partir de 1969. Embora as ideias de Kuhn sejam bastante sugestivas,
creio ser possível tomá-las apenas a título de empréstimo parcial, como logo mais se
verá.

O que caracteriza um paradigma é o fato de conter realizações científicas


"reconhecidas durante algum tempo por alguma comunidade científica específica
como proporcionando os fundamentos para sua prática posterior" (Kuhn, 1990, p.29),
o que define "implicitamente os problemas e métodos legítimos de um campo de
pesquisa para as gerações posteriores de praticantes da ciência"; ao fazê-lo, tais
realizações atraem um "grupo duradouro de partidários, afastando-os de outras
formas de atividade científica dissimilares". Ao mesmo tempo, trata-se de realizações
"suficientemente abertas para deixar toda espécie de problemas para serem
resolvidos pelo grupo redefinido de praticantes da ciência" (idem, p.30).

Desse modo, certas formulações originais contidas no amplo espectro das teorias
psicológicas podem ser nomeadas paradigmas, ou matrizes disciplinares, conforme
Kuhn mostrou preferir no posfácio acima mencionado. Tomadas na concepção de
seus autores principais, a obra de Freud, ao fundar a Psicanálise, os trabalhos de
Pavlov, bem como os de Watson, Skinner e outros psicólogos norte-americanos, ao
estabelecerem as bases para o Comportamentalismo e os escritos de Piaget, na
elaboração da Epistemologia Genética, são exemplos de realizações científicas que
conquistaram o reconhecimento de parcelas da comunidade científica e propuseram,
cada qual à sua maneira, métodos e problemas específicos para a compreensão de
aspectos da psicologia humana. Cada um deles possui parâmetros delimitadores que
dizem respeito a procedimentos, conceitos, vocabulário e, acima de tudo, definições
sobre o que é relevante investigar. Embora esses paradigmas sejam limitadores do
campo de visão do praticante da ciência, deixam desafiadores problemas a serem
solucionados pela comunidade que compartilha seus princípios, métodos e valores.

Para ficar em nossos exemplos, a Psicanálise visa a compreender as forças


inconscientes em sua luta contra as exigências da realidade, e define a
"interpretação" como o instrumento adequado para tanto. O Comportamentalismo,
tanto na versão associacionista russa quanto na vertente ambientalista norte-
americana, dá ênfase às ações exteriores do organismo, repudiando conceitos
mentalistas tidos como impossíveis de serem apreendidos objetivamente, o que
encaminha as ações do pesquisador para métodos de observação e registro do
comportamento observável. Piaget apresenta uma teoria para explicar as formas
elementares do conhecimento e o modo como estas formas se desenvolvem, da
criança ao adulto, o que sugere ao cientista a necessidade de trabalhar com métodos
de observação e entrevista clínica para apreender a mudança das estruturas
cognitivas.

Os problemas não resolvidos pelas formulações paradigmáticas animam seus


seguidores, definidos por Kuhn como cientistas normais, a realizar o "trabalho de
limpeza" que todo paradigma requer. Isto é assim porque todo paradigma é, em geral,
"muito limitado, tanto no âmbito como na precisão, quando de sua primeira aparição".
De início, um paradigma "é, em grande parte, uma promessa de sucesso que pode
ser descoberta em exemplos selecionados e ainda incompletos".

A ciência normal consiste na atualização dessa promessa,


atualização que se obtém ampliando-se o conhecimento
daqueles fatos que o paradigma apresenta como
particularmente relevantes, aumentando-se a correlação entre
esses fatos e as predições do paradigma e articulando-se ainda
mais o próprio paradigma. (idem, p.44)

O cientista normal, portanto, é aquele que, conquistado por um paradigma, empenha-


se em aprimorá-lo. Dentre as várias modalidades de exercício da ciência normal, há
uma espécie que consiste na busca de adequação dos referenciais, métodos e
soluções apresentados pelo paradigma a áreas de interesse não contempladas
originalmente pelas formulações paradigmáticas. "Nesse caso experiências são
necessárias para permitir uma escolha entre modos alternativos de aplicação do
paradigma à nova área de interesse" (idem, p.50). Nos exemplos aqui enfocados, os
próprios autores dos paradigmas em questão encarregaram-se de iniciar o "trabalho
de limpeza" das proposições que eles mesmos elaboraram, participando, assim,
dessa última modalidade de ciência normal.

É sabido que Freud dedicou pelo menos os últimos cinquenta anos de sua vida à
elaboração da Psicanálise, tendo tido oportunidade de experimentar sua adequação
a terrenos não diretamente vinculados à clínica psicológica. Tanto é assim que suas
ideias podem ser avaliadas, hoje, muito menos como um conjunto de técnicas
psicoterapêuticas do que como uma concepção a respeito das relações entre o
indivíduo e a cultura. Algo semelhante pode ser dito quanto a Skinner, que buscou
aplicar suas constatações, muitas delas obtidas em laboratório com animais
inferiores, a uma reflexão sobre o papel da ciência no planejamento da cultura. Piaget,
que acompanhou de perto o avanço de seu projeto de investigação das estruturas
cognitivas, não se furtou a expandi-lo em várias direções, discutindo o
desenvolvimento moral da criança, elaborando estudos de caráter sociológico e sobre
o progresso das ciências.

É com base nestes aspectos – e em alguns outros que logo mais serão explicitados
– que proponho a denominação kuhniana de paradigma para as teorias psicológicas.
A vantagem oferecida por este empenho encontra-se justamente em tornar possível
distinguir com mais clareza a especificidade que envolve o trabalho científico,
especificidade esta que o distingue das exigências que cercam a prática educacional.
No mais, creio que a visão de Kuhn quanto ao modo como os paradigmas se
estabelecem e são superados, uns pelos outros, de tempos em tempos, por meio de
rupturas sucessivas, necessita maiores esclarecimentos. Quando formulada pela
primeira vez, esta concepção parecia sugerir a existência, a hegemonia de um único
paradigma em determinado campo científico, o que de fato não seria cabível afirmar
no caso da Psicologia, em que há grande diversidade de correntes de pensamento
em disputa sem qualquer indício de superação de umas pelas outras.

Posteriormente, ao rever seu escrito e introduzir a expressão matriz disciplinar, Kuhn


esclareceu que seria preferível referir-se a conjuntos compostos por "crenças",
"valores" e expressões que permitem "generalizações simbólicas" sobre o objeto em
estudo, conjuntos estes que são compartilhados por diferentes grupos – às vezes
pequenos – de cientistas, num mesmo momento histórico. Mediante esta nova
conceituação, torna-se mais plausível a possibilidade de compreender a realidade do
campo aqui enfocado, em que uma matriz disciplinar é aceita por uma parcela da
comunidade científica ao mesmo tempo que outras parcelas dão preferência a
correntes alternativas. No amplo cenário de nossas universidades, departamentos e
instituições de pesquisa, há representantes de paradigmas psicológicos diferentes e
conflitantes, todos eles atuando com semelhante prestígio – maior em determinados
locais, menor em outros.

Outra consideração que merece reparo é quanto ao caráter "sem precedentes" que
Kuhn atribui aos paradigmas, ideia que lhe permite ver o avanço científico como um
processo que ocorre por "rupturas" entre um paradigma que surge e o que se encontra
em vigor, concepção que vai de encontro à crença no progresso linear das ciências.
No âmbito da Psicologia – e o mesmo poderia ser discutido no terreno das ciências
naturais, como a Física, setor privilegiado pelo autor – as matrizes disciplinares
podem ter suas origens rastreadas e localizadas nas escolas filosóficas que as
precederam. Os comportamentalistas, por exemplo, exibem com clareza suas raízes
positivistas, ao passo que Piaget fundamenta sua teoria numa ampla discussão com
o empirismo, dentre outras vertentes do pensamento filosófico. O campo da
Psicologia talvez possa ser melhor caracterizado, portanto, como um campo em que
os paradigmas surgem como inéditos e revolucionários, rompendo uns com os outros,
de fato, mas apenas nos limites do campo da Psicologia mesma. Se visto mais
globalmente, diante da tradição do pensamento ocidental, esse fenômeno revela que
os paradigmas psicológicos são transposições, em certos casos, e tentativas de
superação, em outros, de questões já colocadas pela Filosofia.2

3. OS PARADIGMAS PSICOLÓGICOS E A EDUCAÇÃO ESCOLAR

2 Trata-se de uma discussão impossível de ser aprofundada nos limites do presente artigo. Remeto o
leitor a Psicogênese e História das Ciências (Piaget & Garcia, 1987), especialmente ao capítulo IX, em
que os autores caracterizam a noção de Kuhn como "paradigma social" e propõem o conceito de
"paradigma epistêmico", mais amplo que o primeiro. Ver, também Feyerabend (1977), que analisa,
entre outros temas, a coexistência de teorias opostas no mesmo momento histórico.
Nenhuma das matrizes disciplinares da Psicologia foi criada com o intuito de
responder a questões formuladas no terreno da educação em geral e, muito menos,
no campo específico da educação escolar. A Psicanálise constitui a demonstração
mais óbvia dessa afirmação, pois como se sabe o paradigma freudiano foi
desenvolvido para atender a demandas oriundas da clínica psicológica, sendo seu
propósito inicial encontrar um meio eficiente para curar neuroses (cf. Freud, 1978).
Quanto ao Comportamentalismo, tratou-se originalmente de uma iniciativa para
construir uma teoria geral que contemplasse as leis de regularidade e uniformidade
do comportamento humano, em que estivessem descritas as relações entre as
respostas emitidas por um organismo e os estímulos ambientais (cf. Skinner, 1967).

Sobre a teoria piagetiana, é preciso lembrar que sua problemática primeira


encontrava-se vinculada à área da epistemologia: o propósito de Piaget era "abordar
o estudo do conhecimento através de uma epistemologia de natureza biológica", o
que se mostrou inviável por intermédio do uso exclusivo dos métodos da própria
Filosofia. Assim, dada a necessidade de bases empíricas que permitissem "uma
ponte sólida entre a biologia e a epistemologia", Piaget foi em busca da Psicologia
(Coll & Gillièron, 1987, p.15). Toda a psicologia piagetiana constitui, a bem da
verdade, um conjunto de teses formuladas para responder a questões relacionadas
com a origem e o desenvolvimento da capacidade cognitiva do ser humano, e, mais
amplamente, para explicar como nasce e evolui a competência do indivíduo para
apreender abstratamente o mundo que o cerca.

É certo que alguns dos criadores dos paradigmas aqui analisados envolveram-se
diretamente com os problemas da educação, aplicando suas formulações a "novas
áreas de interesse", como diria Kuhn, procedendo deste modo, portanto, na condição
de cientistas normais. Com eles começaram, então, as transposições de suas
formulações paradigmáticas para o âmbito da escola. O caso de Skinner é exemplar,
pois de certos princípios comportamentalistas decorrem sugestões de elevado
interesse para organizar o processo de ensino e aprendizagem escolar. Uma das
teses fundamentais desse paradigma diz que o organismo – seja ele animal inferior
ou superior – responde a estímulos ambientais, o que permite ver o comportamento
como resultado de arranjos no meio em que se localiza o indivíduo. O
Comportamentalismo ensina como instalar respostas novas e modificar padrões de
respostas já existentes, o que o torna, em suma, um paradigma facilmente aplicável
à educação. A tal ponto que o próprio Skinner, em seu livro Tecnologia do Ensino
(Skinner, 1972) elaborou propostas bem delineadas para o ambiente escolar, como o
"ensino programado" e o emprego de "máquinas de ensinar".

Assim, se é certo que os paradigmas psicológicos não nasceram para resolver


problemas educacionais em geral ou problemas específicos da educação escolar, é
preciso reconhecer, também, que toda e qualquer utilização educacional dos saberes
oriundos da Psicologia é passível de discussão. Além disso, quando a Pedagogia
tenta apossar-se dos conhecimentos científicos da Psicologia, pode fazê-lo sob a
égide de orientações pedagógicas as mais diversas. Consequentemente, torna-se
muito difícil, arriscado e, em alguns casos, leviano, vincular uma vertente do
pensamento educacional a conceitos extraídos de uma teoria psicológica, como se
algum saber deste terreno fosse responsável exclusivo pelas práticas contidas
naquele.

No entanto, é preciso admitir que alguns paradigmas contêm formulações que


implicam reflexões problematizadoras e soluções de interesse inegável para os
educadores. Mas, desenvolvida como atividade de ciência normal, esta empresa não
se confunde com o estabelecimento das teses paradigmáticas, ainda que o fundador
do paradigma tenha se envolvido pessoalmente nela. Para ficar no exemplo dado, as
sugestões de Skinner quanto ao modo de organizar a educação escolar não são as
únicas possíveis ou as únicas que devam ser consideradas pelos adeptos de seu
paradigma. A tese de que o comportamento é algo que se pode instalar, controlar e
modificar, sem levar em conta supostos fatores subjetivos, constitui uma ideia a ser
necessariamente aceita pelos seguidores dessa corrente, mas o mesmo não se dá
quando se trata de organizar o processo de ensino e aprendizagem. Ao admitir a
noção de que o comportamento do educando é passível de controle por meio dos
estímulos fornecidos em sala de aula, o professor torna-se comportamentalista, mas
não se sente obrigado a concordar que a escola deva ser composta por alunos diante
de máquinas de ensinar.

Pode-se chegar a semelhante conclusão tomando o caso de Freud, cujas teses a


respeito da sexualidade infantil enfatizaram ser a constituição do ego um resultado do
combate entre as pulsões do id e as restrições do superego, representante
internalizado das imposições morais transmitidas, inicialmente, pela educação
familiar e, mais adiante, pelos educadores profissionais. A teoria freudiana, ao versar
sobre o desenvolvimento da personalidade, oferecia certa margem de reflexão a
respeito dos procedimentos educacionais, e o próprio Freud o fez, em alguns textos
e passagens de sua obra. Não sendo adepto, entretanto, de concepções
ambientalistas, concluiu que pouco poderia ser conseguido por pais e professores,
uma vez que o inconsciente é um território insondável. No final da vida, tornou-se
totalmente descrente da possibilidade de a Psicanálise contribuir para a educação de
crianças e jovens, quer na escola, quer fora dela (cf. Kupfer, 1992).

Suas opiniões neste terreno não impediram que muitos cientistas normais de
orientação psicanalítica tratassem de fazer o que o mestre considerava impossível. O
exemplo mais categórico foi sua própria filha, Anna Freud, com Psicanálise para
Pedagogos (Freud, 1974). Mais recentemente, estudiosos, como Georges Mauco,
têm admitido que a concepção freudiana não pode ser entendida como uma ciência
psicológica, propriamente, "mas um método de investigação no domínio do
simbolismo inconsciente", e que reduzi-la a "uma pedagogia apressada ou a um
culturalismo simplista" seria inadequado (Mauco, s.d., p. 192). Mauco admite,
entretanto, que a Psicanálise pode ser útil aos educadores, se não enquanto método
de interpretação, cuja utilidade é evidentemente limitada aos domínios do consultório,
ao menos como fonte para a compreensão do desenvolvimento psíquico e afetivo do
ser humano; ao elucidar as relações da criança com a família, do educando com o
educador e a economia psíquica do profissional da educação, a Psicanálise pode
fornecer ao professor condições para lidar com indivíduos em situação de
aprendizagem, capacitando-o para o melhor desempenho de suas funções próprias.
Impossibilitada de inspirar métodos pedagógicos, mas apta a sustentar uma nova
visão dos processos educacionais, a Psicanálise pode ser útil ao questionamento dos
vínculos de autoridade na sala de aula em abordagens pedagógicas avessas aos
moldes tradicionalistas. Ideia semelhante é defendida por Maria Cristina Kupfer, para
quem não é possível criar uma metodologia pedagógica fundamentada na Psicanálise
porque todo método implica certo grau de ordenação e previsibilidade, algo
inimaginável numa teoria que aceite a noção de inconsciente – o lugar do
imponderável, do imprevisto, daquilo que escapa à linguagem da razão. À imagem do
psicoterapeuta, o educador inspirado na Psicanálise deve renunciar ao controle
intensivo sobre seus educandos; no processo de avaliação da aprendizagem, por
exemplo, tem apenas uma vaga imagem do que pode estar ocorrendo com o aluno,
pois não tem acesso direto à repercussão dos conteúdos escolares no inconsciente
do aprendiz. Mais ainda, não tem como saber em que medida a relação transferencial
estabelecida entre ele e o educando está interferindo no trabalho pedagógico. Assim,
Kupfer conclui:

Pode-se dizer, por isso, que a Psicanálise pode transmitir ao


educador (e não à Pedagogia, como um todo instituído) uma
ética, um modo de ver e de entender sua prática educativa. É
um saber que pode gerar, dependendo, naturalmente, das
possibilidades subjetivas de cada educador, uma posição, uma
filosofia de trabalho. Pode contribuir, em igualdade de
condições com diversas outras disciplinas, como a
Antropologia, ou a Filosofia, para formar seu pensamento.
Cessa aí, no entanto, a atuação da Psicanálise. Nada mais se
pode esperar dela, caso se queira ser coerente com aquilo que
se constituiu essencialmente: a aventura freudiana. (Kupfer,
1992, p.97).

Quanto a Piaget, vale considerar aqui o depoimento colhido por Mário Sérgio
Vasconcelos em que Therezinha Rey relata as impressões do pesquisador genebrino
sobre sua visita ao Brasil, no ano de 1949. Piaget teria ficado descontente por ter sido
abordado por pessoas cujo interesse exclusivo era a Educação, e por não terem
ocorrido, como ele desejava, "debates mais profundos sobre biologia e epistemologia"
(Vasconcelos, 1996, p.58). Embora estes fossem os interesses prioritários de Piaget,
alguns textos sobre educação escolar foram por ele produzidos, sob a motivação dos
encargos que assumiu junto ao "Bureau International d’Education", entre 1929 e 1967,
e à Unesco, de 1946 a 1980 (idem, p. 53-5). Seus escritos educacionais continham
três pontos comuns:

a defesa dos métodos ativos, a revelação dos resultados da


psicologia genética como corroboradores dos princípios da
Escola Ativa e a proposta de trabalho cooperativo, como
estratégia pedagógica para o desenvolvimento do pensamento
experimental, da razão, da autonomia e dos sentimentos de
solidariedade. (idem, p.59)

As formulações paradigmáticas de Piaget não foram transpostas, por ele mesmo,


para a sala de aula; suas ideias permitiram-lhe distinguir entre diversas abordagens
educacionais já existentes, tornando-se crítico dos métodos tradicionais de ensino e
defensor da renovação educacional. Além disso, autorizou certos esforços destinados
a essa transposição, como é o caso da obra de Hans Aebli, datada dos anos
cinquenta e publicada no Brasil com o título Didática Psicológica. Aplicação à Didática
da Psicologia de Jean Piaget (Aebli, 1971).

Das teses piagetianas, entretanto, têm surgido diversas possibilidades de ação, que
variam quanto ao modo de situar o valor dos conteúdos das matérias escolares, o
papel do professor na sala de aula, os instrumentos de avaliação, enfim, sobre todos
os componentes da situação de ensino e aprendizagem. César Coll, ao analisar
algumas dessas vertentes, considera a existência de duas grandes interpretações. A
primeira valoriza os aspectos endógenos do processo de construção do
conhecimento e enfatiza a atividade livre e espontânea do aluno, o que impõe à escola
criar ambientes estimulantes que permitam ao aprendiz desenvolver seu potencial, à
sua maneira e em seu próprio ritmo. A segunda interpretação destaca o aspecto
interacionista das ideias piagetianas, defendendo que a intervenção pedagógica deve
consistir na elaboração de situações que permitam certo grau ótimo de desequilíbrio
entre os esquemas de assimilação do educando e o objeto a ser assimilado (Coll,
1987, p.188-9).

Na primeira vertente, caracterizada como "interpretação construtivista radical do


processo de ensino-aprendizagem", o desenvolvimento operatório torna-se o objetivo
único e exclusivo da educação, conferindo à Epistemologia Genética o papel de "uma
espécie de psicologia aplicada à educação", disciplina norteadora do processo
educacional. Na segunda, chamada "desajuste ótimo", a ênfase desloca-se para a
compreensão do processo educacional e suas questões específicas, como o valor
social e cultural dos conteúdos escolares e da prática pedagógica, deixando aos
saberes oriundos da Psicologia Genética a tarefa de contribuir para elaborar mais
adequadamente os conhecimentos a serem ensinados – por exemplo, no trabalho de
seleção e ordenamento destes conhecimentos de acordo com as diferentes etapas
do desenvolvimento cognitivo dos educandos.

Assim, num extremo o paradigma piagetiano é empregado para constituir um "polo


psicologizante" em que os objetivos educacionais subordinam-se ao desenvolvimento
individual; no outro, sustenta a elaboração de instrumentos de análise dos
componentes psicológicos da educação, renunciando à tentação de reduzir os
fenômenos escolares ao desenvolvimento operatório (idem, p.193).

4. OS PARADIGMAS PSICOLÓGICOS E OS FINS DA EDUCAÇÃO

Se é verdade que existe certa independência entre as formulações de um paradigma


científico e as aplicações do mesmo à Educação - como venho defendendo até aqui
–, emerge inevitavelmente uma questão: onde se encontra a razão de ser da
aplicação de um paradigma da Psicologia à prática pedagógica, ou, mais exatamente,
quais são as razões que decidem entre as diversas possibilidades de apropriação de
um mesmo paradigma pelos educadores? No âmbito do presente estudo, esta
questão suscita as seguintes indagações. O que leva alguns educadores a se
desprenderem do pessimismo de Freud e extrair contribuições da Psicanálise à
prática educativa? O que explica a variedade de interpretações em torno da
Epistemologia Genética de Piaget aplicada à situação escolar? O que determina o
fato de comportamentalistas não adotarem o ensino programado e as técnicas de
condicionamento como sustentáculos das práticas de sala de aula?

Estas indagações remetem ao campo em que são discutidos os fins da educação,


pois é ali, e só ali, que se encontra o fator de decisão para a escolha do paradigma a
ser adotado; mais ainda, é nesse plano que se define a modalidade, dentre as muitas
possíveis, de aplicação de um paradigma. É diante das finalidades almejadas para o
empreendimento educacional que se dá a decisão quanto ao melhor paradigma
psicológico a empregar, e a escolha - ou criação, quando for o caso – da maneira
específica pela qual as formulações paradigmáticas serão transformadas em métodos
de trabalho pedagógico, recontextualizadas de modo a constituir o discurso e as
práticas escolares. Vejamos cada caso.

Ao adotar o pressuposto de que todo e qualquer organismo pode ser conduzido a agir
mediante condicionamento, o Comportamentalismo torna-se facilmente assimilável
por aqueles que veem a educação como um arranjo de estímulos ambientais
dispostos corretamente para reforçar respostas adequadas. Os educadores que
enfatizam a importância dos meios instrucionais e do compromisso primordial com
produtividade e eficiência, assumem a teoria comportamentalista como valiosa
contribuição para deixar de lado quaisquer considerações relativas a fenômenos
subjetivos, como aqueles que são vistos pela Psicanálise, por exemplo.

Essa rejeição da possibilidade de investigar o universo psicológico invisível e a ênfase


no controle dos organismos humanos levaram Skinner a visualizar a constituição de
uma "ciência do comportamento", ciência planificadora da ordem social em cujas
mãos estaria a potencialidade para reorganizar toda a cultura. Nesse empenho,
reconheceu que "a concepção científica que emerge de uma análise científica é
desagradável à maioria daqueles que foram afetados pelas filosofias democráticas"
(Skinner, 1967, p.251). E, de fato, historicamente o Comportamentalismo tem sido
fartamente utilizado por concepções educacionais que fortalecem as instituições de
ensino, tornando-as analisáveis enquanto estruturas organizacionais, ao passo que
colocam o indivíduo como simples elo funcional numa cadeia de ações coordenadas
com vistas à produtividade do sistema. No bojo de "filosofias da eficiência", em que a
educação escolar torna-se "uma área suscetível de previsão, intervenção e
aperfeiçoamento", em que são necessários "dados observáveis ou manifestos que
possam indicar as direções a seguir e se as direções desejadas foram seguidas", é
nesse ambiente que o paradigma comportamentalista tem florescido (Grande, 1979,
p.85-6).

Transportada para o interior da escola, a ordem social e política converte-se em


rigorosos e rígidos ordenamentos dos conteúdos a serem ensinados; a transmissão
do conhecimento é mantida sob estrito controle; os valores morais presentes nos
saberes ensinados são transformados em comportamentos observáveis,
mensuráveis, objetivamente apreensíveis, com o que fica garantido o resultado do
processo de aprendizagem. A abordagem skinneriana é lembrada – e, muitas vezes,
criticada – no conjunto de Teorias Organizacionais, Abordagens Sistêmicas,
Concepções Tecnológicas, Pedagogias Tecnicistas, tendências associadas,
naturalmente, a projetos políticos autoritários de governo (cf. Kuenzer & Machado,
1986).

Nessa perspectiva, adotar ou recusar esse paradigma, seja como metodologia de


trabalho em sala de aula, seja como instrumento para compreender e organizar o
sistema de ensino, não é algo que se faça em respeito ao que as pesquisas científicas
comportamentalistas apresentam como resultado, mas uma atitude que se toma em
face dos compromissos que o educador assume diante da coletividade. O que está
em julgamento não é a capacidade, revelada cientificamente, de as estratégias
comportamentalistas conseguirem resultados no tocante ao controle dos organismos;
é o próprio controle, na qualidade de meio e fim educacional, que está em jogo.

Com base nas concepções psicanalíticas de que o indivíduo é uma presa dos desejos
de seu inconsciente e que o inconsciente é um território inatingível, chega-se à
conclusão de que educar é, de certo modo, impossível. Mesmo o psicoterapeuta, que
dispõe dos instrumentos que a Psicanálise designa para investigar o inconsciente –
por excelência, a "interpretação" –, mesmo este profissional jamais pode afirmar com
segurança que conhece a totalidade das forças que ali habitam. A psicoterapia de
orientação psicanalítica não se enquadra na categoria das técnicas clínicas de
natureza diretiva, podendo ser melhor caracterizada como um esforço contínuo em
busca de revelar os conteúdos inconscientes e não como um meio para dirigir o cliente
numa direção determinada.

Sob esse entendimento, o educador pode recusar o paradigma psicanalítico, pois este
não traz nenhuma indicação quanto aos meios e fins da educação escolar. Esta
atitude não era estranha a um escritor dos anos trinta e quarenta, como Renato
Jardim, que em seu Psicanálise e Educação apontou os males da transposição das
teses freudianas para o ambiente escolar. Sua recusa era motivada pela seguinte
concepção: "A educação é obra eminentemente social, obra realizada pela e para a
coletividade. (...) Uma doutrina educativa implica uma doutrina sociológica" (Jardim,
s.d., p.172).

Jardim apontava Dewey, Durkheim e Spencer entre os autores com quem preferia
dialogar e formulava implicitamente a seguinte indagação: como o empreendimento
pedagógico – obra que possui clara delimitação social – pode apoiar-se numa teoria
que afirma ser o educador incapaz de influenciar os destinos dos alunos que lhe são
confiados? Apenas se a educação fosse definida não como local de transmissão de
saberes e valores morais, mas como ambiente físico, afetivo e social encarregado de
propiciar manifestações de espontaneidade do espírito infantil, local ordenado
exclusivamente pelo princípio de total liberdade para os agentes envolvidos no
processo de ensinar e aprender, em que a cada um fosse garantido formular
autonomamente valores éticos e morais e estabelecer livremente padrões de
pensamento. A Psicanálise só poderia ser assumida por uma escola que aceitasse o
pressuposto de que condições exteriores de menor repressão capacitam o pleno
desenvolvimento das forças psíquicas do educando e, consequentemente, a
aprendizagem.
Mas onde ficariam, nesse projeto, os fins sociais ordenados pela sociedade e para a
sociedade? Aceitar o paradigma psicanalítico na educação significa desprender-se
de preocupações dessa natureza e enxergar que os saberes da Psicanálise, embora
não conduzam a escola, com segurança e objetividade, numa direção claramente
definível, podem, como alternativa, interferir na visão que o educador tem de si
mesmo, de seus alunos e do sentido que a educação possui como processo
constituidor da personalidade humana. Este é o ponto de vista que leva Mauco e
Kupfer, cada qual à sua maneira, a enxergar uma filosofia educacional inspirada pela
Psicanálise – não uma metodologia, mas uma ética. Pedagogos adeptos de correntes
não-diretivistas, como a "abordagem centrada na pessoa", de Carl Rogers (cf.
Rogers, 1975), ou como a que se implantou em Summerhill, na Inglaterra dos anos
vinte, poderão absorver os conhecimentos psicanalíticos, recontextualizados para a
consecução dos fins políticos e sociais que certos educadores almejam para a
educação.

Uma das concepções presentes no paradigma piagetiano é que o desenvolvimento é


um percurso absolutamente individual, embora composto por determinados estágios
que vão sendo superados, uns pelos outros, segundo uma ordem necessária. A
realidade, embora já existente para o adulto, não é um dado para a criança; o real vai
sendo construído à medida que o sujeito interage com o mundo que o cerca, e o
conhecimento, portanto, torna-se uma construção feita por intermédio da ação,
melhor dizendo, da interação do sujeito com os objetos e com outros sujeitos. Pela
via da cooperação, cada indivíduo ascende ao patamar de onde visualiza a
materialidade do mundo físico e o caráter social das regras morais.

Esses postulados piagetianos tornam-se muito próximo das correntes educacionais


construtivistas e interacionistas, hoje tão bem aceitas quanto discutidas pelos
educadores. Mas, conforme já vimos assinalado por César Coll, a transposição do
paradigma piagetiano para a educação comporta duas grandes vertentes. Na primeira
– a "interpretação construtivista radical" –, o processo pedagógico prima pela
liberdade do aluno e pela ausência de imposições oriundas do professor. Isto será
melhor traduzido por um sistema de ensino em que o educando seja norteado
exclusivamente por seus interesses, que brotarão espontaneamente em
correspondência com o desenvolvimento de suas estruturas cognitivas; o que e como
estudar são questões a serem definidas unicamente pelo aluno, pressuposto que
implica a posição secundária dos saberes formalizados, tal como se encontram nas
matérias escolares, e o professor torna-se um facilitador da aprendizagem, perdendo
a primazia na disposição do conhecimento e na ordenação disciplinar dos alunos em
sala de aula.

Nessa posição extremada, somente uma escola orientada por princípios não-
diretivistas seria capaz de fornecer ao aluno a oportunidade de participar ativamente
na reelaboração do mundo. O conhecimento, os saberes objetivos e os valores
morais, já dominados pelo adulto, e pelo professor em particular, seriam deixados em
suspenso, não constituindo uma meta previamente formulada, posto que o mundo é
dado como permanentemente mutável. Tais elementos, entretanto, continuariam
compondo o horizonte a ser alcançado pela escola, pois é inegável que se espera
tornar a criança um ser inteligente e socializado; o que a pedagogia fundamentada
nessa visão construtivista se recusaria a fazer seria traçar o caminho para atingir
estes fins.

Na segunda vertente analisada por Coll tem-se algo diferente, no tocante às


finalidades sociais da educação. A consideração pelo professor, como responsável
pelo arranjo dos conteúdos em respeito às particularidades do desenvolvimento dos
alunos, revela a importância que é explicitamente dada aos saberes formalizados.
Compreende-se, neste caso, que elevar o educando à posição de indivíduo inteligente
e socializado não é algo que possa ser feito exclusivamente pela via da
espontaneidade de cada um, e que, para tanto, a cultura, a história e as noções
específicas de cada área do conhecimento precisam ser transmitidas de modo
sistemático.

Em última instância, trata-se de dois modos de conceber a relação do indivíduo com


a sociedade: no primeiro, acredita-se que baste prover um ambiente cooperativo e
livre para que as crianças desenvolvam certos requisitos da ordem social; no
segundo, esta crença no desenvolvimento espontâneo da sociabilidade não está
presente, tornando-se necessário promover condições objetivas para a consecução
do indivíduo socializado.

5. A ESCOLHA ENTRE PARADIGMAS NA EDUCAÇÃO

Os alunos que se preparam para a carreira docente, bem como os profissionais que
ingressaram recentemente no magistério, por certo ficam inclinados a adotar um dos
paradigmas da Psicologia para nortear sua prática pedagógica. Defrontam-se com
um conjunto de argumentos, críticos e elogiosos, cada qual situado no interior de um
paradigma em confronto com os demais. É preciso entender, antes de mais nada, que
o debate entre concepções científicas consiste na circularidade dos argumentos
postos em ação, uma vez que cada contendor toma o objeto em estudo a partir dos
referenciais que adota e que não compartilha com seus opositores. Semelhante ao
que ocorre no terreno das disputas políticas, segundo Kuhn, trava-se um "diálogo de
surdos":

Em um sentido que sou incapaz de explicar melhor, os proponentes dos paradigmas


competidores praticam seus ofícios em mundos diferentes. Um contém corpos que
caem lentamente; o outro pêndulos que repetem seus movimentos sem cessar. Em
um caso, as soluções são compostos; no outro, misturas. Um encontra-se inserido
numa matriz de espaço plana; o outro, em uma matriz curva. Por exercerem sua
profissão em mundos diferentes, os dois grupos de cientistas veem coisas diferentes
quando olham de um mesmo ponto para a mesma direção. (Kuhn, 1990, p.190).

No debate, não será vencedor o paradigma que demonstrar a maior competência


lógica de seus argumentos, nem aquele que exibir coerência suficiente para suportar
uma análise interna de seus pressupostos. Tampouco serão as atividades da ciência
normal que sagrarão um vitorioso, posto que os experimentos levados a cabo pelo
grupo de partidários do paradigma visam apenas ao "trabalho de limpeza" do mesmo,
conforme já visto acima.
A bem da verdade, o debate entre paradigmas, na circularidade de argumentos em
que se dá, visa essencialmente à persuasão dos ouvintes. "Na escolha de um
paradigma", diz Kuhn, "não existe critério superior ao consentimento da comunidade
relevante" (idem, p.128). Os estudantes são o alvo privilegiado do debate entre os
paradigmas científicos, sendo vitorioso aquele que conquistar mais adeptos, e não
necessariamente aquele que contiver maior número de "verdades". Enquanto
cientistas normais, os conquistados engrossarão suas fileiras, desenvolvendo
pesquisas, escrevendo teses e publicando artigos em revistas especializadas; irão
lutar por financiamentos das agências de fomento, criar veículos próprios para difundir
suas concepções paradigmáticas e, finalmente, formar novos adeptos que, por sua
vez, colocarão em prática a doutrina nos vários campos de atuação profissional.

E o que dizer dos cooptados que não se destinam às atividades de pesquisa científica,
como é o caso dos professores? Será preciso verificar em que medida eles
necessitam adotar um, e só um, paradigma e manter-se fiel a ele, como fazem os
cientistas normais. Os professores não são, a rigor, cientistas normais, especialmente
aqueles que seguem a carreira do magistério nos graus que antecedem ao ensino
superior. É certo que os docentes universitários o são, na maioria das vezes, na
medida em que, além de suas atividades de sala de aula, estão continuamente
envolvidos com projetos de pesquisa, sendo naturalmente levados, portanto, a optar
por um dos paradigmas científicos. Mesmo eles, na relação pedagógica que
estabelecem cotidianamente com seus educandos, não precisam portar-se de acordo
com as prescrições paradigmáticas. Podem pesquisar dentro dos limites de um
paradigma, contribuindo, assim, para o desenvolvimento da ciência normal, e atuar
na esfera do ensino sem as amarras impostas pelo mesmo. É sabido que nem todo
pesquisador comportamentalista utiliza rigidamente estratégias de reforçamento para
controlar a aprendizagem de seus alunos e que nem todo pesquisador da área da
Psicanálise transforma sua sala de aula num campo para interpretações sobre o
conteúdo do inconsciente dos que o cercam.

Aprende-se o ofício de pesquisador, durante os anos de formação universitária,


dentro de regras muito estritas que ditam a necessidade de seguir determinado
paradigma, e proceder deste modo, enquanto cientista normal, nos laboratórios e
gabinetes de pesquisa. Os trabalhos que o pesquisador realiza, os artigos e livros que
escreve, as comunicações científicas que apresenta em congressos, enfim, toda sua
produção é julgada dentro do arcabouço metodológico e lógico do paradigma ao qual
se filia. Seus pares são rigorosos, no tocante a isto, de modo que se tornam
inadmissíveis deslizes como falta de orientação teórico-metodológica e ausência de
pressupostos claros e objetivos. Muitos trabalhos acadêmicos ainda são
obrigatoriamente introduzidos por dezenas de páginas destinadas a mostrar suas
filiações, com citações e mais citações dos autores em que se fundamentam.

O ofício de ensinar, no entanto, é aprendido em contexto totalmente diverso. Embora


as ciências da educação estejam presentes na formação pedagógica, não há
qualquer exigência de que o professor venha a tomar atitudes condizentes com este
ou aquele paradigma científico dentro da sala de aula. A não ser excepcionalmente,
não há qualquer semelhança entre os laços que unem o pesquisador aos seus pares,
de um lado, e os vínculos que ligam o professor aos seus, de outro. Incoerências
metodológicas, ecletismo e falta de solidez teórica são "defeitos" somente detectados
quando o professor encontra-se submetido à análise crítica de seus gerenciadores
científicos – dentre os quais incluem-se os cientistas incumbidos de avaliar o ensino
com o intuito de contribuir para seu melhor funcionamento.

Em que pese a má qualidade de certos cursos de formação de professores, muitas


vezes de fato incompetentes para fornecer qualquer orientação científica aos
estudantes, penso que a questão central esteja localizada na natureza intrínseca do
trabalho pedagógico, que depende grandemente, queiramos ou não, das
características pessoais de quem o executa. Muito já se disse que ensinar é uma arte
e muito já se tentou, também, enquadrar esta arte nos domínios da tecnologia para
evitar que as flutuações subjetivas de quem ensina acabem por tornar-se o único
parâmetro da escola – empenho, aliás, que está presente no movimento educacional
renovador desde os anos vinte, pelo menos (cf. Cunha, 1995). Mas o que se observa
no dia-a-dia das salas de aula é que os professores possuem uma capacidade
insuperável para transformar os pressupostos de qualquer ciência da educação e
adequá-los às suas características e possibilidades pessoais.

Nada acrescento em contrário ao esforço empreendido para fornecer recursos


científicos aos professores, por meio de cursos de formação de quadros para o
magistério e projetos acadêmicos destinados a dar formação continuada a estes
profissionais; é de fato importante tornar a atividade pedagógica cada vez mais
sustentada na ciência, cada vez mais apoiada em paradigmas, psicológicos ou outros.
Evidentemente, é preferível ter na escola um professor que fundamente sua prática
em teorias discutidas e validadas do que alguém que se diga conduzido
exclusivamente pelo senso comum, pela intuição ou pela tradição cega. O que
interessa discutir aqui é o modo como os paradigmas são apresentados aos
professores. Excetuando-se o caso em que a formação desse profissional tenha em
vista finalidades científicas – quando tratar-se de integrá-lo a projetos de pesquisa ou
experimentações pedagógicas – penso que os conhecimentos compreendidos pelos
vários paradigmas devam ser ministrados juntamente com a explicitação de que se
trata de promover um debate – no sentido apontado por Kuhn – cuja definição
acontecerá no íntimo de cada educador. Mais ainda, que cada profissional irá
encontrar os critérios para julgar e escolher seu paradigma predileto no interior das
finalidades educacionais a que se filie, na discussão que possa desenvolver junto aos
que o cercam quanto aos destinos que esperam para as default fonts gerações de
crianças e jovens que educam.

Consequentemente, defendo que se deva atuar, na formação dos profissionais do


ensino, muito mais sobre o âmbito pessoal em que se dão as concepções relativas
às finalidades educacionais. Sem colocar em plano secundário as informações
científicas, deve-se trabalhar no terreno em que se constitui a consciência do futuro
professor como cidadão, pois é nesta arena que ele encontrará recursos para
escolher dentre as várias alternativas científicas que lhe forem apresentadas. Trata-
se de colocar o profissional da educação em condições de compreender que não é a
ciência que lhe dará o norte de sua atuação, pois as decisões pertinentes ao campo
da educação são da alçada exclusiva dos educadores.
6. SOBRE FINALIDADES EDUCACIONAIS

Com base na análise sucinta feita acima a respeito dos paradigmas aqui em foco, é
possível traçar um quadro, também sucinto, das finalidades educacionais. De um
lado, uma educação que coloca as exigências da sociedade como superiores às
flutuações do espírito do educando; de outro, uma educação que privilegia a liberdade
individual acima das imposições sociais. Postas desse modo, em extremos,
atualmente é possível descartar, sem receio, a primeira vertente, pois ela representa
um pensamento educacional que só sobrevive nas esperanças daqueles que sonham
com o retorno a um tempo perdido, um tempo em que não se admitia o fator humano
como parte integrante e indispensável da instituição de ensino.

Quanto ao outro extremo, que se inclina a exacerbar a liberdade do educando em


detrimento do saber formalizado nas matérias escolares, é preciso notar, antes de
mais nada, que é uma alternativa em que o educador exime-se de impor a seu aluno
um caminho, deixando à mercê da criança a escolha do destino a seguir. Se de fato
não há imposição explícita, é preciso admitir que esse mesmo educador é sempre
animado pela esperança de que seu educando vá trilhar um "bom" caminho, isto é,
que vá conseguir socializar-se adequadamente, tornar-se uma pessoa capaz de
respeitar o próximo, de acordo com as normas mais civilizadas de convivência, e que,
além disso, irá alcançar determinados padrões de conhecimento que lhe possibilitem
dispor de saberes úteis para sua vida – não necessariamente aqueles saberes
eruditos que a sociedade acumulou ao longo das épocas passadas.

Todas as experiências registradas pela bibliografia especializada que enaltece tais


preceitos metodológicos para a educação apresentam apenas resultados dignos de
aplauso. São crianças e jovens que chegam espontaneamente, sem ajuda diretiva do
professor, aos melhores princípios democráticos; compreendem e praticam uma ética
que rejeita atitudes racistas e preconceituosas; tornam-se solidários e cooperativos;
tudo isto, e muito mais, conseguido por meio da concessão para que os educandos
vivenciem experiências coletivas em que a liberdade seja o parâmetro fundamental.
Curiosamente, não são narradas ocorrências em que esta pedagogia tenha
produzido, por exemplo, estudantes armados em defesa do nazifascismo ou em
perseguição a grupos raciais minoritários (Cf. Snyders, 1974).

Pode-se considerar que a base de sustentação dessa pedagogia seja a esperança


de que um ambiente de liberdade conduza necessariamente a fins positivos e sadios,
o que não passa de uma esperança a ser confirmada empiricamente. Creio que seja
mais razoável pensar que os bons resultados da pedagogia não-diretivista devam ser
atribuídos ao fato de que ela não está disposta, verdadeiramente, a não dirigir os
alunos. Por trás das aparências, existe um professor que possui metas, por vezes mal
delineadas, que servirão de ponto de chegada para o "livre" aprendizado dos
educandos. Todo o aparato educativo centrado na pessoa torna-se, quando esta
pessoa é um aluno, uma arte de conduzir sem declarar que está conduzindo. Se não
for este o caso, somos levados a conclusões que dispensam maiores comentários: a
educação, abdicar de fins sociais e políticos, admite que formar cidadãos
democráticos tenha o mesmo valor que formar indivíduos racistas, pois o que importa
é que eles encontrem livremente o caminho a seguir. Resta, ainda, uma outra
possibilidade salvadora em que esta pedagogia poderá apoiar-se. Trata-se da crença
na afirmação de que cada pessoa possui uma diretriz previamente determinada a
encaminhá-la para o "bem". Como toda crença, esta passa ao largo de qualquer
modalidade de análise racional.

É importante notar, também, que toda educação formal precisa colocar o educando
em contato com a esfera "não-cotidiana", isto é, com habilidades e conhecimentos
que não podem ser adquiridos natural e espontaneamente pelo aprendiz. Dispensar
a ação educativa fundamentada nessa esfera é um recurso com o qual apenas a
educação informal, levada a cabo pela família, poderia contar, o que foi efetivo,
historicamente falando, numa época em que os saberes necessários à vida adulta
emanavam diretamente das relações sociais da criança com os mais velhos.3
Atualmente, dada a complexidade do cenário social, profissional e ideológico, a
pedagogia estaria fora de seu tempo ao insistir na possibilidade de educar crianças e
jovens partindo apenas da espontaneidade de seus espíritos, pois a esfera "não-
cotidiana" não emerge naturalmente da vivência "cotidiana".

Além disso, adotar a perspectiva extremada do não-diretivismo em educação significa


o educador abdicar de sua responsabilidade perante o mundo, de cuja construção,
bem ou mal, participa. Eximir-se de transmitir os conhecimentos que se encontram
consolidados nas matérias escolares é uma atitude somente aceitável por aqueles
que não veem sentido em tudo o que a humanidade já construiu. Vale lembrar, a
propósito, a análise feita por Hanna Arendt a respeito da crise na educação norte-
americana de algumas décadas atrás. Para a autora, o fracasso da educação
contemporânea deve ser compreendido em vista de alguns pressupostos, todos eles
equivocados, sobre a relação entre adultos e crianças e sobre o conceito de
autoridade. Em primeiro lugar, uma concepção acerca da separação entre a infância
e o mundo adulto, segundo a qual os mais jovens devem ser libertados dos adultos
em benefício das leis que regem o universo infantil. Uma vez emancipada da
autoridade dos mais velhos, diz Hanna Arendt, as crianças são

entregues à tirania de seu próprio grupo, contra o qual, por sua


superioridade numérica, elas não podem se rebelar, contra o
qual, por serem crianças, não podem argumentar, e do qual não
podem escapar para nenhum outro mundo por lhes ter sido
barrado o mundo dos adultos. A reação das crianças a essa
pressão tende a ser ou o conformismo ou a delinquência juvenil,
e frequentemente é uma mistura de ambos. (Arendt, 1972,
p.231)

O segundo pressuposto, estruturado "sob a influência da Psicologia moderna e dos


princípios do Pragmatismo" (idem, p.231), coloca o professor apartado da
necessidade de dominar a matéria que lhe cabe ensinar. Com isto, o trabalho de quem
ensina não repousa mais na posse de conhecimentos que o aprendiz não detém, o
que deixa este último abandonado a seus próprios recursos na tarefa de compreender

3 Esta discussão é muito bem desenvolvida por Newton Duarte (1993) em seu trabalho A
individualidade para-si, com base nos conceitos de Agnes Heller, e retomada pelo mesmo autor em
trabalho mais recente (Duarte, 1996).
o mundo. Este negligenciamento da coisa a ensinar em proveito dos métodos de
ensino assenta-se numa certa teoria da aprendizagem, o terceiro pressuposto
criticado por Hanna Arendt. Acredita-se que só é possível compreender alguma coisa
por meio da ação pessoal e única, ideia que, levada ao extremo, resultou no
descrédito total dos conhecimentos elaborados historicamente pela humanidade. A
educação, ao tornar-se promotora do desenvolvimento de habilidades, deixou de ser
fundamentada em conteúdos curriculares para fazer predominar o lazer e o
brinquedo, atividades características da infância.

Seja qual for a conexão entre fazer e aprender, e qualquer que seja a validez da
fórmula pragmática, sua aplicação à educação, ou seja, ao modo de aprendizagem
da criança, tende a tornar absoluto o mundo da infância exatamente da maneira como
observamos no caso do primeiro pressuposto básico. Também aqui, sob o pretexto
de respeitar a independência da criança, ela é excluída do mundo dos adultos e
mantida artificialmente no seu próprio mundo, na medida em que este pode ser
chamado de um mundo. Essa retenção da criança é artificial porque extingue o
relacionamento natural entre adultos e crianças, o qual, entre outras coisas, consiste
do ensino e da aprendizagem, e porque oculta ao mesmo tempo o fato de que a
criança é um ser humano em desenvolvimento, de que a infância é uma etapa
temporária, uma preparação para a condição adulta. (idem, p.233)

Ao mencionar o pensamento de Hanna Arendt, coloco ênfase no intrincado problema


da autoridade, tópico tão intensamente rejeitado por todas as modernas correntes da
pedagogia, especialmente por aquelas que se situam no polo extremo em que as
finalidades educacionais privilegiam o desenvolvimento do indivíduo acima das
imposições sociais. Hanna Arendt é taxativa, neste ponto. Segundo ela, é preciso que
o educador assuma sua parcela de responsabilidade pelo mundo que aí está,
"embora não o tenha feito e ainda que secreta ou abertamente possa querer que ele
fosse diferente do que é". No campo educacional, prossegue Arendt, "essa
responsabilidade pelo mundo assume a forma de autoridade" (idem, p.239). A
qualificação para ensinar – que depende do domínio dos conteúdos das matérias
escolares – engendra autoridade, sim, e esta encontra-se assentada
fundamentalmente no ato em que o educador assume-se como representante do
mundo adulto e por ele responsável, membro vivo do mundo a que a criança é
apresentada na condição de novo integrante.

Ao admitir que os conhecimentos acumulados pela sociedade não podem ser


desprezados e que a autoridade do professor é indispensável, inclinamos a educação
em favor da imposição da ordem social sobre o valor individual, colocando as
finalidades educacionais em oposição ao princípio de respeito à pessoa? Não, se
houver compreensão de que educar implica sempre um caráter conservador e, ao
mesmo tempo, transformador. A convivência entre conservação e transformação – de
difícil entendimento fora de uma perspectiva dialética – significa que a educação
precisa conservar para poder transformar. Não é possível superar este mundo,
construído pelos adultos e corroído a cada dia, sem que os alicerces desta construção
que desaba sejam assimilados e, em parte, aproveitados na edificação do novo.
Não basta, portanto, que os professores digam a seus alunos: "Eis o mundo! Ele é de
vocês, entendam-no da forma como seus desejos ordenarem, pois eu não me
responsabilizo pelo que aí está." Quem procede assim não pode, mais tarde, exigir
das novas gerações atitudes conscientes, críticas e transformadoras. Na esfera
política, em que adultos agem diante de iguais, o conservadorismo representa
estagnação, aceitação do status quo; por inércia, então, o mundo diariamente
corroído acabará por desabar. No âmbito da educação, diferentemente, em que
adultos convivem com crianças, seres recém-chegados a um universo desconhecido,
conservar traduz-se em oferecer um terreno sólido sobre o qual uma nova construção
poderá ter início.

Qual é o paradigma científico que contempla alguma contribuição para a consecução


destas finalidades? Nenhum deles, inteiramente, e todos eles, de certo modo. Se o
Comportamentalismo deixar de ser visto apenas com os olhos críticos que o
consideram propriedade dos sistemas autoritários, se a Psicanálise deixar de
representar um recurso facilitador da irracionalidade e do não-diretivismo, se as teses
piagetianas não forem adotadas como promotoras do espontaneísmo pedagógico,
enfim, se o educador tiver a ousadia de estudar cada contribuição científica e delas
apropriar-se segundo as metas sociais que possui e os compromissos que almeja
estabelecer com os educandos e com o mundo que os cerca, poderá encontrar nos
paradigmas psicológicos – e também nas contribuições de outras áreas científicas –
algo que seja útil a um projeto pedagógico renovador.

7. UMA APROPRIAÇÃO CONSTRUTIVISTA DOS PARADIGMAS DA PSICOLOGIA

Um interessante exemplo desse tipo de procedimento encontra-se no estudo de


César Coll e Isabel Solé, em que os autores definem sua concepção de
"construtivismo", não uma teoria, mas um "referencial explicativo" fundamentado na
"consideração social e socializadora da educação escolar". Esta definição torna-se
relevante por assumir que o construtivismo pode integrar "contribuições diversas",
desde que estejam alinhadas com os "princípios construtivistas", isto é, que haja
coerência quanto às finalidades propostas para a educação escolar (Coll & Solé,
1996, p.10). No caso, têm utilidade todas as "teorias que não oponham aprendizagem,
cultura, ensino e desenvolvimento; que não ignorem suas vinculações, mas que as
integrem em uma explicação articulada" (idem, p.14). Assim, é o projeto pedagógico
que comanda o arranjo das contribuições que chegam ao campo pedagógico, definido
este pelo acordo entre os educadores sobre o significado de seus componentes – a
escola, o indivíduo escolarizado, a posição do professor, dos conteúdos escolares e
da própria instituição formal de ensino diante da sociedade e da organização da
cultura.

Uma análise dos demais estudos que compõem o livro O Construtivismo na Sala de
Aula, em que o escrito de Solé e Coll encontra-se publicado, revela a concretização
dessa proposta. Nos trabalhos de Mariana Miras (1996) e de Teresa Mauri (1996) há
referências às "estruturas de conhecimento" e aos processos de "assimilação,
acomodação e equilibração", componentes do paradigma piagetiano, ao passo que
no artigo de Javier Onrubia (1996) vê-se a aplicação de conceitos vygotskyanos,
como "zonas de desenvolvimento proximal". No texto de Isabel Solé (1996), que
analisa o que conduz o indivíduo ao conhecimento e menciona processos afetivos e
motivacionais, encontram-se referenciais que não causariam estranheza a adeptos
da Psicanálise e de outros paradigmas envolvidos na busca dos determinantes mais
profundos da personalidade.

No livro Psicologia e Currículo, César Coll oferece outra demonstração desse mesmo
procedimento:

Ainda não dispomos de uma teoria compreensiva da instrução


com base empírica e teórica suficiente para ser utilizada como
fonte única de informação. (...) Ante esse estado de coisas, a
alternativa consiste em fugir tanto do ecletismo fácil, no qual
podem ser justificadas práticas pedagógicas contraditórias,
quanto do excessivo purismo que, ao centrar-se numa única
teoria psicológica, ignore contribuições substantivas e
pertinentes da pesquisa psicoeducativa contemporânea. (Coll,
1997, p.49-50)

A única exigência estabelecida por esse tipo de abordagem é que os princípios


integradores dessa pedagogia, embora possam apresentar-se discrepantes no
campo de sua produção original, vale dizer, no campo em que foram produzidos
enquanto paradigmas, sirvam para consagrar outros princípios, desta feita aqueles
definidos pela visão elaborada pelos educadores quanto às finalidades educacionais.
Coll assinala que qualquer proposta curricular "comporta sempre um projeto social e
cultural, uma visão do tipo de sociedade e de pessoa que se pretende promover com
a escola". Definindo a educação escolar como "uma atividade de natureza social com
uma função basicamente socializadora", o autor deixa clara a perspectiva que
comanda seu olhar sobre os paradigmas científicos:

A qualidade de uma proposta curricular depende, em última


instância, da qualidade do projeto social e cultural que reflete e
que contribui para tornar realidade através deste poderoso
instrumento de socialização que é a educação escolar. (idem,
p.30).

Nessa perspectiva, Coll rompe os limites tradicionalmente estabelecidos entre os


paradigmas psicológicos e suas aplicações à educação escolar para assimilar
contribuições as mais variadas, todas elas dirigidas para a composição de uma
proposta de currículo – elemento decisivo da prática pedagógica. Seu procedimento
consiste em depurar visões tradicionalmente estabelecidas quanto aos vínculos entre
a educação escolar e a Psicologia; desfaz associações que já eram dadas como
formalizadas, em benefício de compreender o desenvolvimento mais recente da área
e colocar estes novos saberes a serviço das finalidades educacionais expressas em
seu projeto pedagógico.4

4 Vale observar a análise do autor sobre a elaboração do planejamento educacional com base em
"objetivos de execução" (p.70 e segs.), tema tradicionalmente marcado por uma visão
comportamentalista e que é "recuperado" por Coll para servir à sua proposição construtivista.
Como julgar o construtivismo proposto por César Coll e os demais autores
mencionados? Os cientistas adeptos dos diversos paradigmas por eles agrupados
para constituir sua pedagogia poderão exasperar-se ao ver as teorias que adotam
colocadas lado a lado, redispostas, redefinidas, recontextualizadas, posto que é
comum encontrá-las em conflito umas com as outras, no eterno "diálogo de surdos"
a que se refere Thomas Kuhn. Os professores, entretanto, deverão verificar em que
medida tal alinhamento de princípios científicos consegue ser efetivo para atingir as
metas estritamente pedagógicas que propõem. Visto que estas metas situam a
educação escolar como prática social e socializadora, a indagação relevante
transfere-se do debate entre paradigmas para a arena filosófica e política, em que a
educação escolar é vista na qualidade de uma prática – ou, quem sabe, uma ciência
da prática – formadora de indivíduos/cidadãos para atuar diante dos desafios postos
pela sociedade.

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