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O que realmente se estabelece no artigo 6.º, n.

º 3, CSC
PROF. DOUTOR MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA

Resumo: O disposto no artigo 6.º, n.º 3, CSC tem suscitado algumas dúvidas inter-
pretativas. No texto defende-se que o preceito contém a presunção (de direito) de
que a prestação de garantias a dívidas de terceiros é contrária aos fins da sociedade
garante. Procura-se demonstrar que esta interpretação é a única que é compatível
com parâmetros indiscutíveis na área da distribuição do ónus da prova.

Abstract: There have been doubts on the correct interpretation of Article 6.3
of the Portuguese Companies Code. This text advocates that this rule sets forth a
legal presumption that guaranteeing debts of third parties is contrary to the inte-
rests of the guarantor company. It aims at showing that this interpretation is the
only one compatible with undisputed rules on the burden of proof.

1. O sumário de STJ 12/3/2019 (11197/14.2T2SNT-F.L1.S2) é, na parte


que agora interessa, o seguinte:

I – Nos termos do artigo 6.º, n.º 3 do CSComerciais «Considera-se con-


trária ao fim da sociedade a prestação de garantias reais ou pessoais a dívidas
de outras entidades, salvo se existir justificado interesse próprio da sociedade
garante ou se se tratar de sociedade em relação de domínio ou de grupo.».
II – Impende sobre a sociedade garante que invoca a nulidade da garantia
por si prestada com o objectivo de se fazer valer de tal nulidade para não ter
de cumprir a obrigação garantida, o ónus de alegação e prova da inexistência
de interesse próprio, ou seja, o ónus da prova dos requisitos da existência da
tal invalidade do acto, de que se pretende aproveitar, sendo que a razão prin-
cipal para tal reside na circunstância de que ninguém melhor do que a própria
sociedade que presta a garantia, poderá certificar que a mesma foi prestada no
seu próprio interesse e esta é a posição maioritária deste Supremo Tribunal de
Justiça.

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2. a) Independentemente de saber se, como se afirma no acórdão, a orien-


tação nele defendida corresponde efectivamente à jurisprudência e à doutrina
maioritárias, certo é que não é possível acompanhar o que nele foi decidido.
Como se vai procurar demonstrar, impõe-se uma interpretação completamente
diferente do disposto no artigo 6.º, n.º 3, CSC.
O artigo 6.º, n.º 3, CSC estabelece o seguinte: “Considera-se contrária ao
fim da sociedade a prestação de garantias reais ou pessoais a dívidas de outras
entidades, salvo se existir justificado interesse próprio da sociedade garante ou
se se tratar de sociedade em relação de domínio ou de grupo”. Quer dizer:
perante a dúvida de saber se a prestação de garantias reais ou pessoais a dívidas
de outras entidades é compatível ou é contrária aos fins da sociedade, o artigo
6.º, n.º 3, CSC impõe que se considere que essa prestação é contrária a estes
fins. Isto não pode deixar de significar que, mesmo na falta de qualquer prova,
se considera que a prestação de garantias é contrária ao fim da sociedade.
Posta esta evidência, uma outra se segue. A circunstância em que, mesmo
na falta de prova sobre um facto ou uma situação jurídica, esse facto ou essa
situação se considera assente por estar provado um outro facto do qual se infere
aquele facto ou aquela situação tem um nome bem conhecido: o nome é pre-
sunção legal. Noutros termos: o artigo 6.º, n.º 3, CSC estabelece a presunção
(de direito) de que a prestação de garantias a dívidas de terceiros é contrária ao
fim da sociedade.
Quer dizer: da prestação da garantia a uma dívida alheia à actividade da
sociedade infere-se que essa prestação é contrária aos fins da sociedade garante.
O facto probatório (ou a base da presunção) é a prestação de uma garantia pela
sociedade a uma dívida alheia e a situação inferida ou presumida é a contrarie-
dade dessa garantia com os fins da sociedade.
Como constitui regra geral, esta presunção é ilidível. A questão seguinte é
então esta: como se ilide esta presunção? O artigo 6.º, n.º 3, CSC responde, em
total consonância com a regra sobre a ilisão das presunções legais que consta do
artigo 350.º, n.º 2, CC: através da prova do facto contrário, ou seja, de que a
sociedade garante tem interesse na prestação da garantia ou de que se trata de
uma sociedade em relação de domínio ou de grupo.
Veja-se ainda como é fácil substituir a expressão “considera-se” por “presu-
me-se” no artigo 6.º, n.º 3, CSC: “[Presume-se] contrária ao fim da sociedade
a prestação de garantias reais ou pessoais a dívidas de outras entidades, salvo
se existir justificado interesse próprio da sociedade garante ou se se tratar de
sociedade em relação de domínio ou de grupo”. A referida substituição não
implica sequer nenhuma outra alteração na letra do artigo 6.º, n.º 3, CSC e
atribui ao preceito um sentido que qualquer jurista compreende sem nenhuma
dificuldade.

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b) Analisado o artigo 6.º, n.º 3, CSC por esta perspectiva, está clara a repar-
tição do ónus da prova que decorre do preceito:

– A sociedade garante goza da presunção de que a garantia prestada a uma


dívida alheia é contrária aos seus fins, pelo que nada tem a provar;
– A presunção é ilidida através da prova, por qualquer interessado na ilisão,
de que a sociedade garante tem interesse na prestação da garantia ou de
que se trata de uma sociedade em relação de domínio ou de grupo.

3. Esta solução corresponde totalmente à materialidade da situação e é a


única que é compatível com as regras sobre a distribuição do ónus da prova.
O artigo 6.º, n.º 3, CSC contém uma norma de protecção da sociedade
(inclusivamente, perante a actuação dos seus órgãos): o fim de qualquer socie-
dade não é tornar-se responsável por dívidas de terceiros; daí que o preceito
estabeleça a presunção de que a prestação de garantias a dívidas de terceiros é
contrária aos fins da sociedade. A teleologia da norma é claramente a protec-
ção da sociedade (e, claro está, dos sócios) perante uma actuação que em nada
beneficia a sociedade.
Neste contexto, seria muito estranho que se exigisse que a sociedade tivesse
que provar que a prestação de garantia a uma dívida de terceiro é contrária
aos seus fins. Que outra coisa se pode dizer de uma actuação que, realmente,
implica que a sociedade se torna responsável por um passivo alheio? Não é
razoável entender que, segundo um juízo de normalidade, a prestação dessa
garantia é susceptível de vir a prejudicar a sociedade?
Aliás, na maioria dos casos, a solução que exige que a sociedade prove que
a prestação da garantia a uma dívida alheia é contrária aos seus fins implicaria
que o próprio órgão de representação da sociedade que prestou a garantia em
nome da sociedade teria agora que provar, também em nome da sociedade, que
o acto que praticou é contrário aos interesses da sociedade. Como se pode facil-
mente aceitar, é uma solução muito pouco razoável, designadamente porque
ela impõe ao órgão representativo da sociedade a prova de que o acto que ele
próprio praticou é contrário aos fins da sociedade que supostamente esse órgão
tem por missão respeitar e prosseguir.
Bem se pode concluir que, a seguir-se a (alegada) orientação maioritária, o
artigo 6.º, n.º 3, CSC imporia, por força da lei, um venire contra factum proprium.
O próprio órgão que praticou o facto teria que provar que o mesmo é afinal
inválido. Não só soa estranho, como é mesmo muito estranho que se exija à
sociedade garante, e não a um terceiro interessado, a prova da invalidade da
prestação da garantia por essa mesma sociedade.

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Não se nega que, em certos regimes legais, a pessoa que praticou o acto
pode vir a invocar a sua invalidade. Exemplo típico: o maior pode invocar,
durante um certo prazo após atingir a maioridade, a invalidade dos actos que
praticou enquanto menor (artigo 125.º, n.º 1, al. b), CC). Supõe-se, no entanto,
que não há nenhuma analogia com a situação de uma sociedade garante: esta
sociedade não tem nenhum tempo de menoridade e não muda, com o tempo,
a sua capacidade de discernimento. É por isso que não tem sentido permitir à
sociedade um venire contra factum proprium, admitindo que ela possa vir a negar a
validade do que ela própria praticou.
A solução legal é, como já se acentuou, completamente outra. O artigo 6.º,
n.º 3, CSC estabelece a regra de que a prestação da garantia a uma dívida alheia
é contrária aos fins da sociedade. Isto é um ponto de partida que a lei impõe (e
não algo que constitua objecto de prova); logo, o que pode constituir tema de
prova é o contrário deste ponto de partida, como se vai procurar demonstrar.

4. A (alegada) interpretação maioritária do artigo 6.º, n.º 3, CSC é incom-


patível com a estrutura da norma que nele se contém e com as regras de distri-
buição do ónus da prova. Vai-se procurar demonstrar que assim é.
Do artigo 6.º, n.º 3, CSC decorre uma norma que contém uma regra (a
prestação de garantias a dívidas alheias é contrária aos fins da sociedade garante)
e uma excepção (quando a sociedade tem interesse na prestação da garantia, esta
não se considera contrária aos seus fins).
Perante isto, a pergunta que aflora imediatamente ao espírito é esta: se o
artigo 6.º, n.º 3, CSC atribuísse à sociedade garante o ónus da prova da con-
trariedade da prestação da garantia com os seus fins, como é que, na prática,
esta sociedade poderia cumprir esse ónus? A resposta só pode ser esta: através
da prova do contrário da excepção que constado preceito, isto é, através da
prova de que a sociedade não tem justificado interesse próprio na prestação da
garantia ou de que não se trata de uma sociedade em relação de domínio ou
de grupo.
Mas isto coloca imediatamente uma outra questão: onde é que a lei impõe
a prova do contrário de uma excepção legal?; isto é, onde é que a lei impõe,
não a prova de uma excepção legal, mas antes o contrário dessa excepção? A
resposta é, como é inevitável, esta: em parte alguma! A lei regula o ónus da
prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos, impondo a prova
destes factos à parte contra quem o direito é invocado (cf. artigo 342.º, n.º 2,
CC), mas, em parte alguma, a lei prevê a prova da não verificação do facto
impeditivo, modificativo ou extintivo e, portanto, a prova da não verificação
de uma excepção legal. Como bem se compreende, o titular do direito tem
o ónus de provar os factos constitutivos do seu direito, mas em parte alguma

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do ordenamento jurídico português se estabelece que o titular do direito tem


o ónus de provar a não verificação de um facto impeditivo, modificativo ou
extintivo do seu próprio direito.
A distribuição do ónus da prova que consta do artigo 342.º, n.º 1 e 2, CC é
bastante clara: uma parte tem o ónus de provar a verificação de factos constitu-
tivos e a outra parte tem o ónus de provar a verificação dos factos impeditivos,
modificativos ou extintivos. Em parte alguma do regime sobre a distribuição
do ónus da prova se fala da prova da não verificação de factos constitutivos ou
da prova da não verificação de factos impeditivos, modificativos ou extintivos.
Procurando que tudo fique completamente claro nesta matéria:

– A atribuição à sociedade garante do ónus da prova da contrariedade da


prestação da garantia com os fins da própria sociedade só pode ser feita
através da demonstração de que não se verifica nenhuma das duas situa-
ções que constam da excepção enunciada no artigo 6.º, n.º 3, CSC;
– Ora, em parte alguma do ordenamento probatório se impõe a prova da
não verificação de uma excepção (ou da não verificação de um facto
impeditivo, modificativo ou extintivo); o regime é sempre o da atribui-
ção à parte interessada da prova da excepção (ou do facto impeditivo,
modificativo ou extintivo);
– Aliás, o mesmo acontece com qualquer facto constitutivo: o que se
impõe é sempre a prova do facto constitutivo (normalmente, pela parte
que propõe a acção), nunca a prova da não verificação do facto constitu-
tivo (pela outra parte).

Assente este ponto essencial, dele decorre que a interpretação comum do


artigo 6.º, n.º 3, CSC, ao impor a não verificação de uma excepção legal,
desemboca numa distribuição do ónus da prova anómala e incompatível com
as regras sobre essa distribuição. Acresce ainda que essa orientação impõe à
sociedade garante a prova de um facto negativo (nomeadamente, o de que essa
sociedade não tem interesse na prestação da garantia), isto é, onera essa socie-
dade com a prova, sempre particularmente difícil, de um facto negativo. Por
tudo isto, o artigo 6.º, n.º 3, CSC não pode ser interpretado como impondo
um ónus da prova à sociedade garante, muito menos um ónus da prova do
contrário da excepção estabelecida no artigo 6.º, n.º 3, CSC.
O que faz sentido é que a excepção que consta da norma que se retira do
artigo 6.º, n.º 3, CSC seja a forma de um terceiro interessado ilidir a presunção
de que as garantias prestadas a dívidas alheias se consideram contrárias aos fins
da sociedade. Esta é, como se viu, a única solução que é compatível com as
regras de distribuição do ónus da prova.

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5. Em suma:

– O artigo 6.º, n.º 3, CSC contém uma norma que se destina a proteger a
sociedade (inclusivamente, da actuação dos seus próprios órgãos);
– Esta protecção espelha-se no plano probatório, dado que essa norma
estabelece a presunção de que a prestação de garantias a dívidas alheias é
contrária aos fins da sociedade;
– Esta presunção pode ser ilidida por um terceiro, mediante a prova de que
a sociedade garante tem justificado interesse na prestação da garantia ou
de que se trata de uma sociedade em relação de domínio ou de grupo;
– Qualquer outra interpretação do disposto no artigo 6.º, n.º 3, CSC é
contrária a parâmetros indiscutíveis na área da distribuição do ónus da
prova.

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