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O início da vida política

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capítulo 32
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O século de Péricles, pintura de Philipp von Foltz,


de 1853. Durante o século V a.C., em Atenas,
floresceram sob o governo de Péricles o urbanismo,
a arquitetura, o teatro, a filosofia e a democracia.

A invenção da política casta fechada em si mesma, porém aberta à incorpora-


ção de novas famílias e de não proprietários agrários
O surgimento da cidade enriquecidos no comércio.
Quando se afirma que os gregos e romanos inventa- Apesar das diferenças históricas na formação da
ram a política, não se quer dizer que, antes deles, não Grécia e de Roma, há três aspectos comuns a ambas e
existiam o poder e a autoridade. O que se quer dizer é decisivos para a invenção da política. O primeiro é a
que inventaram o poder e a autoridade propriamente forma da propriedade da terra; o segundo, o fenô-
políticos, ou seja, que substituíram o poder despótico meno da urbanização; e o terceiro, o modo de divi-
ou patriarcal exercido pelo chefe de família sobre um são territorial das cidades.
conjunto de famílias a ele ligadas por laços de depen- Como a terra não pertencia nem à aldeia nem ao rei,
dência econômica e militar e por alianças matrimoniais. mas às famílias independentes, e como as guerras amplia-
Nessa forma de poder anterior, a relação era pessoal, e vam o contingente de escravos para a lavoura, os não es-
o chefe garantia proteção enquanto os súditos lhe ofe- cravos e não proprietários agrários formaram, na Grécia e
em Roma, uma camada pobre de camponeses que mi-
reciam lealdade e obediência.
graram para as aldeias. Ali estabelecidos como artesãos e
Embora, no começo, gregos e romanos tivessem co-
comerciantes, prosperaram, transformaram as aldeias em
nhecido esse tipo de organização, um conjunto de medi-
centros urbanos e passaram a disputar o direito ao poder
das foi tomado pelos primeiros dirigentes — os legislado-
com as grandes famílias agrárias. Uma luta de classes per-
res — de modo a impedir a concentração dos poderes e
passa a história grega e romana exigindo solução.
da autoridade nas mãos de um rei, senhor único da terra,
da justiça e das armas, representante da divindade.
Para evitar tal concentração dos poderes econômi- déspota
co, judiciário, militar e religioso, a propriedade da terra , que significa
não se tornou propriedade régia ou patrimônio priva- Palavra originada do grego despotês
lia’. Este tinha pod er de vida e morte
‘chefe da famí
do de um rei nem propriedade comunal ou da aldeia, e sua vontade era
sobre todos os membros da família,
desp ótico é aque le no qual o
mas manteve-se como propriedade de famílias inde- lei. Portanto, um poder
unid ade tem sobr e ela o mes mo poder
pendentes. Estas, peculiarmente, não formavam uma chefe da com
lia tinha sobr e esta.
pessoal que o chefe da famí

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A política
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unidade XII

Em termos econômicos e sociais, a urbanização co- E separaram a autoridade militar e o poder civil, su-
locava em confronto não só proprietários agrários, de bordinando a primeira ao segundo. Isso não signifi-
um lado, e artesãos e comerciantes, de outro, mas tam- ca que em casos como os de Esparta e Roma o po-
bém a massa de assalariados da população urbana, ge- der político não fosse também militar, mas sim que
nericamente chamados “os pobres”. as ações militares deviam ser primeiramente discu-
A luta de classes incluía, assim, lutas entre os ricos e tidas e aprovadas pela autoridade política (as as-
lutas entre ricos e pobres. Tais conflitos decorriam de sembleias, em Esparta; o Senado, em Roma) e só
que todos os indivíduos participavam das guerras ex- depois realizadas;
ternas, tanto para a expansão territorial como para a E separaram a autoridade mágico-religiosa e o poder
defesa de sua cidade, formando as milícias dos nativos temporal laico, impedindo tanto a divinização dos
da comunidade. Com isso, todos se julgavam no direito governantes quanto sua transformação em sumos
de intervir, de algum modo, nas decisões econômicas e sacerdotes;
legais de suas comunidades. E criaram a ideia e a prática da lei como expressão de
A luta das classes pedia uma solução. Essa solução uma vontade coletiva e pública, definidora dos di-
foi a política, que transformou as comunidades urba- reitos e deveres para todos os cidadãos, impedindo
nas em cidades propriamente ditas. que fosse confundida com a vontade pessoal de
Os primeiros chefes políticos, também conhecidos um governante.
como legisladores, introduziram uma divisão no territó- Ao criarem a lei e o direito, gregos e romanos afir-
rio das cidades, visando diminuir o poderio das famílias maram a diferença entre o poder político e todos
ricas agrárias, dos artesãos e comerciantes urbanos ricos os outros poderes e autoridades existentes na so-
e satisfazer a reivindicação dos camponeses pobres e dos ciedade. Isso porque conferiram a uma instância
artesãos e assalariados urbanos pobres. Em Atenas, por impessoal e coletiva o poder exclusivo ao uso da
exemplo, a pólis foi subdividida em unidades sociopolíti- força para punir crimes, reprimir revoltas e para
cas denominadas demos; em Roma, em tribus. vingar com a morte, em nome da coletividade, um
Quem nascesse num demos ou numa tribus, inde- delito julgado intolerável por ela. Em outras pala-
pendentemente de sua situação econômica, tinha asse- vras, retiraram dos indivíduos o direito de fazer jus-
gurado o direito de participar direta ou indiretamente tiça com as próprias mãos e de vingar por si mes-
das decisões da cidade. mos uma ofensa ou um crime. O monopólio da
No caso de Atenas, todos os cidadãos naturais do força, da vingança e da violência passou para o Es-
demos tinham o direito de participar diretamente do tado, sob a lei e o direito.
poder, donde o regime ser uma democracia. E criaram a instituição do erário público ou do fundo
Em Roma, os não proprietários ou os pobres formavam público, isto é, dos bens e recursos que pertencem
a plebe, que tinha o direito de eleger um representante — à sociedade e são por ela administrados por meio
o tribuno da plebe — para defender e garantir seus inte- de taxas, impostos e tributos. Assim, impediram a
resses junto aos interesses e privilégios dos que participa- concentração da propriedade e da riqueza nas
vam diretamente do poder, os patrícios, que constituíam mãos dos dirigentes;
o populus romanus. O regime político romano era, assim, E criaram o espaço político ou espaço público — a
uma oligarquia. Assembleia grega e o Senado romano —, no qual
os que possuíam direitos iguais de cidadania discu-
Os principais traços da invenção da política tiam suas opiniões, defendiam seus interesses, deli-
beravam em conjunto e decidiam por meio do
Rompendo com o poder despótico, gregos e roma- voto, podendo, também pelo voto, revogar uma
nos inventaram o poder político porque: decisão tomada. É esse o coração da invenção polí-
E separaram a autoridade pessoal privada do chefe de tica. De fato, as marcas do poder despótico eram a
família — senhorio patriarcal e patrimonial — e o deliberação e a decisão a portas fechadas. A políti-
poder impessoal público, pertencente à coletivida- ca, ao contrário, introduz a prática da publicidade,
de; separaram o privado do público e impediram a isto é, a exigência de que a sociedade seja informa-
identificação do poder político com a pessoa de da, conheça as deliberações e participe da tomada
um governante; de decisão.

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capítulo 32
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Cícero, no Senado,
acusando Catilina de
conspiração. Este afresco de
Cesare Maccari (1840-1919),
de 1889, retrata o episódio,
ocorrido em outubro
do ano 63 a.C. Palazzo
Madama, Roma.

O nascimento do espaço público de discussão, de- dos césares) falaram em corrupção e decadência da
liberação e decisão significou que a sociedade se política: para eles, o desaparecimento da pólis e da res
abria aos acontecimentos, que as ações não eram publica significava o retorno ao despotismo e o fim da
mais estabelecidas de uma vez por todas por algu- vida política propriamente dita.
ma vontade transcendente, que erros de avaliação Evidentemente, não devemos cair em anacronismos,
e de decisão podiam ser corrigidos, que uma ação supondo que gregos e romanos instituíram uma socie-
podia gerar problemas novos, não previstos nem dade e uma política cujos valores e princípios fossem
imaginados, os quais exigiam o aparecimento de idênticos aos nossos.
novas leis e novas instituições. Em primeiro lugar, a economia era agrária e escravis-
Por isso mesmo, gregos e romanos tornaram a po- ta, de sorte que uma parte da sociedade — os escravos
lítica inseparável do tempo e também conceberam a — estava excluída dos direitos políticos e da vida políti-
ação política ligada à noção do possível. Com isso, ca. Em segundo lugar, a sociedade era patriarcal; conse-
não só conceberam e praticaram a política como ação quentemente, as mulheres também estavam excluídas
humana (e não como cumprimento de decretos divi- da cidadania e da vida pública. A exclusão atingia tam-
nos perenes ou eternos), como também inauguraram a bém os estrangeiros e os miseráveis.
ideia e a prática da criação contínua da realidade social A cidadania era exclusiva dos homens adultos livres
ou de sua transformação — isto é, a história. nascidos no território da cidade. Além disso, a diferen-
ça de classe social nunca era apagada, mesmo que os
O significado da invenção da política pobres tivessem direitos políticos. Assim, para muitos
Para responder às diferentes formas assumidas pela cargos, o pré-requisito da riqueza vigorava e havia mes-
luta de classes, a política é inventada de um modo que, mo atividades portadoras de prestígio que somente os
a cada solução encontrada, um novo conflito ou uma ricos podiam realizar. Era o caso, por exemplo, da litur-
nova luta podem surgir, exigindo novas soluções. Em gia grega e do evergetismo romano, isto é, de grandes
lugar de reprimir os conflitos pelo uso da força e da vio- doações em dinheiro à cidade para festas, construção
lência das armas, a política aparece como trabalho legí- de templos e teatros, patrocínio de jogos esportivos, de
timo dos conflitos, de tal modo que o fracasso nesse trabalhos artísticos, etc.
trabalho torna-se a causa do uso da força e da violência. O que procuramos apontar não foi a criação de
A democracia ateniense e as oligarquias de Esparta uma sociedade sem classes, justa e feliz, mas a inven-
e da República romana fundaram a ideia e a prática ção da política como solução e resposta que uma
da política na cultura ocidental. Eis por que os histo- sociedade oferece para suas diferenças, seus confli-
riadores gregos (quando a Grécia caiu sob o domínio tos e suas contradições, sem escondê-los sob a sa-
dos impérios da Macedônia e de Roma) e os historia- cralização do poder e do governante e sem fechar-se
dores romanos (quando Roma sucumbiu ao império à temporalidade e às mudanças.

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