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Capítulo

3
Farmacocinética: Absorção,
Distribuição, Metabolismo
e Eliminação de Fármacos

Autores: „ Introdução
• Bibiana Verlindo de Araújo A farmacocinética é o estudo quantitativo do movimento
de entrada, disposição e saída de fármacos do organismo que
• Teresa Dalla Costa pode ser descrito por meio dos processos de absorção, dis-
tribuição, metabolismo e excreção, conhecido como sistema
ADME. Estudos farmacocinéticos envolvem necessariamente
a análise de curvas de concentração do fármaco em função
do tempo em diferentes fluidos biológicos, sendo o soro e o
plasma os fluidos mais investigados, pois são de fácil acesso
e permitem inferir sobre a chegada do fármaco nos diversos
órgãos e tecidos do organismo, onde geralmente se encontram
os receptores farmacológicos.
A interpretação das curvas de concentração por tempo seria
impossível sem a utilização de ferramentas matemáticas e es-
tatísticas, as quais permitem a determinação de parâmetros re-
lacionados a cada um dos processos farmacocinéticos investi-
gados. Parâmetros farmacocinéticos podem ser definidos como
constantes biológicas ou relações de proporcionalidade cuja fi-
nalidade é caracterizar quantitativamente os processos relacio-
nados com o destino do fármaco no organismo. Os parâmetros
permitem a comparação entre fármacos da mesma classe tera-
pêutica, a comparação de distintos cenários para um mesmo fár-
maco, como alteração do processo de absorção decorrente da via
de administração ou uso de diferentes formulações e alteração
do processo de eliminação por interações medicamentosas, entre
outros. Os principais parâmetros farmacocinéticos que caracte-
rizam cada um dos processos do sistema ADME são resumidos
na Tabela 3.1.
Neste capítulo, serão discutidos alguns aspectos importantes
relacionados aos processos do sistema ADME, os parâmetros uti-
lizados para caracterizá-los, e de que forma eles podem influen-
ciar a resposta terapêutica dos pacientes, considerando a com-
plexidade e a variabilidade existentes no cenário clínico.
Capítulo 3 – Farmacocinética: Absorção, Distribuição, Metabolismo e Eliminação de Fármacos

Tabela 3.1 – Principais parâmetros farmacocinéticos determinados para os processos de absorção, distribuição e
eliminação de fármacos.
Processo Parâmetro Símbolo Unidades comuns
Absorção Biodisponibilidade F %
Área sob a curva ASC µg . h/mL, mg . h/L
Pico de concentração plasmática Cmax µg/mL, ng/mL
Tempo para pico de concentração plasmática tmax h, min
Distribuição Ligação às proteínas plasmáticas LPP %
Volume de distribuição Vd L ou L/kg
Eliminação Depuração CL mL/min, L/h, mL/min/kg, L/h/kg
Meia-vida t½ h, min, d
Constante de velocidade de eliminação λZ h–1, min–1, d–1
Fonte: Desenvolvida pela autoria do capítulo.

„ Absorção Compostos orgânicos são capazes de organizar


suas moléculas em distintos rearranjos estruturais,
O processo de absorção é definido como a transfe-
apresentando-se como estruturas amorfas ou crista-
rência do fármaco do local onde foi administrado para
linas. As formas amorfas são mais solúveis por apre-
a circulação sistêmica após uma administração extra-
sentarem arranjos moleculares menos organizados,
vascular, sendo influenciado por diversos fatores: via
que facilitam a interação com o solvente, como no
de administração empregada; formulação farmacêutica;
caso da griseofulvina, fenobarbital e cortisona.
propriedades físico-químicas do fármaco; característi-
cas anatômicas e fisiológicas envolvidas na passagem No estado sólido, as formas cristalinas podem
do fármaco através das membranas; e características do apresentar distintos arranjos na rede cristalina, sen-
paciente como idade e condição clínica, entre outros. do esses arranjos denominados “polimorfos”. Os po-
limorfos apresentam distintas atividades termodinâ-
Biofarmácia é a ciência que estuda a influência das
micas, determinadas pela disposição espacial de suas
propriedades físico-químicas, da forma farmacêutica
moléculas dentro da rede cristalina, o que pode gerar
e da via de administração na velocidade e extensão de
diferenças de estabilidade termodinâmica entre eles,
absorção de fármacos. Para detalhamento da influên-
sendo as formas polimórficas metaestáveis as mais so-
cia da via de administração e da formulação farma-
lúveis. Diversos fármacos apresentam polimorfismo
cêutica no processo de absorção, que não fazem parte
importante como cloranfenicol, carbazepina, cimeti-
do escopo deste capítulo, diversas fontes de consulta
dina, cetoconazol e clorpropramida, entre outros. Em
estão disponíveis na literatura1-3. Neste capítulo serão
virtude da influência do polimorfismo na solubilida-
discutidos os principais fatores relacionados às pro-
de, é importante considerar esse fator na preparação
priedades físico-químicas do fármaco e às caracterís-
de formas farmacêutica sólidas visando garantir uma
ticas fisiológicas relevantes para a absorção oral, uma
absorção adequada dos medicamentos que conte-
vez que essa é a via mais utilizada na clínica.
nham fármacos com polimorfismo.
O tamanho de partícula e a área superficial são
Fatores que influenciam a absorção outros dois fatores importantes para as formas farma-
de fármacos cêuticas sólidas, considerando-se que, diminuindo-
-se o tamanho da partícula, obtém-se uma maior área
Solubilidade de superfície do sólido, o que permite maior contato
A solubilidade é uma das principais propriedades com o solvente, o que facilita as interações no meio
físico-química que influenciam a absorção, pois em de solubilização. Um exemplo desse efeito do tama-
geral é necessário que o fármaco esteja solúvel para nho de partícula ocorre com a digoxina que tem 20%
atravessar as membranas biológicas e acessar a circu- de uma dose de 0,5 mg absorvida quando o tamanho
lação sistêmica, tornando-se disponível ao organismo de partícula é 100 μm, percentual que aumenta para
para exercer seu efeito. A solubilidade depende de 100% quando esse tamanho é reduzido para 20 μm.
interações intermoleculares na estrutura cristalina do
fármaco e no meio de solubilização dele e das mudan-
ças entrópicas que acompanham os processos de fusão Equilíbrio hidrófilo/lipófilo
e dissolução. Desse modo, fatores como o estado cris- Além da solubilidade em meio aquoso, outra pro-
talino, polimorfismo, o tamanho de partícula e a área priedade físico-química importante para a absorção,
superficial do fármaco influenciarão a solubilidade. bem como para o processo de distribuição no orga-

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Seção 1 – Princípios gerais

nismo, é a lipossolubilidade. Geralmente expressa difusão, diferença hidrostática ou osmótica ou pelo


pelo coeficiente de partição octanol/água, a liposso- fluxo resultante do gradiente de pressão entre os com-
lubilidade é um parâmetro molecular que descreve partimentos (bulk flow), sendo a passagem limitada a
o equilíbrio de partição de um soluto entre a água e moléculas de baixo peso molecular (100 a 200 Da).
um solvente orgânico imiscível (geralmente octanol). Moléculas com menor permeabilidade a essas mem-
Este parâmetro é importante uma vez que a difusão branas podem necessitar de mecanismos de trans-
lipídica é o principal mecanismo de transporte de porte ativos ou especializados, com a participação de
fármacos através das membranas biológicas. Assim, moléculas carreadoras e gasto de energia.
certo grau de lipossolubilidade é necessário para que
ocorra uma adequada difusão das moléculas do fár-
maco através dos fosfolipídeos das membranas bioló-
Transporte passivo
gicas, permitindo a sua chegada à circulação sistêmi- O transporte de fármacos através das membranas
ca, no caso do processo de absorção, e à biofase, no celulares ocorre principalmente por mecanismos
caso dos processos de distribuição. passivos como a difusão: Nesse processo, o fárma-
Como a maioria dos fármacos é de moléculas io- co é transferido de um compartimento para o outro
nizáveis, a lipossolubilidade é mais bem expressa através de uma membrana biológica, de acordo com
em termos do logaritmo da razão de concentração no o gradiente de concentração estabelecido entre o lo-
equilíbrio entre octanol e um tampão em pH 7,4 (mes- cal de absorção e a circulação sistêmica, seguindo os
mo do plasma), denominada Log D. Fármacos com princípios da primeira lei de Fick. Desse modo, a ve-
Log7,4 D < 1 apresentarão alta solubilidade e permea- locidade de difusão através da membrana (dC/dt) é
bilidade reduzida por difusão lipídica, sendo possível proporcional ao coeficiente de difusão (D), à área su-
a difusão paracelular se o peso molecular for < 200 perficial da membrana (A), ao coeficiente de partição
Da. Para os que fármacos que apresentam Log7,4 D en- octanol/água (K) e ao gradiente de concentração do
tre 1 e 3, a solubilidade e a permeabilidade serão mo- fármaco, representado pela diferença de concentra-
deradas, e para valores de Log7,4 D > 3, a solubilidade ção entre o local de absorção e a circulação sistêmi-
será moderada e a permeabilidade, elevada, lembran- ca (∆C) e inversamente proporcional à espessura da
do que a disponibilidade biológica, em geral, é menor membrana (E)
para esses fármacos1. dC DAK
= ⋅ (∆C) (Equação 3.1)
dt E
Membrana celular e mecanismos de Quando aplicada ao contexto da absorção, essa
transporte através de membranas equação pode ser simplificada. Considerando-se que
A membrana celular é constituída de uma bica- os termos D, A, K e E são constantes, eles podem ser
mada fosfolipídica na qual as cabeças polares dessas expressos como uma constante única, denominada
moléculas são orientadas para o exterior e as caudas “coeficiente de permeabilidade” (P)2. Desse modo, a
apolares são orientadas para o interior da estrutura. velocidade de absorção depende do coeficiente de per-
Forma-se nessa interface uma fase hidrofóbica contí- meabilidade do fármaco e do gradiente de concentra-
nua na qual estão inseridas estruturas diversas como ção (concentração no local da absorção e concentração
proteínas e moléculas de colesterol, além de poros e plasmática) através da membrana do trato gastrointes-
canais iônicos cujo papel é manter a integridade ce- tinal (TGI), por exemplo, quando se trata de absorção
lular, fluidez e regular a transferência de substâncias oral. No local de absorção, será estabelecida uma con-
para dentro e para fora da célula (Figura 3.1). dição de não equilíbrio entre dois compartimentos
Essas membranas são relativamente permeáveis à (local onde foi colocada a dose e corrente sanguínea)
água permitindo a transferência de substâncias por separados por uma membrana, proporcionado pela

Figura 3.1 – Estrutura esquemática da membrana celular demonstrando o arranjo dos fosfolipídeos (em laranja), moléculas de colesterol
ancoradas (em azul), presença de canais iônicos (marrom) e poros (rosa).
Fonte: Desenvolvida pela autoria do capítulo.

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Capítulo 3 – Farmacocinética: Absorção, Distribuição, Metabolismo e Eliminação de Fármacos

presença do fluxo sanguíneo, que promove a quase concentração, por meio de transportadores especiali-
instantânea remoção do fármaco do local de absorção zados, que formam complexos com o fármaco, envol-
após sua passagem pelas membranas celulares. Essa vendo gasto energético (Figura 3.2).
condição de não equilíbrio, denominada de condição Os transportadores intestinais representam um
sink, torna negligenciável a contribuição da concen- importante mecanismo de absorção, em especial
tração plasmática do fármaco no gradiente de concen- porque diversos fármacos apresentam similaridade
tração da Equação 3.1, permitindo que essa equação química com nutrientes e outros substratos naturais.
possa ser reescrita como: Esses transportadores são dependentes de ATP e de-
nominados de influxo (quando o sentido do movi-
dC
= P ⋅ (Clocal de absorção) (Equação 3.2) mento do transporte é para dentro do enterócito) ou
dt
de efluxo (quando o sentido do transporte é para fora
Embora a maioria dos fármacos seja absorvida por do enterócito), podendo estar expressos tanto no lado
difusão passiva, como é o caso do paracetamol, alguns apical como no lado basolateral da membrana, tendo
fármacos podem ser absorvidos por outros mecanis- um papel essencial na modulação da disponibilidade
mos, como o caso do transporte paracelular, conside- dos fármacos para circulação sistêmica e na remoção
rado por alguns autores um mecanismo passivo, mas de produtos finais do metabolismo.
que, por sua seletividade para fármacos catiônicos Os principais transportadores intestinais de efluxo
e presença de saturação, tem tido essa classificação expressos no lado apical dos enterócitos são a glico-
revista. Essa via é de especial importância para fár- proteína-P (P-gp ou proteína de resistência a múlti-
macos de baixo peso molecular (200 a 270 kDa), rela- plos fármacos 1 – MDR1), o MRP2 (proteína associa-
tivamente hidrofílicos, os quais permeiam o epitélio da de resistência a múltiplos fármacos 2) e o BCRP
intestinal pelo espaço intercelular e cuja absorção, (proteína de resistência do câncer de mama). No lado
em geral, é incompleta dado que os poros paracelu- basolateral, tem-se o MRP1 (proteína associada de
lares cobrem apenas 0,01 a 0,1% da área superficial resistência a múltiplos fármacos 1), MRP3 (proteí-
total do intestino. Exemplos de fármacos absorvidos na associada de resistência a múltiplos fármacos 3),
por essa via são atelonol, cimetidina, ranitidina, fa- MRP4 (proteína associada de resistência a múltiplos
motidina e furosemida4. fármacos 4), e MRP5 (proteína associada de resistên-
cia a múltiplos fármacos 5). Os transportadores de
influxo expressos na membrana basolateral dos en-
Transporte ativo terócitos são o OATP (transportador polipeptídico de
Além desses mecanismos, o transporte ativo me- ânions orgânicos), PEPT (proteína transportadora de
diado por carreadores desempenha um papel im- peptídeos), OCTN (transportador de cátions orgâni-
portante não somente na absorção, mas também em cos e carnitina), MCT1 (proteína transportadora de
outros processos como na distribuição e na secreção monocarboxilatos), PMAT (transportador de monoa-
renal e biliar. Esse tipo de transporte é caracterizado minas da membrana plasmática) e, na membrana ba-
pelo deslocamento do fármaco contra o gradiente de solateral, o OCT1 (transportador orgânico de cátions

A B C

ATP

Figura 3.2 – Ilustração do processo de transporte mediado por carreador, no qual o fármaco é transferido em direção contrária ao gra-
diente de concentração e com gasto de energia.
Fonte: Desenvolvida pela autoria do capítulo.

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Seção 1 – Princípios gerais

1) e OCT2 (transportador orgânico de cátions 2). Na apical dos enterócitos ao longo do TGI, nas células tu-
Tabela 3.2 encontram-se exemplos de fármacos que bulares renais, na membrana dos canalículos biliares
são substratos para esses transportadores, bem como dos hepatócitos e outras importantes barreiras plas-
os respectivos inibidores e indutores. Também são ma/tecido como o cérebro, testículos e placenta8. A
indicados quais desses transportadores são mais sus- P-gp desempenha um papel fisiológico importante na
ceptíveis aos polimorfismos genéticos, que podem re- proteção de tecidos contra xenobióticos tóxicos e me-
sultar em variabilidade interindivíduos com relação à tabólitos endógenos e como moduladora do processo
absorção dos fármacos que são substrato5. de absorção, distribuição e eliminação de fármacos
É importante ressaltar que esses mesmos transpor- que são seus substratos. Como a P-gp é expressa em
tadores, além de outros, estão localizados em diferen- muitos tecidos e tem um grande número de substra-
tes barreiras plasma/tecido no organismo, influencian- tos, esse transportador é comumente associado a inte-
do diretamente na distribuição tecidual e eliminação rações fármaco-fármaco e fármaco-alimento. Por um
de fármacos. Para uma revisão sobre transportadores, lado, a rifampicina, por exemplo, que é um indutor da
sugere-se consultar literatura específica6,7. P-gp, reduz os níveis séricos do saquinavir após ad-
Entre os transportadores, destaca-se a P-gp, trans- ministração oral na ordem de 37% e da digoxina em
portador de efluxo altamente expresso na membrana 70%. O cetoconazol, por outro lado, é inibidor da P-gp

Tabela 3.2 – Exemplos de fármacos cuja absorção é mediada por transportadores intestinais de influxo e efluxo.
Transportador Sentido do Localização Substratos Inibidores Indutores Polimorfismo
transporte no enterócito
MDR1 (P-gP) Efluxo Apical Doxorrubicina, Verapamil, suco de Erva-de-São-João Sim
indinavir, vincristina toranja (Hypericum
perforatum),
rifampicina
BCRP Efluxo Apical Metotrexato, Imatinib, nelfinavir, Enfavirenz Sim
topotecan, tamoxifeno
zidovudina
MRP1 Efluxo Basal Alcaloides da vinca, Probenecida — —
etoposídeo
MRP2 Efluxo Apical Ampicilina, eftriaxona Furosemida, Espironalactona, Sim
vimblastina probenecida rifampina
PEPT1 Influxo Cefalosporinas, Lisinopril — —
enalapril
OCTN1 Influxo Basal Quinidina, verapamil Grepafloxacino, — —
levofloxacino
OCTN2 Influxo Basal Imatinib, verapamil Grepafloxacino, Clofibrato —
levofloxacino
OCT1/OCT2 Influxo Apical Metformina, — — —
ranitidina
PMAT Influxo Apical Histamina, Desipramina, — —
metformina quinidina
OATP2B1 Influxo Apical Atorvastatina, Everolimus, suco de — Sim
fenoxifenadina toranja
OATP1A2 Influxo Apical Atenolol, Ciclosporina, — Sim
ciprofloxacino rifampina, suco de
toranja
MCT1 Influxo Apical Foscartnet, — — —
propicilina
BCRP: proteína de resistência do câncer de mama; MCT: proteína transportadora de monocarboxilatos; MRP: proteína associada de re-
sistência a múltiplos fármacos; OATP: transportador polipeptídico de ânions orgânicos; OCT: transportador orgânico de cátions; OCTN:
transportador de cátions orgânicos e carnitina; PEPT: proteína transportadora de peptídeos; P-gp: glicoproteína-P; PMAT: transportador de
monoaminas da membrana plasmática7.

Adaptado: Estudante et al. (2013)7.

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Capítulo 3 – Farmacocinética: Absorção, Distribuição, Metabolismo e Eliminação de Fármacos

e aumenta a disponibilidade biológica do tacrolimus


em 100% após administração oral. 100 passivo

Velocidade de absorção
Dado que o número aparente de transportadores
80
intestinais expressos na membrana é limitado, a velo-
cidade de absorção mediada por carreador (dC/dt) se- 60
gue uma cinética de saturação de Michaelis-Menten: a�vo
40
dC V ⋅C
= max (Equação 3.3)
dt KM + C 20

onde C é a concentração do fármaco no local de absor- 0


ção e Vmax e KM são a velocidade máxima de absorção 0 10 20 30 40 50 60
e a constante de Michaelis-Menten, respectivamente. Concentração no sí�o de absorção

Em baixas concentrações de fármaco, quando


KM >> C, a Equação 3.3 é simplificada e a velocidade Figura 3.3 – Relação entre a concentração de fármaco no local
de absorção segue uma cinética de primeira ordem de absorção e a velocidade de absorção para fármacos absor-
aparente, dado que a capacidade do sistema de trans- vidos por mecanismo passivo (azul) e ativo (preto pontilhado).
porte supera o número de moléculas a serem deslo- Fonte: Desenvolvida pela autoria do capítulo.
cadas de um lado para outro da membrana biológica:
Outros mecanismos de transporte através
dC V de membranas
= max ⋅ C = k ⋅ C (Equação 3.4)
dt KM Outro mecanismo de absorção de fármacos é por
transporte vesicular, que considera o processo de inclu-
Porém, se a concentração de fármaco disponível são de substâncias para o interior das células. No con-
para absorção supera a capacidade do sistema trans- texto da absorção, o transporte vesicular por pinocitose
portador (C >> KM), a proporção de moléculas do fár- é o mais importante e refere-se à inclusão de pequenos
maco capaz de atravessar a membrana é limitada e se solutos ou fluidos por meio da formação de vesículas,
reduz até uma velocidade máxima: de cerca de 150 nm, na membrana celular. Na absorção
por pinocitose, a solubilidade do fármaco não é um fa-
dC (Equação 3.5) tor limitante. Diferentemente da fagocitose, em que a
= Vmax
dt célula forma invaginações para englobar as substâncias
Desta forma, em teoria, conhecendo-se o valor de e liberá-las dentro da célula; na pinocitose, ocorre a for-
KM para cada substrato do transportador envolvido na mação de vesículas para inclusão das substâncias e seu
transporte para o outro lado da membrana. Esse meca-
absorção, seria possível prever qual a concentração
nismo permite a absorção de substâncias lipossolúveis
de fármaco no lúmen intestinal capaz de causar sa-
como as vitaminas A, D, E K e alguns lipídeos.
turação do transporte. Na prática clínica, no entanto,
essa aplicação é limitada, pois o valor de KM aparente Por fim, a difusão facilitada é outro tipo de pro-
cesso especializado envolvendo transportadores, mas
é dependente da expressão dos transportadores nos
a favor do gradiente de concentração, sem requerer
distintos segmentos intestinais, que é variável entre
energia e tendo maior importância no contexto da ab-
os pacientes9. sorção de vitaminas como a riboflavina e a tiamina.
A influência da concentração de fármaco no lo-
cal de absorção sobre a velocidade de absorção para
processos passivos e ativos é demonstrada na Figura Teoria de partição do pH e pKa
3.3. Pode-se observar que, para baixas concentrações, Outros fatores que influenciam a absorção, quan-
a velocidade do processo mediado por transporta- do o mecanismo envolvido é a difusão, são o poten-
dor é maior do que a do processo passivo. À medida cial hidrogeniônico (pH) do meio biológico e a cons-
tante de dissociação (pKa) do fármaco. Em geral, os
que essas concentrações crescem, no entanto, ocorre
fármacos são bases ou ácidos fracos e, por essa razão,
saturação do transportador e a velocidade de absor-
apresentam-se em solução aquosa como espécies quí-
ção atinge um platô, independente da concentração
micas ionizadas e não ionizadas. Apenas as espécies
no sítio de absorção. No transporte passivo, como o não ionizadas são lipossolúveis o suficiente para atra-
gradiente de concentração governa a transferência do vessar as membranas biológicas e serem absorvidas.
fármaco entre o local de absorção e a circulação san- Por essa razão, a constante de dissociação apresenta
guínea, essa velocidade será aumentada linearmente um papel determinante na capacidade do fármaco
com o aumento da concentração de fármaco no sítio de atravessar as membranas. Dependendo do pH do
de absorção. meio, uma fração maior ou menor de moléculas do

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Seção 1 – Princípios gerais

fármaco estará no estado não ionizado, passível de ser a ionização de fármacos com pKa básico nesse meio
absorvida. A inter-relação entre pKa, pH do meio e li- desfavoreceria a sua passagem através da membrana.
possolubilidade do fármaco dita as características de A extensão de ionização de um ácido ou base fra-
absorção e compõe a teoria de partição do pH. ca, desse modo, dependerá destes dois fatores: pH e
De acordo com a teoria de partição do pH, fárma- pKa. A equação de Henderson-Hasselbalch permite
cos ácidos fracos tendem a se acumular em compar- determinar a razão entre as espécies ionizadas e não
timentos fluidos básicos; enquanto fármacos bases ionizadas de um fármaco em qualquer valor de pH:
fracas, em compartimentos ácidos, resultado da trans- Para ácidos fracos
ferência de prótons dos ácidos para o meio básico e
vice-versa. Como a carga elétrica diminui a permea- [não ionizado]
log = pka – pH (Equação 3.6)
bilidade das substâncias na membrana biológica, a [ionizado]
molécula na forma ionizada não poderá escapar desse Para bases fracas
compartimento com facilidade, acumulando-se nele10.
Essa teoria explica a rápida absorção oral de fármacos [ionizado]
log = pka – pH (Equação 3.7)
ácidos como a cefalexina (pKa 3,6), por exemplo, no [não ionizado]
meio ácido estomacal (pH 1,2), apesar de as condições Quando o pH do meio for igual ao pKa do fármaco,
fisiológicas do estômago não serem as mais propícias teremos 50% de fármaco na forma ionizada e 50% na
para a absorção (Figura 3.5). Em geral, a absorção esto- forma não ionizada. A ionização do fármaco é impor-
macal será mais rápida para os fármacos ácidos, para tante em outros processos farmacocinéticos como a
os quais há um favorecimento das espécies não ioni- distribuição em determinados tecidos e eliminação,
zadas, em comparação aos fármacos básicos, dado que conforme será discutido mais adiante.

Cefalexina pka 3,6

H2N H2N H
H N S
N S

O N O N
CH3 O CH3
O

O OH O OH

[não ionizado] [não ionizado]


= 251,18 = 1,58.10–4
[ionizado] [ionizado]

H2N H
N S
H2N H
O N N S
O CH3 + H3O+
O N + H3O+
O O— O CH3

O O—
pHEstômago = 1,2 pHplasma = 7,4

Figura 3.4 – Exemplo da aplicação da equação de Henderson-Hasselbalch para ilustrar o efeito do pH do meio gástrico sobre a absorção
oral da cefalexina, um antibiótico β-lactâmico de caráter ácido, com pKa = 3,6. No ambiente ácido do estômago, as formas não ionizadas
do fármaco são favorecidas, com uma razão entre a forma não ionizada e a ionizada igual a 251,18, o que favorece sua rápida absorção.
Quando o fármaco é transferido para o plasma, onde o pH é 7,4, ocorre a doação dos grupamentos ácidos da cefalexina para o meio e
a forma ionizada é favorecida, com uma razão da fração não ionizada/ionizada igual a 1,58.10–4, reduzindo de forma importante a sua
lipossolubilidade em função da carga e, consequentemente, seu retorno ao local de absorção.
Fonte: Desenvolvida pela autoria do capítulo.

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Capítulo 3 – Farmacocinética: Absorção, Distribuição, Metabolismo e Eliminação de Fármacos

„ Absorção no trato gastrointestinal (TGI) a absorção de alguns fármacos, conforme comentado


anteriormente. Por fim, o colo é um local onde a ab-
Embora existam pequenas diferenças anatômicas
sorção pode ser limitada por características histoló-
e fisiológicas em relação aos locais a partir dos quais
gicas da membrana epitelial e arranjo celular muito
os fármacos são absorvidos, em termos gerais, os fa-
justaposto, que resultam em redução da absorção
tores que influenciam esse processo podem ser bem
pela via paracelular. No entanto, consequentemente
exemplificados quando consideramos a administra-
à presença da microbiota bacteriana, ao pH próximo
ção por via oral, principal via empregada no ambien-
ao neutro e ao tempo de permanência elevado do fár-
te ambulatorial. Os principais componentes do TGI
maco nesse local, há na literatura diversos estudos
incluem estômago, intestino delgado (dividido em
visando a produção de formas farmacêuticas para li-
duodeno, jejuno e íleo) e colo (Figura 3.5), os quais
apresentam diferenças importantes em termos anatô- beração colônica de fármacos específicos11.
micos e fisiológicos como o pH, espessura da mem-
brana, fluxo sanguíneo, área superficial, entre outros,
como indicado na Tabela 3.3. Esôfago Ph 5-6
O esôfago e o estômago desempenham um papel
menor no processo de absorção, em comparação ao
intestino, pois, em geral, os fármacos permanecem Duodeno pH 6-6.5
por um tempo muito reduzido nesses locais em de-
corrência do peristaltismo. Além disso, eles não apre- Estômago pH 1-3
sentam características anatomofisiológicas adequadas
para a absorção, como presença de microvilosidades
e espessura epitelial que facilite a transferência de
fármacos para a circulação. Outro fator que influen-
Jejuno pH 5-7
cia a absorção, especificamente no estômago, é o pH
do meio gástrico (= 1,2) que, conforme discutido an- Colo pH 7-8
teriormente, modula a solubilidade dos fármacos áci-
dos e bases fracas, em função do grau de ionização,
e sua lipossolubilidade. O pH ácido estomacal pode, Íleo pH 7-8
em alguns casos, promover degradação local de fár-
macos como ampicilina e eritromicina, por exemplo,
contribuindo para sua disponibilidade reduzida após
administração oral.
Desse modo, o principal local de absorção de Reto pH 7
fármacos a partir do TGI é o intestino delgado (em
particular o duodeno) em razão da presença de mi-
crovilosidades que ampliam muito a área superficial
absortiva, fator importante para o mecanismo de difu- Figura 3.5 – Representação dos principais locais do trato gas-
são. Além disso, é no intestino delgado que estão pre- trointestinal humano e respectivos valores de pH observados.
sentes os transportadores intestinais essenciais para Fonte: Desenvolvida pela autoria do capítulo.

Tabela 3.3 – Fisiologia do TGI e absorção de fármacos.


Local do TGI pH Espessura da Fluxo sanguíneo Área superficial Tempo de trânsito Efeito de primeira
membrana passagem
Boca 7 Fina Bom, com rápida Pequena Curto Sim
absorção para
dose baixa
Esôfago 5a6 Muito fina, sem Bom Pequena Curto Não
absorção
Estômago 1a3 Normal Bom Pequena 30 a 40 min Não
Duodeno 6 a 6,5 Normal Bom Muito grande 6 min Não
Íleo + jejuno 5a8 — Bom Muito grande 3 horas Não
(80 cm2/cm)
Cólon 7a8 — Bom Grande 24 horas ou mais Sim, na sua porção
distal
Fonte: Ritchel WA. Handbook of Basic Pharmacokinetics. 4. ed. Hamilton: Drug Intelligence Publications, 1992.

33
Seção 1 – Princípios gerais

Além das questões anatômicas e histológicas, o Tabela 3.4 – Fatores que afetam o esvaziamento gástrico.
fluxo sanguíneo esplênico (vísceras abdominais, fíga- Fator Efeito sobre o esvaziamento gástrico
do, estômago e intestino), o qual representa 28% do
Volume ingerido O volume de alimento ingerido promove
débito cardíaco, pode influenciar a absorção, de acor- um gradiente de pressão estômago/
do com o perfil do fármaco1. Fármacos polares, que duodeno que pode ativar barorreceptores.
são lentamente absorvidos, mostram um perfil de ab- Quando a ingesta é de líquidos, esse fator
sorção fluxo-independente. No entanto, fármacos de é de especial importância para fármacos
baixo peso molecular e solúveis em lipídeos ou que pouco solúveis, pois o volume auxilia na
facilmente penetram os poros aquosos da membrana, dissolução do fármaco. Recomenda-se
são altamente dependentes do fluxo sanguíneo esplê- um volume não menor de 200 mL para
administração de formas farmacêuticas
nico, pois ele contribui para o gradiente de concentra-
sólidas pela via oral.
ção entre o lúmen intestinal e a circulação sistêmica.
Dessa maneira, doenças como insuficiência cardíaca Consistência do O esvaziamento de líquidos, semissólidos
congestiva, hemorragias (por trauma ou cirurgia) ou conteúdo gástrico ou sólidos apresenta diferentes
velocidades, com maior rapidez para os
choque podem reduzir a disponibilidade biológica de
líquidos e atraso para os sólidos, podendo
fármacos fluxo-dependentes10. apresentar períodos de latência para os
O esvaziamento gástrico, processo fisiológico semissólidos e sólidos.
que regula o deslocamento do fármaco do estômago Composição Os componentes da dieta atuam como
em direção ao duodeno, também é importante para química da dieta estímulos aos quimioceptores que
a absorção de fármacos. O esvaziamento gástrico é modulam a velocidade de esvaziamento
depende do tipo de conteúdo presente no estômago gástrico por mecanismos neuro-hormonais.
e modula-se pelo peristaltismo gástrico e uma série Assim, a ingesta de glicídeos, lipídeos
de mecanismos sensíveis a estímulos extrínsecos e proteínas têm efeitos inibitórios no
esvaziamento gástrico, de intensidade
como volume, composição, consistência, tonicidade
variável e mais expressiva para os lipídeos.
e outras características da dieta (Tabela 3.4). Como o
duodeno é o principal local de absorção de fármacos, Tonicidade O efeito da tonicidade é variável e alguns
íons volumosos como K+ e Ca2+ tendem
para fármacos absorvidos por difusão, quanto mais
a aumentar o tempo de esvaziamento
rápido for o trânsito do estômago para o duodeno gástrico, assim como os açúcares. Íons
(menor tempo de esvaziamento gástrico), mais rápida menores como Cl– e H3CO– e compostos
será a absorção. Nos casos em que o fármaco é ab- não iônicos de baixo peso molecular (ureia,
sorvido mediante transportadores, uma chegada mais glicerina) aceleram o esvaziamento em
lenta ao local de absorção pode facilitar a extensão da baixa concentrações e o retardam em altas
absorção, à medida que previne a saturação dessas concentrações.
proteínas de transporte e, nesse caso, um tempo de Adaptado de: Berrozpe JD, Lanao JM, Plá Delfina JM. Biofarmacia y
esvaziamento gástrico maior pode ser interessante1. Farmacocinética. Vol. 3. Biofarmacia. Madrid: Editorial Síntesis, 1998.

Por fim, outro aspecto importante que pode afe- Na absorção oral, diferentemente de outras vias
tar a disponibilidade de fármacos é a presença de ali- de administração, destaca-se o metabolismo pré-sis-
mentos contendo aminoácidos, ácidos graxos e outros têmico como um processo importante na modulação
nutrientes no trato gastrointestinal, uma vez que eles da disponibilidade biológica do fármaco. Os fármacos
podem alterar o pH intestinal e a solubilidade do fár- absorvidos no duodeno são transportados pelos va-
maco. O efeito dos alimentos é observado quando este sos mesentéricos em direção à veia porta hepática e
é ingerido próximo à administração oral e, em geral, acessam o fígado antes de chegar ao organismo (rever
não é previsível, mas pode ter consequências clínicas anatomia na Figura 3.5), o que pode reduzir de forma
importantes. Enquanto a absorção de alguns antimi- importante a quantidade de fármaco que chega à cir-
crobianos como as tetraciclinas é reduzida com os culação sistêmica (fração biodisponível) já que essa
alimentos, resultado de fenômenos de complexação primeira passagem hepática pode ocasionar uma rá-
com cátions divalentes, como o cálcio presente no pida metabolização (ver item Efeito de primeira pas-
leite, outros fármacos, como a griseofulvina são mais sagem). Nesse contexto, apesar de ter sido absorvido,
bem absorvidos quando administrados com dietas ri- o fármaco não se torna disponível para exercer efeito
cas em gordura, em virtude do aumento da solubili- farmacológico, pois as concentrações na circulação
dade proporcionado pelos surfactantes presentes nos sistêmica e nos tecidos são baixas. Para compensar
sais biliares. Assim, é importante conhecer o efeito a perda de parte da dose administrada, fármacos que
dos alimentos na absorção desses fármacos para ga- sofrem efeito de primeira passagem importante são
rantir a sua adequada utilização clínica. administrados em doses maiores pela via oral, para

34
Capítulo 3 – Farmacocinética: Absorção, Distribuição, Metabolismo e Eliminação de Fármacos

assegurar a obtenção de concentrações suficientes via de administração. Nesse contexto, a Equação 3.8 é
para o efeito farmacológico pretendido. utilizada para determinar a Fabs:
Após a administração por via sujeita a processo de ASC0-∞ extravascular D iv
absorção, diversos fatores podem contribuir para que Fabs = ⋅ (Equação 3.8)
ASC0-∞ iv DNS
uma quantidade menor do que a dose administrada
alcance a circulação sistêmica, conforme discutido onde a dose i.v. (Di.v.) pode diferir da dose extravascu-
anteriormente, impactando na resposta terapêutica. lar – não sistêmica (DNS).
Dessa maneira, é importante conduzir estudos de
Em algumas situações especiais, quando se deseja
avaliação da disponibilidade biológica do fármaco
comparar duas vias de administração que envolvam o
após administração por via extravascular, com o ob-
processo de absorção (intramuscular e oral, por exem-
jetivo de comparar às concentrações plasmáticas ob-
tidas após a administração pela via vascular, visando plo) ou duas formas farmacêuticas (solução e cápsu-
garantir a obtenção de concentrações terapêuticas. Do las), a determinação da biodisponibilidade relativa
mesmo modo, é necessário comparar a absorção do (Frel) pode ser interessante. O mesmo tipo de aborda-
fármaco após administração de formulações distintas gem é realizado, mas a comparação se dá em relação
na mesma via de administração, visando garantir a à exposição (ASC0-∞) observada na via ou formulação
intercambialidade das mesmas. de referência em relação à via ou formulação teste:
ASC0-∞ teste D referência
Frel = ⋅ (Equação 3.9)
„ Biodisponibilidade (F) ASC0-∞ referência D teste
O parâmetro biodisponibilidade refere-se à velo- Podemos notar que, para a determinação da bio-
cidade e extensão com que o fármaco chega à circu- disponibilidade, o cálculo da área sob a curva é essen-
lação sistêmica a partir de uma determinada via de cial. A determinação da ASC pode ser realizada pela
administração10. A velocidade de absorção, que pode regra trapezoidal, um método matemático de aproxi-
ser inferida por meio do tempo (tmax) para obter con- mação para uma integral definida (Figura 3.6). Neste
centração plasmática máxima (Cmax) após administra- método, dois pontos adjacentes (t1 e t2) são utilizados
ção e o próprio valor de Cmax (Figura 3.6), é importante para formar a altura de um trapézio, cujas bases são
para fármacos utilizados em condições agudas, como definidas pelos valores de concentração (C1 e C2) cor-
analgésicos e hipnóticos, empregados como dose úni- respondentes a esse intervalo de tempo. Essa estima-
ca, pois uma absorção lenta pode resultar em concen- tiva deve ser realizada em escala linear e o somatório
trações menores do que as necessárias para iniciar e da área de cada trapézio permite uma aproximação do
manter o efeito, mesmo que a dose total seja absor- valor da área sob a curva de concentração plasmática
vida. Já a extensão da absorção, que é uma medida versus tempo no intervalo entre o tempo zero (0, mo-
da exposição do organismo ao fármaco e pode ser mento da administração da dose) e o tempo t (tempo
caracterizada pela área sob a curva de concentração da última coleta de amostra).
plasmática por tempo (ASC0-∞), é geralmente mais im-
portante para fármacos administrados de forma con-
tínua, em dose múltipla, para o tratamento de condi- Cmáx B = C1
8
ções subcrônicas ou crônicas, como infecções, asma
7
Concentração

ou epilepsia10. h = ∆t
6
Apesar de o termo “biodisponibilidade” relacio- 5
B = C2
nar-se à velocidade e extensão com que o fármaco 4
atinge a circulação sistêmica a partir da administra- 3
Cn
ção em via extravascular em comparação com a via 2 ASCt–∞
intravenosa (i.v.), geralmente ele é utilizado apenas 1
para indicar a extensão de absorção. Mais adequada- 0
mente, fração biodisponível absoluta (Fabs) é o termo t0 t1 t2 t3 t4 t5 t6 t7
utilizado para determinar a fração da dose que chega Tempo
tmáx
à circulação sistêmica após uma administração ex-
travascular, comparativamente com a administração Figura 3.6 – Estimativa da ASC0–t pelo método trapezoidal em
pela via i.v., na qual a totalidade da dose é adminis- escala linear. A ASCt4–t5 é mostrada em destaque na área em
trada diretamente da circulação (100% biodisponível cinza. Pode ser observada uma pequena discrepância entre o
por definição). Como a grande maioria dos fármacos gráfico obtido na interpolação dos dados (em preto) e os valo-
apresenta um comportamento farmacocinético linear res da curva (em azul). A última concentração medida experi-
em doses terapêuticas, há proporcionalidade entre a mentalmente está indicada no gráfico (Cn) e na área do gráfico
dose administrada e ASC0-∞, sendo a eliminação (de- correspondente à extrapolação (ASCext).
puração) do fármaco do organismo independente da Fonte: Desenvolvida pela autoria do capítulo.

35
Seção 1 – Princípios gerais

Para o cálculo da área sob a curva no interva- fármaco, na mesma forma química e mesma dose,
lo de tempo t (última concentração determinada são considerados bioequivalentes quando apresentam
experimentalmente) e tempo infinito (quando não semelhante velocidade e extensão de absorção após
há mais fármaco na circulação sistêmica) – ASCext administração para o mesmo grupo de indivíduos
ou ASCt–∞ – para a qual não há informações (assín- sob condições experimentais padronizadas. Para dois
tota horizontal), determina-se uma projeção de área medicamentos serem considerados bioequivalentes
sabendo-se a constante de velocidade de eliminação devem apresentar semelhança ≥ 80% na extensão
do fármaco por meio da equação12. (ASC0–∞) e velocidade (Cmax, tmax) de absorção. Para
fins de registro de medicamentos, a comprovação
Cn
ASCt–∞ = (Equação 3.10) de semelhança do tmax entre o medicamento-teste e
λz o medicamento-referência somente precisa ser feita
onde Cn é a última concentração determinada experi- para fármacos utilizados em situação de emergência
mentalmente λz é a constante de velocidade de elimi- nas quais uma resposta rápida é determinante para
nação determinada a partir da inclinação da fase ter- a eficácia terapêutica, como no caso do nifedipino,
minal de eliminação do fármaco do organismo, obtida por exemplo, utilizado no tratamento da arritmia car-
dos perfis de concentração versus tempo traçados em díaca. Dois medicamentos bioequivalentes devem
escala semilogarítmica. apresentar mesma eficácia e segurança, podendo ser
intercambiados pelo paciente.
Para o cálculo de λz, no gráfico de concentração
versus tempo em escala semilogarítmica, determina-
-se o valor da inclinação entre duas concentrações „ Distribuição
não consecutivas (Cn e Cn–2) na fase de eliminação e Após a chegada do fármaco à circulação sistêmi-
seus respectivos tempos (tn e tn–2), conforme demons- ca, ele precisará sair deste local e ser distribuído para
trado na Figura 3.8., utilizando-se as Equações 3.11 os diferentes tecidos do organismo para chegar aos
e 3.12: receptores farmacológicos e efetivamente exercer seu
log (Cn – Cn–2) efeito terapêutico. Distribuição é o processo de trans-
m= (Equação 3.11) ferência reversível do fármaco da circulação em dire-
tn – tn–2
ção aos tecidos (Figura 3.8).
λz = 2,303 ⋅ m (Equação 3.12)
Efeito

10
Concentração

Cn–2

⇌ ⇌


1 Inters�cio
∆C
Cn

tn–2 ∆t tn
0,1 Sangue
t0 t1 t2 t3 t4 t5 t6 t7
Tempo
Figura 3.8 – Ilustração do processo de distribuição do fármaco
no organismo. Quando chega à circulação, apenas o fármaco li-
Figura 3.7 – Determinação do valor de inclinação (m) da fase vre (não ligado às proteínas e aos eritrócitos) é capaz de atraves-
terminal de eliminação (λz) a partir de dados de concentração sar as membranas vasculares e chegar ao espaço intersticial, no
versus tempo em escala semilogarítmica. qual um novo equilíbrio se estabelece. Apenas a fração livre te-
Fonte: Desenvolvida pela autoria do capítulo. cidual ou intracelular é capaz de exercer o efeito farmacológico.
Fonte: Desenvolvida pela autoria do capítulo.
Assim, o valor de ASC0–∞ pode ser determinado
pelo somatório da área sob a curva trapezoidal e da Após a chegada à circulação, de acordo com a
área sob a curva extrapolada como: afinidade aos constituintes vasculares (proteínas e
eritrócitos) o fármaco estabelecerá um equilíbrio di-
ASC0–∞ = ASC0–t + ASCt–∞ (Equação 3.13)
nâmico entre a fração livre e a fração ligada neste
Uma aplicação especial da biodisponibilidade compartimento; apenas a fração livre será capaz de
relativa de dois produtos se dá nos estudos de bioe- ultrapassar as membranas vasculares e de chegar aos
quivalência. Dois medicamentos contendo o mesmo tecidos, onde um novo equilíbrio será estabelecido

36
Capítulo 3 – Farmacocinética: Absorção, Distribuição, Metabolismo e Eliminação de Fármacos

entre a fração livre tecidual e a fração ligada (Figura restrita a determinados espaços fisiológicos, como a
3.9). Apenas a fração livre intersticial poderá se ligar reduzida penetração cerebral de muitos fármacos, em
a receptores ou penetrar nas células para exercer sua virtude da barreira hematoencefálica (BHE).
ação farmacológica.
Ligação às proteínas plasmáticas
Além dos fatores ligados às propriedades físico-
⇌⇌
Fármaco livre
Fármaco livre Fármaco livre
Fármaco livre -químicas do fármaco e às características das membra-
nas plasma/tecido, a ligação às proteínas plasmáticas



fup f fut ut é outro parâmetro importante que influencia não só
Fármaco ligado
Fármaco ligado Fármaco ligado
Fármaco ligado os processos de distribuição e eliminação, mas tam-
sangue Vp Vt tecido bém a resposta farmacológica, considerando-se que
apenas a fração livre se distribuirá nos tecidos, será
depurada da circulação e exercerá o efeito terapêuti-
Figura 3.9 – Chegada do fármaco à circulação sistêmica e esta-
belecimento do equilíbrio dinâmico entre a fração livre na água co. Fármacos com elevada ligação às proteínas, como
do plasma (fup) e a fração ligada aos constituintes no sangue a varfarina e o ácido valproico, em geral, apresentam
(proteínas e eritrócitos). Apenas a fup é capaz de atravessar as reduzida distribuição tecidual, pois ficam confinados
membranas vasculares e chegar aos tecidos e, chegando a este no espaço vascular. Ao contrário, fármacos que apre-
local, o fármaco estabelecerá um novo equilíbrio entre a fração sentam elevada fração livre no plasma podem se dis-
livre (fut) e a ligada aos constituintes teciduais. Apenas esta fra- tribuir amplamente pelos tecidos.
ção livre tecidual é farmacologicamente ativa.
Fonte: Desenvolvida pela autoria do capítulo.
Na fração plasmática do sangue, a albumina é a
proteína presente em maior concentração (35 a 50 g/L).
No organismo, essa proteína encontra-se distribuída
Fatores que afetam a distribuição
além do espaço vascular (40%), também no espaço
A velocidade e a extensão com que um fármaco extravascular (60%). A albumina tem afinidade por
é distribuído depende de fatores ligados aos fárma- fármacos de caráter ácido, os quais, em geral, ligam-
cos semelhantes aos discutidos para o processo de -se às porções N-terminais da sua estrutura. Também
absorção como peso molecular, lipossolubilidade, é possível a ocorrência de ligações inespecíficas da
relação entre o pKa/pH, entre outros, pois os dois
albumina a fármacos de caráter básico, os quais, em
processos têm em comum a passagem do fármaco
geral, têm afinidade pela α-1-glicoproteina-ácida, pre-
através de membranas biológicas. Fatores fisiológi-
sente em baixíssima concentração no plasma (0,4 a
cos como a perfusão sanguínea, permeabilidade nas
1,0 g/L). As outras proteínas plasmáticas com as quais
membranas biológicas e a expressão de transporta-
os fármacos podem se ligar são as lipoproteínas, que
dores de efluxo e influxo também influenciam o pro-
apresentam concentração variável e afinidade por fár-
cesso de distribuição.
macos lipossolúveis, e a transcortina (0,01 a 0,03 g/L)
Quando a distribuição é limitada pela perfusão, as com afinidade pelo cortisol.
membranas celulares não oferecem resistência à pas-
sagem do fármaco, pois ele apresenta propriedades Para a maioria dos fármacos, em doses terapêuti-
físico-químicas que facilitam sua passagem através cas, a ligação às proteínas plasmáticas é constante e
destas membranas, como baixo peso molecular, lipos- pode ser determinada no plasma dos pacientes me-
solubilidade adequada ou capacidade de atravessá-la diante métodos como ultrafiltração, diálise e micro-
por poros aquosos. Essas condições permitem um diálise8. Uma vez que a quantidade de proteína cir-
acesso rápido aos tecidos bem perfundidos como rins, culante e o número de sítios de ligação são limitados,
fígado e coração, e a chegada mais lenta aos tecidos quando dois fármacos muito ligados à proteína são
menos perfundidos como a gordura ou tecidos com utilizados em associação, como fenitoína e o ácido
expressão de transportadores de efluxo, como o cé- valproico, por exemplo, pode haver deslocamento da
rebro. Já para os fármacos com distribuição limitada ligação à proteína e aumento da fração livre do fár-
pela permeabilidade, as membranas biológicas limi- maco com menor afinidade (fenitoína, neste caso),
tam sua passagem em virtude de seu peso molecular, provando mudanças na sua distribuição ou elimina-
grau de ionização ou lipossolubilidade. Nesse caso, ção consequente ao aumento da fração livre. A ne-
a velocidade de distribuição será mais lenta para cessidade de correção de dose, no caso dessas intera-
os tecidos à medida que a permeabilidade reduzida ções farmacocinéticas por deslocamento da ligação a
impede uma distribuição ampla mesmo em tecidos proteínas, dependerá de outros fatores relacionados
bem perfundidos. Em função das características da à distribuição e à eliminação do fármaco, não sendo
membrana, a distribuição do fármaco pode ser mais possível estabelecer uma regra geral.

37
Seção 1 – Princípios gerais

Outros fatores que podem gerar aumento da fração terminar o Vd, assume-se uma distribuição homogê-
livre do fármaco são a idade e determinadas doenças. nea e instantânea do fármaco após a administração i.v.
Crianças e idosos, em virtude de menores concentra- em bólus e se realiza a determinação da concentração
ções de albumina circulante, podem apresentar me- observada imediatamente após a administração intra-
nor ligação às proteínas plasmáticas. A teofilina, por venosa (Cp0), obtida por extrapolação das curvas de
exemplo, apresenta uma ligação às proteínas na faixa concentração versus tempo (Figura 3.11).
de 32% em recém-nascido e 53% em adultos, o que
provoca diferenças na distribuição do fármaco nes-
100
sas duas populações13. Doenças como cirrose hepáti-
ca, queimaduras, síndrome nefrótica e insuficiência Cp0 ob�do por extrapolação
renal também reduzem a concentração de albumina

Concentração
10
circulante, ensejando mudanças na farmacocinética
e na farmacodinâmica de fármacos altamente ligados
às proteínas.
1

„ Volume de distribuição (Vd)


0,1
Imediatamente após a administração intraveno- 0 2 4 6 8 10 12
sa, a quantidade de fármaco no organismo equivale Tempo
à dose que foi administrada (D = A0) e, assim, se a
concentração no plasma fosse conhecida, podería- Figura 3.10 – Gráfico de concentração plasmática por tempo
mos estimar um volume teórico no qual esta dose de em escala semilogarítmica após dose i.v. em bólus de fármaco
fármaco estaria distribuída e correlacioná-lo com os indicando a concentração no tempo zero após a dose, que é uti-
espaços corporais fisiológicos: lizada para determinação do volume de distribuição utilizando-
-se a Equação 3.14.
At D Fonte: Desenvolvida pela autoria do capítulo.
Vdt = = (Equação 3.14)
Cpt Cp0
Embora essa abordagem para a determinação de
Esta constante de proporcionalidade que relaciona a um volume aparente de distribuição do fármaco no
quantidade de fármaco no organismo (At) em qualquer organismo seja válida em termos matemáticos, o vo-
tempo “t” e a concentração plasmática observada nes- lume de distribuição real do fármaco é relacionado
te tempo (Cpt) é denominada “volume de distribuição ao volume de água corporal total (correspondente a
aparente do fármaco” (Vd) e é utilizada em farmaco- ≈ 60% do peso do indivíduo), o qual se distribui em
cinética como um parâmetro primário representativo três espaços fisiológicos (indivíduo de 70 kg): plas-
da extensão da distribuição do fármaco no organismo. ma (3,5 L); fluido extracelular (15 L, composto pelo
Na prática, é necessário um tempo para que o fárma- líquido intersticial + plasma); e fluido intracelular
co seja amplamente distribuído na circulação, o que (26,5 L), os quais podem ser estimados por distintos
torna sua estimativa complexa. Deste modo, para de- marcadores, conforme mostrado na Tabela 3.5.

Tabela 3.5 – Principais substâncias utilizadas como marcadores dos espaços corporais aquosos e suas características
físico-químicas e farmacocinéticas pertinentes à distribuição.
Substância Vd (L) Ligação às proteínas Características
Azul de Evans 3,5 Elevada (> 95%) Corante de alto peso molecular, não permeável às membranas vasculares,
confinado ao compartimento do plasma, que permite a estimativa
do volume desse compartimento ou do sangue, se o hematócrito for
conhecido.
Inulina 15,5 Negligenciável Substância utilizada como marcador exógeno da filtração glomerular,
com insignificante ligação às proteínas plasmática, permeável apenas
nas membranas vasculares, o que permite a estimativa do volume de
distribuição no fluido extracelular.
Fenazona 42 < 10% ligado às Fármaco com propriedades anti-inflamatórias não esteroide, que se
proteínas plasmáticas distribui amplamente nos fluidos corporais, permeável nas membranas
vasculares e celulares, o que permite a estimativa do volume de
distribuição na água corporal total.
Fonte: Desenvolvida pela autoria do capítulo.

38
Capítulo 3 – Farmacocinética: Absorção, Distribuição, Metabolismo e Eliminação de Fármacos

É importante ressaltar que, nos exemplos mos- Por meio da Equação 3.15, pode-se demonstrar que
trados na Tabela 3.5, o volume de distribuição apa- o menor valor de volume de distribuição de um fárma-
rente de cada um destes marcadores se aproxima do co é equivalente ao volume de plasma (Vd ≈ Vp), que
verdadeiro volume dos compartimentos fisiológicos se constata quando há elevada ligação às proteínas no
porque sua ligação às proteínas plasmáticas e teci- espaço vascular e reduzida ligação nos espaços extra-
duais é negligenciável, o que permite uma distribui- vasculares, assim, fup/fut << 1. Essa situação ocorre
ção homogênea nestes, sem a influência de ligantes com fármacos altamente polares e de alto peso mole-
plasmáticos ou teciduais que modifiquem a relação cular, restritos ao espaço vascular, como a varfarina
entre quantidade e concentração. A única exceção é o (Vd = 7 L). Já para os fármacos lipossolúveis, como o
azul de Evans, para o qual a elevada ligação às proteí- ácido valproico (Vd ~ 16 L), que são altamente liga-
nas plasmáticas contribui para seu confinamento no dos às proteínas plasmáticas, mas menos ligados aos
plasma e determinação de um volume de distribuição tecidos (fup/fut < 1), os valores de Vd serão interme-
aparente semelhante ao volume plasmático. Para a diários entre o volume de plasma e o volume de água
maioria dos fármacos, no entanto, não é esse o caso, e corporal total. Fármacos com elevada afinidade pelos
a ligação aos constituintes do espaço vascular e extra- tecidos (fup/fut >> 1) apresentarão elevados valores
vascular, ou ambos, é significativa. de Vd, como a ciclosporina (Vd = 245 L). Fármacos
Esse conceito simplificado de volume de distri- que se acumulam em tecidos específicos podem apre-
buição é útil em termos comparativos, permitindo sentar volumes de distribuição muito elevados, como
quantificar numericamente a extensão do processo é o caso da cloroquina (Vd ∼ 17.000 L), que apresenta
de distribuição para fármacos da mesma classe te- uma concentração no fígado mil vezes maior que a
rapêutica ou em pacientes com condições clínicas concentração plasmática.
distintas, como extremos de peso e idade, por exem- No processo de distribuição, o fármaco atinge di-
plo. A associação direta com os espaços corporais versos órgão e tecidos, sendo alguns deles capazes de
é, no entanto, difícil de ser realizada à medida que eliminar o fármaco do organismo.
os compartimentos fisiológicos não se comportam
como meros “recipientes” nos quais o fármaco se
solubiliza de forma homogênea e instantânea. De
„ Eliminação
acordo com a afinidade do fármaco com as proteínas A eliminação de fármacos relaciona-se à sua exclu-
plasmáticas e os ligantes teciduais e a expressão de são irreversível do organismo e pode ocorrer por dois
transportadores de influxo e efluxo, a concentração processos: 1) metabolização, que é a transformação
de fármaco presente em determinados tecidos pode química do fármaco visando facilitar sua excreção; 2)
ser muito diferente da concentração plasmática, lo- excreção, que é a eliminação do fármaco inalterado
cal de onde usualmente retiram-se as amostras para (intacto) ou de seus metabólitos, principalmente pela
determinar o Vd. urina. Os principais órgãos de eliminação de fárma-
cos são o fígado, os rins e os pulmões, no caso de fár-
Embora a fração livre no plasma influencie a mag- macos voláteis como os anestésicos inalatórios (p.ex.,
nitude do volume de distribuição, uma vez que ape- halotano, isoflurano). Outras formas de eliminação
nas essa fração é capaz de sair dos espaços vascula- de fármacos e metabólitos compreendem a excreção
res e chegar aos tecidos, ela não é o único fator que biliar (p.ex., rifampicina, indometacina, digoxina),
modula esse parâmetro, sendo importante também a salivar (p.ex., propranolol, metilprednisolona, isonia-
afinidade do fármaco pelos tecidos. Quanto maior tal zida), intestinal (p.ex., doxiciclina), através do suor
afinidade, maior a quantidade de fármaco presente (p.ex., sulfanilamida, sulfadiazina), do leite materno
nos tecidos e, consequentemente, maior o valor de (p.ex., diazepam, ácido acetilsalicílico, fenitoína) e
Vd (Figura 3.10). A equação geral de volume de dis- dos cabelos (p.ex., drogas como cocaína e anfetami-
tribuição permite compreender a influência da fração na). A eliminação pelas três últimas vias é quantita-
livre no plasma (fup) e fração livre nos tecidos (fut) tivamente muito pequena, podendo ser considerada
sobre o Vd: desprezível em comparação com vias mais relevantes
fup como a renal, mas a eliminação pelo leite materno
Vd = Vp + Vt ⋅ (Equação 3.15)
fut pode ser importante pelos efeitos no lactente.

onde Vp é o volume de plasma (≈ 3,5 L) e Vt é o volu-


me dos tecidos (≈ 12 a 39L) de valor variável, depen- Metabolismo
dendo da permeabilidade do fármaco nas membranas O metabolismo é a biotransformação do fármaco
celulares e sua lipossolubilidade. dividida em dois tipos de reações, conhecidas como

39
Seção 1 – Princípios gerais

reações de Fase 1 e Fase 2. A transformação estrutural toxinas). Das diversas famílias CYP descritas, três são
sofrida pelo fármaco, geralmente catalisada por enzi- as mais relevantes para o metabolismo de fármacos:
mas, objetiva o aumento da polaridade da molécula CYP1; CYP2; e CYP3. As enzimas do CYP são respon-
buscando facilitar a excreção renal direta e/ou permi- sáveis por 75 a 80% das reações de Fase 1 e por 65 a
tir a conjugação com substâncias endógenas, buscan- 70% da depuração dos fármacos usados clinicamen-
do também o aumento da excreção. te14.
As reações de Fase 1 ocorrem principalmente nos Na Tabela 3.6, são mostrados exemplos de fárma-
hepatócitos e nos enterócitos da mucosa intestinal, cos substratos para as principais isoenzimas do CYP.
podendo ocorrer também nos pulmões, rins, sangue e A CYP3A4 é responsável pela biotransformação de
pele, entre outros. As reações de Fase 1 compreendem aproximadamente 50% dos fármacos metabolizados
a oxidação (adição de O ou retirada de H) e a redução pelo CYP, enquanto CYP2D6 (25%) e CY2C19 juntas
(adição de H ou retirada de O) e são catalisadas, prin- respondem pelo metabolismo de aproximadamente
cipalmente, por enzimas do citocromo P450 (CYP) lo- 40% dos fármacos. As isoformas CYP2C9, CYP1A2,
calizadas na membrana da mitocôndria ou no retículo CYP2A6 e CYP2B6 também têm contribuição impor-
endoplasmático dos hepatócitos, enterócitos e outras tante na metabolização de xenobióticos. As outras
células específicas. Para essas reações, é necessário enzimas têm menor contribuição para o processo de
que o fármaco penetre na célula, sendo, portanto, mais eliminação por metabolização15.
comuns para fármacos lipofílicos ou que sejam subs- Variações na expressão e/ou função das isoformas
trato para transportadores de influxo. A Fase 1 também do CYP afetam a farmacocinética dos fármacos e têm
compreende as reações de hidrólise (adição de H2O relevância clínica especialmente para os fármacos
com quebra da molécula), que podem ocorrer no san- de janela terapêutica estreita. As causas para a gran-
gue ou em outros tecidos, por ação das estearases. de variabilidade inter e intraindividual podem ser
O CYP é uma superfamília de enzimas (heme- ambientais ou relacionadas aos hábitos individuais
proteínas), principais responsáveis pelas reações de (ingestão de álcool, tabagismo), fisiológicas ou ge-
redução e oxidação, que metabolizam substâncias néticas (polimorfismo), além de interações fármaco-
endógenas (p.ex., ácidos graxos, hormônios) e xeno- -fármaco, fármaco-alimento ou fármaco-suplemento
bióticos (p.ex., fármacos, contaminantes químicos, alimentar.

Tabela 3.6 – Isoenzimas do CYP relevantes para metabolização de fármacos e exemplos de substratos, indutores e inibidores.
Isoenzima Substratos Indutores Inibidores
CYP1A2 Cafeína, tacrina, teofilina, NAPQI Rifampicina, tabagismo Cimetidine, ciprofloxacino, erva-de-
-São-João (Hypericum perforatum),
fluvoxamina
CYP2B6 Ciclofosfamida, efavirenz, metadona Rifampicina —
CYP2C8 Amiodarona, paclitaxel, repaglinida, Rifampicina Clopidogrel, genfibrozila
taxol
CYP2C9 Ibuprofeno, fenitoína, naproxeno, Rifampicina Fluconazol
tolbutamida, S-varfarina
CYP2C19 Citalopram, diazepam, fenitoína, Rifampicina Fluvoxamina
omeprazol
CYP2D6 Codeína, desipramina, flecainida, Dexametasona, rifampicina Clomipramina, fluoxetina,
fluoxetina, S-metoprolol, paroxetina haloperidol, quinidina
CYP2E1 Halotano, clorzoxazona, etanol, — Cimetidina, isoniazida
NAPQI
CYP3A4/5 Ciclosporina, eritromicina, indinavir, Carbamazepina, efavirenz, etanol, Cetoconazol, claritromicina,
nifedipino, midazolan, sinvastatina, erva-de-São-João (Hypericum eritromicina, nefazodona, ritonavir,
sildenafila perforatum), feintoína, rifabutina, verapamil, suco de toranja
rifampicina
NAPQI: N-acetil-p-benzoquinona imina.
Adaptada de: Rowland M & Tozer TN. Clinical pharmacokinetics and pharmacodynamics – Concepts and applications. 4. ed. Philadelphia: Lippincott Williams
& Wilkins, 2011; e Food and Drug Administration [homepage na internet]. Drug Development and Drug Interactions: Table of Substrates, Inhibitors and
Inducers. [acesso em 28 fev 2019]. Disponível em: https://www.fda.gov/drugs/developmentapprovalprocess/developmentresources/druginteractions-
labeling/ucm093664.htm.

40
Capítulo 3 – Farmacocinética: Absorção, Distribuição, Metabolismo e Eliminação de Fármacos

Com relação ao polimorfismo enzimático, CY- das que facilitam a conjugação. No entanto, reações
P3A4 apresenta uma grande variabilidade metabóli- de Fase 2 podem ocorrer independentemente das rea-
ca, sendo que variantes genéticas foram recentemente ções de Fase 1. Desse modo, o fármaco pode ser elimi-
identificadas16. As outras enzimas citadas na Tabela nado apenas por reações de Fase 1 (p.ex., nitroglice-
3.6 apresentam polimorfismo mais bem estabelecido, rina) ou de Fase 2 (p.ex., morfina) ou pela associação
que podem resultar em reações adversas em função dos dois tipos de reação (p.ex., ácido acetilsalicílico,
da formação de altas concentrações de metabólitos ibuprofeno, varfarina).
quando esse polimorfismo é tóxico ou consequente Em geral, o metabolismo de fármacos resulta em
à redução do metabolismo do fármaco administrado, compostos farmacologicamente inativos. Em alguns
com manutenção de suas concentrações elevadas por casos, no entanto, o metabolismo pode resultar na
tempo prolongado. formação de metabólito ativo, inclusive mais ativo do
Variações genéticas nos genes que codificam en- que o fármaco precursor (potencialização), ou meta-
zimas do CYP resultam em fenótipos classificados bólito reativo que pode causar toxicidade (Tabela 3.7).
como metabolizadores ultrarrápidos, extensivos, in- No caso da administração de pró-fármacos, que é ina-
termediários e pobres (ou lentos). Um metabolizador tivo, a ativação via metabolização é necessária para
ultrarrápido geralmente carrega cópias duplicadas ou formar o fármaco responsável pelo efeito terapêutico
multiduplicadas dos genes do mesmo alelo, enquanto (p.ex., administração do pró-fármaco azatioprina com
metabolizadores intermediários e pobres geralmente formação de mercaptopurina via metabolização).
apresentam um ou dois alelos defeituosos (inativação
ou deleção do gene), respectivamente. O termo “me-
tabolizador extenso” é normalmente usado para indi-
Efeito de primeira passagem
víduos carregando dois alelos (*1) que resultam em Fármacos administrados pela via oral podem so-
atividade normal da CYP [14]. A necessidade de ajus- frer importante metabolismo na sua passagem pelos
te de doses em função do polimorfismo genético das enterócitos da parede intestinal e pelo fígado, an-
isoformas do CYP, no entanto, deve ser avaliada indi- tes de atingir a circulação sistêmica, de modo que a
vidualmente, uma vez que outras fontes de variabili- biodisponibilidade é consideravelmente reduzida.
dade nos processos de eliminação podem estar asso- A essa perda pré-sistêmica do fármaco dá-se o nome
ciadas, podendo sobrepujar a variabilidade genética. de “efeito de primeira passagem”. Nos enterócitos, a
eliminação pré-sistêmica dos fármacos pode ocorrer
Outras enzimas envolvidas na oxidação de fárma-
pela ação cooperativa e combinada de transportado-
cos, que não fazem parte do CYP, incluem xantino-
res de efluxo, especialmente a P-gp, e das enzimas CY-
xidase, que metaboliza 6-mercaptopurina; monoami-
P3A4/5, que, em geral, contêm os mesmos substratos.
no-oxidase, que metaboliza aminas biológicas como
Desse modo, a P-gp limita a disponibilidade intracelu-
noradrenalina, serotonina, tiramina; álcool desidro-
lar do fármaco, transportando-o de volta para o lúmen
genase, que metaboliza etanol (juntamente com a CY-
intestinal, enquanto parte da fração que consegue pe-
P2E1).
netrar no enterócito é metabolizada pelas enzimas
Reações de redução e hidrólise são menos comuns CYP3A4/5, reduzindo significativamente a quantida-
que as reações de oxidação, não sendo, no entanto, de de fármaco que chega à circulação sistêmica (Figu-
menos importantes. A varfarina é reduzida por ação ra 3.11). Exemplos de fármacos que sofrem efeito de
da CYP2A6 enquanto o ácido acetilsalicílico é hidro- primeira passagem são propranolol, metoprolol, levo-
lisado no plasma e nos tecidos por ação de enzimas dopa, lidocaína, morfina, verapamil, dinitrato de isos-
não microssomais. sorbida, ácido acetilsalicílico, entre outros. O efeito
As reações de Fase 2 ocorrem principalmente no fí- de primeira passagem pode ocorrer também pela via
gado, mas podem ocorrem também nos rins e pulmões retal (50%), mas é evitado pela via sublingual.
e compreendem a conjugação do fármaco ou metabó- Como consequência do efeito de primeira passa-
litos com moléculas polares endógenas como glicina gem, a redução significativa na biodisponibilidade
e ácido glicurônico, gerando metabólitos com maior oral obriga o uso de doses maiores por essa via para
peso molecular e menos lipossolúvel que o fármaco se obter concentrações comparáveis às obtidas com
precursor. As reações de Fase 2 também compreendem as doses terapêuticas administradas pela via intra-
acetilação, metilação (N e O-metilação) e sulfatação. venosa. Em decorrência da variabilidade genética
Nas reações de acetilação e metilação, a acetilcoen- e de possíveis interações consequentes do efeito de
zima A (acetil-CoA) e a S-adenosil metionina atuam primeira passagem, a extensão da biodisponibilidade
como os compostos doadores, respectivamente. desses fármacos pode ser errática, resultando na im-
As reações de Fase 1 geralmente precedem as rea- previsibilidade do efeito farmacológico após a admi-
ções de Fase 2, pois formam moléculas funcionaliza- nistração oral.

41
Seção 1 – Princípios gerais

Tabela 3.7 – Exemplos do efeito da metabolização sobre a atividade farmacológica de compostos.


Pró-fármaco Fármaco ativo Metabólito inativo Metabólito ativo Metabólito tóxico Atividade do
fármaco (F) e
metabólito ativo
(A) ou tóxico (T)
Pró-fármaco para metabólito ativo
Azatioprina — — Mercaptopurina — Imunossupressor (A)
Enalapril — — Enalaprilato — Inibidor da ECA (A)
Hidrato de cloral — — Tricloroetanol — Hipnótico (A)
Zidovudina — — Trifosfato de — Antirretroviral (A)
zidovudina
Pró-fármaco para metabólito ativo e metabólito tóxico
Ciclofosfamida — — Mostarda de Acroleína Quimioterápico (A);
fosforamida cistite hemorrágica
(T)
Fármaco ativo para metabólito inativo
— Fenitoína Hidroxifenitoína — — Anticonvulsivante
(F)
— Procaína Ácido — — Anestésico local (F)
p-aminobenzóico
Tolbutamida Hidroxitolbutamida — — Hipoglicemiante (F)
Fármaco ativo para metabólito ativo ou mais ativo (potencialização)
— Ácido acetilsalicílico — Ácido salicílico (+) — Analgésico (F e A)
— Codeína — Morfina (+) — Analgésico (Fe A)
— Diazepam — Oxazepam e — Ansiolítico (F e A)
temazepam
— Imipramina — Desipramina (+) — Antidepressivo
(F e A)
— Morfina — Morfina-6- — Analgésico (F e A)
-glucoronídeo (+)
— Procainamida — N-acetil- — Antiarrítmico (F e A)
-procainamida (+)
Fármaco ativo para metabólito tóxico
— Halotano — — Ácido Anestésico geral (F);
trifluoroacético hepatite alérgica (T)
— Metoxiflurano — — Fluoreto Analgésico (F);
nefrotoxicidade (T)
— Paracetamol — — N-acetil-p- Analgésico (F);
-benzoquinona necrose hepática (T)
imina
Adaptada de: LeBlanc PP et al. Tratado de biofarmácia e farmacocinética. Lisboa: Instituto Piaget, 1997 [15]; e Katzung BG & Trevor AJ (Org.) Farmacologia
básica e clínica. 13a ed. Porto Alegre: AMGH Editora, 2017.

42
Capítulo 3 – Farmacocinética: Absorção, Distribuição, Metabolismo e Eliminação de Fármacos

Fármaco

P-gp Super�cie apical


(lúmen intes�nal)

Enterócito
CYP3A4
Super�cie basolateral
(vaso sanguíneo)

Metabólico

Fármaco

Fígado
Veia porta
CYP3A Veia
Intes�no
CYP450
to
róci

Hepatócito
CYP3A
Ente

Circulação
Canalículos sistêmica
Bile

Transportadores sistema ABC (efluxo)


Captação ou transportadores de influxo
Fezes

Figura 3.11 – Representação esquemática do efeito de primeira passagem e da recirculação entero-hepática de fármacos. Esferas verdes
representam o fármaco, que, por ação de transportadores de efluxo nos enterócitos (flecha vermelha), podem ter sua absorção diminuí­
da. No enterócito (CYP3A4/5) e no fígado (CYP em geral), por ação de enzimas do microssomais, o fármaco é transformado em metabó-
lito (esferas marrom). O somatório do efluxo nos enterócitos e dos processos de metabolização no enterócito e no fígado, na primeira
passagem do fármaco, pode reduzir significativamente a fração biodisponível deste, caracterizando o efeito de primeira passagem. O
fármaco não metabolizado bem como metabólitos hidrossolúveis formados do fígado podem ser levados de volta ao intestino, via bile,
podendo gerar nova absorção do fármaco. Esse ciclo (intestino – fígado – bile – intestino) caracteriza a recirculação entero-hepática.
No destaque, representação esquemática da ação da P-gp e do CYP3A4/5 nos enterócitos do intestino delgado. A localização da P-gp
e do CYP3A no enterócito permite sua ação cooperativa, aumentando o efeito de primeira passagem de fármacos, que são substratos
dessas duas proteínas, através do efluxo para o lúmen intestinal e/ou metabolização, respectivamente.
Adaptada de: Ritschel WA & Kearns GL. Handbook of basic pharmacokinetics ... including clinical applications. 6. ed. Washington: AphA, 2004; e van
Herwaarden AE et al. How important is intestinal cytochrome P450 3A metabolism. Trends in Pharmacology Sciences 30(5): 223-227, 2009.

Eliminação biliar e circulação saturação e competição. Fármacos como diazepam,


indometacina, eritromicina, digitoxina, digoxina, vin-
êntero-hepática cristina, ampicilina, tetraciclina, doxorrubicina, lo-
Fármacos (ácidos e bases fracas) e metabólitos po- vastatina, vecurônio e rifampicina são, desse modo,
dem ser eliminados ativamente pela via biliar, che- levados intactos do fígado ao intestino, sendo parcial-
gando ao intestino através do sistema fisiológico de mente eliminados pelas fezes.
transporte de compostos dos hepatócitos para a bile. Metabólitos hidrofílicos, especialmente os glicu-
A via biliar permite a eliminação de moléculas de ele- ronídeos, podem também chegar ao intestino por via
vado PM (> 300 kDa) por transporte ativo, passível de biliar. No intestino, esses metabólitos podem ser hi-

43
Seção 1 – Princípios gerais

drolisados por ação de β-glicuronidase hepática, libe- No idoso, ocorre a diminuição da capacidade de
rando o fármaco ativo na forma livre, que pode, então, depuração de fármacos como barbitúricos, imiprami-
ser reabsorvido. Esse ciclo (intestino – fígado – bile – na, propranolol, quinidina, quinina e teofilina, por
intestino) é denominado recirculação entero-hepática exemplo. Nesses casos, correções de doses para evitar
(Figura 3.12) e pode se repetir, servindo como um intoxicações podem ser necessárias.
reservatório que prolonga a meia-vida de eliminação As doenças hepáticas como hepatite (viral ou al-
do fármaco e, consequentemente, seu tempo de ação coólica) e cirrose podem interferir no metabolismo
farmacológica. A recirculação entero-hepática pode de fármacos consequente à diminuição da massa e da
gerar um segundo pico de concentração sanguínea do função hepatocelular, geralmente diminuindo a de-
fármaco, mais facilmente observado após administra- puração do fármaco e ocasionando a necessidade de
ção oral. Entre os fármacos que sofrem recirculação redução da dose para evitar intoxicações. As doses de
entero-hepática, pode-se destacar imipramina, indo- teofilina, por exemplo, devem ser reduzidas à metade
metacina, morfina e etinilestradiol. em pacientes adultos cirróticos em comparação com
pacientes não cirróticos e não fumantes.
Fatores que afetam o metabolismo
de fármacos Indução e inibição enzimáticas
Além do polimorfismo genético, da via de ad- Alguns fármacos, quando administrados em do-
ministração (efeito de primeira passagem), outros ses repetidas, podem aumentar a atividade dos siste-
fatores podem afetar o metabolismo de fármacos: i) mas microssomais enzimáticos responsáveis por sua
fisiopatológicos como a idade e doenças hepáticas; oxidação e conjugação. Desse modo, a eliminação de
ii) farmacológicos, como indução e inibição enzimá- cada dose administrada se dará com farmacocinética
ticas; iii) relacionados aos hábitos de dieta paciente, distinta (diferenças de depuração e meia-vida) até a
alcoolismo e tabagismo que podem ensejar interações completa indução do sistema enzimático, que pode
por indução ou inibição enzimática. levar dias (rifampicina – 2 dias; fenobarbital – 7 dias)
Os extremos de idade podem ser determinantes ou semanas (carbamazepina – 3 a 5 dias, sendo a in-
para a metabolização de fármacos. A lenta maturação dução completa em até 1 mês de uso continuado).
dos sistemas enzimáticos no recém-nascido pode pro- Esse efeito é denominado autoindução enzimática e é
piciar vias alternativas de eliminação, gerando meta- resultante do aumento da síntese e/ou da redução da
bólitos distintos dos observados em adultos. A elimi- eliminação das enzimas microssomais. Nesses casos,
nação da teofilina no adulto, por exemplo, é realizada a dose deve ser corrigida após o final do processo de
majoritariamente via metabolização pela CYP1A2, indução enzimático, visando obter concentração den-
CYP2E1, CYP3A, gerando diversos metabólitos, entre tro da janela terapêutica no platô.
eles, a cafeína (7% da dose administrada). No adul- A indução enzimática também pode decorrer de
to, apenas 10 a 15% da dose de teofilina é elimina- interações medicamentosas, quando um composto
da via renal, sem metabolização. No recém-nascido, induz o metabolismo de outro, como se dá na indução
no entanto, em função da imaturidade dos sistemas do metabolismo da fenitoína e da varfarina pelo uso
enzimáticos, 50% da dose é eliminada por via renal, de barbitúricos; na indução do metabolismo da teo-
podendo-se observar concentrações farmacológicas filina pelos hidrocarbonetos do cigarro; na indução
de cafeína que pode se acumular no organismo em do metabolismo do pentobarbital e da tolbutamida
função da lenta depuração (meia-vida de 106 h). pelo uso de etanol. Nesses casos, a solução é evitar a
Logo após o nascimento, o recém-nascido é capaz associação ou aumentar a dose do fármaco induzido
de realizar sulfatação; após 1 semana, também come- para manter a mesma concentração sanguínea obtida
ça a realizar redução e oxidação; após o 1º mês, ad- antes da associação.
quire a capacidade de realizar acetilação; após o 2º A inibição enzimática é resultante da diminuição
mês, associa a capacidade de realizar glucuronidação da atividade do sistema enzimático e pode ocorrer
e, após o 3º mês, conjugação com aminoácidos. A pela combinação do inibidor com um cofator (p.ex.,
taxa de metabolização, no entanto, pode ser reduzi- NADPH2) necessário para atividade da enzima ou in-
da em relação ao adulto. Recém-nascidos prematuros teração direta reversível ou irreversível do agente ini-
podem ter o desenvolvimento dos sistemas enzimáti- bidor com a enzima. A associação de fármacos visan-
cos retardado em relação ao recém-nascido a termo. do inibição enzimática pode ser intencional, como
Em função da lenta maturação enzimática, o ajuste de quando se associa a carbidopa para inibir a descarbo-
doses para os recém-nascidos deve ser feito continua- xilação periférica da L-dopa no tratamento de pacien-
mente, lançando mão do monitoramento terapêutico tes com mal de Parkinson ou quando se usa dissulfi-
para fármacos de estreita janela terapêutica. ram para inibir o metabolismo do etanol em pacientes

44
Capítulo 3 – Farmacocinética: Absorção, Distribuição, Metabolismo e Eliminação de Fármacos

com etilismo. A inibição enzimática também pode ser lar, fármacos eliminados por secreção tubular ativa
acidental quando, por exemplo, o paciente associa sa- praticamente não sofrem influência da ligação às pro-
quinavir, que tem uma baixa biodisponibilidade oral teínas, sendo eliminada tanto a fração livre quanto
(4%), com suco de toranja, que inibe a atividade da a fração ligada na passagem pelos rins. Isso porque
CYP3A4 no fígado e na parede intestinal, causando o processo de secreção é muito rápido, deslocando o
um aumento de 150% na exposição do organismo ao equilíbrio de ligação do fármaco às proteínas e permi-
fármaco. Essas interações acidentais podem ser evi- tindo que parte da fração ligada também seja excreta-
tadas com adequado aconselhamento farmacotera- da. A penicilina, apesar de extensamente ligada a pro-
pêutico, especialmente em pacientes que fazem uso teínas (~ 80%), tem meia-vida de eliminação curta,
crônico de medicamentos. pois, além da filtração glomerular baixa, é eliminada
por secreção tubular ativa.
Eliminação renal de fármacos Em virtude da possibilidade de competição pelo
mesmo carreador, fármacos eliminados por secreção
e metabólitos tubular podem estar sujeitos a interações medica-
Três processos estão envolvidos na eliminação re- mentosas. Essa interação pode ser explorada clinica-
nal de fármacos e metabólitos: filtração glomerular; mente, como no caso da associação de penicilina com
secreção tubular ativa; e reabsorção tubular. probenecida. Esta última, por ter maior afinidade pelo
A filtração glomerular é um processo passivo que carreador de ácidos fracos, é eliminada preferencial-
ocorre na cápsula de Bowman do néfron e é governada mente, mantendo concentrações sanguíneas elevadas
pela pressão hidrostática nos capilares dos gloméru- da penicilina e, por consequência, prolongando sua
los, sendo um processo unidirecional. Pequenas mo- meia-vida de eliminação.
léculas (< 60 kDa) são filtradas, independentemente A reabsorção tubular ocorre após o fármaco ser
de se encontrarem de forma ionizada ou não ionizada filtrado e pode ser passiva (túbulo proximal e distal
na corrente sanguínea. Apenas a fração livre do fár- e alça da de Henle) e ativa (túbulo proximal). Se o
maco, não ligada a proteínas plasmáticas, pode sofrer fármaco presente no filtrado glomerular for completa-
filtração glomerular. Logo, fármacos com elevada li- mente reabsorvido, sua depuração será praticamente
gação a proteínas como a varfarina (98% ligada) terão zero. Com fármacos que são parcialmente reabsorvi-
baixas concentrações no filtrado glomerular (apenas dos, a depuração será menor que a filtração glomeru-
2% da concentração plasmática total). A velocidade lar, ou seja, menor que 125 a 140 mL/min.
de filtração glomerular, medida pela taxa de excreção A reabsorção de fármacos que são ácidos e bases
de substâncias eliminadas apenas por filtração, como fracas é influenciada pelo pH da urina e pelo pKa do
a creatinina endógena, fica na faixa de 90 a 140 mL/ fármaco, além do fluxo urinário. Ambos os fatores (pH
min (média 125 mL/min) em pacientes com função urina e pKa do fármaco) determinam o porcentual de
renal normal. Desse modo, fármacos eliminados do fármaco ionizado/não ionizado no filtrado glomeru-
organismo apenas por filtração glomerular terão de- lar, sendo que apenas o fármaco na forma não ioni-
puração semelhante à depuração da creatinina. zada, mais lipossolúvel, será reabsorvido dos túbulos
A secreção tubular ativa ocorre no túbulo proxi- para o sangue. Como o pH da urina pode variar entre
mal do néfron e necessita de carreadores e energia. 4,5 e 8, na dependência da dieta, condição fisiopato-
Desse modo, a secreção tubular ativa é passível de lógica e uso de outros fármacos pelo paciente, a reab-
saturação e competição na dependência da afinidade sorção tubular é passível de alta variabilidade inter e
e quantidade de cada substância que usa o mesmo intraindividual. Dietas ricas em proteínas acidificam
carreador. Dois sistemas carreadores são conhecidos: o pH da urina, enquanto dietas vegetarianas ou ricas
carreadores de ácidos fracos, utilizados por fármacos em carboidratos a alcalinizam. Fármacos como ácido
como penicilina, probenecida, indometacina, furo- ascórbico e antiácidos como carbonado de sódio, em
semida e metotrexato, por exemplo; e carreadores grandes quantidades, podem acidificar ou alcalinizar
de bases fracas, utilizados pela ranitidina, quinina, a urina, respectivamente, alterando a reabsorção de
neostigmina, amilorida e morfina, entre outros. outros fármacos administrados em associação.
A taxa de secreção tubular depende do fluxo plas- A alteração do pH da urina visando prolongar a
mático renal e pode ser determinada pela excreção de permanência de um fármaco no organismo ou acele-
compostos como ácido p-amino-hipúrico, por exem- rar sua eliminação pode ser obtida clinicamente pela
plo, que é filtrado e secretado pela via renal de modo administração intravenosa de solução de bicarbonato
muito rápido, praticamente em uma passagem pelos de sódio (alcalinizar) ou cloreto de amônio (acidifi-
rins. A depuração desses compostos reflete o fluxo car). A excreção dessas soluções altera drasticamente
plasmático renal efetivo (425 a 650 mL/min). Ao con- o pH da urina, alterando a reabsorção e a excreção de
trário dos fármacos eliminados por filtração glomeru- fármacos.

45
Seção 1 – Princípios gerais

A fração de fármaco ácido fraco ionizada em um ção. O mesmo efeito é observado com a ingestão de
determinado pH pode ser obtida a partir do rearranjo etanol ou grandes quantidades de líquidos. Desse
da equação de Henderson-Hesselbalch: modo, pode-se concluir que a diurese forçada, pelo
uso de diuréticos como o manitol, pode ser utilizada
10pH–pka para aumentar a eliminação de fármacos em pacien-
Fração de fármaco ionizado = tes intoxicados, por exemplo, por aumentar a excre-
1 + 10pH–pka
(Equação 3.16) ção renal de fármacos que sofrem reabsorção tubular.

Para fármacos com pKa entre 3 e 8, alterações no


pH da urina afetarão significativamente a extensão de Outras vias de eliminação de fármacos
fármaco ionizado. Fármacos ácidos fracos com pKa Além das principais vias de eliminação (metaboli-
menor do que 2 são altamente ionizados em qualquer zação, renal e biliar), os fármacos também podem ser
valor de pH e terão sua eliminação pouco afetada por eliminados do organismo por vias menos relevantes
alterações no pH da urina. como pulmonar, salivar, cutânea (sudorese), através
Para fármacos que são bases fracas, a equação de do leite materno ou de outros fluidos biológicos.
Henderson-Hesselbalch modificada para determinar A excreção pulmonar permite a eliminação de ga-
a fração de fármaco ionizada é: ses e líquidos voláteis, independentemente da sua
lipofilia, como anestésicos gerais, sulfanilamida e
pH–pka etanol. A eliminação salivar ocorre por difusão pH-
Fração de fármaco ionizado = 1 + 10
10pH–pka -dependente, sendo as concentrações obtidas na sa-
(Equação 3.17) liva reflexo das concentrações livres plasmáticas de
fármaco ácidos fracos, podendo essa via de elimina-
Nesse caso, o efeito da alteração do pH da urina ção ser utilizada para o monitoramento terapêutico
será mais pronunciado na reabsorção de fármacos de fármacos como lítio, iodeto de potássio, rifampici-
com pKa entre 7,5 e 10,5. na, fenitoína e digoxina. Alguns compostos também
A razão entre concentração de fármaco ácido fraco podem ser eliminados por difusão pH-dependente
ou base fraca na urina e no plasma (U/P), para um via sudorese, como anfetamina, cocaína, morfina e
determinado pH, pode ser derivada da equação de etanol. A excreção no leite materno de fármacos li-
Henderson-Hesselbalch. Para ácidos fracos: possolúveis, que apresentam baixa ligação a proteí-
nas plasmáticas, também ocorre por difusão passiva
U 1 + 10pHurina – pKa (Equação 3.18)
= pH-dependente (pH leite – 6,8 a 7), preferencialmente
P 1 + 10pHplasma – pKa para bases fracas como eritromicina, heroína, meta-
Para bases fracas: dona, diazepam, tetraciclinas e cloranfenicol. Para
não prejudicar o recém-nascido, a utilização desses
U 1 + 10pKa – pHurina compostos deve ser evitada pela lactante.
= (Equação 3.19)
P 1 + 10pKa – pHplasma
Desse modo, para acelerar a eliminação de me- Depuração
tanfetamina, por exemplo, que é uma base fraca (pKa A depuração (clearance, CL) é o parâmetro farma-
9,9), deve-se acidificar a urina, o que resulta no au- cocinético que descreve a eliminação do fármaco do
mento da fração ionizada do composto e, consequen- organismo sem identificar o mecanismo do processo.
temente, reduzindo sua reabsorção (menor meia-vida A depuração descreve a eliminação em termos de vo-
de eliminação). A alcalinização da urina, nesse caso, lume de fluido depurado do fármaco por unidade de
produzirá maiores concentração da forma não ioniza- tempo. Pode-se assumir o organismo como um espaço
da, mais lipossolúvel, aumentando sua reabsorção e, que tem volume finito de fluidos (volume de distri-
consequentemente, prolongando sua permanência no buição) no qual o fármaco está dissolvido. A depura-
organismo. O oposto acontecerá se o fármaco for um ção seria o volume fixo de fluido contendo o fármaco
ácido fraco. que é depurado (“limpo”) de fármaco na unidade de
O fluxo urinário também pode influenciar a reab- tempo. A unidade de depuração é volume/tempo (L/h,
sorção de fármacos. O fluxo urinário normal é de 1 mL/min). Para um fármaco que tem uma depuração de
a 2 mL/min. Fármacos não polares e não ionizados 20 mL/min e um Vd de 50 L, pela definição de depu-
geralmente são reabsorvidos nos túbulos renais e ração, 20 mL dos 50 L serão depurados a cada minuto.
sensíveis a alterações no fluxo urinário. Desse modo, A depuração total assume a eliminação do fárma-
substâncias como cafeína e teofilina, que aumentam co a partir do organismo como um todo, podendo ter
o fluxo urinário, reduzirão o tempo para reabsorção um ou mais processos de eliminação não identifica-
desses fármacos, provocando aumento de sua excre- dos associados em paralelo. Desse modo, a depura-

46
Capítulo 3 – Farmacocinética: Absorção, Distribuição, Metabolismo e Eliminação de Fármacos

ção total (CLT) é o somatório de todos os processos de


eliminação do fármaco por todas as vias associadas
e cada via de eliminação tem sua depuração parcial,
que corresponde a uma fração da depuração total: Q, Ca Q, Cv
depuração renal (CLR); depuração por metabolização
(CLM); depuração biliar (CLB); e assim por diante.
A depuração pode ser vista como a perda do fár-
maco através de um órgão de eliminação. Essa abor- E
dagem, conhecida na literatura como well stirred mo-
del, tem a vantagem de permitir a previsão dos efeitos (Ca – Cv)
E=
causados por alterações nos três fatores que determi- Ca
nam a depuração hepática ou renal de fármacos: fluxo
Figura 3.12 – Representação esquemática de um órgão de eli-
sanguíneo; ligação às proteínas plasmáticas; e ativi- minação e fármacos em estado de equilíbrio considerado sobre
dade enzimática (se depuração hepática) ou atividade o conceito de balanço de massas.
secretória (se depuração renal). Q: fluxo sanguíneo; Ca: concentração do fármaco no sangue ar-
No modelo proposto o órgão de eliminação (fígado terial; Cv: concentração do fármaco no sangue venoso; E: razão
ou rim) é um recipiente em que o fármaco se encontra (Ca – Cv) Q ⋅ (Ca – Cv)
de extração =
Ca
e, portanto, CL = = Q ⋅ E.
Ca
homogeneamente distribuído (Figura 3.12). O fárma- Fonte: Desenvolvida pela autoria do capítulo.
co entra e sai desse órgão através do fluxo sanguíneo
hepático ou renal (QH ou QR), semelhante em ambos Considerando-se que as medidas de concentração
os sentidos. Assume-se que o fármaco atingiu equilí- de fármacos são mais comuns no plasma do que no
brio de distribuição, portanto a diferença de concen- sangue total, a depuração plasmática (chamada sim-
tração entre sangue arterial (Ca) e sangue venoso (Cv) plesmente de depuração) é relatada mais frequente-
decorre somente do processo de perda ou da extração mente do que a depuração sanguínea. Para converter
(E) do fármaco pelo órgão de eliminação (fígado – EH depuração sanguínea (CLb) em depuração plasmática
e rim – ER). A extração representa a fração do fármaco (CL), pode-se usar da relação entre concentração do
removida do sangue em uma única passagem pelo ór- fármaco no plasma/concentração no sangue total (C/
gão de eliminação e a depuração total pode ser deter- Cb), que leva em consideração o hematócrito:
minada pelo produto de fluxo e extração: 
C 
CLb= CL ⋅   (Equação 3.24)
(Ca – Cv)  CLb 
E= (Equação 3.20)
Ca
A razão plasma/sangue geralmente fica entre 0,3 e
CL = Q ⋅ E (Equação 3.21) 2 para a maioria dos fármacos. Quando o fármaco se
Nesse contexto, quando a razão de extração é pró- liga muito aos eritrócitos, a relação fica em torno do
xima a 1, todo o sangue que entra no órgão de elimi- seu limite inferior; quando o fármaco se liga muito às
nação é depurado do fármaco (tanto do fármaco que proteínas plasmáticas, essa relação se aproxima de 2.
está no plasma como do que está nos eritrócitos), não
apenas o fármaco que está no plasma. Desse modo, Depuração hepática
quando se calcula a razão de extração de um órgão,
Vamos considerar a depuração hepática (CLH) a partir
deve-se relacionar o fluxo sanguíneo com depuração
do well stirred model (Equação 3.21). No caso do fígado,
sanguínea do órgão em questão. Em outras palavras,
o fluxo sanguíneo hepático (QH) corresponde ao soma-
as equações que descrevem depuração sanguínea he-
tório do fluxo venoso da veia porta (~ 1.050 mL/min), a
pática (CLb,H) e renal (CLb,R) são, respectivamente:
partir do TGI, e do fluxo sanguíneo da artéria hepática
CLb,H = QH ⋅ EH (Equação 3.22) (~ 300 mL/min). A extração (EH) geralmente ocorre por
metabolismo, mas pode ser também devida à secreção
CLb,R = QR ⋅ ER (Equação 3.23) biliar ou associação dos dois processos.
Se a razão de extração se aproxima de 1, a depu- A extração hepática depende da fração livre plas-
ração sanguínea do fármaco se aproxima do fluxo mática do fármaco (fu), disponível para interagir com
sanguíneo máximo daquele órgão, que para o rim em o sistema enzimático, e da capacidade intrínseca do
adultos é de 1,1 L/min e para o fígado é de 1,35 L/min, sistema enzimático de eliminar o fármaco na ausên-
respectivamente. cia de limitação de fluxo (clearance intrínseco, CLint).

47
Seção 1 – Princípios gerais

O CLint representa a atividade inerente do CYP e de da fração ligada às proteínas plasmáticas serão meta-
todas as outras enzimas para metabolizar o fármaco bolizadas na passagem pelo fígado. Logo, o fator li-
e é característico de cada fármaco. Nesse contexto, a mitante para a depuração desses fármacos é o fluxo
extração hepática é descrita pela Equação 3.25: sanguíneo hepático, e a Equação 3.26 pode ser sim-
fu ⋅ CLint plificada para:
EH = (Equação 3.25)
Q + fu ⋅ CLint CLH = QH (Equação 3.27)
Desse modo, a depuração hepática pode ser obtida Fármacos de alta extração, portanto, terão a depu-
pela substituição da Equação 3.25 na Equação 3.21, ração inalterada em razão de alterações na ligação a
sendo descrita pela equação: proteínas plasmáticas (fu), sendo sua depuração uni-
QH ⋅ fu ⋅ CLint camente impactada por mudanças no fluxo sanguí-
CLH = QH ⋅ EH = (Equação 3.26) neo hepático como ocorre em pacientes com cirrose,
QH + fu ⋅ CLint
hepatite e doença cardíaca congestiva, por exemplo.
Considerando-se a depuração intrínseca, os fár- Em outras palavras, uma redução no fluxo sanguíneo
macos podem ser classificados como de alta extra- hepático reduzirá a depuração de fármacos de alta ex-
ção (EH > 0,7) quando o CLint é muito elevado e 70% tração, como ocorre com o propranolol após adminis-
ou mais da concentração venosa é depurada em uma tração oral em função da redução no débito cardíaco
única passagem pelo fígado, ou de baixa extração causado pelo próprio fármaco.
(EH < 0,3) quando o CLint é baixo e a depuração má- Fármacos de baixa extração têm como passos li-
xima em uma passagem pelo fígado não ultrapassa mitantes da taxa de depuração tanto a concentração
30% da concentração arterial. Fármacos com extra- livre disponível para metabolização (fu) como a ca-
ção intermediária (EH = 0,3 a 0,7) são mais raros. pacidade do sistema enzimático (CLint), que é limita-
Exemplos de fármacos em cada categoria são mos- da. Para esses fármacos de capacidade limitada, alte-
trados na Tabela de 3.8. rações no fluxo sanguíneo não afetarão a depuração
hepática, que será impactada tanto por fatores que
Tabela 3.8 – Exemplos de fármacos com diferentes alterem a ligação às proteínas plasmáticas como por
capacidades de extração hepática.
fatores que alteram seu CLint, podendo a Equação 3.26
Baixa Intermediária Alta ser simplificada para:
(EH < 0,3) (EH = 0,3-0,7) (EH > 0,7)
Ácido salicílico Aspirina Isoproterenol CLH = fu ⋅ CLint (Equação 3.28)
Clindamicina Desipramina Lidocaína A influência da ligação às proteínas plasmáticas
Cloranfenicol Nortriptilina Meperidina na depuração hepática de fármacos de baixa extração
Diazepam Quinidina Morfina dependerá do grau de ligação do fármaco às proteínas
plasmáticas. Fármacos altamente ligados (fu > 0,9),
Digitoxina Nitroglicerina
quando deslocados de sua ligação às proteínas, terão
Digitoxina Propoxifeno um aumento significativo nas concentrações plasmá-
Eritromicina Propranolol ticas livres (aumento de fu) e, consequentemente, a
Fenilbutazona Tocainida depuração hepática será proporcionalmente aumen-
Fenitoína Verapamil tada. Esses fármacos, como fenitoína, diazepam, tol-
butamida, varfarina, clindamicina, quinidina e digi-
Isoniazida
toxina, entre outros, são ditos de capacidade limitada
Quinidina e de sensível ligação a proteínas. Fármacos com baixa
Teofilina ligação a proteína plasmáticas, quando deslocadas de
Tolbutamida sua ligação, também terão um pequeno aumento na
Varfarina depuração hepática, mas essa alteração não será sig-
nificativa. Exemplos desses fármacos de capacidade
Adaptada de: Shargel L, Wu-Pong S, Yu ABC. Applied Biopharmaceutics
and Pharmacokinetics. 6. ed. Norwalk: McGraw Hill, 2012 [2]; e Katzung limitada e de ligação à proteína insensível são teofili-
BG & Trevor AJ (Org.) Farmacologia básica e clínica. 13ª Ed. Porto Alegre: na, cloranfenicol e tiopental, entre outros.
AMGH Editora, 2017.
A depuração hepática de fármacos com extração
Para fármacos de alta extração, que apresentam intermediária será afetada por alterações em qualquer
capacidade de metabolização hepática limitada pelo um dos fatores indicados na Equação 3.26 (QH, fu e
fluxo, tanto a fração livre do fármaco como uma parte CLint).

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Capítulo 3 – Farmacocinética: Absorção, Distribuição, Metabolismo e Eliminação de Fármacos

Como os fármacos administrados pela via oral Como o fluxo sanguíneo renal corresponde a 20 a
chegam à circulação sistêmica via sistema porta-he- 25% do débito cardíaco, aproximadamente 1,1 L de
pático, a depuração hepática influencia diretamente sangue passa pelos rins a cada minuto. Desse volu-
na biodisponibilidade oral de fármaco, por meio da me, 10% são filtrados para a urina (~ 125 mL/min
relação: para um homem de 20 anos, pesando 70 kg). Logo,
apesar da filtração sempre ocorrer, a excreção renal
F = 1 – EH (Equação 3.29) de fármacos apenas por esse mecanismo é baixa, es-
Desse modo, fármacos com alta extração hepática pecialmente se o fármaco tem uma alta ligação às pro-
sofrem efeito de primeira passagem importante, tendo teínas. A depuração por secreção tubular ativa (CLs)
a biodisponibilidade oral reduzida, como ocorre com se somará à CLf, aumentando a depuração (CLR > 125
metoprolol, propranolol e verapamil, entre outros. mL/min).
A influência da ligação a proteínas na depuração
Depuração renal por secreção dependerá da eficiência do processo de
secreção e do tempo de contato do fármaco no sítio se-
Apesar de o well stirred model (Equação 3.26) ser
cretório. Quando o fármaco tem baixa secreção (baixa
usado também para descrever a depuração renal (CLR),
afinidade pelos transportadores, ER < 0,3), o tempo
uma definição mais clássica de depuração é utilizada
de contato no sítio de secreção do túbulo proximal
para determinar a depuração renal consequentemen-
(aproximadamente 30 s) não é suficiente para que
te à possibilidade de medirem-se as concentrações do
haja eliminação de uma grande quantidade de fárma-
fármaco tanto no plasma como na urina.
co, sendo secretada apenas a fração livre no plasma.
A depuração renal pode ser definida como a razão Nesse caso, a depuração renal será influenciada por
de excreção do fármaco dividida pela concentração alterações na ligação às proteínas, especialmente para
plasmática: fármacos com alta ligação, do mesmo modo como
Razão de excreção afirmado para a depuração hepática.
CLR = (Equação 3.30)
Concentração plasmática Fármacos substrato dos transportadores para áci-
do fraco ou base fraca com alta afinidade (ER > 0,7),
A razão de excreção é o balanço dos processos de
tanto fármaco livre como ligado às proteínas plas-
filtração e de secreção ativa, que retiram fármaco do
máticas ou distribuído nas células sanguíneas, serão
sangue para a urina, e reabsorção, que retorna o fár-
completamente eliminados no tempo de contato com
maco da urina para a corrente sanguínea. Logo, a ra- o sítio de secreção. Nesses casos, a CLR é perfusão li-
zão de extração pode ser descrita como: mitada, ou seja, depende apenas do QR.
Razão de extração = (1 – FR) ⋅ Fármacos com secreção intermediária (ER = 0,3 a
⋅ [Razão de filtração + Razão (Equação 3.31) 0,7) terão a eliminação renal influenciada pelo fluxo
de secreção] sanguíneo renal e pela ligação às proteínas. A Tabela
3.9 traz exemplos de fármacos em cada faixa de ex-
onde FR é a fração reabsorvida. Associando as equa- tração renal.
ções 3.30 e 3.31, obtém-se:
Tabela 3.9 – Exemplos de fármacos com diferentes
 Razão de filtração Razão de secreção 
CLR = (1 – FR) ⋅  – = capacidades de extração renal.
 CP CP 
 
Baixa Intermediária Alta
= (1 – FR) ⋅ [CLf + CLs] (ER < 0,3) (ER = 0,3-0,7) (ER > 0,7)
(Equação 3.32) Amoxicilina Aciclovir Metformina
Atenolol Benzilpenicilina Peniciclovir
onde CLf é a depuração por filtração e CLs é a depura-
Cefazolina Cimetidina
ção por secreção.
Digoxina Ciprofloxacino
A depuração renal por filtração glomerular depen-
Furosemida Ranitidina
de da ligação às proteínas plasmáticas (fu), uma vez
que apenas a fração livre é filtrada nos glomérulos, e Gentamicina
do fluxo sanguíneo renal: Metotrexato
Fonte: Adaptada de Katzung BG & Trevor AJ (Org.) Farmacologia básica e
CLf = QH ⋅ fu (Equação 3.33) clínica. 13. ed. Porto Alegre: AMGH Editora, 2017.

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Seção 1 – Princípios gerais

A reabsorção tubular é o último fator que controla que a concentração do fármaco decaia à metade (50%)
a eliminação renal de fármacos. A reabsorção deve da concentração inicial. Para fármacos que seguem
ocorrer se a depuração renal for menor do que a es- farmacocinética linear, em que há proporcionalidade
timada por filtração glomerular. O fármaco pode ter entre dose e concentração plasmática, a meia-vida é
sido filtrado e secretado, mas a reabsorção foi impor- independente da concentração plasmática e pode ser
tante, resultando em CLR < 125 mL/min. A reabsorção determinada a partir da constante de velocidade de
pode variar entre ausente até completa, sendo o seu eliminação (λZ, Equação 3.12):
grau determinado pelas propriedades físico-químicas
In 2 0,693
do fármaco, pH da urina e diurese, como discutido t1/2 = = (Equação 3.37)
λz λz
anteriormente.
A constante de eliminação, por sua vez, depende
Determinação de CLT dos parâmetros primários depuração e volume de dis-
tribuição, por meio da relação:
O CLT é o somatório da depuração por todas as vias
de eliminação do fármaco: CLT
λz = (Equação 3.38)
Vd
CLT = CLR + CLNR (Equação 3.34)
Substituindo-se a Equação 3.38 pela Equação
CLT = CLR + CLB + CLH (Equação 3.35) 3.37, obtém-se:
onde CLNR relaciona-se aos somatório dos processos 0,693 ⋅ Vd
de depuração não renal do fármaco. t1/2 = (Equação 3.39)
CLT
Do mesmo modo que Vd e λZ, o CLT pode ser deter-
minado a partir do gráfico de concentração plasmáti- A partir da Equação 3.39, pode-se entender que
ca por tempo: os dois parâmetros Vd e CLT, independentes entre si,
determinam a meia-vida de eliminação dos fárma-
Di.V. F ⋅ DNS
CLT = = abs (Equação 3.36) cos. Se, por um lado, a CLT decresce em virtude da
ASC0–∞ iv ASC0–∞,NS insuficiência renal, a meia-vida do fármaco aumen-
onde D é a dose administrada pela via i.v. (Di.v.) ou por tará proporcionalmente. Se, por outro lado, o fárma-
via extravascular (DNS) e ASC0–∞ pode ser determinada co apresenta aumento no volume de distribuição em
pelo método trapezoidal (Equação 3.13) após dose i.v. decorrência de obesidade ou desenvolvimento de
(ASC0–∞,i.v.) ou dose extravascular e (ASC0–∞,NS). Fabs é a edema, por exemplo, a meia-vida de eliminação au-
biodisponibilidade absoluta da via extravascular. mentará. Fármacos com diferentes combinações de
Vd e CLT podem ter a mesma meia-vida. Se a CLT
A partir da Equação 3.36, pode-se depreender que
for baixa e o Vd grande, pode-se ter fármaco com
a depuração determina a exposição do organismo ao
meias-vidas de semanas a meses. Esses fármacos, no
fármaco (ASC0–∞), podendo aquela ser usada para o
entanto, não são comuns em farmacoterapia em con-
cálculo desta.
sequência da acumulação lenta e da dificuldade para
Assim como volume de distribuição e meia-vida, tratar intoxicações.
a depuração é independente da via de administra-
ção do fármaco. Desse modo, quando o fármaco é A constante de eliminação, que determina a meia-
administrado por via extravascular, apenas a fração -vida, é utilizada para definir a frequência com que o
biodisponível da dose (Fabs ⋅ DNS) será responsável fármaco deve ser administrado em regimes de doses
pela exposição do organismo ao fármaco, devendo múltiplas, visando manter as concentrações plasmáti-
ser considerada para o cálculo da depuração (Equa- cas entre os limites da janela terapêutica. Apesar de a
ção 3.36). meia-vida ser mais facilmente entendida na clínica, a
depuração total (CLT) é um parâmetro mais útil do que
a meia-vida para indicar a capacidade do organismo
Relação entre depuração, volume de remover o fármaco, pois não é influenciada pelo
de distribuição e meia-vida Vd. Na definição de regimes posológicos, o Vd é utili-
Um parâmetro secundário relacionado à elimina- zado para determinação da dose de ataque, enquanto
ção de fármacos é a meia-vida, que, por definição, in- a CLT é utilizada para determinar a dose de manuten-
dica o tempo necessário (minutos, horas, dias) para ção (ver Capítulo 63 – Modelos Farmacocinéticos).

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