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1.1.

Inexistência jurídica, invalidade e ineficácia da lei


Os actos jurídicos em geral e, portanto, também os actos geradores de
Direito ou actos normativos podem, em determinado caso concreto, não
reunir todos os requisitos necessários para produzirem os efeitos a que
tendem. Estão então afectos ou ameaçados de ineficácia jurídica, tomada
a expressão em sentido amplo.
Dentro desta categoria geral podem e devem autonomizar-se duas espécies
– a inexistência jurídica e a invalidade, que por sua vez se desdobra em
duas subespécies, nulidade e anulabilidade. A essas modalidades acresce
a ineficácia stricto sensu.
Temos assim:
- inexistência jurídica;
- Invalidade: nulidade e anulabilidade;
- ineficácia
- A inexistência jurídica de um acto supõe que este não se amolda ao tipo
legal (norma jurídica) em que pretende integrar-se, porque não se ajusta à
sua natureza tal como a lei a define ou modela, mas também não se
enquadra em qualquer outro tipo legal nem pode valer como acto atípico.
Assim, o Código civil no seu artigo 1551º define casamento como “a união
voluntária entre duas pessoas de sexo diferente, nos termos da lei, que
pretendem constituir família mediante comunhão plena de vida”. Conclui-
se que o pretenso casamento entre duas pessoas do mesmo sexo não terá
sequer existência jurídica; é inexistente.
- A invalidade supõe que o acto existe juridicamente, mas padece de algum
defeito ou vício de formação que o priva de eficácia ou torna precária essa
eficácia. A invalidade pode revestir uma de duas formas: nulidade ou
anulabilidade.
O acto nulo não produz efeitos. O acto anulável produz efeitos, mas efeitos
precários: é válido, mas pode ser anulado e então passa a ser tratado como
se fora nulo.
A nulidade destina-se a salvaguardar o interesse público em atenção ao
qual foi imposto o requisito desrespeitado, e por isso pode ser declarada
pelo tribunal a todo o tempo, mediante arguição de qualquer interessado,
ou por iniciativa do próprio tribunal, que dele deve conhecer oficiosamente,
sempre que o processo forneça elementos que permitam certificar a sua
existência e daí resultem consequências relevantes para o pleito.
A anulabilidade destina-se a salvaguardar o interesse particular de certas
pessoas em atenção ao qual foi estabelecido o requisito não acatado, e por
isso o tribunal só pode decretar a anulação a pedido desse ou desses
interessados e dentro de certo prazo contado a partir da cessação do vício.
O acto anulável convalesce, isto é, dá-se a consolidação da sua validade, se
expirar o referido prazo sem o direito à anulação ser exercido ou se o
interessado confirmar o acto, renunciando expressa ou tacitamente a tal
direito.
- A ineficácia (stricto sensu) significa que o acto não possui qualquer vício
intrínseco, mas não obedece a um requisito extrínseco, a algo exterior ao
acto em si, como a lei o configura, mas de que depende a sua eficácia.
Tanto a inexistência jurídica como a invalidade de um acto pressupõe a sua
iliegalidade, ou seja, determinam que o acto é ilegal. Quando se pratica um
acto e não se observam os requisitos que a lei considera necessários para
se produzirem as consequências jurídicas visadas pelo autor. Há uma
ilegalidade.
Todo o acto ilícito é ilegal, mas nem todo o acto ilegal é ilícito.
A ilegalidade supõe a infração de um ónus, a ilicitude supõe a infração de
um dever. O ónus consiste na necessidade de agir de certo modo para
conseguir determinada vantagem jurídica – no nosso caso, a produção de
feitos jurídicos que o agente tem em causa. Quando pretendemos obter um
determinado resultado, certa vantagem, devemos agir de certa forma, sob
pena de ilegalidade. O dever consiste na vinculação a um comportamento
imposto pela lei para realizar ou não afectar interesses de outras pessoas.
A não observância desse comportamento imposto pela lei é reprovado, é
objecto de censura, que se traduz normalmente numa sanção.
A prática de um acto juridicamente existente que seja nulo ou anulável
envolve apenas, por via de regra, a ilegalidade. Só implica também ilicitude
se traduzir, além da inobservância do ónus de o celebrar correctamente, a
violação do dever de o não praticar ou de o praticar de outro modo.
O que acaba de ser dito aplica-se aos actos jurídicos em geral. Mas também
se aplica aos actos normativos, onde podemos ter situações que
configuram ilegalidades.
As leis podem estar feridas de ilegalidades, por não serem conformes com
normas jurídicas superiores, a que devem obediência. As normas
desrespeitadas podem ser normas constitucionais - nestes casos a
ilegalidade da lei reveste cariz mais grave, que é a inconstitucionalidade;
ou normas de leis superiores - e trata-se então de ilegalidade pura e
simples.
A lei que esteja em desarmonia com uma lei de grau hierarquicamente
superior ou é juridicamente inexistente ou nula.
As leis, ainda que juridicamente existentes e válidas, serão, contudo,
ineficazes (stricto sensu), enquanto não ocorrerem os dois seguintes
requisitos extrínsecos de que depende a sua eficácia; publicação no B.O. e
decurso do prazo de vacatio legis.
1.2. Cessação da vigência da lei
Os actos jurídicos, assim como nascem e vivem, também morrem.
A cessação dos efeitos tem, por vezes, eficácia ou alcance retroactivo: os
efeitos são dados como não produzidos no passado – efeitos “ex tunc”
(desde então ou desde o início); neste caso, tudo se passa como se o acto
não foi praticado ou celebrado.
Outras vezes a cessação dos efeitos projecta-se só para o futuro – efeitos
“ex nunc” (desde agora); a vida passada do acto jurídico salva-se, não é
afectado.
Modalidades de cessação: são três, revogação, rescisão e caducidade.
A revogação consiste na livre destruição dos efeitos de um acto jurídico por
vontade do seu autor ou autores, com ou sem retroactividade. É um acto
discricionário, porque não depende de qualquer fundamento. Resulta do
livre querer dos autores que, assim como deram vida ao acto no exercício
da sua autonomia, assim também lha tiram, no exercício da mesma
autonomia.
A revogação pode ser bilateral ou unilateral: é bilateral quando o contrato
se extingue por mútuo consentimento dos contraentes, com ou sem
retroactividade; diz-se unilateral quando, excepcionalmente, é reconhecida
a uma das partes a faculdade de, por si, dar sem efeito o contrato, com ou
sem retroactividade (ex: venda a retro).
A rescisão consiste na destruição dos efeitos de um acto jurídico por
iniciativa de um dos seus autores, com base em fundamento objectivo que
lhe dá esse direito. Trata-se de um acto vinculado, condicionado à
ocorrência de justa causa, como tal admitida por lei.
Em princípio, a rescisão opera por simples declaração do interessado
dirigida à outra parte, suposta a existência de causa justificativa (ex:
rescisão de contrato bilateral por incumprimento) ou mediante decisão
judicial (ex: rescisão do contrato de arrendamento por sublocação não
autorizada).
Na caducidade os efeitos jurídicos desaparecem em consequência de facto
não voluntário. Não depende de qualquer manifestação de vontade; basta
a ocorrência de certo acontecimento para o acto perder automaticamente
valor: caduca, no sentido de que cai por si. A sua vida extingue-se, não por
foça da vontade (“ex voluntate”), mas por efeito da lei. A caducidade
também pode ser ou não retroactiva.
Quando se fala da lei, que nos interessa em particular, não se põe o
problema da rescisão; mas põe-se o problema da revogação e o da
caducidade.
As leis, em princípio fazem-se para durar. O facto de uma lei ser antiga, não
impede a sua vigência. Quando o legislador faz uma lei, fá-lo normalmente
para que ela tenha duração indefinida, permanecendo em vigor até que o
próprio legislador venha a suprimi-la, no todo ou em parte.
Para que se dê a extinção de uma lei são necessário duas coisas: ou que a
própria lei contenha em si um limite à sua vigência ou que seja revogada
por uma lei posterior (ou por um costume). No primeiro caso a lei é
temporária, nasceu com o seu fim previsto, e quando chega o termo
assinalado deixa automaticamente de vigorar. No segundo caso a extinção
dá-se em consequência de nova e contrária manifestação do legislador,
incompatível com a subsistência da lei antiga.
Na primeira hipótese estamos a falar de caducidade da lei.
Há um limite temporal ínsito na própria norma: de maneira directa ou
indirecta, ela mesmo marca o período da sua vigência, de modo que,
decorrido esse período, perde valor, morre, sem necessidade de o
legislador o dizer.
A modalidade mais simples consiste em se fixar um prazo: a lei vigorará por
um ano, ou dois anos. Mas nem sempre as coisas se passam com esta
simplicidade. Às vezes o período de vigência da lei é incerto, porque se
determina através duma situação transitória, que pode durar mais ou
menos tempo. Assim, uma lei de carácter sanitário ou higiénico feita para
ser aplicada durante uma pandemia (ex: Covid-19) deixará de vigorar logo
que a pandemia termine e assim seja reconhecido pelas autoridades
judiciais. Aqui, o reconhecimento não é uma lei nova que revogue a
anterior, mas um acto administrativo que certifica o fim do estado
pandémico.
Mas para a lei caducar, será necessário que ela própria subordine a sua
eficácia a um evento futuro, delimitador de prazo certo ou incerto.
Nem toda a lei aparecida por ocasião de um estado de facto transitório,
como um desastre, uma crise económica ou uma pandemia, caduca com a
cessação desse estado de facto.
Há que distinguir, efectivamente, a não aplicação de uma lei, por falta de
relações a regular, e a sua inexistência.
No primeiro caso a norma existe potencialmente, é susceptível de produzir
efeitos. Não se aplica por falta de matéria; mas, logo que surja
eventualmente um caso compreendido no seu âmbito, ela entra a aplicar-
se. Suponhamos que um regulamento se ocupa da pesca de certa espécie
nas águas territoriais; essa espécie desaparece; o regulamento deixa de se
aplicar mas não caduca; voltando a aplicar-se se tal espécie aparecer de
novo.
No segundo caso as coisas passam-se de maneira diferente, porque é a
própria norma que falta.
A caducidade não é, contudo, a modalidade mais frequente de extinção da
lei. Normalmente a extinção de uma lei resulta do aparecimento de lei
posterior. Estamos na presença de duas leis que se sucedem; a posterior
atinge a anterior, revogando-a.
A revogação pode ser total ou parcial: total se atinge todo o conteúdo da
lei revogada; parcial se atinge parte desse conteúdo, deixando de vigorar
alguma ou algumas disposições e continuando de pé as restantes. À
primeira forma chama-se ab-rogação e à segunda derrogação.
A Revogação, em qualquer destas duas espécies, pode resultar de uma
manifestação expressa de vontade do legislador ou de mera instituição de
uma regulação contraditória com a constante de lei anterior. No primeiro
caso estamos perante a revogação expressa – o legislador declara abolir
certa lei ou certas disposições de lei que identifica ou, sem as individualizar,
todas as leis ou disposições legais sobre determinadas matérias. No
segundo casos estamos perante a revogação tácita – quando não há
expressa vontade revogatória: o legislador não declara querer revogar certa
lei; manifesta indirecta ou tacitamente essa vontade através de uma
disciplina jurídica que necessariamente se substitui à precedente, porque é
contraditória a ela. Não podem subsistir duas leis contraditórias, e dá-se
preferência àquela que exprime a vontade mais recente do legislador.
A revogação tácita, pela sua própria natureza, só actua na estrita medida
da incompatibilidade ou contraditoriedade. Quer dizer, a lei anterior
apenas se considera revogada naquilo em que ela for incompatível com a
lei nova; em tudo o mais continua a vigorar; as duas coexistem, conjugando-
se de maneira a formar um todo. É frequente o legislador intervir apenas
para retocar num ou noutro ponto a lei, que no resto subsiste.
. Quando o legislador revoga uma lei revogatória, não se dá, em princípio,
a repristinação, ou seja, o surgimento da lei por esta revogada.
Supõe-se a sucessão de três leis; a segunda das quais revoga a primeira, e a
terceira revoga a segunda. O facto de a segunda lei, revogatória da
primeira, ser por sua vez revogada pela terceira, não opera a repristinação
da primeira, isto é, não a faz renascer. Não a põe de novo em vigor.
Não se aplica nem a primeira nem a segunda lei porque ambas foram
extintas e a extinção desta não faz ressuscitar a primeira: os problemas que
surgirem terão de ser resolvidas de acordo a terceira lei, abstraindo-se das
duas leis anteriores.
Só não será assim se o legislador manifestar expressamente a intenção de
imprimir eficácia repristinatória à terceira lei ou essa intenção puder, pelo
menos, dar-se como suficientemente segura. Ou seja, se a segunda e a
terceira leis forem meramente revogatórias, isto é, se tiverem tido por fim
apenas extinguir a lei anterior. Com efeito, neste caso, o legislador limita-
se na segunda lei a revogar a primeira e na terceira lei vem anular essa
revogação, dando por sem efeito essa revogação. Neste caso, o legislador
terá querido naturalmente restabelecer a regulamentação primitiva.
A doutrina que acabámos de expor é válida em todos os ramos do Direito e
está consagrada no artigo 7º do Código Civil subordinada à epígrafe
“Cessação da vigência da lei”.
1. Quando se não destine a ter vigência temporária, a lei só deixa de
vigorar se for revogada por outra lei.
2. A revogação pode resultar de declaração expressa, da
incompatibilidade entre as novas disposições e as regras precedentes
ou da circunstância de a nova lei regular toda a matéria da lei
anterior.
3. A lei geral não revoga a lei especial, excepto se outra for a intenção
inequívoca do legislador.
4. A revogação da lei revogatória não importa o renascimento da lei que
esta revogara.

2. Costume: noção
O costume foi, até a segunda metade do século XVIII e princípios do século
XIX, a mais relevante fonte de Direito. Mas a sua importância decresceu,
passo a passo, com o andar dos tempos e hoje tem uma importância
bastante reduzida.
Nas sociedades primitivas era através do costume que o Direito se formava,
como emancipação instintiva da consciência social. Usos, práticas,
tradições que se tinham gerado de maneira insensível e gradual,
transmitiam-se de geração em geração e pautavam juridicamente a
conduta dos homens. Esses modos de agir que vinham do passado,
repetidos constantemente com a convicção da sua obrigatoriedade, eram
acolhidos pelos julgadores, que deles se serviam como critérios de
resolução dos conflitos sujeitos ao seu veredicto.
Foi só numa fase relativamente adiantada do progresso jurídico que surgiu
a função legislativa dentro do Estado. O Direito começou então a ser criado
de forma intencional, por meio de actos conscientemente dirigidos a esse
fim e emanados de uma assembleia ou de um soberano.
O costume cria direito. Como? Através da sua própria observância. Uma
pessoa adopta determinado critério de conduta, porque o acha o mais
razoável ou conveniente. Esse critério passa a ser conhecido pelo acto da
sua observância. Outros procedem da mesma maneira e ele, portanto
generaliza-se. De individual que era torna-se social, vai-se enraizando, e aos
poucos nasce no espírito dos indivíduos o sentimento, mais ou menos
nítido, de que deve ser acatado como Direito, ou seja, que pode ser exigida
a sua observância e a autoridade poderá e deverá aplica-lo pela força
quando desrespeitado.
Neste momento essa prática, que brotara espontaneamente e alcançara
lentamente o carácter de hábito, transforma-se em norma jurídica, fonte
criadora de uma regra suscetível de imposição coerciva.
O costume não é apenas exterioridade, a simples repetição material de
actos; é também interioridade, a persuasão da obrigatoriedade dessa
conduta como juridicamente exigível.
Se ocorre o primeiro elemento mas falta o segundo há uso e não costume.
Podemos estar na presença de uma prática social mais ou menos
consistente; no entanto, se essa prática não atinge, na mente dos
indivíduos, o grau de intensidade que a torne susceptível de ser imposta
pela coação em caso de desobediência, não constitui costume e, portanto,
não é fonte de Direito.
O uso só se converte em costume quando nele encarna o elemento
espiritual, quer dizer, quando há consciência da sua obrigatoriedade
jurídica.
2.1. Requisitos do costume
São fundamentalmente dois os requisitos do costume:
1º um uso
2º a consciência da sua obrigatoriedade jurídica.
O uso é a observância habitual de certa conduta, o elemento material do
costume, a ação externa. Deve ser geral e racional.
A generalidade traduz-se naquele mínimo de consistência que o uso deve
ter para não se confinar em simples prática individual ou de tal modo
restrita que não chega a atingir a dimensão necessária para servir de base
a uma norma jurídica.
Quanto à racionalidade significa que se deve tratar de uma prática não
contrária à natureza física ou moral do homem e aos princípios superiores
da justiça – em síntese uma prática não reprovável ou censurável ou, como
diz o artigo 3º do Código Civil, não contrária aos princípios da boa fé. Não
pode dar-se acolhimento a usos imorais ou delituosos, como os que surgem
no seio de uma associação de malfeitores; por muito que se generalizem, é
evidente que são ilícitos e, portanto, devem ser combatidos, nunca
podendo servir de fundamento a normas jurídicas.
O segundo elemento do costume é espiritual e psicológico – a convicção
em que estão os que observam o uso e os interessados nessa observância -
de que ele corresponde a uma exigência jurídica, obedecendo a um
imperativo de justiça ou a uma conveniência tal que se torna forçoso o seu
acatamento. Esta ideia que se generaliza na consciência dos homens
converte o uso em costume, dando-lhe o cunho de fonte de Direito. A esse
elemento chamavam os romanos (e ainda se utiliza a expressão) de “opinio
iuris vel necessitate”.
Sem este elemento – convicção da sua obrigatoriedade – não seria possível
distinguir o costume do mero uso social.
Por exemplo é prática corrente retribuir felicitações. Esse uso está
generalizado, constitui prática habitual. Mas é considerado apenas um
dever de cortesia. Não se vê a necessidade de o revestir de carácter de
obrigatoriedade jurídica; que seja tão grave deixar de o cumprir que se
legitime o recurso à força para o impor.
O costume tem, pois, em resumo, de abranger os dois elementos
apontados: um uso geral e lícito e a “opinio iuris” ou “opinio necessitatis”.
2.2. Modalidades de costume
Os antigos distinguiam as três seguintes modalidades de costume, tendo
em conta as relações entre ele e a lei:
- “secundum legem”;
- “preater legem”;
- “contra legem”.
O costume “secundum legem” é, como resulta da expressão, conforme com
a lei. Havendo uma lei cuja interpretação origina dúvidas, forma-se com o
tempo uma prática social no sentido de atribuir a essa lei determinado
sentido que vai sendo respeitado com a convicção da obrigatoriedade de
tal entendimento.
O costume “preater legem” é aquele para lá da lei. A vida é muito mais
complexa do que a imaginação do legislador, havendo nela muitos aspectos
que o legislador não prevê; também há ouros aspectos da vida que
legislador intencionalmente nada diz, pela dificuldade de encontrar
soluções que se lhes ajustem. Além disso o progresso faz surgir realidades
novas: novos interesses, novas actividades, novos problemas, que o
legislador no momento em que legislou não podia sequer prever.
Assim, deparámos com muitas matérias, muitas situações ou conflitos de
interesses que não estão regulados directamente na lei. É o fenómeno das
lacunas da lei. Torna-se necessário encontrar maneira de as integrar.
Outrora acontecia muito frequentemente que nesses espaços vazios,
deixados em branco pela lei, criavam-se costumes que os preenchiam.
Esses costumes, que não eram contraditórios nem conformes com as leis,
estando para além delas, designavam-se por isso “preater legem”.
O costume “contra legem” é aquele contrário à lei, afasta a lei, por isso
acaba por revoga-la.
. Usos interpretativos e usos supletivos
Como já vimos, em bom rigor, devem distinguir-se os usos dos costumes.
Não obstante muitas vezes se empreguem os dois termos
indiferentemente, os dois conceitos são distintos: os usos só se
transformam em costumes, como fontes criadoras de Direito, quando
sejam acompanhadas da “opinio iuris”, ou seja, da consciência da sua
obrigatoriedade jurídica. Se falta essa consciência, não se gera um costume
propriamente dito.
Isto não impede, no entanto, que se vão consolidando práticas resultantes
espontaneamente das necessidades e interesses dos homens. Muitas
dessas práticas permanecem fora da órbita do Direito; mas há outras que,
sem serem verdadeiramente fontes jurídicas, interessam ao Direito.
Referimo-nos aos usos, e em especial aos usos contratuais ou negociais, que
servem ou contribuem para a exacta determinação do alcance e
consequências de um acto jurídico.
Pratica-se um acto jurídico todas as vezes que se realiza uma actividade que
a lei (ou o costume) atribui efeitos que alteram a posição das pessoas
perante o Direito. Ou seja, quando há uma manifestação de vontade que
produz efeitos jurídicos. Praticam- se actos jurídicos em todos os momentos
da vida: ex., uma compra e venda, um testamento, uma doação, uma
sociedade.
Os actos jurídicos precisam de ser interpretados, pois podem surgir dúvidas
no acto jurídico que precisa de ser esclarecida; ou pode haver uma lacuna
que precisa ser preenchida. Nesta tarefa os usos podem constituir um
auxiliar importante.
Com efeito, o art. 3º nº 1 do Código Civil refere a eles que os declara
juridicamente atendíveis quando a lei o determine, desde que não
contrários aos princípios da boa fé.
Umas vezes a lei manda explicitamente atender aos usos e há então que
respeitá-los de forma directa, nos termos que ela referir. Outras vezes a lei
nada diz acerca dos usos, mas estes, caso existam, poderão contribuir para
a correcta aplicação dos critérios legais de interpretação e integração dos
actos jurídicos.
Esses são os usos interpretativos e os usos supletivos.
. Prova dos usos e dos costumes
Nos termos do artigo 348º nº 1 do Código Civil “aquele que invocar direito
consuetudinário, local ou estrangeiro compete fazer a prova da sua
existência e conteúdo, mas o tribunal deve procurar, oficiosamente, obter
o respectivo conhecimento. Como se trata de matéria de Direito, o Tribunal
não está dispensado de indagar da sua existência e conteúdo, cabendo-lhe
proceder à sua interpretação e aplicação. Mas a parte também não está
dispensada do ónus de provar a existência e conteúdo do costume que
alega. E se não produzir essa prova e as indagações oficiosas do Tribunal se
frustrarem, este julgará como se o costume não existisse.
Diferentemente se passam as coisas em relação aos usos.
O costume é um facto que tem conteúdo normativo, à semelhança da lei.
Enquanto que o uso é um puro facto. O julgador não está por isso obrigado
a investiga-lo. A parte que o invocar é que tem a obrigação de prová-lo, sem
o que ele não poderá ser atendido.
3. Doutrina
Em Cabo-verde, tal como em Portugal, a actividade dos jurisconsultos
teóricos ou práticos não pode considerar-se fonte de Direito, não é criação
de Direito novo, mas sim elaboração e desenvolvimento do material
jurídico.
A ciência jurídica tem por objecto o conhecimento sistemático do Direito;
estuda as várias normas constantes dos Códigos ou outras leis; procura
determinar o seu valor e extensão, investiga as conexões existentes entre
elas, etc. Nesta elabora complexa, o jurisconsulto pode descortinar
verdades novas, pode fazer novas aplicações, mas não cria direito. Há, por
hipóteses, um aspecto que não resulta evidente da leitura da lei, um caso
que se encontra omisso e para o qual é preciso encontrar solução, e chega-
se a um resultado obtido através do trabalho dos jurisconsultos. Tudo isto
é muito importante, mas representa o mero desenvolvimento científico do
Direito existente, e não a criação de Direito novo, que aos jurisconsultos,
enquanto tais, está vedada.
Uma opinião doutrinária nunca vincula; os tribunais são sempre livres de a
acatar ou de a afastar, substituindo-a por outra. Nenhuma opinião possui
obrigatoriedade, nem mesmo quando tenha a seu favor a generalidade ou
a unanimidade dos jurisconsultos que se pronunciaram sobre o problema.
A doutrina, a “communis opinio doctorum”, portanto, não é fonte de
Direito.
Em resumo, a Doutrina, entendendo esta expressão no sentido de Ciência
jurídica – seja a ciência pura, seja a ciência aplicada, como um parecer
elaborado por um jurista de especial autoridade para ser junto a
determinado processo judicial – não assume o significado e a relevância de
verdadeira fonte de Direito. Não pode, no entanto, menosprezar-se o seu
valor, como fonte mediata ou indicrecta, que influencia e orienta a vida
jurídica, contribuindo para a boa formação das leis, iluminando os caminhos
da sua aplicação e funcionando como mola real do progresso do Direito.
4. Jurisprudência
Denomina-se jurisprudência o conjunto das decisões judiciais, ou seja,
decisões através dos quais os tribunais resolvem os litígios que lhes são
submetidos. O juiz é o intermediário entre o Direito e a vida, e tem por lei
o dever de resolver todos os casos que lhe são submetidos. O juiz não pode
recusar-se a julgar sob qualquer pretexto, seja qual for.
Nesta ordem de ideias, o artigo 8º do Código civil que “o tribunal não pode
abster-se de julgar, invocando a falta ou obscuridade da lei ou alegando
dúvida insanável acerca dos factos em litígio”. Por outro lado, e duma
perspectiva diferente, prescreve o mesmo artigo que “o dever de
obediência à lei não pode ser afastado sob pretexto de ser injusto ou imoral
o conteúdo do preceito legislativo”. Diz ainda o artigo que “o julgador
deverá ter em consideração todos os casos que mereçam tratamento
análogo, a fim de obter uma interpretação e aplicação uniformes do
direito”. A derrogação da justiça constitui um facto ilícito, gerador de
responsabilidade civil e criminal (cfr. Código Processo Civil e Código penal).
Muitas vezes sucede que o julgador está perante um texto de lei ambíguo,
equívoco, ou se encontra na presença duma lacuna da lei, e torna-se então
necessário que, com o seu engenho e o seu bom senso, esclareça a dúvida
ou preencha a omissão. Isso, porém, não é criar Direito, é aplicar Direito. O
juiz nunca aplica Direito da sua invenção, limita-se a aplicar o Direito que já
se contém, explícito ou implícito, no sistema jurídico.
Como sabemos, a decisão que o tribunal profere possui pura eficácia
concreta, no sentido de que só é obrigatória para as partes que intervêm
no litígio; há aqui um puro comando individual – sem projeção para o
futuro. Ainda que idêntica questão de direito se levante num processo, o
juiz não está vinculado ao veredito que o primeiro emitiu, podendo resolver
agora a questão segundo critério diferente.
Os tribunais formam uma hierarquia, dentro da qual ocupam graus. As
decisões dos tribunais inferiores podem ser submetidas e apreciadas por
tribunais superiores, mediante recurso. Mas a todos os órgãos envolvidos é
reconhecida, por via de regra, a liberdade de noutros processos julgarem
de modo diferente, pois se trata de decisões individuais, sem força
generalizadora ou eficácia normativa. Os juízes são independentes, julgam
segundo a lei e a sua consciência, não tendo, por via de regra, de obedecer
a ordens e instruções, seja de quem for.
A jurisprudência, como tal, só é verdadeiramente fonte de Direito no
sistema anglo-saxónico, onde vigora a regra do precedente – “precedent
rule”, segundo a qual as decisões dos tribunais superiores vinculam os
tribunais inferiores. Das decisões individuais proferidas pelos órgãos
judiciais que se encontram na cúpula do sistema, extraem-se os princípios
nela implícitos, conformes com a razão de decidir – “ratio decidendi” -, e
esses princípios, assim revelados, ficam constituindo regras ou máximas a
que os tribunais inferiores devem obediência em casos futuros.
5. Equidade
A equidade é uma noção antiga, que foi trabalhada por Aristóteles nas suas
célebres Ética a Nicómaco e Retórica.
A equidade visa temperar a rigidez ou a frieza da lei de forma a ajusta-la ao
caso concreto. Como foi referido acima, a lei é geral e abstracta. Ela é
formulada em termos genéricos, tendo em vista, sem dúvida, as
circunstâncias reais da vida, mas numa perspectiva abstracta, sem descer
às peculiaridades dos casos concretos. Dessa abstração podem resultar, e
por vezes resultam, desajustamentos entre a justiça da solução legal e a
justiça desejável na hipótese individual submetida à apreciação do julgador.
A equidade será o instrumento idóneo para afastar ou evitar esses
desajustamentos. No fundo, a equidade é procurar a solução que mais se
ajusta ao caso em litígio.
O julgador deve sempre procurar para o litígio a solução concretamente
mais justa, mas apenas dentro dos limites que a lei permita. O julgador não
pode deliberadamente afastar-se da norma jurídica, a pretexto de que a
essa norma conduz, na hipótese, a solução desrazoável. Isso seria fazer
Direito livre, contrário ao princípio da Segurança. Não é lícito o julgador,
como regra, afastar ou adaptar a norma mediante a introdução de critérios
de equidade.
Só é consentido ao julgador decidir segundo critérios de equidade se a
própria lei o estabelecer, ou as partes convencionarem em matérias que
estejam na sua disponibilidade.
A matéria está regulada no artigo 4º do Código Civil, sob a epígrafe “valor
da equidade” Como daí se vê, o julgamento segundo a equidade (“ex aequo
et bono”) é excepcional, só sendo admissível se se basear em autorização
legal ou convencional.

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