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RESUMO
A temática desta pesquisa é o modelo edcuativo de Rei Édipo, na busca pelo cidadão
ideal para a polis. Para explorar esse assunto se tem como fonte primária a peça Rei
Édipo (430/429 a.C.). Tragédia esta encenada em Atenas no século V a.C. Pela análise
da peça é possível compreender o papel do poeta enquanto educador do seu povo e
da tragédia utilizada como um instrumento para educar o cidadão e formar o homem da
polis grega. Assim, objetivo geral deste estudo é mostrar a importância da personagem
de Édipo e como o tragediógrafo propôs através dela um modelo de cidadão ideal para
viver na cidade. Desta maneira, esta análise da peça sofocliana propõe uma discussão
sobre a função social e o papel educativo da tragédia, possibilitando compreender as
contribuições formativas que esse gênero teve na antiguidade. Esta pesquisa também
se justifica por contribuir, sem a pretensão de esgotar o tema, buscando mostrar a im-
portância da tragédia grega para as pesquisas em estudos clássicos e em história da
educação, tendo a literatura como fonte.
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INTRODUÇÃO
Édipo não é apresentado tal como no mito, isto é, como filho do destino (ty-
che), como o bem-aventurado que é acometido pelo acaso, que conquista um
reino como estrangeiro, mas sim como o virtuoso, o comandante, o auxiliador,
o salvador, o homem de natureza real, amparado pelo favor dos deuses, que
não age em causa própria, porém a favor de todos e cuja palavra é a mesma
para todos (REINHARDT, 2007, p. 116).
Como governante tem o respeito do povo e procura estar atento ao que acontece nos
seus domínios, para se manifestar solidário com seus comandados sempre que seja preciso
que haja a sua intervenção no processo de manutenção da ordem.
A atenção de Édipo parece não se desviar dos assuntos referentes à cidade. Está
sempre atento, como um governante que zela pelo povo, sem descansar. Como um pai
cuidadoso, ele está atento aos filhos, “Meus filhos, nova geração do antigo Cadmo” (1), num
comportamento afetivo e diligente na relação do governante para com seus governados. E por
mais uma vez, ao dirigir-se aos cidadãos, Édipo refere-se a eles como seus filhos (58).
Esse tratamento pode expressar uma preocupação do herói para com a cidade pela
qual é responsável, bem como também apresenta certo paternalismo de Édipo para com os
cidadãos tebanos, o que remete à ideia da antiga forma de organização social gentílica grega
regulada pelo genos, onde o chefe patriarcal era o líder supremo da comunidade: “Nessa
antiguidade, o pai não é só o homem forte que protege e também tem o poder de se fazer
obedecer; ele é o sacerdote, o herdeiro do fogo sagrado, o continuador dos avós, o tronco
dos descendentes, o depositário dos ritos misteriosos do culto” (COULANGES, 2009, p. 101).
Sua autoridade, legitimada por um poder metafísico e sublimada pela crença em sua
proximidade com as forças divinas, colocava-o como o detentor e intérprete do conhecimento
transmitido pelos deuses e não pelas manifestações “da ciência dos auspícios” (398): “Ao
receber o cetro, o chefe do genos recebeu também o conhecimento das Themistes, sentenças
1 A partir deste momento, nas citações feitas à peça Rei Édipo de Sófocles serão apresentadas apenas a numeração dos versos cor-
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respondentes ao texto fonte utilizado como referência.
2 Segundo Jaeger (1979, p. 289), Prometeu é o que traz a luz à humanidade sofredora. O fogo torna-se o símbolo sensível da cultura.
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Prometeu é o espírito criador da cultura.
Entretanto, quando sua atuação e ações dependem da sua natureza humana, do ser
individual, guiado pelos instintos, Édipo demonstra não ser um homem tão seguro e pru-
dente nas escolhas. É na busca pela sua origem e identidade que parece deixar de lado as
virtudes elevadas, para colocar-se diante do maior temor e do enigma a ser revelado, que
o mesmo não consegue desvendar: “conhece-te a ti mesmo”. É nesse momento que deixa
manifestar a natureza que o domina: “Sob grande provocação é capaz de uma fúria terrível
e aparentemente incontrolável e pode, se bem que com rancor e dificuldade, subjugar sua
raiva quando se vê isolado do seu povo” (KNOX, 2002, p. 22).
A ambiguidade do herói na relação com as virtudes supracitadas como governante ideal,
responsável pela cidade, e da fragilidade provocada por certos rompantes de violência que
o desestabilizam, leva-o a um estado de conflito. Esse conflito deixa uma dúvida sobre a
potencialidade do herói, ainda que excepcional: se será capaz de cumprir de maneira plena
a sua função citadina de acordo com os princípios morais e as leis, sem deixar-se guiar por
seus instintos, responsáveis pela desarticulação da cidade.
No entanto, a maioria dessas ações demonstra as virtudes de um cidadão. Os momen-
tos de rompante não são resultado de uma intencionalidade do herói, mas aparentam atos
impulsivos de autodefesa. O que significa que sua pena não é uma pena moral, e a peça, que
poderia parecer uma história de castigo de uma personagem amoral, torna-se uma amostra
de como o homem, com todas as fragilidades e limites, deve assumir as responsabilidades
por suas ações ante a sociedade, sejam quais forem as consequências. Mesmo que estas
consequências sejam impostas por um destino – pois não foram as mãos dos deuses que
mataram Laio, mas as de Édipo. Os deuses apenas impuseram um dilema na vida dos
homens: a previsão de que se o antigo rei tebano tivesse um filho, este o mataria. Foi um
homem (Laio) que, ao fazer a sua escolha tendo um filho – desrespeitando a vontade divina
de Apolo –, acabou ele próprio causando sua destruição e, consequentemente, acarretando
o destino trágico de Édipo.
Dodds (1991, p. 180) apresenta sua defesa contra um “juízo moral”, a ideia de que
seria um absurdo pensar num tipo de “justiça poética” segundo a qual o poeta teria a obri-
gação de representar o mundo com uma conjectura moralizante onde “os bons são sempre
recompensados e os maus são punidos”. No entanto, a discordância da tese de Dodds está
apoiada na ideia de que o dever moral não é apenas uma questão de ética para o grego.
Mas é antes, para o homem da polis, uma questão de manutenção da ordem social numa
sociedade em constantes conflitos internos e externos, como os vividos pelos atenienses
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no período clássico. Não é uma questão de separar os bons dos maus, ou representar um
mundo onde quem faz o bem tem recompensa e os maus pagam por seus crimes; trata-se
de transmitir um conceito de comportamento que poderia levar à organização ou desorga-
nização da ordem posta.
A questão moral em Édipo – e nesse caso há concordância –, não pode ser tomada
numa visão geral da peça. Édipo tem uma postura de herói exemplar, o modelo que ensina
e forma o bom cidadão, pois não rompe com sua característica elevada nem mesmo diante
da queda trágica, aceitando o castigo e pagando a pena pelo seu crime, pois disso depende
a liberdade da cidade.
Ainda segundo Dodds, a peça de Sófocles não pode ser entendida como um conflito
moral, pois o destino já havia traçado o caminho do herói: “Algumas ações passadas de
Édipo estavam ligadas ao destino” (DODDS, 1991, p. 182). Knox também apresenta essa
ideia, ao afirmar que a existência de uma presciência divina e a inabilidade humana de
maneira alguma pode ser confundida ou atribuída a um “defeito moral” do herói sofoclia-
no. O mesmo autor destaca que o tragediógrafo enfatiza, na segunda metade da peça, um
Édipo decaído, cego e maculado, mas que não perde os traços do caráter do tirano do início
da peça. A afirmação de Knox se apoia na posição de Sófocles que, segundo ele, ao criar a
personalidade imutável da sua personagem, não pode ser condenado por uma incapacidade
do grego do século V a.C. em “[...] conceber ou apresentar uma mudança de personalidade
[...]” (KNOX, 2002, p. 40) do herói, mas uma forma de enfatizar que o seu “caráter” não foi
o responsável pelos erros cometidos:
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Knox (2002, p. 15) também sublinha a autoconfiança do herói sofocliano, chamando a
atenção para ela como uma desconfiança em relação à competência dos outros cidadãos,
bem como para uma autossuficiência que o leva a acreditar que somente ele tem a capaci-
dade para liderar e resolver os problemas da sociedade. Isso é marcado na peça pelo ex-
cessivo uso da primeira pessoa em suas falas. O comentador chama a atenção para o uso
do pronome eu (ego) nos primeiros 150 versos da peça, onde Édipo, por quatorze vezes,
termina um verso com ‘eu’ ou ‘meu’, e outros quinze versos que a personagem protagonista
inicia com os mesmos pronomes (KNOX, 2002, p. 16).
A autossuficiência de Édipo, que o leva a uma crença exagerada em si mesmo, é
amparada e comprovada pelas suas conquistas bem-sucedidas do passado, o que lhe
dá sustentação para acreditar também numa vitória futura: que ele possa outra vez sair
vencedor desse novo desafio que se apresenta. Entretanto, isso não pode ser entendido
como uma falha ou defeito moral, mas como limitação do conhecimento do herói, que não
aceita ou não consegue ter consciência dos seus limites como ser humano, mesmo sendo
um homem especial.
O herói também demonstra essa autossuficiência que o leva a cometer alguns desvios
de conduta no tratamento dispensado aos diversos setores sociais, não só no plano político,
mas também de ordem religiosa e familiar.
A reflexão de ordem religiosa mostra que o governante prudente, submisso aos deuses
(147) e que para tudo consulta os oráculos, é o mesmo homem imprudente que tenta evitar
o cumprimento dos desígnios divinos da mesma forma como fizera seu pai. É esta tentativa
de enganar o destino, iniciada por Laio e continuada por Édipo, que potencializa ainda mais
as consequências sofridas, estendendo-se não só aos causadores, mas a tudo que está ao
seu redor: à família dos Labdácidas e à cidade de Tebas.
Dodds, contudo, afirma que na poesia épica de Homero e na peça sofocliana, o homem
com virtudes elevadas não é um agente passivo diante da “divina presciência” (182). Mesmo
quando os eventos são impostos pela Moira, o herói elevado atua como agente humano livre
que reage ao destino: “[...] tudo o que ele faz em cena do primeiro ao último momento faz
como um agente livre” (DODDS, 1991, p. 182). Assim, não são suas ações apenas reflexas,
predeterminadas por uma força ou vontade divinas.
O destino não pode ser entendido, segundo Romilly (2008, p. 111), como uma con-
denação deliberada sobre a qual o homem nada pode fazer. Os acontecimentos são para
esse homem uma prova. Cabe a ele mostrar sua grandeza, ou então fraqueza, na maneira
em que irá reagir a esta prova. Isto é, apesar do destino, o homem detém um livre-arbítrio
de como irá conduzir a sua vida até este destino. Assim como todo homem é destinado à
morte, este tem a liberdade para ponderar como irá gerir a sua existência até ao fim.
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Segundo Reinhardt, para Sófocles ou mesmo para os gregos arcaicos o destino já não
era uma determinação, mas sim um “[...] desdobramento espontâneo das forças demoníacas”
(REINHARDT, 2007, p.119). E continua dizendo que o Rei Édipo, diferentemente de outras
peças, não é uma tragédia sobre destino, mas sobre aparência humana, na qual o Coro em
nenhum momento canta o destino, mas sim essa aparência:
Knox é mais incisivo ao negar que a peça sofocliana possa ser entendida de alguma
maneira como uma “[...] tragédia de destino” (KNOX, 2002, p. 1), pois segundo ele, “O ‘des-
tino’ não desempenha nenhuma função nas ações de Édipo na peça” (p. 4). Isso porque
nenhuma “[...] quantidade de riqueza simbólica” (p. 3) poderia criar tal efeito dramático, como
na peça de Sófocles, sem que esta tivesse os pré-requisitos essenciais de livre-arbítrio e
responsabilidade do homem diante de suas decisões e ações: “A tragédia deve ser autos-
suficiente: isto é, a catástrofe deve ser resultado da livre decisão e da ação (ou inação) do
protagonista trágico” (KNOX, 2005, p. 3).
Nesta perspectiva, Vernant defende a concepção de que a ação humana é uma es-
pécie de desafio ao futuro, a si mesmo e aos deuses. Isso porque este mesmo homem se
encontra constantemente em risco de cair numa armadilha das próprias decisões e não
de um destino imposto pelos deuses, mesmo porque, para ele, “[...] os deuses são incom-
preensíveis. Quando por precaução os interroga antes de agir e eles acedem em falar, a
sua resposta é tão equivocada e ambígua quanto a situação sobre a qual seu conselho é
solicitado” (VERNANT, 2011b, p. 21).
A virtude do herói, consequentemente, está em assumir as ações e responsabilidades
que conduzem ao seu destino, mesmo que sejam estas trágicas. Édipo é um exemplo dessa
personagem trágica, pois tem esse posicionamento, ao dizer que ninguém mais – nenhum
deus ou nenhum homem – foi responsável pela forma como ele trilha seu caminho, a não
ser ele mesmo (1329-1335). Com essa atitude, o herói assume a condição de educador do
seu povo e mostra-se senhor da sua vida, apesar do fim que lhe parece reservado.
A queda trágica provocada pela imposição divina de um destino mostra uma certa
inocência do herói, que sofre as consequências da maldição imposta por Apolo a Laio e a
sua futura geração. No entanto, Édipo é uma espécie de prova ou modelo da ambiguidade
da inocência: ele é inocente na sua responsabilidade como ser social, porque os crimes que
cometeu são alheios a sua “vontade”. Mas como ser humano não é inocente: é portador de
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defeitos que são próprios da physis humana e, no seu caso, até do genos a que pertence,
com a herança e maldição familiar que carrega.
Assim, mesmo diante de sua inocência – enquanto submisso à Moira – e grandeza –
enquanto agente de suas ações –, o herói não deixa de dar passos em falso na procura pela
solução dos problemas da cidade. Ou ainda na busca de sua verdadeira origem, que não é
sua primeira preocupação, mas se impõe perante a convergência que esta revelação tem com
o objetivo inicial: “[...] na peça escrita por Sófocles, a vontade do herói é inteiramente livre e
ele é totalmente responsável pela catástrofe. [...] A catástrofe de Édipo é descobrir sua própria
identidade; e ele é o primeiro e o último responsável por esta revelação” (KNOX, 2002, p. 3).
E, ao fazê-lo, Édipo assume o seu destino como parte da sua existência. Sua von-
tade, sua ação como um agente livre, revelam ter tanta força quanto o destino que lhe é
imposto pelos deuses: “A causa imediata da ruína de Édipo não é ‘Destino’ ou ‘deuses’;
[...] o que provoca a sua ruína é a sua própria força e coragem, a sua lealdade para com
Tebas, e sua lealdade à verdade. Em tudo isto estamos a vê-lo como um agente livre”
(DODDS, 1991, p. 183).
Desta maneira, a grandeza de Édipo está no fato de aceitar a sua condição humana,
reconhecer os erros que comete e atuar com superioridade diante dos males que o castigam,
exemplo que deveria ser seguido pelos cidadãos.
As condutas desmedidas, ou sua hybris, estão na não aceitação das previsões do
oráculo ou na dificuldade de enfrentar a verdade – no caso da revelação da sua culpa diante
do crime cometido contra o antigo rei tebano, Laio. Nos momentos em que Édipo se depara
com novos oráculos, ou com suas revelações – o homem embriagado no banquete (778), ou
Tirésias (362) – e tenta fugir às previsões, suas atitudes são imprudentes. Consequentemente
o herói é conduzido a cometer a hybris por suas próprias ações.
As atitudes imprudentes do herói também se revelam diante da busca pela manuten-
ção da honra e do poder. A primeira se baseia na desconstrução do que foi construído por
Édipo ante seu povo, que o escolhera e o admirava pelas suas virtudes: é a vaidade humana
que procura preservar a honra, tão prezada para o grego. A segunda é pautada pelo receio
de perder o trono. Isso mostra um soberano inseguro na relação com um poder que apa-
rentemente não lhe é legítimo, por ter sido oferecido como recompensa pela vitória contra
a esfinge e não por uma regra de sucessão – pois esta ainda lhe era desconhecida. Essa
insegurança provocada por uma possível crença da ilegitimidade, já que desconhece ser o
filho de Laio, do poder e do trono que ocupa leva o tirano a tomar atitudes imprudentes em
nome da sua busca de autoafirmação como rei.
Édipo também demonstra uma tendência impulsiva para excessos de violência e ir-
racionalidade, como algo que é herdado do pai. Da mesma maneira que Laio apresenta
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a personalidade violenta e irracional quando se encontra acuado diante do destino – no
sacrifício do próprio filho, ou no encontro com o estranho na encruzilhada de três estradas
– Édipo revela as mesmas características paternas.
Mostra-se impulsivo e irracional em vários momentos, ao deparar-se com situações que
fogem ao seu domínio, cometendo atos violentos como, por exemplo, no encontro com Laio
na encruzilhada o que causa a morte do segundo; ou no debate com Tirésias, que revela sua
culpa no assassinato do antigo rei tebano e desta maneira encoleriza o herói (345) – Édipo
expulsa-o de sua presença sob a ameaça de que o agrediria, se não fosse “sua figura de
velho” (401-403) –; ou ainda no embate com Creonte, o qual acusa de conspirar contra sua
autoridade e de querer roubar-lhe o trono (541-542), expulsando-o da cidade sob ameaça
de morte: “CREONTE: Que desejas, enfim? Expulsar-me desta terra?/ ÉDIPO: De modo
algum! Que morras, não que fujas, é o que eu desejo” (622-623). Estas atitudes humanas,
impulsivas e imprudentes não são condizentes com a condição de governante ideal desejado
pelos cidadãos, mas estão enraizadas na sua natureza, como uma condição hereditária. São
também contradições próprias de um processo de transformação social feita de incertezas,
ambiguidades e contradições do qual a personagem de Édipo serve como exemplo ao as-
sumir a sua historicidade. Logo, o herói considerado mais sábio dos tebanos revela não ter
somente virtudes elevadas, nem possuir todas as respostas, principalmente no que tange
a sua vida. Ele é venerado pelo povo como uma entidade superior, mas se revela como um
ser com limitações diante da condição humana. Encontra-se fragilizado e submisso a uma
força maior que tudo procura ordenar, ou desordenar, de acordo com suas vontades.
Mesmo acreditando que possui o poder de tudo conhecer e tudo enxergar, acaba
descobrindo uma limitação; que a sua visão não tem o alcance necessário para entender
todos os fatos que lhe estavam escondidos, principalmente os ocultos nas sombras da sua
existência: “Certamente o Rei Édipo é uma peça sobre a cegueira do homem e a inseguran-
ça desesperada da condição humana: em um sentido todo homem deve tatear no escuro
como Édipo tateia, sem saber quem é ou o que tem de sofrer” (DODDS, 1991, p. 187).
Somente com a revelação de sua origem é que Édipo se depara com a luz que esclarece
a sua existência amaldiçoada (1183-1185), o que culmina com seu ato simbólico de cegar
os próprios olhos (1268-1270). Isso demonstra que o mundo dos sentidos se lhe apresenta
totalmente desconhecido: o estrangeiro em sua própria terra; uma desgraça para a própria
casa; um sábio que desconhece a si mesmo; um caçador que caçara a si mesmo; um guia
para a cidade, mas que na verdade é um cego no que se refere à sua existência e que acaba
necessitando de um guia para poder cumprir o seu destino.
Entretanto, mesmo diante dos sofrimentos, o herói não recua até cumprir o papel de
servir como um exemplo à audiência, ainda que para isso tenha de ir ao extremo dos seus
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limites: “Mesmo o desespero dos heróis, em Sófocles, mantém uma nobreza ativa que lhes
permite triunfar enquanto são abatidos” (ROMILLY, 2008, p. 111). Nessa nobreza é que
se destaca a característica educativa da personagem sofocliana – marca acrescentada
ao mito pelo autor –, que não cumpriu a pena capital, e nem permaneceu junto à cidade –
como outras narrativas do mito fazem crer –, por ser ele o motivo da mácula e da ira dos
deuses contra Tebas.
A autopunição de Édipo é outro fator de virtude da personagem e mostra um homem
que carrega a culpa de crimes provocados por situações impostas por uma força maior que
ele, as quais não consegue evitar, pela limitação e pela incapacidade de enxergar a existên-
cia para além do mundo sensível. Todavia, a penalidade sofrida é consequência da culpa
que o herói carrega em si pelos crimes cometidos, mesmo que involuntariamente pela sua
cegueira existencial, contra outros, parentes ou cidadãos: o parricídio, o incesto, as falsas
acusações, a peste em Tebas. O ato de cegar os próprios olhos apresenta um significado
subliminar da virtude do herói, que na desgraça tem os sentidos ampliados. Édipo, agora
cego para tudo que o cerca no mundo físico – “Olhar-vos, já não posso” (1486) – passa a
enxergar de maneira clara – num plano superior – qual a sua real condição (1325-1326):
não a de um governante que conduz a cidade com altivez e orgulho, mas de um cidadão
modelar que, para livrá-la do sofrimento, tem de sofrer em seu lugar, no exílio (1518). Édipo
o faz porque ele é o único “entre os mortais capaz de suportar tamanhos males” (1413-1415),
bem como de tamanha nobreza.
Desta maneira, segundo Fialho, a peça de Sófocles é uma tragédia na qual o autor
quis “[...] mostrar o Homem como o ser votado a ultrapassar a sua própria queda” (2010,
p. 29), mostrar sua verdadeira condição humana e a grandeza na maneira por que reage
diante do destino e da sua existência. Édipo é o modelo a ser seguindo por todo cidadão da
polis, pois sua nobreza não está atrelada apenas ao seu laço de sangue, mas a sua própria
condição humana e de cidadão.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O que esta análise da obra sofocliana procurou mostrar é que peça apresenta um
enredo quase circular, onde a nobreza, a sabedoria, a grandeza que o herói demonstra
possuir logo no início, como soberano ideal preocupado com a cidade e com o bem comum
acima da própria existência, também estão presentes na sua ação final. Ainda que essas
mesmas virtudes se apresentem de maneiras diferentes, e até potencializadas, na figura
desse mesmo herói, elas continuam fazendo parte de sua personalidade.
Mesmo diante dos obstáculos e da natureza impulsiva e da cegueira que o conduzem à
desmedida, este herói consegue voltar ao ponto de partida, ou pelo menos continuar nessa
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direção inicial, como um soberano que deve manter a dignidade e a responsabilidade para
com a cidade e com os concidadãos.
Desta maneira, conclui-se que o retorno ao ponto inicial não é uma ação redutora,
símbolo de reincidência na cegueira física, mas pelo contrário, é o resultado de uma nova
visão, agora consciente e plena, que é alcançada. Esta volta do herói à origem se dá
num plano elevado.
Édipo, como herói sofocliano, alcança uma aura subliminar como um ser humano ple-
no, um modelo ideal de homem, um exemplo de ser humano e de cidadão da polís grega
a ser seguido. Nessa perspectiva é que a peça Rei Édipo se torna um instrumento forma-
tivo e apresenta essa característica e essa força educadora que a tragédia carrega em si
desde a sua gênese.
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