Você está na página 1de 5

Ficha de trabalho 13

5. Para custear uma cirurgia estética a que queria ser submetida, F vendeu a G o anel de
diamantes que lhe havia sido oferecido pelo seu falecido marido como presente de
noivado. Dois meses mais tarde, arrependida, F intentou em tribunal uma açã o de
declaraçã o de nulidade da venda, alegando que, sendo o anel mais valioso do que a maioria
dos imó veis, o negó cio deveria ter sido celebrado por escritura pú blica ou documento
particular autenticado, como prescreve o artigo 875.º CC. Terá razã o?
F considera que o art. 875º é aplicado analogicamente à venda do anel. Ainda que se
considerasse a existência de uma lacuna carecida de preenchimento, o que é muito
duvidoso, importa saber se a lacuna poderia ser preenchida com recurso á aplicaçã o do
art. 875º. O art. 875º ao exigir para a validade do negó cio a observâ ncia de uma forma
especial a escritura pú blica…constitui uma norma excecional face ao art. 219º que prevê a
liberdade de forma. O art.11º proíbe a aplicaçã o analó gica de normas excecionais, defende
o doutor Oliveira Ascensã o e o doutor Oliveira de Sousa que o art. 11º deve ser objeto de
uma interpretaçã o restritiva. Nã o é toda e qualquer norma excecional que nã o pode ser
aplicada analogicamente, só as normas material ou substancialmente excecionais é que
nã o comportam aplicaçã o analó gica. Isto porque o cará ter excecional de uma norma pode
resultar apenas da formulaçã o escolhida pelo legislador ou da técnica legislativa a adotar.
Por exemplo, a regra “é proibido estacionar exceto aos domingos” tem o mesmo
significado da regra “é permitido estacionar aos domingos”. Ora, se nada impede a
aplicaçã o analó gica desta
Ú ltima regra aos feriados, nã o se vislumbra qualquer razã o para nã o permitir uma idêntica
aplicaçã o analó gica. Suponha-se que uma regra proíbe o estacionamento exceto para
cargas e descargas de produtos comerciais, se houver que determinar qual o regime
aplicá vel a um camiã o que pretende recolher o recheio da casa de um morador em
mudanças, é mais do que razoá vel aplicar analogicamente a exceçã o do que aplicar a regra
de proibiçã o de estacionamento. Assim, só as normas substancialmente excecionais é que
nã o sã o suscetíveis de aplicaçã o analó gica, qualificam-se como normas materialmente ou
substancialmente excecionais as regras que por visarem uma utilidade especial vã o contra
um princípio fundamental do direito, correspondem ao ius singulare.
Nã o basta a mera contradiçã o de outra regra, é necessá rio ainda que contrariem os
princípios gerais por razõ es específicas do caso concreto. Só as regras materialmente
excecionais é que nã o consentem aplicaçã o analó gica, porque a peculiaridade da sua ratio
nã o permite a extensã o a outros casos.
Regra geral e a regra materialmente excecional constituem um conjunto completo que nã o
comporta lacunas. Tudo o que nã o seja subsumível à regra excecionalmente material é
abrangido pela regra geral.
O art.875º é uma regra substancialmente excecional, nã o só estabelece um regime oposto
ao regime regra como contraria o princípio geral, fundamental e informador do direito
civil, o princípio da liberdade de forma que está intrinsecamente ligado aos princípios da
liberdade contratual de autonomia privada e da liberdade de iniciativa econó mica. Assim
sendo, uma vez que as normas substancialmente excecionais nã o admitem aplicaçã o
analó gica nos termos do artigo 11 aplica-se a este caso a regra geral da liberdade de forma
pelo que o negó cio nã o parece de qualquer vício de forma e F nã o tem razã o quando
invoca a sua nulidade.
Ficha de trabalho 14

1. O artigo 204.º, n.º 1, alínea c) do Có digo Penal, com a epígrafe “[f]urto qualificado”,
prevê que “[q]uem furtar coisa mó vel ou animal alheios […] afeta ao culto religioso
ou à veneraçã o da memó ria dos mortos e que se encontre em lugar destinado ao
culto ou em cemitério […] é punido com pena de prisã o até cinco anos ou com pena
de multa até 600 dias”. Carlos, coveiro no Cemitério Municipal de X, é arguido num
processo-crime, por furto de vá rias carteiras no Cemitério, enquanto exercia as
suas funçõ es e aproveitando a distraçã o dos familiares de luto. Em tribunal, o
Ministério Pú blico alega que Carlos deve ser punido com a pena aplicá vel ao furto
qualificado, ao abrigo do referido artigo 204.º, n.º 1, alínea c) do Có digo Penal.
Carlos discorda, alegando que as carteiras nã o sã o objetos destinados à “veneraçã o
da memó ria dos mortos”, motivo pelo qual ele nã o pode ser punido por furto
qualificado, mas apenas por furto simples, ao qual, nos termos do artigo 203.º, n.º
1, conjugado com o artigo 47.º, n.º 1, ambos do Có digo Penal, se aplica pena de
prisã o até 3 anos ou pena de multa entre 10 e 360 dias. Fazendo uma
interpretaçã o metodologicamente correta do artigo 204.º, n.º 1, alínea c) do Có digo
Penal, diga se, na sua opiniã o, o juiz deve condenar Carlos por furto qualificado ou
por furto simples.
Para interpretar corretamente a norma é necessá rio recorrer ao art.9º do CC que é uma
norma sobre normas, tendo aplicabilidade em todo o ordenamento jurídico o que quer
dizer que, embora se trate de uma norma integrada no có digo civil e estejamos a falar da
interpretaçã o de uma norma do có digo penal, o art.9º será igualmente aplicá vel. Do lado
do Ministério Pú blico temos uma interpretaçã o extensiva porque embora as carteiras nã o
caibam diretamente no conceito de objeto destinado à veneraçã o da memó ria dos mortos,
parece que o Ministério Pú blico alarga o conceito para nele fazer caber também as
carteiras subtraídas do cemitério. O Ministério Pú blico dá menos valor ao elemento literal
constante do art.9º n2 e 3. A admissibilidade da interpretaçã o extensiva em direito penal é
discutida. Há autores como o Doutor Cavaleiro de Ferreira que entendem proibida toda a
interpretaçã o extensiva em direito penal. Já o Doutor Figueiredo Dias aceita a
interpretaçã o extensiva mesmo que in malam partem (em desfavor do arguido) (diferente
de in bonam partem) mas afete nesse caso teremos de ter mais cuidados hermenêuticos.
Nã o se trata de uma lacuna e de interpretaçã o analó gica porque, ainda que nã o se siga a
interpretaçã o do Ministério Pú blico porque se nã o se verifica nenhum fator que torne a
conduta furto qualificado, pelo que nã o se aplicam o art.1º n3 do CP e o art.29º n3 CC isto
porque a conduta de Carlos se encontra devidamente regulada. Carlos limita-se a eleger
um dos sentidos que o texto claramente comporta por ser esse que corresponde ao
pensamento legislativo. Conforme manda o art.9º há que reconstituir a partir do texto da
lei, o pensamento legislativo. Para isso é necessá ria a identificaçã o da ratio legis. No caso
do art. 204º n°1 alínea c), a ratio legis é proteger a propriedade privada, a liberdade
religiosa e o respeito pela memó ria dos mortos, o que releva para efeitos de
responsabilidade penal do agente especial relaçã o de funcionalidade entre o objeto de
apropriaçã o material ilegítima e o espaço em que se encontra. Parece que a posiçã o mais
razoá vel é a de Carlos pois nã o parece que a ratio legis abrange o caso que estamos a
considerar, isto porque nã o existe uma especial relaçã o entre as carteiras e o cemitério
pelo que deve ser feita uma interpretaçã o declarativa. Consequentemente Carlos deve ser
punido por furto simples.
2. Em maio de 2018, Ana vendeu a Bruno a sua quota na moradia de que ambos eram
comproprietá rios por €50.000,00, passando Bruno a ser o ú nico proprietá rio da
casa. Ficou acordado que Ana, que vivia no imó vel desde 1987, deixaria a
habitaçã o e entregá -la-ia a Bruno em fevereiro de 2019. Sucede que Ana nã o
abandonou a habitaçã o em fevereiro de 2019, como havia sido acordado,
invocando ter já 65 anos e graves problemas de saú de, ser pessoa economicamente
desfavorecida e nã o ter conseguido realojamento pela Câmara Municipal, como
havia esperado. Perante esta recusa e depois de muita insistência, em junho de
2020, Bruno acabou por intentar uma açã o executiva para entrega de coisa certa
contra Ana, exigindo que esta desocupasse de imediato a casa e lha entregasse. Em
sua defesa, Ana invoca o artigo 6.º-A, n.º 6, alínea b) da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de
março, na redaçã o da Lei n.º 16/2020, de 29 de maio, segundo o qual ficam
suspensos no decurso do período de vigência do regime excecional e transitó rio de
medidas de resposta à pandemia de Covid-19: “b) Os atos a realizar em sede de
processo executivo ou de insolvência relacionados com a concretizaçã o de
diligências de entrega judicial da casa de morada de família”. Bruno contesta,
invocando que tem já negociada a venda da casa a Carlos e que irá perder o
negó cio se Ana nã o desocupar de imediato o imó vel, o que lhe causará um prejuízo
grave à sua subsistência, dado que contava com esse valor para pagar o
empréstimo que fez ao banco para pagar a quota-parte da casa a Ana. Acrescenta
Bruno que esta situaçã o se enquadra no n.º 7 do referido artigo 6.º-A, segundo o
qual: “[n]os casos em que os atos a realizar em sede de processo executivo ou de
insolvência referentes a vendas e entregas judiciais de imó veis sejam suscetíveis
de causar prejuízo à subsistência do executado ou do declarado insolvente, este
pode requerer a suspensã o da sua prá tica, desde que essa suspensã o nã o cause
prejuízo grave à subsistência do exequente ou um prejuízo irrepará vel, devendo o
tribunal decidir o incidente no prazo de 10 dias, ouvidas as partes.” Em resposta,
Ana argumenta que o n.º 7 do artigo 6.º-A nã o se aplica aos casos em que o imó vel
seja casa de morada de família, situaçã o que é regulada pelo n.º 6, alínea b). Bruno
discorda, invocando que “o que o legislador nã o distingue nã o deve o intérprete
distinguir”.
a) Indique, na sua opiniã o e de modo justificado, quem terá razã o.
No presente caso estamos perante um concurso de normas jurídicas de fonte legal e temos
uma divergência na interpretaçã o do nº6 alínea b) e n°7 do art.6º- A. Por um lado, Ana faz
uma interpretaçã o restritiva do n°7 uma vez que entende que quando o legislador se
referiu a vendas e entregas judiciais de imó veis disse mais do que queria dizer na medida
em que a letra da lei abrange inadvertidamente as casas de morada de família. Por outro
lado, Bruno faz uma interpretaçã o declarativa entendendo que a expressã o inclui qualquer
imó vel seja ele a casa morada de família ou nã o, pelo que Bruno dá mais relevo ao
elemento literal constante do art. 9° n°2 e 3. Para resolver o problema é fundamental
perceber qual a ratio legis das normas em questã o. Ora, para esse efeito é necessá rio ter
presente a conjuntura em que as normas foram adotadas, a chamada ocasio legis,
conforme indica o art.9° n1 viva-se o contexto pandémico pelo que procurou o legislador
ao adotar este regime jurídico assegurar as condiçõ es de habitabilidade em contexto de
confinamento. Entendeu a relaçã o do Porto que se era esse o objetivo da lei, entã o a
soluçã o mais conforme com esse objetivo é a interpretaçã o restritiva da norma o que
significa que o n°7 nã o se pode aplicar quando esteja em causa a casa morada de família.
Por conseguinte, deve interpretar-se restritivamente o conceito de imó vel de modo a nele
nã o fazer caber os imó veis destinados a casa morada de família, motivo pelo qual é a Ana
quem tem razã o.

Você também pode gostar