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PROCESSAMENTO COGNITIVO E A

ALFABETIZAÇÃO DE CRIANÇAS BILÍNGUES


Lilia Nara Santos Sena
Profª. Candice Helen Glenday
Universidade Estadual Vale do Acaraú
Licenciatura em Letras – Inglês
Junho de 2021
RESUMO
O propósito deste trabalho é apresentar, de maneira geral, como ocorre o
processamento cognitivo e a alfabetização de crianças bilíngues. As motivações que
guiam esse estudo partem do desejo de pôr um fim ao mito de que as crianças
bilíngues possuem atrasos cognitivos. Trata-se de uma pesquisa bibliográfica e
fundamenta-se nos estudos de Bloomfield (1933), Macnamara (1966) e Grosjean
(1999). Além disso, a metodologia usada é de caráter analítica e descritiva.

Palavras-chave: bilinguismo; processamento cognitivo; alfabetização.

Abstract: The purpose of this paper is to present, in general, how the cognitive
processing and literacy of bilingual children take place. The motivations that guide
this study stem from the desire to put an end to the myth that bilingual children have
cognitive delays. This is a bibliographical research and is based on studies of
Bloomfield (1933), Macnamara (1966) and Grosjean (1999). In addition, the
methodology used is analytical and descriptive.

Key-words: bilingualism; cognitive processing; literacy.

INTRODUÇÃO

A educação bilíngue é de suma importância, visto que a economia atual


cresceu a nível global, sendo cada vez mais comum a necessidade de interagir com
culturas de diferentes partes do mundo de um modo que nunca ocorreu antes.
Nesse aspecto, o inglês é o idioma mais utilizado quando se coloca não nativos
juntos, ou seja, “o inglês não tem fronteiras geográficas” conforme Leffa (2001, p.
10).

No entanto, só a partir da década de 60, os estudos sobre bilinguismo


passaram a ter uma perspectiva positiva sobre os bilíngues, pois tudo que se tinha
anteriormente apontava para problemas relacionados ao bilinguismo. Isso acontecia
por razões políticas e até mesmo por falhas na maneira como tais pesquisas eram
conduzidas.

A partir das descobertas dos pesquisadores Peal e Lambert (1962) no


Canadá, essa história muda e o bilinguismo passa a adquirir um olhar positivo. Hoje,
com o avanço das tecnologias e das pesquisas que usam neuroimagem para
investigar o funcionamento do cérebro quando aprende, ou quando adquire uma
segunda língua, tem-se indicações muito claras de que, sim, o bilinguismo traz
vantagens cognitivas para quem é bilíngue.

Sob essa perspectiva, embora já existam inúmeros argumentos a favor da


educação bilíngue, parece ainda haver uma certa insegurança por parte do pais que
temem que a exposição de crianças a dois idiomas traga desvantagens cognitivas e
atraso no processo de escolarização dessas. Destarte, levando em conta o
crescente aumento das escolas bilíngues, é de extrema importância a produção de
conhecimentos sobre as consequências da aquisição de uma segunda língua no
desenvolvimento infantil.

Com isso, o presente estudo tem por objetivo apresentar de maneira geral
as particularidades do processamento cognitivo e o letramento e a alfabetização da
criança em uma conjuntura bilíngue, desmistificando, assim, os mitos sobre os
malefícios de uma educação bilíngue e catalogando argumentos favoráveis
associados ao bilinguismo.

PROCESSAMENTO COGNITIVO NO BILINGUISMO

Inicialmente, não há um consenso entre os estudiosos sobre a definição de


bilinguismo. Para Bloomfield (1933), bilíngue é o indivíduo que apresenta um
conhecimento similar ao de um nativo em duas línguas. Já Macnamara (1966),
define como bilíngue aquele que tem competência mínima em pelo menos uma das
quatro habilidades linguísticas, ler, escrever, ouvir e falar.

Para o propósito desse estudo, assume-se como bilíngue o indivíduo que


fala outra língua, além da materna, não importando se está em fase de aquisição ou
se já atingiu o estágio final, ou seja, aquele que consegue fazer o uso social de uma
segunda língua no seu cotidiano. (Grosjean, 1999 apud NOBRE E HODGES, 2010).
Sob esse viés, todas as experiências vivenciadas pelo ser humano causam
alguma alteração no cérebro, uma vez que ele foi desenvolvido para aprender.
Dessa forma, todo aprendizado acaba causando alguma alteração na estrutura
neural e no funcionamento organizacional do cérebro. Nesse sentido, quando se
compara o bilinguismo com outros tipos de experiências vividas, percebe-se que ele
é uma experiência muito intensa, pois não só se refere a quantas horas do dia o
indivíduo fala duas línguas, mas a tudo que se tem acesso por meio da habilidade
de falar mais de uma língua. (Mechelli e colaboradores, 2004).

Por conseguinte, estudos com neuroimagem mostram que os cérebros dos


bilíngues apresentam diferenças anatômicas, por exemplo, em tamanho e espessura
de córtex e em níveis de ativação se comparados aos dos monolíngues (Kim, et al.,
1997; Mecheli, et al., 2004; Paradis, 2003; Perani e Abutalebi, 2005). Assim, por se
tratar de uma experiência tão intensa, o bilinguismo causa algum tipo de mudança
no cérebro, o que Jasińska e Petitto (2013) chamam de “assinatura neural do
bilinguismo”.

Sob diferente ótica, anteriormente, acreditava-se que só existiriam


diferenças cognitivas em bilíngues se estes fossem proficientes nas duas línguas.
Entretanto, pesquisas atuais apontam que independente do grau de proficiência nas
duas línguas, a exposição a diferentes estímulos linguísticos e a assimilação dos
usos e atuações de cada uma dessas línguas, contribuem para um diferencial no
que tange ao cognitivo destes sujeitos.

Na contemporaneidade, vários estudos apontam para a relevância da idade


do indivíduo ao iniciar seu contato com uma segunda língua, o que justifica a ideia
de “períodos críticos” de aprendizagem e a plasticidade cerebral como grandes
aliados para a exibição de uma outra língua desde a primeira infância. Dessa
maneira, de acordo com Lopes e Maia (2000, p. 129), "o conceito de período crítico
assume, portanto, que as mudanças associadas ao crescimento, maturação e
desenvolvimento ocorrem com maior rapidez, já que o processo organizacional pode
mais facilmente ser modificado durante esses períodos". Assim, tais períodos
correspondem a um certo momento no desenvolvimento infantil no qual o cérebro
pode ser, com mais facilidade, modificado.
Em consonância ao assunto, Petitto (2009) evidencia que a exposição de
uma criança a duas línguas ainda na infância, amplia a probabilidade de ela alcançar
um nível de proficiência semelhante ao de um nativo. Contudo, ainda que uma
criança só seja exposta a uma segunda língua tardiamente, essa também poderá
adquirir competência linguística na sua nova língua. Desse modo, quanto mais tarde
o contato com uma segunda língua, menor serão as chances de se alcançar a
fluência, uma vez que maiores serão as interferências da primeira língua na
produção da segunda.

É conveniente destacar também que o desenvolvimento cognitivo se


constitui como base para as aquisições acadêmicas e linguísticas e, nesse sentido,
o bilíngue distingue-se do monolíngue, visto que há evidências neurológicas que
mostram que o bilinguismo tem um impacto positivo em outras partes do cérebro,
apresentando benefícios além da aquisição da linguagem. Observando o
funcionamento do cérebro, percebe-se que os idiomas residem no lado esquerdo,
tanto a língua materna quanto o segundo idioma. Logo após, na parte da frente, está
a chamada “função executiva de controle”. Na parte esquerda, duas línguas residem
juntas na mesma parte do cérebro, porém separadas, ficando a cargo da função
executiva de controle decidir qual idioma deverá ser usado. Portanto, as duas
línguas estão ativas a todo tempo e a função executiva de controle decide em qual
idioma tal palavra será pronunciada.

Tal ação requer um enorme controle de atenção e seleção de linguagem, e


isso ocorre com cada palavra e sentença, resultando em uma atividade muito
intensa nessa parte do cérebro. Outrossim, isso é importante, pois essa função
executiva de controle não somente opera a linguagem, mas também outras partes
da personalidade. Diante disso, o bilinguismo de uma forma geral desenvolve o
raciocínio lógico de uma forma mais acelerada e também a criatividade, já que a
criança precisa pensar em duas línguas.

As evidências mostram que pessoas bilíngues, por causa dessas mudanças


na função executiva de controle, desempenham melhor tarefas de atenção,
possuem melhor planejamento e organização, desenvolvem o pensamento crítico,
são mais flexíveis nos seus padrões de pensamento, executam múltiplas tarefas
com mais eficiência, são melhores aprendizes, e tem melhor gestão de
comportamento social, apresentando assim, ganhos nas funções executivas.
(Emmorey et al., 2008); (Bialystok, 2008).

Todavia, as crianças bilíngues não são mais inteligentes ou conhecedoras


do que as monolíngues. Nesse contexto, Bialystok (2008) aponta que crianças
bilíngues têm como diferencial uma habilidade mais desenvolvida em controlar o uso
de seus conhecimentos ao desempenhar uma tarefa. Por outro lado, também chama
a atenção para o fato de que algumas pesquisas publicadas revelaram que bilíngues
apresentam menor vocabulário que os monolíngues, o que se caracterizaria como
uma desvantagem do bilinguismo.

Apesar disso, conclui-se que o bilinguismo mesmo se tratando de uma


experiência intrinsecamente linguística traz vantagens cognitivas de nível mais geral.
No entanto, um problema é a variabilidade dos bilíngues, com que idade essa
pessoa aprendeu, qual a frequência de uso e qual a qualidade das interações que
ela se envolve. Esses fatores tornam difícil assegurar que todos os bilíngues
desenvolverão essas vantagens cognitivas. Com efeito, qualquer vantagem aparece
quando se faz um uso muito intenso da língua.

Dessa forma, o uso de categorias de vantagens e desvantagens cognitivas


dos bilíngues não é capaz de abranger todas as especificidades desse processo.
Portanto, reitera-se que não há vantagens, mas sim diferenças entre bilíngues e
monolíngues, e que os conflitos e obstáculos não se configuram como
desvantagens, mas como parte do processo da aquisição das línguas.

LETRAMENTO E ALFABETIZAÇÃO DE CRIANÇAS BILÍNGUES

Em primeira análise, compreende-se alfabetização como a decodificação e


compreensão do código, correspondendo ao processo de juntar as letras, sílabas e
formar as palavras. Já o letramento consiste no uso dessa alfabetização no
cotidiano, ou seja, dar uma função social à leitura e à escrita. Dessa forma, entende-
se que o processo de letramento é continuo e ao sujeito sempre é possível o
processo de se tornar letrado em alguma área.

Sob essa perspectiva, tanto o bilinguismo quanto o letramento consistem em


um processo, o que permite inferir que ambos se favorecem reciprocamente. Desse
modo, para desenvolver conhecimentos em uma língua, um indivíduo precisa fazer
uso constante desta, uma vez que seu afastamento dos usos e funcionalidades da
língua em questão podem afetar o processo de adaptação. Assim, da mesma
maneira que os monolíngues estão em constante processo da aquisição da sua
língua materna, no que diz respeito a assuntos que envolvem o léxico e até mesmo
questões pragmáticas, os bilíngues também vivenciam as mesmas situações.

Sob esse viés, os pais normalmente têm dúvidas se o estudo de duas


línguas ao mesmo tempo atrapalha ou não o processo de alfabetização da criança,
mas, na verdade, aprender outro idioma fortalece o desenvolvimento das habilidades
cognitivas como a criatividade e a atenção, como já foi apontado acima. No ensino
bilíngue, os alunos lidam constantemente com dois sistemas linguísticos, a língua
materna e a adicional. Nesses dois processos, eles adquirem habilidades
fundamentais para o desenvolvimento da leitura e da escrita, tais como a atenção, o
reconhecimento e a discriminação dos sons presentes na língua materna e também
daqueles específicos do segundo idioma, tal como a percepção de reconhecer duas
palavras distintas, mas com o mesmo significado, por exemplo, flor e flower, além da
capacidade de síntese para dar sentido a comunicação.

Nesse sentido, a criança que vivencia o ambiente bilíngue está exposta ao


uso oral e escrito do idioma, utilizando determinado contexto para responder os
estímulos linguísticos que são mediados pelo educador. Desse modo, a criança
aprende a manipular melhor os sons e apresenta um conhecimento mais aprimorado
sobre a escrita, começando a pensar e ter clareza nos dois idiomas.

Acerca dessa lógica, a alfabetização bilíngue pode ocorrer de duas


maneiras, da forma simultânea ou da forma sequenciada. Na forma simultânea, a
escrita das duas línguas é trabalhada ao mesmo tempo, já na sequenciada, primeiro
a criança se alfabetiza na língua materna e somente depois do domínio da primeira
língua, tanto na escrita quanto na leitura, é que se inicia o processo de alfabetização
em uma segunda língua.

Sob essa ótica, um dos aspectos apresentados por Lemle (1999) é a


diferenciação gráfica e sonora das letras. Inicialmente, o processo de identificação
dos sinais gráficos que em diferentes posições adquirem significados distintos, tais
como, b, d, p, q, é complexo para a criança. Porém, em decorrência de o bilíngue
ser mais exposto a informações e impressos em duas línguas, este acaba
conseguindo identificar as regularidades dessas letras, reconhecendo com clareza
as letras em ambas as línguas, visto que se trata da mesma letra, apesar de possuir
nomes diferentes.

Todavia, os sons das letras apresentam-se como um dificultador, já que


cada letra possui um som especifico. Seguindo essa linha de raciocínio, pesquisas
relatam que os bilíngues dispõem de uma consciência metalinguística muito
desenvolvida, o que permite que estes manipulem melhor os sons. Em consonância
ao tema, Bialystok e colaboradores (2005) efetuaram uma pesquisa contrastando
quatro grupos de crianças, sendo três desses bilíngues e um grupo de monolíngues.
O estudo mostrou que as crianças bilíngues manifestaram superior aptidão nas
tarefas de leitura, com melhor execução nos grupos bilíngues que usufruíam dos
mesmos sistemas de escrita. Por fim, conclui-se que um maior domínio e fluência
em um segundo idioma resulta em uma maior probabilidade de conseguir melhores
níveis de consciência metalinguística e transferência linguística.

Portanto, não há comprovações de que alfabetizar uma criança em duas


línguas causará problemas cognitivos nela. Logicamente, algumas crianças podem
levar maior tempo para se ajustar às especificidades de duas línguas. Entretanto,
isso não se qualifica como atraso ou desvantagem. Configura-se meramente como
uma diferença que logo adiante se designará como ganho intelectual.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste trabalho, evidenciaram-se de maneira geral os aspectos positivos da


aquisição de um segundo idioma para o desenvolvimento cognitivo do sujeito. O
tema discutido é bastante amplo e seus estudos contêm muitas incoerências e
contradições, não sendo o intuito dessa pesquisa discuti-las. Com isso, destaca-se
que o bilinguismo não traz prejuízos à construção cognitiva do aprendiz, nem danos
no processo de aquisição da escrita.

Ressalta-se, por fim, que, como visto, as crianças bilíngues manifestam


funções executivas diversas e avanço na consciência metalinguística mais
precocemente que os monolíngues. Ademais, há ainda benefícios de ordem social e
cultural ligados ao letramento já que a experiência bilíngue possibilita imersões em
diferentes culturas, favorecendo a introdução a variados usos e formas da
linguagem.
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