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Liberalismo e democracia

Filósofos do século 18 lançam as bases da democracia


contemporânea
Antonio Carlos Olivieri
Da Página 3 Pedagogia & Comunicação

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Desde suas primeiras formulações, no século 18, o liberalismo é


uma filosofia ou um conjunto de filosofias que defendeu a
existência de um Estado laico e não-intervencionista. Laico, porque
não está vinculado a nenhuma crença religiosa, nem admite
interferência de qualquer Igreja nos assuntos políticos. Em
contrapartida, esse Estado também não deve interferir nas crenças
pessoais, fazendo prevalecer o ideal de tolerância religiosa.

Já a concepção de um Estado não-intervencionista refere-se à


economia e surgiu por oposição ao controle que as monarquias
absolutistas exerciam sobre o comércio durante os séculos 16 e 17,
cuja expressão era o monopólio estatal típico do mercantilismo ou
capitalismo comercial. Era o que acontecia com o açúcar e o ouro,
por exemplo, enquanto o Brasil era colônia de Portugal.

A livre iniciativa e o lucro

O barão de Montesquieu O Estado não deve interferir na economia ou intervir somente o


mínimo inevitável, pois o liberalismo defende a propriedade privada
e constata que o funcionamento da economia se dá a partir do princípio do lucro e da livre
iniciativa, o que desenvolveria o espírito empreendedor e competitivo.

As propostas liberais provocaram - juntamente com as Revoluções políticas que delas se


originaram - uma separação entre negócios públicos e privados, ou seja, entre os assuntos do
Estado (que deve se ocupar com a política, isto é, com as questões da esfera pública) e os da
sociedade civil (que deve se ocupar das atividades particulares, principalmente as econômicas).

Simultaneamente, o liberalismo advoga a criação de instituições para dar voz ativa aos cidadãos
nas decisões políticas. É a partir disso que ocorre o fortalecimento do Parlamento, órgão de
representação por excelência das forças atuantes da sociedade e capaz de coibir os excessos do
poder central. A expressão "parlamento" se origina do francês "parler", que significa falar. Designa,
portanto, o local onde ocorrem conversações, discussões e deliberações.

Executivo, Legislativo e Judiciário

A concepção de uma origem parlamentar do poder significa a superação de teorias que remontam
à Antigüidade, segundo as quais o poder vem de Deus ou da tradição familiar (nobreza). Ao
contrário, o voto dado a um parlamentar representa o livre consentimento do cidadão à sua
atuação política, isto é, o mandato popular. É o que ocorre hoje nas democracias representativas,
como a brasileira, em que deputados e senadores são (ou ao menos deveriam ser) representantes
do povo.

Completa o quadro de princípios básicos do liberalismo, no âmbito político, a tripartição do poder


em três instâncias autônomas e equilibradas: o Executivo, o Legislativo e o Judiciário, conforme
postulado pela primeira vez pelo escritor e filósofo francês Montesquieu. Cada uma delas tem suas
atribuições específicas e - acima delas - estão as leis, das quais a maior é a Constituição de um
país.

A consciência liberal é, portanto, marcada pela valorização do princípio da legalidade: ninguém -


nem o governante - pode se colocar acima da lei. Com as revoluções liberais na Inglaterra e na
França, produziram-se, respectivamente, a Declaração de Direitos ("Bill of Rights", 1689) e a
Declaração do direitos do homem e dos cidadãos (1793), que consignavam as conquistas dessas
mesmas revoluções e proclamaram a igualdade de todos os homens perante a lei.

Além disso, essas Declarações estabelecem a garantia das liberdades individuais de pensamento,
crença, expressão, reunião e ação, desde que não sejam prejudicados os direitos de outros
cidadãos. Deriva daí a concepção tradicional de liberdade, segundo a qual "a liberdade de cada um
vai até onde o permite a liberdade do outro".

A Riqueza das Nações

Trata-se de um fundamento de cunho individualista, o que é típico do pensamento liberal. No plano


econômico, isso significa que a lógica do mercado é a seguinte: se cada um desenvolver bem o
seu trabalho, haverá natural seleção dos melhores, que formarão as elites de cuja capacidade
empreendedora resultarão benefícios para o todo social. Era o que apregoava o economista
escocês Adam Smith, em sua obra principal, "Uma Investigação sobre a natureza e as causas da
riqueza das nações".

Pode-se questionar ou criticar esse fundamento, mas, na prática, sua capacidade de produzir
riqueza tem sido patente. O problema reside mais na questão da distribuição dessa riqueza. Além
disso, à medida que esses conceitos liberais foram sendo absorvidos pelas instituições dos
diversos países, na Europa e nos Estados Unidos, deu-se um passo significativo em direção à
democracia, tal qual é praticada, em maior ou menor grau, no mundo contemporâneo.

Vale lembrar que dos ideais do liberalismo também se originou o conceito de cidadania que, em
seus primórdios, no século 18, referia-se apenas a direitos civis: à liberdade e à segurança
individual, direito de ir e vir, liberdade de crença e opinião, seu
lugar institucional eram os tribunais e sua vigência dependia da
aplicação progressivamente imparcial da lei.

Durante o século 19, o conjunto se avoluma com a inclusão dos


direitos políticos: votar e ser votado, filiar-se a partidos políticos,
organizar-se em sindicatos. Já no século 20, passam a integrar a
cidadania também uma extensa variedade de direitos sociais,
como a garantia de um piso salarial, condições de trabalho,
seguro, assistência médica, previdência, etc.

Via de mão dupla

Há uma via de mão dupla entre as idéias políticas e a realidade


prática, de tal maneira que as idéias interferem no mundo real,
transformando-o, assim como o mundo real, transformado, torna
necessário que as idéias sejam permanentemente reelaboradas.
Nesse sentido, as idéias liberais sofreram transformações com o Adam Smith
passar do tempo, adaptando-se às novas realidades sociais.

O liberalismo surgiu com o desenvolvimento do mercantilismo e se aprofundou após o advento da


Revolução Industrial, no século 18. Com a implantação do sistema fabril e o aumento da produção,
as relações humanas se tornaram cada vez mais complexas. As cidades cresceram,
desenvolveram-se as ferrovias e o navio a vapor. As máquinas intensificaram o otimismo baseado
na crença do progresso e na onipotência da tecnologia.

Os avanços tecnológicos, porém, não corresponderam a uma evolução nas relações sociais,
tornando-as mais justas, ou diminuindo a distância entre o topo da pirâmide social e sua base. Na
Europa do século 19, o contraste entre riqueza e pobreza era cruel, como ocorre hoje em dia nos
países em desenvolvimento. Em contrapartida, a classe operária começou a se unir para
reivindicar os seus direitos num processo que culminará com o desenvolvimento do socialismo

O socialismo considera que o individualismo liberal resulta na defesa de uma classe social em
particular: a burguesia. De qualquer modo, para enfrentar os problemas trazidos pelos novos
tempos, a teoria liberal se adaptou às novas exigências da realidade. O liberalismo tornava-se
cada vez mais democrático, acentuando a necessidade de igualdade jurídica e política, bem como
uma solução para as precárias condições de vida das massas oprimidas. Um dos representantes
dessa tendência, o inglês John Stuart Mill, sugere co-participação dos trabalhadores na gestão e
nos resultados da indústria.

O Estado do bem-estar social

Gradualmente, o liberalismo começou a admitir a tendência intervencionista do Estado, para


solucionar os problemas sociais do trabalhador, como férias, saúde, aposentadoria, desemprego,
etc. Diante das crises - econômica, política, social - que atingiram o mundo da primeira metade do
século 20, os Estados Unidos e a Inglaterra, - cujo sistema político-econômico se insere no modelo
mais característico do liberalismo - promoveram ajustes rigorosos na economia, desenvolvendo o
que se chamou de wellfare state ou estado do bem- estar social.

Nos Estados Unidos, por exemplo, para enfrentar a depressão econômica subseqüente à quebra
da bolsa de valores de Nova York (1929), o presidente Franklin D. Roosevelt implantou um
programa conhecido como New Deal, que fez o Estado se tomar o principal agente do
reativamento econômico do país. A construção de grandes obras públicas ajudou a aumentar a
taxa de emprego e foram concedidos créditos para as empresas, além de serem adotadas
inúmeras medidas assistenciais de atendimento aos trabalhadores.

Entretanto, a intervenção estatal não se perpetuou, nem o Estado pretendeu se sobrepor às


empresas privadas, tornando-se o único agente econômico. De qualquer modo, no fim da Segunda
Guerra Mundial, em 1945, os Estados Unidos tinham se tornado a nação mais rica do mundo, bem
como a mais avançada em termos tecnológicos.

Globalização e neoliberalismo

A partir da década de 1960, o estado do bem-estar social começou a dar sinais de desgaste, em
especial porque as despesas governamentais acabaram por superar a arrecadação ou receita,
provocando um aumento insustentável do déficit público, da inflação e da instabilidade social.

Na década de 1980, os governos de Ronald Reagan, nos EUA, e de Margareth Thatcher, na


Inglaterra, se caracterizaram por diminuir a intervenção do Estado na área social. A essa retomada
das idéias liberais clássicas, de um estado mínimo e não intervencionista, chamou-se
Neoliberalismo. Seu receituário não se restringiu aos países do hemisfério norte, numa época
como a nossa, em que a economia é cada vez mais global.

No Brasil - onde o Estado se tornara um poderoso agente econômico entre a Era Vargas e a
ditadura militar - as idéias liberais entraram na ordem do dia dos governos Collor e Fernando
Henrique Cardoso, com a diminuição do Estado, a partir da privatização das estatais, da venda das
empresas públicas que, apesar de pertencerem ao governo, nada têm a ver com as funções do
governo, como bancos e companhias telefônicas.
Não vem ao caso avaliar aqui os resultados dessa orientação "neoliberal" à política brasileira
contemporânea, nem à economia - que se mantém fiel a ela, apesar do governo de Luís Inácio
Lula da Silva, cujo partido sempre se proclamou simpático ao socialismo. O importante é ressaltar
como a influência das idéias liberais se estendem, historicamente, desde o século 18 até os dias
de hoje. A história da humanidade é ao mesmo tempo feita de transformações e permanências.

*Antonio Carlos Olivieri é escritor, jornalista e diretor da Página 3 Pedagogia & Comunicação.

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