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Faculdade de Direito da Universidade do Porto

Sebenta de
Direito Comercial
Prof. Dr. Rodrigo Rocha Andrade

Aulas Práticas

Faculdade de Direito da Universidade do Porto

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Faculdade de Direito da Universidade do Porto

Nota Introdutória

Esta sebenta respeita às aulas práticas de Direito Comercial do ano letivo de 2020/2021,
lecionadas pelo docente Rodrigo Rocha Andrade. A sebenta foi realizada com os apontamentos da
coordenadora Marta Correia e da vogal Helena Lourenço do Departamento de Pedagogia da Comissão
de Curso do 4º ano.
A sua elaboração foi realizada com o objetivo de auxiliar os estudantes para o exame de Direito
Comercial. Relevamos ainda que, a leitura desta sebenta não substitui a leitura da bibliografia
obrigatória ou recomendada, sendo apenas um instrumento de auxílio ao estudo.
Caso sejam detetados alguns erros, agradecemos que estes sejam comunicados através do email
da CC4: ccurso4fdup@gmail.com de modo a que o documento seja aperfeiçoado.

Bom estudo!

A Comissão de Curso do 4º ano de Direito

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Índice
▪ Página 4 – Os atos comerciais

▪ Página 6 – Caso Prático nº 1 (classificação de atos comerciais)

▪ Página 8 – Regime do Contrato de Compra e Venda Mercantil

▪ Página 10 – Caso Prático nº 2 (contrato de compra e venda mercantil)

▪ Página 13 – Caso Prático nº 3 (classificação de contratos)

▪ Página 16 – Caso Prático nº 4 (contrato de locação financeira)

▪ Página 21 - Regime do contrato de cessão financeira

▪ Página 25 – Caso Prático nº 5 (contrato de cessão financeira)

▪ Página 28 – Regime da Insolvência

▪ Página 34 – Caso Prático nº 6 (insolvência)

▪ Página 39 – Processo Especial de Revitalização

▪ Página 40 – Caso Prático nº 6 (Continuação)

▪ Página 42 – Firma

▪ Página 47 – Caso Prático nº 7

▪ Página 50 – Dívida dos comerciantes + Caso Prático nº 8

▪ Página 52 – Estabelecimentos comerciais e empresas

▪ Página 57 – Caso Prático nº 9

▪ Página 66 – Títulos de crédito

▪ Página 71 – Caso Prático nº 10

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Direito comercial
Aulas práticas
Os atos comerciais
A qualificação de um ato como comercial releva para efeitos de aplicação do regime comercial
(art. 1.º, C.Com.). Esta qualificação é importante por diversos motivos: em primeiro lugar, o regime
supletivo das obrigações plurais difere consoante o ato seja de natureza civil ou comercial – no
primeiro caso, aplica-se o regime supletivo da conjunção (art. 513.º, CC); no segundo caso, aplica-se
o regime supletivo da solidariedade (art. 100.º, C.Com.). O regime da solidariedade, contudo, não será
extensivo aos não comerciantes quanto aos contratos que, em relação a eles, não sejam comerciais.
Neste ponto, importa referir que, mesmo que o ato seja unilateralmente comercial, i.e., qualificado
como comercial em relação a apenas uma das partes, o regime mercantil alarga-se a ambas, embora
com algumas exceções, designadamente certas disposições que só são aplicáveis à parte cujo ato seja
comercial (art. 99.º, C.Com.).

Em segundo lugar, importa para efeitos de qualificação dos sujeitos como comerciantes (art.
13.º, C.Com.). Sendo um sujeito qualificado como comerciante, todos os atos por si praticados serão,
em princípio, considerados atos subjetivamente comerciais. Os comerciantes estão sujeitos a um
estatuto próprio, estando sujeitos a determinadas obrigações, previstas no art. 18.º, C.Com. Também
as dívidas comerciais contraídas por comerciantes apresentam um regime de responsabilidade próprio,
nos termos do qual serão responsabilidade de ambos os cônjuges as dívidas contraídas por qualquer
um deles no exercício do comércio, presumindo-se contraídas no âmbito do comércio todas as dívidas
que forem comerciais (arts. 15.º, C.Com. e 1691.º, n.º 1, al. d), CC).

Por último, releva, ainda, no domínio das taxas de juro mercantis, sujeitas a um regime especial
(art. 102.º, C.Com.). Os juros mercantis devem sempre ser fixados por escrito. No que diz respeito aos
juros moratórios legais e àqueles para os quais não se estabeleceu uma taxa, a lei estabelece que para
os titulares de empresas comerciais (comerciante em sentido subjetivo, titular de uma empresa
comercial) a taxa deve ser fixada por portaria conjunta do ministro da justiça e das finanças. Relevância
do DL n.º 62/2013, de 10/5, que transpõe a diretiva relativa aos atrasos nas transações comerciais.

Os atos comerciais, conforme o art. 2.º, C.Com., correspondem a “todos aqueles que se acharem
especialmente regulados neste Código, e, além destes, todos os contratos e obrigações dos
comerciantes, que não forem de natureza exclusivamente civil, se o contrário do próprio ato não
resultar”. É possível distinguir entre atos objetivamente comerciais, cuja comercialidade resulta da

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própria natureza do ato, e atos subjetivamente comerciais, cuja comercialidade resulta da qualidade do
sujeito que os pratica.

1. Atos objetivamente comerciais

Serão atos de comércio objetivos:

a. Os atos diretamente previstos no C.Com. Por exemplo, a compra e venda mercantil (art. 463.º,
C.Com.).
b. Os atos previstos em leis que substituam normas do C.Com.
c. Os atos previstos em leis que se autoqualificam como comerciais. Existe um conjunto de figuras
previstas no CC que, embora sejam civis, são materialmente comerciais, sendo encaradas
enquanto atos de comércio – é possível qualificar outros atos como atos comerciais atendendo
ao critério da satisfação de necessidades de caráter comercial (exemplo: art. 1112.º, CC).
d. Os atos qualificados como comerciais por força da analogia legis ou da analogia iuris, com base
nos princípios gerais de direito comercial. Todos os atos previstos no art. 230.º, C.Com., quando
praticados no âmbito de uma empresa, serão considerados atos objetivamente comerciais. Este
artigo apenas prevê o ato de fornecimento de géneros e produtos pelas empresas comerciais,
parecendo dele estarem excluídos os atos de fornecimento de serviços; contudo, recorrendo à
analogia legis, é possível considerar os atos de fornecimento de serviços praticados por uma
empresa como atos comerciais. Importa referir que fornecer serviços não equivale a prestar
serviços – o fornecimento pressupõe que as partes acordem a prestação por um determinado
preço e determinado período de tempo, enquanto a prestação se refere apenas a atos casuísticos,
nos quais o preço não é previamente convencionado pelas partes, mas determinado
casuisticamente, a cada prestação. A prestação de serviços não se inclui no elenco de atos do
art. 230.º, C.Com., embora possa ser qualificada como um ato comercial recorrendo à analogia
iuris. Todos os atos conexos aos atos previstos no art. 230.º serão, também, comerciais (por
exemplo, a compra, por uma empresa, de uma carrinha de forma a poder transportar os bens
que se propõe a fornecer). A qualificação de um ato como comercial recorrendo à analogia iuris
é feita com base em três princípios:
i. Toda a prestação de serviços no âmbito da empresa será comercial (art. 230.º);
ii. Todos os atos de interposição de trocas serão atos de comércio;
iii. Serão atos de comércio todos os negócios sobre empresas comerciais (trespasse ou
locação de estabelecimentos comerciais).

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2. Atos subjetivamente comerciais

Para que um ato seja considerado subjetivamente comercial, deverá cumprir determinados
requisitos:
a. Deve ser praticado por um comerciante. Conforme o art. 13.º, C.Com., são comerciantes as
sociedades comerciais e as pessoas que pratiquem atos de comércio de forma profissional. O
art. 14.º, C.Com. exclui alguns sujeitos da qualificação de comerciante. Um sujeito será
comerciante desde que:
i. Detenha capacidade comercial (art. 7.º, C.Com.), correspondente à capacidade de
exercício. Nos termos gerais, a capacidade de exercício apenas se adquire com a
maioridade (art. 123.º, CC). Todavia, é possível que menores de idade sejam
considerados comerciantes, desde que os seus atos sejam praticados pelos seus
representantes e devidamente autorizados pelo Ministério Público (art. 1889.º, CC e art.
2.º, DL n.º 272/2001).
ii. Exerça atos de comércio (em sentido objetivo);
iii. Exerça os atos de comércio de forma profissional, i.e., sistemática, reiterada e séria;
iv. Pratique os atos em nome próprio.
b. Não pode tratar-se de um ato exclusivamente civil, sem qualquer tipo de conotação comercial
(exemplos: casamento, adoção, testamento).
c. Do próprio ato não pode resultar a sua não comercialidade. Esta corresponde a uma qualidade
aferida no momento da prática do ato, de acordo com um juízo do ponto de vista do destinatário
normal, razoável ou médio (art. 236.º, CC).

Caso prático n.º 1:

Diga, justificando, se os atos, negócios, obrigações ou atividades a seguir indicados devem


ser considerados como comerciais, e se os respetivos sujeitos devem ser tidos como comerciantes.

1. Artur, estudante da FDUP, comprou uma máquina de café. No primeiro dia do período
de provas orais, instalou uma banca num dos pisos do edifício, servindo aos seus colegas café ao
preço de €0,40. Após ter sido proibido pelo Conselho Diretivo de exercer essa atividade revendeu a
máquina à Associação de Estudantes, que passou a utilizá-la para vender cafés na sala de convívio.

Qualificação dos sujeitos:

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• Artur: apesar de ter capacidade comercial e de praticar os atos em nome próprio, não é um
comerciante, uma vez que não exerce os atos de forma profissional, e a sua prestação de serviços
não corresponde a um ato objetivamente comercial, na medida em que não se insere no âmbito dos
atos previstos no próprio código, em leis que substituam normas do C.Com. ou em leis que se
autoqualificam como comerciais, nem pode ser qualificada como tal por analogia iuris de acordo
com os princípios do direito comercial.
• Associação de Estudantes: também não será comerciante, uma vez que não corresponde a um dos
sujeitos previstos no art. 13.º, C.Com. e o próprio art. 14.º exclui as associações do conceito de
comerciantes.

Classificação dos atos:


• Compra da máquina de café por Artur: não é um ato subjetivamente comercial, uma vez que
Artur não é comerciante. Não tendo havido intenção de revenda no momento da compra e não
tendo sido praticado no âmbito de uma empresa (art. 230.º, C.Com.), não se trata de um ato
objetivamente comercial. A compra e venda mercantil pressupõe o intuito de revenda (art. 463.º,
C.Com.). Também não pode ser considerado objetivamente comercial recorrendo à analogia.
• Venda de cafés por Artur: não corresponde a um ato comercial, na medida em que é um ato de
prestação de serviços praticado fora do âmbito de uma empresa. Todos os restantes atos são atos
não comerciais.
• Venda da máquina à AE: não corresponde a um ato subjetiva nem objetivamente comercial, por
se situar fora do âmbito dos arts. 230.º e 463.º, C.Com.

2. Belmiro é um jovem de 17 anos que organiza atividades radicais no rio Minho.


Recentemente adquiriu dois barcos de borracha para o seu negócio, tendo para o efeito contraído
um empréstimo de €2500 junto de Carlos, um amigo da família que explora uma pensão em
Melgaço. Carlos emprestou ainda €3000 ao seu amigo David, serralheiro, para que este pagasse o
sinal de um automóvel que pretende adquirir.

Qualificação dos sujeitos:


• Belmiro: em princípio, não será comerciante, por não deter capacidade comercial, a menos que os
atos praticados o sejam pelos seus representantes e devidamente autorizados pelo MP (art. 1889.º,
CC e art. 2.º, DL n.º 272/2001). Resta saber se pratica atos objetivamente comerciais. Se se
entender que a sua prestação de serviços se insere no âmbito de uma empresa (art. 230.º, C.Com.),

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a resposta será afirmativa, por analogia iuris. Pelo contrário, se se entender que os seus atos não
são praticados no âmbito de uma empresa, não serão considerados atos objetivamente comerciais.
• Carlos: será comerciante, na medida em que preencha os respetivos requisitos (ter capacidade
comercial, exercer atos de comércio de forma profissional e o faça em nome próprio). A exploração
de uma pensão é um ato comercial por analogia iuris (consiste numa prestação de serviços efetuada
no âmbito de uma empresa – art. 230.º, C.Com.). Se, contudo, Carlos fosse gerente de uma
sociedade comercial de exploração da referida pensão, já não seria considerado comerciante, uma
vez que os seus atos seriam praticados em nome da sociedade (a própria sociedade seria, nesse
caso, o comerciante).
• David: existe um conjunto de atividades que estão excluídas do comércio (previstas no art. 230.º/1,
2 e 3 C.Com.), no qual se inserem as atividades praticadas por artesãos pela própria mão. Assim,
na medida em que David exerce a sua atividade pela própria mão, não será comerciante. Mas se
tiver um conjunto de trabalhadores a realizar a atividade por si, será comerciante. Neste caso, não
parece ser comerciante.

Classificação dos atos:


• Organização de atividades radicais: corresponde a um ato comercial por analogia iuris
(prestação de serviços praticada no âmbito de uma empresa).
• Aquisição de barcos de borracha: não é um ato subjetivamente comercial, na medida em que
Belmiro não é comerciante; será, contudo, um ato objetivamente comercial, pois traduz-se numa
compra e venda mercantil, destinada ao aluguer, i.e., ao lucro (art. 463.º, C.Com.).
• Empréstimo de Carlos a Belmiro: não será, face a Belmiro, um ato subjetivamente comercial,
uma vez que este não é comerciante, e também não será, face a Carlos, um ato subjetivamente
comercial, uma vez que não foi praticado no âmbito da comercialidade do comerciante. Será,
contudo, um ato objetiva e acessoriamente comercial, por estar ligado a um ato mercantil, se se
entender que a compra dos barcos é um ato de comércio (arts. 394.º, 395.º e 396.º, C.Com.).
• Empréstimo de Carlos a David: não é um ato comercial, uma vez que o ato praticado com o valor
do empréstimo não corresponde a um ato comercial, mas exclusivamente civil.
• Aquisição do automóvel: corresponde a um ato exclusivamente civil.

Regime da compra e venda mercantil

A qualificação da compra e venda como comercial decorre do preenchimento dos critérios do


art. 463.º, sendo afastada nos casos do art. 464.º, C.Com. Para a aplicação do regime da compra e

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venda mercantil, não basta que uma compra e venda seja subjetivamente comercial, por estarem nela
envolvidos sujeitos comerciais, deve tratar-se de um ato também objetivamente comercial. Para efeitos
da aplicação do regime da compra e venda mercantil, será indiferente: 1) se o intuito lucrativo se
verificar pela parte do comprador ou do vendedor; 2) se o intuito lucrativo é ou não conhecido pela
contraparte; 3) se o intuito lucrativo foi ou não efetivamente concretizado; ou 4) se a compra se insere
ou não numa atividade empresarial profissional.

Na compra e venda comercial, o preço pode ser fixado por qualquer meio desde que haja
critérios de determinabilidade, caso contrário o negócio será nulo (art. 466.º, C.Com.). A lei admite a
venda de coisa incerta, bem como a venda de coisa alheia, contrariamente ao que ocorre no direito
civil (art. 467.º, C.Com.). Embora não transmita o direito de propriedade, o ato de venda não será nulo,
nascendo um dever, para o comerciante, de adquirir a propriedade da coisa alheia, sob pena de incorrer
em responsabilidade perante a outra parte. Existe um regime específico para as vendas feitas sobre
amostra ou fazenda, ou determinadas atendendo unicamente a uma qualidade conhecida no comércio
– estas consideram-se sempre feitas sob condição de a coisa ser conforme à amostra (art. 469.º,
C.Com.). Neste caso, recairá sobre o comprador, ao receber a mercadoria, o ónus de a examinar e
reclamar quanto à sua qualidade no prazo de 8 dias, sob pena de a transação se estabilizar (art. 471.º,
C.Com.). Na compra e venda mercantil, distingue-se consoante a venda seja feita à vista, caso em que
o bem deve ser entregue em 24 horas, ou não à vista, caso em que o comprador poderá fixar um prazo
judicialmente.

O regime de incumprimento do pagamento equivale ao regime previsto para os contratos de


compra e venda civil (arts. 886.º, CC). A única exceção a este regime geral está prevista no art. 474.º,
C.Com., que permite ao devedor, na eventualidade de o comprador não pagar o preço, vender a coisa,
mesmo que esta já não lhe pertença, resolvendo o contrato. Por regra, transmitida a propriedade da
coisa e feita a sua entrega, o vendedor não poderá, salvo convenção em contrário, resolver o contrato
por falta de pagamento do preço (art. 886.º, CC) – a resolução do contrato pressupõe sempre que o
devedor se encontre em incumprimento definitivo, através da interpelação admonitória (art. 808.º).
Tendo o bem sido entregue, e não havendo qualquer cláusula de reserva de propriedade, o contrato
não poderá ser resolvido. Sendo o bem vendido a prestações, com reserva de propriedade, e tendo sido
entregue, a falta de pagamento de uma só prestação que não exceda a oitava parte do preço não dará
lugar à resolução do contrato (art. 934.º, CC). Na resolução do contrato de compra e venda deve ter-
se em conta vários aspetos (para efeitos de aplicação dos arts. 886.º e 934.º, CC) – 1) existência ou não
de entrega do bem vendido; 2) modo de pagamento do preço; 3) existência ou não de reserva de
propriedade e 4) qual a prestação incumprida.

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Caso prático n.º 2:

I. A, sociedade comercial, vende a B, sociedade comercial, 30 aquecedores a gás, por


10.000€, que entrega de imediato. Na data do vencimento do crédito, B não paga.

a) Pode A resolver o contrato?

Os sujeitos A e B são ambos comerciantes, uma vez que ambos são sociedades comerciais (arts.
1.º e 13.º, C.Com.). Sendo comerciantes, os atos por eles praticados serão subjetivamente comerciais.
Tendo o bem sido entregue, e não havendo qualquer cláusula de reserva de propriedade, o contrato
não poderia ser resolvido (art. 886.º, CC). Perante o incumprimento por parte de B, A deverá
transformar a mora em incumprimento definitivo através da interpelação admonitória.

b) Se A optar pela não resolução do contrato, a que é que terá direito?

Existindo incumprimento de uma obrigação pecuniária, o vendedor terá direito ao pagamento


de juros moratórios (art. 102.º, C.Com.). Se o contrato for civil e as partes nada estabelecerem,
aplicam-se os juros civis, a uma taxa de 4% (arts. 559.º e ss., CC e Portaria n.º 291/03, de 8/4/2003).
Os juros civis convencionados pelas partes têm os limites legais do art. 1146.º, CC (remissão do art.
559.º-A, CC). A compra e venda em causa será sempre considerada um ato comercial, uma vez que,
pelo menos subjetivamente, será um ato comercial para ambas as partes. Estando em causa um ato
comercial, terá os juros calculados nos termos do art. 102.º, C.Com. (parágrafos 3.º, 4.º e 5.º). Se o
contrato for comercial, perante uma relação entre duas empresas, aplica-se o DL n.º 62/2013, que
estabelece que a taxa de juro devido será 1% superior (art. 102.º, p. 5, C.Com.). De acordo com o art.
3.º deste DL, serão transações comerciais as transações entre empresas destinadas ao fornecimento de
bens ou à prestação de serviços contra remuneração, sendo consideradas empresas as entidades que,
não sendo uma entidade pública, desenvolvem uma atividade económica ou profissional autónoma.
Estes juros legais relativos a transações comerciais começam a vencer-se nos termos do art. 4.º do DL
n.º 62/2013.

Caso as partes tenham acordado os juros moratórios devidos, aplicar-se-á o regime


convencionado. Caso as partes não tenham determinado os juros moratórios e se não esteja perante
uma transação comercial, aplicam-se os juros civis. Caso as partes não tenham determinado os juros
moratórios e em causa esteja uma transação comercial, aplicam-se os juros comerciais.

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II. A, Warrior, SA, que se dedica à importação e revenda de máquinas industriais, vende a
B, Meridiano, SA, que se dedica à produção de sapatos, a 2 de janeiro de 2020, uma máquina
industrial com reserva de propriedade. O preço de € 150.000 foi fracionado em 15 prestações com
vencimento mensal. B, em graves dificuldades financeiras, revende a máquina a C, também
empresa de produção de sapatos, por € 100.000, a 2 de abril de 2020, que a instala na sua fábrica.
Face ao incumprimento da prestação de março por B, A, tomando conhecimento da revenda da
máquina, resolve o contrato e exige a sua restituição a C.

a) Qualifique quanto à sua comercialidade os contratos descritos.

O contrato de compra e venda celebrado entre A e B corresponde a um contrato comercial, uma


vez que consiste num ato subjetiva e objetivamente comercial. A e B são sociedades comerciais, pois
ambas são sociedades que praticam atos comerciais, nomeadamente a importação e revenda de
máquinas industriais e a produção de sapatos. Assim, sendo sociedades comerciais, serão comerciantes
(art. 13.º, C.Com.). Objetivamente, este contrato será um ato comercial, por se tratar de uma venda
mercantil (art. 463.º, C.Com.).

O contrato de compra e venda celebrado entre B e C parece não corresponder a uma compra e
venda mercantil, pois B não havia comprado a máquina com o objetivo de a revender (parece inserir-
se no âmbito do art. 464.º, C.Com.). Contudo, corresponde a um ato de comércio acessório, por estar
ligado a um ato comercial (a produção de sapatos para venda), sendo qualificado, também, como
comercial.

b) Caso C esteja em mora no cumprimento das suas obrigações, os juros que se vencem são
iguais aos juros que se venceriam caso C fosse agricultor? Porquê?

Se C estiver em mora, não tendo as partes estipulado nada em contrário, vencem-se os juros
previstos nos parágrafos 3.º e 5.º do art. 102.º, C.Com. – aplica-se uma ou outra taxa consoante se trate
ou não de uma transação comercial. Neste caso, está em causa uma transação comercial, aplicando-se
o parágrafo 5.º. Se C fosse agricultor, não seria comerciante à luz do art. 230.º, C.Com.. Contudo, B
continuaria a ser comerciante, correspondendo a venda a um ato unilateralmente comercial. A doutrina
considera que o art. 102.º, C.Com. se aplica inclusive aos atos unilateralmente comerciais. Assim,
mesmo que C fosse agricultor aplicar-se-iam os juros comerciais, dado estar em causa uma transação
comercial.

c) Pode A resolver o contrato?

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No caso, não seria aplicável o art. 886.º, CC, uma vez que foi convencionada uma cláusula de
reserva de propriedade. Poderia aplicar-se o art. 934.º, CC, que estabelece que para haver resolução
será necessário que o devedor incumpra mais do que uma prestação inferior à 8.ª parte do preço ou
que incumpra uma única prestação que exceda a 8.ª parte do preço.

Neste caso, está em causa um incumprimento grave que atingiu a relação de confiança entre as
partes, implicando a perda da confiança no devedor, uma vez que este vendeu algo que não lhe
pertencia; como tal, aplicam-se as regras gerais da resolução dos contratos.

d) Supondo que A resolve o contrato, analise a posição de C.

Tendo sido convencionada uma cláusula de reserva de propriedade, o bem continua, em


princípio, a pertencer a A, podendo este exigir a sua restituição a C. Poderia equacionar-se a aplicação
do art. 1301.º, CC, que estabelece que quem exigir de terceiro coisa por este comprada, de boa-fé, a
comerciante que negocie em coisa do mesmo ou semelhante género é obrigado a restituir o preço que
o adquirente tiver dado por ela, gozando de direito de regresso contra aquele que culposamente deu
causa ao prejuízo. Para que se aplique este regime, o terceiro em causa deve estar de boa-fé e o
comerciante a quem esse terceiro comprou o bem em questão deve ter por atos típicos a venda desse
bem. No caso em apreço, o terceiro – C – estava de boa-fé, ignorando que o bem não pertencia a B no
momento da compra; porém, não se verifica o segundo requisito, uma vez que B não tem por atos
típicos a venda desse bem, pelo que este regime não será aplicável. Deste modo, A poderá exigir a
restituição do seu bem sem necessidade de restituir a C o preço por ele pago a B. C, contudo, terá
pretensões indemnizatórias face a B.

O artigo 1301.º do CC contém um regime que visa tutelar as relações mercantis na medida em
que os dois referidos requisitos estejam preenchidos. Não havendo o preenchimento desses requisitos,
aplicar-se-ão as regras gerais, nos termos das quais: i) o proprietário do bem tem direito a recolher o
bem onde quer que ele esteja; e ii) o sujeito que perde o bem e que vê as suas expectativas lesadas
deverá ver os seus danos indemnizados pelo vendedor que lhe vendeu um bem que não era seu para
vender. O dono da coisa pode sempre exigir de terceiro a coisa por este adquirida, onerosa ou
gratuitamente, nos termos do art. 1311.º. Mas se o terceiro tiver adquirido a coisa móvel a comerciante
que negoceia em coisa do mesmo ou semelhante género, o dono da coisa é obrigado a restituir o preço
ao terceiro, se este estiver de boa fé. Nessa eventualidade, o dominus goza do direito de regresso contra
aquele que culposamente deu causa ao prejuízo, maxime contra o próprio comerciante.

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Caso prático n.º 3:

Identifique e caracterize os contratos subjacentes aos seguintes factos:

X, Lda, sociedade comercial que comercializa equipamentos de limpeza industrial, depositou


no passado dia 15 de Março, pela primeira vez, no Banco Y, a quantia de 50.000,00 €.

Contrato de abertura de conta – o início do relacionamento entre o banco e o cliente implica o


acesso deste a moeda escritural, que consiste nos saldos de contas bancárias. Essa moeda transfere-se
de conta para conta, pelo que o início da relação com a instituição de crédito tem mesmo que passar
pela abertura de uma conta. Deste contrato decorre a relação bancária geral, nele se inserindo os
contratos de conta corrente, os contratos de depósito, os contratos de serviços de pagamento e as
condições dos diversos contratos que as partes podem vir a celebrar. Atendendo à relação de confiança
que se cria entre as partes, decorrem deveres de informação, proteção do património e aconselhamento
por parte das instituições de crédito (art. 77.º, RGICSF).

Dessa quantia, foi acordado que metade poderia ser levantado a qualquer altura e não
venceria juros e que a outra metade não poderia ser levantada durante dois anos, vencendo-se sobre
a mesma juros à taxa de 0,5%.

Contrato de depósito – contrato real quod constitutionem de prestação de serviços pelo qual
uma das partes, o depositário, se obriga a guardar uma coisa imóvel ou móvel que lhe seja entregue
para esse efeito pela outra, o depositante (contrato só se constitui com o depósito do bem). Trata-se de
um depósito bilateral, i.e., oneroso. Para o banco decorrem as obrigações de guardar e de restituir a
coisa ou dinheiro, enquanto para o depositante decorre a obrigação de pagar pelo depósito. As várias
formas de depósito que existem estão previstas no art. 1.º, DL n.º 430/91. Em causa, está um depósito
à ordem, que pode ser exigido a qualquer altura. Quanto à segunda parte do capital, está em causa um
contrato de depósito a prazo, no qual o depositante só terá direito a reaver a quantia depositada após
decorrido determinado período de tempo, recebendo, em contrapartida, juros do banco por
disponibilização do capital.

No dia seguinte, a X, Lda, precisando de fundos para a realização da sua atividade, celebrou
um contrato com K, seu sócio, nos termos do qual, este se obrigou a entregar 100.000,00€ à
sociedade, ficando a sociedade obrigada a restituir-lhe o referido montante no prazo de 10 anos.

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Contrato de suprimentos – contrato de empréstimo realizado entre uma sociedade comercial e


os seus sócios com um índice de permanência (prazo de reembolso superior a 1 ano – arts. 243.º e ss.,
CSC). Trata-se de um contrato puramente societário, não envolvendo a intervenção de uma instituição
de crédito. Os credores dos suprimentos, i.e., os sócios, não podem pedir a insolvência da sociedade
por serem credores desses suprimentos, uma vez que, para efeitos de insolvência, as dívidas da
sociedade comercial face aos sócios não são tidas em conta (art. 245.º, n.ºs 2 e 3, CSC). O reembolso
dos suprimentos realizado no ano anterior à declaração de insolvência da sociedade considera-se
devolvido à sociedade (art. 245.º, n.º 5, CSC). Os suprimentos não podem ser garantidos através de
garantias reais, devendo os sócios ser os últimos a ser pagos no âmbito da insolvência (art. 245.º, n.º
6, CSC).

K, para ter a referida quantia disponível havia previamente celebrado dois contratos:

(i) um primeiro contrato com um seu amigo, G, nos termos do qual este se obrigava a
entregar a K a quantia de 50.000,00€, ficando K obrigado a restituir a quantia em
singelo.

Contrato de mútuo civil – contrato pelo qual uma das partes empresta à outra dinheiro, ficando
a segunda obrigada a restituir outro tanto do mesmo género e qualidade. Contrato real quanto à
constituição, que pode ou não ser garantido (só se constitui com a entrega do valor mutuado). Pode ser
gratuito ou oneroso, conforme, para além da obrigação de restituição do capital, exista uma obrigação
de pagamento de juros pela disponibilização do capital. No que diz respeito à forma, o mútuo civil de
valor superior a 25.000€ só é válido se for celebrado por escritura pública ou documento particular
autenticado.

(i) Para garantia do cumprimento do contrato, K acordou com G a transmissão em


garantia do seu carro.

Contrato de alienação em garantia – negócio fiduciário em que um sujeito transmite para outro
a propriedade do bem ou um crédito que visa garantir um empréstimo ou outro negócio. O adquirente
do bem torna-se, assim, titular fiduciário do bem. Se o sujeito pagar a dívida, o bem que foi transmitido
será restituído. Se o sujeito não pagar a dívida, aquele bem será utilizado pelo concedente do crédito
para satisfazer o valor em dívida, devendo o titular fiduciário alienar o bem a terceiro nas melhores
condições de mercado ou fazer sua a coisa – em qualquer dos casos, deverá entregar ao devedor o

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montante excedente (se obtiver mais dinheiro com a venda do bem do que o necessário para cobrir as
dívidas, terá de devolver o resto).

(ii) um segundo contrato com o Banco Y, nos termos do qual o banco lhe entregava
50.000,00€, ficando K obrigado a restituir a quantia acrescida de juros à taxa fixa de
3%, em 60 prestações mensais, de igual montante;

Contrato de mútuo bancário – previsto no art. 362.º, C.Com. O empréstimo comercial não
carece de forma se for celebrado entre comerciantes. Os contratos de mútuo, quando feitos por
estabelecimentos bancários autorizados, podem provar-se por escrito particular (DL n.º 32/65). Pode
ser ou não garantido, consoante o mutuante beneficie de garantias dos seus créditos, assentes na
titularidade de um direito. Quanto às modalidades de restituição do capital e dos juros, esta pode ser
realizada num só momento, decorrido o prazo do empréstimo; ou a quantia pode ser amortizada ao
longo do tempo, seja em prestações constantes, crescentes ou decrescentes. As taxas de juros podem
ser fixas ou variáveis (estas segundas têm uma parte fixa, o spread, e uma parte variável, a taxa
Euribor).

Quinze dias volvidos, e estando a X, Lda com dificuldades de tesouraria para pagamento das
rendas financeiras atinentes aos seus carros de serviço, (...)

Contrato de locação financeira – contrato pelo qual alguém se obriga, mediante retribuição, a
ceder à outra o gozo temporário de uma coisa, móvel ou imóvel, adquirida ou construída por indicação
desta, e que o locatário poderá comprar, decorrido o período acordado, por um preço nele determinado
ou determinável mediante simples aplicação dos créditos nele fixados (art. 1.º, DL n.º 149/95).

(...) contratou com o seu banco a disponibilização, por este último, de 5.000,00€, pelo prazo
de seis meses renováveis e reutilizável, para que esta os pudesse utilizar, sempre que necessário. Em
troco, a X, Lda pagou ao banco 500,00€.

Contrato de abertura de crédito – contrato pelo qual o banco (o creditante) coloca à disposição
da outra parte, o beneficiário, uma quantia pecuniária que este tem o direito de, nos termos aí definidos,
utilizar pelo período acordado ou por tempo indeterminado. A abertura de crédito poderá ser simples
(beneficiário poderá utilizar o crédito uma vez, na sua totalidade, ou recorrer a utilizações parciais até
se atingir o limite estabelecido no contrato) ou em conta-corrente (as restituições que o bem faça das

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quantias utilizadas permitem repor a disponibilidade). Este crédito pode ser a termo certo, por prazos
automaticamente prorrogáveis, ou por tempo indeterminado.

No âmbito da sua atividade a X, Lda. contratou com a H, S.A. a disponibilização de 10


aspiradores industriais e a realização da respetiva manutenção dos equipamentos durante 5 anos,
pelo preço de anual de 6.000,00€.

Contrato de leasing operacional – contrato de locação em que o locador se obriga a realizar a


manutenção do bem e a prestar outros serviços conexos. O locatário não terá, em princípio, direito a
adquirir o bem e não terá interesse nisso. Misto de contrato de locação e prestação de serviços. As
sociedades de locação financeira estão vedadas de realizar contratos de leasing operacional (DL n.º
92/75).

A instituição de crédito corresponde a uma devedora a pronto (na medida em que os contratos
de depósito celebrados com o banco exigem a disponibilização imediata do capital) e uma credora a
prazo (na medida em que o banco não pode exigir a restituição do crédito na íntegra aos seus
devedores).

Caso prático n.º 4:

I. O Banco A celebrou, por documento particular, com B, Editora, Lda um contrato nos
termos do qual se obrigou a, mediante o pagamento de 370 rendas mensais de 500€, ceder a B,
Editora, Lda o gozo temporário da fração A de um imóvel sito na Rua Gonçalves Cristóvão, tendo
esta última direito a comprar, findo o pagamento das rendas, a mesma fração por 15.000€.

i) Caracterize o contrato celebrado entre o Banco A e a Editora, Lda.


No caso em apreço, está em causa um contrato de locação financeira (art. 1.º, DL n.º 149/95).
Para o locatário, desempenha uma função de crédito (locatário, quando quer celebrar este contrato,
está a financiar-se junto do banco – não tem capital para adquirir o bem, obrigando o banco a adquirir
o bem e pagando-lhe rendas mensais pela sua utilização – modo de aquisição de bens com
financiamento). Para o locador, desempenha uma função de garantia (recurso à propriedade do bem
que o locador adquire como garantia do financiamento). Vigora um princípio de exclusividade –
quanto ao locador, só podem exercer a título profissional a atividade de locação financeira os bancos,
instituições financeiras de crédito e as sociedades de locação financeira (arts. 4.º e 8.º, RGICSF). Este
contrato deve ser celebrado por escrito, sendo que, se em causa estiver um bem imóvel, as respetivas

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assinaturas devem ser presencialmente reconhecidas (art. 3.º, DL n.º 149/95). Terá por objeto
quaisquer bens suscetíveis de serem dados em locação (art. 2.º). Quanto ao prazo, o contrato não poderá
ter um prazo superior ao período normal de utilização económica do bem, tendo como limite máximo
30 anos (art. 6.º). Não havendo estipulação de prazo, considera-se celebrado pelo prazo de 18 meses
ou 7 anos, consoante se trate de bens móveis ou imóveis. Quanto às rendas, essas são livremente
estipuladas pelas partes, podendo ser progressivas, regressivas ou constantes. As rendas da locação
financeira são rendas financeiras, i.e., correspondem à amortização do capital acrescida dos juros do
crédito concedido.

ii) Será o mencionado contrato válido?

Tratando-se de um contrato de locação financeira que tem por objeto um bem imóvel, deverá
ser celebrado pela forma escrita, com reconhecimento presencial das assinaturas. Não sendo observada
essa formalidade, o contrato será nulo por vício de forma. Tendo sido celebrado por 360 meses, i.e.,
por 30 anos e 10 meses, será imediatamente reduzido à luz do art. 6.º, n.º 2, DL n.º 149/95.

iii) Quid iuris se o Banco A desconfia que a B, Editora, Lda nunca chegou a mudar-se para
a fração, tendo aproveitado para a arrendar a jovens turistas que descuidam a sua conservação,
partindo paredes e danificando os corrimões das escadas da fração?

O locatário tem um conjunto de obrigações relativas à conservação do bem (art. 10.º, n.º 1, als.
d), e) e g), DL n.º 149/95). O locador poderá examinar o bem e exigir a manutenção efetiva do bem,
de forma a que este não sofra uma desvalorização. Verificado um incumprimento contratual, a
resolução do contrato de locação financeira seguirá os termos gerais previstos no CC (art. 17.º, DL n.º
149/95) – assim, havendo incumprimento, o banco poderá interpelar o devedor para o cumprimento,
através da interpelação admonitória, sob pena de converter a mora em incumprimento definitivo, com
as consequências relativas à resolução do contrato. Apenas haverá lugar, de imediato, à resolução do
contrato quando se verifique uma perda de confiança entre as partes. Resolvido o contrato, o bem
deverá ser restituído ao banco e este deverá restituir a parte das rendas relativa à amortização do capital
(e não dos juros). Poderá, ainda, ter direito a uma indemnização por incumprimento contratual.

iv) Quid iuris se o Banco A recebe carta do condomínio da fração A interpelando o banco
para o pagamento da sua quota-parte nas despesas correntes do condomínio?

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Aplica-se o art. 10.º, n.º 1, al. b), DL n.º 149/95. O banco não teria de pagar as despesas
correntes do condomínio. O banco só tem a propriedade da fração por questões de garantia de
cumprimento das obrigações previstas no contrato, sendo atribuídos ao locatário todos os encargos
referentes à conservação e reparação do imóvel.

v) Quid iuris se, findo o prazo do contrato, B, Editora, Lda decidiu não comprar a fração e,
quando a desocupava levou consigo as portas que havia colocado na fração quando para lá foi
morar.

A própria lei prevê que as coisas instaladas no próprio bem, findo o contrato, serão do locador,
e este não terá de indemnizar o locatário pelo valor das coisas instaladas (art. 9.º, n.º 2, al. c), DL n.º
149/95).

O locatário tem a obrigação de restituir o bem locado. Tudo o que coloca no objeto a título
acessório, deve manter no objeto. Ele não podia levar as portas. O banco não tem de pagar
compensação nos termos do artigo suprarreferido.

II. O Banco A celebrou com a Laboratórios, S.A. um contrato nos termos do qual se obrigou
a, mediante o pagamento de 10 rendas de 500€, ceder à Laboratórios, S.A. o gozo temporário de um
software produzido de propósito pela Softwares, S.A., tendo a Laboratórios, S.A. direito a comprar
o software, findo o pagamento das rendas, por um 1.000€.

Em princípio, no contrato de locação financeira, existem dois contratos e três partes – um


contrato celebrado entre locador e locatário, que proporciona o gozo do bem locado (financia a
aquisição de um determinado bem, que será imediatamente entregue ao locatário financeiro), e um
eventual segundo contrato, celebrado entre o locador e um terceiro, o potencial vendedor ou
empreiteiro do bem a adquirir. Não existe qualquer relação entre o locatário financeiro e o terceiro,
embora o segundo esteja obrigado a entregar o bem ao primeiro, que o passará a utilizar. Trata-se de
uma locação financeira trilateral, a mais comum. O locador financeiro terá direito a receber rendas
financeira mensais (art. 10.º, n.º 1, al. a), DL n.º 149/95), compostas por dois elementos – uma parte
relativa à amortização do capital e uma outra parte relativa aos juros. Decorrido o período acordado, o
locatário terá direito a adquirir o bem locado pelo preço estipulado (art. 10.º, n.º 2, al. f), DL n.º 149/95).
Findo o contrato por qualquer motivo e não exercendo o locatário a faculdade de compra, o locador
pode dispor do bem, nomeadamente vendendo-o ou dando-o em locação ou locação financeira ao
anterior locatário ou a terceiro (art. 7.º).

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Existe uma outra modalidade de locação financeira – a locação financeira restitutiva (sale and
lease back), em que só intervêm dois sujeitos. Nesta modalidade, um sujeito vende ao locador um bem
seu, como forma de obter financiamento, e, posteriormente, o locador financeiro concede-lhe de
imediato o mesmo bem em locação financeira, passando o vendedor a ser locatário financeiro. Do
ponto de vista funcional, esta locação financeira consiste numa alienação em garantia, na medida em
que o sujeito transmite em garantia o valor da compra, correspondente ao valor do financiamento,
procedendo, mais tarde e através de rendas mensais, à amortização desse valor.

A locação financeira bilateral distingue-se, ainda, do leasing operacional, correspondente a


uma locação com elementos de prestação de serviços. Neste contrato, um sujeito concede o gozo de
um bem a outro durante determinado período de tempo e obriga-se a prestar um conjunto de serviços
associados (ex: manutenção do bem).

a) Que poderá a Laboratórios, S.A. fazer se, apesar de ter sido acordado que a entrega do
software no dia 1 de Dezembro, este ainda não tiver sido disponibilizado pela Softwares, S.A.?

Neste caso, está em causa uma relação tripartida: a Laboratórios, S.A. celebrou um contrato de
locação financeira com o Banco A e o Banco A celebrou um contrato de compra e venda com a
Softwares, S.A. Nos termos do art. 12.º, DL n.º 149/95, o locador não responde pelos vícios do bem
locado. Nos termos do art. 13.º, o locatário poderá exercer os direitos que normalmente poderiam ser
exercidos pelo locador relativamente aos terceiros. Assim, a Laboratórios, S.A. poderá interpelar a
Softwares, S.A. para o cumprimento e, caso não esse não se verifique, terá direito a resolver o contrato
nos termos gerais. Se o locatário resolver o segundo contrato, o primeiro contrato cessará também, e
terá direito a uma indemnização pelos danos causados ao próprio locatário.

b) Quid iuris se, o Banco A pretende resolver o contrato celebrado por ter tido conhecimento
da declaração de insolvência da Laboratórios, S.A.? Quais são os efeitos da declaração de
insolvência no contrato de locação financeira celebrado pelas partes?

Nos termos do art. 18.º, DL n.º 149/95, o contrato pode ser resolvido pelo locador no caso de
verificação de qualquer dos fundamentos da declaração de falência do locatário. Contudo, este art.
deve ser interpretado restritivamente – aplica-se apenas no caso em que a insolvência ainda não tenha
sido declarada. A partir do momento da declaração de insolvência, o administrador de insolvência
poderá optar entre cumprir os contratos celebrados pelo devedor ou não (art. 102.º, CIRE). Objetivo
de garantir que a empresa tenha viabilidade suficiente para cumprir as rendas futuras. Assim, se o

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locatário já estiver em situação de insolvência de facto, apenas o administrador pode resolver o


contrato. A declaração de insolvência permite ao administrador escolher se cumprirá o contrato ou
não.

Se o administrador de insolvência mantiver o contrato em curso, aplica-se o art. 51.º, n.º 1, al.
f), CIRE, nos termos do qual as dívidas decorrentes da aceitação do cumprimento do contrato serão
dívidas da massa. Assim, serão pagas com preferência face às outras dívidas (mesmo antes dos créditos
garantidos) e não carecem de ser reclamadas pelos credores em sede de reclamação de créditos.

Se o administrador de insolvência optar pela resolução do contrato, aplicam-se os arts. 102.º,


n.º 3 e 104.º, n.º 5, CIRE. Sendo o contrato resolvido, o bem deverá ser devolvido. As prestações
efetuadas não têm de ser devolvidas (art. 102.º, n.º 3, al. a), CIRE). Se houver alguma prestação ou
obrigação contratual que já tenha sido cumprida, mas que anda não tenha sido paga, essa prestação
deverá ser paga (art. 102.º, n.º 3, als. b) e c), CIRE). Haverá, ainda, direito a uma indemnização,
calculada nos termos do n.º 5 do art. 104.º. No caso de o insolvente ser o locatário, a indemnização
será igual à diferença entre as prestações que ainda teriam que ser pagas até ao termo do contrato e o
valor do bem à data da recusa. Com a resolução do contrato, o credor deve ficar na mesma situação
em que ficaria na eventualidade de cumprimento.

Como calcular a indemnização:

• Exemplo 1: imaginemos que um bem valia, à data de celebração do contrato, 600.000€. Contudo,
à data da resolução do contrato vale 400.00€. Do contrato, já foram pagos 30.000€ de rendas,
restando pagar 500.000€. Neste caso, o locador terá direito a ficar com o bem locado, a fazer suas
as prestações efetuadas (30.000€) e a receber 100.000€ (500k – 400k).
• Exemplo 2: um bem vale 400.000€ (valia inicialmente 600.000€). Já tinham sido pagos 150.000€.
Em falta estavam 400.000€. Neste caso, o locador terá direito a ficar com o bem locado, a fazer
suas as prestações efetuadas (150.000€) e não terá direito a receber nada de indemnização (400k –
400k = 0€).
• Exemplo 3: a coisa vale 700.000€ (valia inicialmente 600.000€). Já foram pagos 150.000€. Em
falta estavam 400.000€. O locador terá de pagar 300.000€ (400k – 700k).

c) Quais seriam os efeitos da declaração de insolvência do Banco no contrato de locação


financeira celebrado pelas partes?

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No caso de insolvência do locador, aplica-se o art. 104.º, n.º 1, CIRE, nos termos do qual o
insolvente não poderá resolver o contrato se o locatário o quiser cumprir e o bem já lhe tiver sido
entregue.

III. O Banco C celebrou com a Transportes Eletrónicos, Lda. um contrato nos termos do
qual se obrigou a, mediante o pagamento de rendas no valor de 500€, ceder a Transportes
Eletrónicos, Lda., o gozo temporário de um automóvel, tendo a Transportes Eletrónicos, Lda. direito
a comprar o automóvel, findo o pagamento das rendas, por um 1.000€.

Poderá o Banco C resolver o contrato caso a Transportes eletrónicos, Lda. não pague uma
das rendas?

No caso de incumprimento de uma das rendas do locatário face ao locador, aplica-se o regime
do art. 934.º, CC (o art. 936.º estende o regime geral ao contrato de locação financeira, que, de certo
modo, visa efeitos semelhantes ao contrato de venda a prestações). Nestes termos, só haverá direito à
resolução do contrato por parte do locador se houver incumprimento de uma prestação superior à 8.ª
parte do preço ou se houver incumprimento de duas prestações.

Regime do contrato de cessão financeira

Factoring (art. 2.º, DL n.º 171/95): contrato pelo qual uma das partes (facturizado) cede ou se
obriga a ceder a outra parte (factor) a totalidade ou parte dos seus créditos comerciais de curto prazo,
decorrentes de contratos já celebrados ou a celebrar com certos terceiros, para que este último os
administre e os cobre na data do seu vencimento, lhe conceda adiantamentos calculados sobre o valor
nominal desses créditos e/ou lhe garanta o cumprimento ou solvência dos devedores cedidos. Funções
desempenhadas:

• Consultadoria comercial: aconselhamento do cliente quanto à celebração de contratos com


determinados. terceiros, em face das suas situações económicas.
• Administração e cobrança dos créditos: o factor transforma-se num verdadeiro titular dos
créditos cedidos. Como contraprestação, o factor recebe uma comissão de cobrança.
• Concessão de crédito: o locador financeiro concede ao locatário financeiro um adiantamento
sobre o valor nominal do crédito cedido. O factor, como contrapartida, terá direito a juros.

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• Garantia de solvência ou do cumprimento dos devedores cedidos: se o devedor não cumprir ou


se tornar insolvente, o locador financeiro entrega o valor nominal do crédito cedido ao locatário
financeiro. O factor terá direito a uma comissão de garantia.

Contraprestação:

a) Pelo serviço de gestão e cobrança de créditos – comissão de cobrança;


b) Pelo adiantamento – juros;
c) Pela garantia de crédito – comissão de garantia.

O contrato de factoring tem sempre por base: i) créditos de curto prazo; ii) as contrapartidas
relativas a contratos de venda de produtos ou de prestação de serviços. Vigora um princípio de
exclusividade em relação aos sujeitos que podem ser factors (art. 4.º, DL n.º 171/95).

Pode assumir uma de duas estruturas:

a. Cessão financeira monofásica: o facturizado transmite ao factor, de uma só vez, uma série de
créditos presentes e/ou futuros, não havendo necessidade de celebração de um qualquer
segundo contrato.
b. Cessão financeira bifásica: decorre, para o facturizado, a obrigação de transmitir ao factor os
créditos previstos nesse contrato e, para este, o dever de os aceitar. O contrato inicial prevê e
impõe a celebração de contratos subsequentes de transmissão dos créditos.

A cessão pode ser:

i. Cessão com recurso – as partes não acordam a assunção do risco do crédito por parte do factor.
O banco não garante o cumprimento da obrigação.
ii. Cessão sem recurso – o risco de insolvência do devedor é assumido pelo factor, o qual, na
impossibilidade de cobrar o crédito devidamente confirmado pelo devedor, não o poderá exigir
ao facturizado. O banco garante o cumprimento da obrigação.

Ademais, a cessão pode ser:

i. Cessão com adiantamento

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ii. Cessão sem adiantamento

Atendendo às funções desempenhadas, o factoring pode ser:

i. Cessão com recurso e com adiantamento (factoring financeiro): o factor presta o serviço de
administração e cobrança de crédito, concede adiantamento sobre o valor nominal do crédito
e não garante o cumprimento pelo devedor cedido. Assim, caso o devedor não cumpra, o
factor retransmite o crédito e exige a restituição do adiantamento concedido, bem como o
pagamento dos juros e da comissão de cobrança. Caso o devedor cumpra, o factor deverá
creditar esse montante na conta corrente do factorizado, ao mesmo tempo que aí debita a
comissão de cessão financeira e os juros.
ii. Cessão com recurso e sem adiantamento: o factor presta só o serviço de administração e
cobrança dos créditos cedidos. O factor limita-se a cobrar o crédito em nome do cedente, não
prestando um adiantamento do valor nominal do crédito. Se o devedor cedido não pagar, o
factor retransmite o crédito ao facturizado e exige o pagamento da comissão de cobrança. Se
o devedor cumprir, o factor creditará a favor do facturizado.
iii. Cessão sem recurso e com adiantamento (full factoring): o factor garante o cumprimento pelo
devedor cedido, presta adiantamento do valor nominal do crédito e responsabiliza-se pela
cobrança desse crédito. Se o devedor cumprir, o factor abate as suas prestações e entrega o
montante ao cedente, abatido da comissão de garantia, da comissão de cobrança e dos juros.
Se não cumprir, o risco de insolvência do devedor é assumido pelo factor – alem de não
retransmitir o crédito, entrega à outra parte o valor abatido da comissão de garanta, da
comissão de cobrança e dos juros.
iv. Cessão sem recurso e sem adiantamento: nesta modalidade, só é prestada a função de garantia
do crédito e de administração dos créditos. Na impossibilidade de cobrar o crédito
devidamente confirmado pelo devedor, o factor não o poderá exigir ao facturizado. O factor
obriga-se, quer o devedor cumpra ou não num determinado período de mora após o
vencimento do crédito, a entregar ao facturizado um montante pecuniário correspondente ao
valor nominal desse direito. O facturizado está vinculado a pagar comissões de cobrança e de
garantia.

Qual é o regime legal que se aplica ao contrato de factoring?

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O contrato de factoring tem na sua base uma cessão de créditos por parte do facturizado para
o factor. Como tal, está sujeito ao regime da cessão de créditos (arts. 577.º a 588.º, CC). Consiste na
transferência do direito de crédito da esfera do cedente para o cessionário, sem necessidade do
consentimento do devedor cedido. Possibilidade de aposição de cláusulas de intransmissibilidade do
crédito (art. 577.º, n.º 2, CC). A cessão produz-se por mero efeito desse negócio jurídico. Porém, a
transferência do crédito só é eficaz em relação ao devedor cedido após o conhecimento, notificação ou
aceitação (art. 583.º, n.ºs 1 e 2, CC). Existe uma dupla notificação: o factor impõe à outra parte que
insira nas faturas enviadas aos seus clientes uma indicação segundo a qual o direito de crédito
resultante desse contrato lhe foi transmitido e, consequentemente, só o pagamento ao factor será
liberatório.

Na cessão não notificada, o facturizado pretende que o devedor cedido não saiba da
transferência do crédito. Os contratos em que se exclui a notificação do devedor cedido acarretam para
o factor um aumento de riscos face aos contratos de factoring notificado, uma vez que há sempre
perigo de desvio de fundos por parte de quem cobra os créditos; da celebração, entre o cedente e o
cessionário, de negócios relativos ao crédito, inclusive a sua extinção (art. 583.º, n.º 2, CC); da dupla
cessão do crédito (art. 584.º, CC); e da extensão dos meios de defesa utilizáveis pelo devedor.

Meios de defesa oponíveis pelo devedor cedido ao cessionário

Vigora o princípio estruturante de impedir que devedor cedido seja prejudicado pela
transferência do direito. Assim, a lei permite-lhe opor ao cessionário todos os meios de defesa que lhe
seria lícito invocar contra o cedente, ainda que o adquirente do crédito os ignorasse, excetuando
somente aqueles que provenham de facto posterior ao conhecimento da cessão (meios de defesa que
existam à data da notificação da cessão – art. 585.º, CC). Tratando-se de meio de defesa que apenas
surja após a notificação da cessão, não poderá ser invocado (ex: compensação ou acordo de prestações
posteriores).

Para além destes, a doutrina admite que sejam usados todos os meios de defesa relativos à
própria relação contratual existente entre o credor inicial e o devedor, mesmo que posteriores à
notificação, nomeadamente:

1. Exceção do não cumprimento – uma vez que esta encontra na relação de correspetividade que
se estabelece entre as obrigações de ambas as partes do contrato

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2. Resolução do contrato – mesmo quando o facto aquisitivo desse direito se tenha verificado
depois do conhecimento por parte do devedor cedido da transferência de credito.

As garantias são transmitidas com a cessão de créditos (art. 582.º, CC). Na cessão, o cedente
deve garantir a existência e a exigibilidade do crédito ao tempo da cessão (art. 587.º, n.º 1, CC);
contudo, não garante a solvência do devedor (art. 587.º, n.º 2, CC). Supletivamente, os contratos de
factoring podem considerar-se sem recurso (i.e., existe sempre garantia de cumprimento por parte do
banco).

Caso prático n.º 5:

I.

Em 2015, a «B, S.A.» e a «C, S.A.» acordaram no fornecimento pela segunda à


primeira de hardware e software. Entretanto, e na execução do contrato, «C, S.A.»,
forneceu a «B, S.A.» hardware no valor de 6.000€, porém, quanto ao software, a solução
adotada revelou-se um fracasso, o que provocou o adiamento da abertura ao público do
estabelecimento da «B, S.A.».

A «A, S.A.», instituição de crédito que se dedica à atividade de factoring, adquiriu


os créditos que a «C, S.A.», detinha sobre a «B, S.A.». em virtude de fornecimentos feitos
a esta. A cessão de créditos foi notificada em 8/3/2016.

Na mesma data, em reunião havida entre a «B, S.A.» e a «C, S.A.», esta última
aconselhou uma nova solução informática.

Em 29/6/2016, a «B, S.A.» e a «C, S.A.» acordaram no pagamento dos valores em


dívida por aquela a esta através do pagamento imediato de 50%. Mais acordaram que a
«B, S.A.» abatesse ao valor da dívida a importância de 2.500€, correspondente à inserção
de um texto publicitário alusivo à «C, S.A.» no jornal "Conhecer é saber"; e que o
remanescente da dívida seria pago após conclusão do projeto.

Tendo em conta que o projeto contratado ainda não foi concluído, quid iuris se a
«B, S.A.» se recusa a pagar qualquer quantia à «A, S.A.»?

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No caso em apreço, as partes celebraram um contrato de fornecimento de hardware e software,


sendo este parcialmente cumprido. O credor, C, S.A., cedeu o crédito que detinha sobre o devedor, B,
S.A., a uma instituição de crédito, A, S.A., através de um contrato de cessão financeira. Após a
notificação da cessão, as partes – devedor e credor – celebraram um acordo de pagamentos. Surge,
portanto, a questão de saber se este acordo de pagamentos celebrado entre B, S.A. e C, S.A. seria
oponível ao cessionário, A, S.A.

Nos termos do art. 585.º, CC, o devedor pode opor ao cessionário todos os meios de defesa que
lhe seria lícito invocar contra o cedente, excetuando somente aqueles que provenham de facto posterior
ao conhecimento da cessão. Deste modo, o acordo de pagamentos celebrado entre o devedor e o credor
não pode ser invocado pelo devedor, uma vez já ter ocorrido a notificação da cessão. Assim, porque
posterior a 8/3/2016, data da notificação da cessão, a revisão do acordo de fornecimento não é oponível
a A, S.A. Não lhe é, designadamente, oponível o pagamento efetuado ao cedente, não liberatório
consoante os arts. 769.º e 770.º, CC. Contudo, a exceção de não cumprimento poderá ser invocada, na
medida em que ocorreu antes da notificação; mesmo que tivesse ocorrido após a notificação, poderia
ser invocada, no entendimento da doutrina.

II.

Em 19 de Janeiro de 2010, mediante acordo escrito no 1º Cartório Notarial de Setúbal a


TEKTALK Lda. e a NOISECANCELING S.A. celebraram um mútuo com hipoteca, na qual a
NOISECANCELING S.A. se considerava devedora da quantia de 5.000,00€, dando como garantia
à quantia mutuada uma hipoteca sobre uma fração autónoma de que era proprietária.

Por acordo escrito celebrado em 17 de Junho de 2011, entre a TEKTALK Lda. e o Banco
BPW foram cedidos por aquela a este o crédito emergente do contrato de mútuo, com todos os
direitos e garantias inerentes, nomeadamente a hipoteca.

Em 16 de Maio de 2005, o Banco BPW intentou uma ação executiva para pagamento de
quantia certa contra NOISECANCELING S.A.. Poderia o Banco BPW fazer valer-se da hipoteca
constituída?

Sim. As garantias são transmitidas com a cessão de créditos, mesmo que as partes nada
estipulem (art. 582.º, CC).

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III.

O Banco BPW celebrou com a SelfCare S.A., sociedade importadora de tapetes, um contrato
de factoring por força do qual adquiriu créditos derivados da atividade desta última.

A SelfCare S.A., no exercício da sua atividade, no mês de Janeiro de 2019, vendeu à


sociedade imobiliária Imótapetes, Lda, pelo preço de 5.000€, cinco tapetes. Entre ambas foi
acordado o pagamento no prazo de 60 dias após a data de emissão de cada fatura.

A cessão do crédito foi formalmente notificada nas próprias faturas, conforme decorre do
carimbo nelas aposto com os seguintes dizeres: "para que estas faturas sejam liquidadas, os
respetivos pagamentos deverão ser efetuados diretamente ao Banco BPW. que adquiriu este nosso
crédito".

A SelfCare S.A. forneceu à Imótapetes, Lda, os bens discriminados. Sabendo que por
contrato datado de 5 de Dezembro de 2019 a sociedade ImóveisdeTecido S.A. cedeu à Imótapetes,
Lda um crédito de 1.000€, que detinha a SelfCare S.A., pode a Imótapetes compensar os créditos
em causa?

No caso em apreço, está em causa o meio de defesa da compensação. Este meio de defesa
apenas pode ser invocado se for anterior à data da notificação (art. 585.º, CC).

IV.

No dia 16 de Abril de 2019 a sociedade comercial Tangerine Lda acordou com a BlakRoad
S.A. a realização de trabalhos na estrada de ligação entre a EN 206 e a nova Ponte sobre o rio
Tâmega. No referido contrato constava: “A Tangerine Lda não pode ceder ou dar como garantia o
presente contrato ou qualquer dos direitos ou obrigações nele estipulados, sem prévio acordo escrito
da BlakRoad S.A.”.

No exercício da sua atividade, em 28 de Maio de 2019, o Banco BPW e a sociedade Tangerine


Lda, celebraram um contrato nos termos do qual a Tangerine Lda cedia ao Banco BPW os créditos
que detinha sobre a BlakRoad S.A.

Em 19 de Maio de 2020 a Tangerine Lda enviou para a BlakRoad S.A. carta onde informa
que todas as faturas relativas à empreitada Estrada de Ligação entre a EN e a ponte sobre o rio
Tâmega e que venham a ser emitidas a partir de 19 de Maio de 2020 deverão ser liquidadas ao
Banco BPW até comunicação em contrário.

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Quid iuris se no dia 1 de Maio de 2020 a Tangerine Lda tiver enviado uma carta a BlakRoad
S.A. onde o informa que tinha cedido os seus créditos a LemonGrass S.A. por contrato celebrado
em 9 de Outubro de 2019?

Neste caso, está em causa uma proibição de cedência (art. 577.º, n.º 1, CC). Havendo uma
proibição de cedência, esta não afeta o cessionário se ele dela não tiver conhecimento (art. 577.º, n.º
2, CC). Se, apesar de proibição de cedência, o credor ceder o crédito a um terceiro, o devedor deverá
pagar ao terceiro se este não tivesse conhecimento dessa proibição. Assim, o crédito não deverá ser
pago à T., Lda., credora, mas antes ao cessionário. Se a cessão causar danos para o devedor, o credor
poderá responder por incumprimento contratual em virtude do desrespeito da proibição de cedência.

Estão em causa, ainda, duas cessões – T, Lda. cedeu os créditos que tinha sobre B, S.A. ao
Banco BPW, em 28/5/2019, e, mais tarde, em 9/10/2019, veio a ceder os mesmos créditos a L, S.A.
Contudo, a cessão ao Banco BPW apenas foi notificada a B, S.A. em 19/5/2020, tendo a notificação
da cessão à L, S.A ocorrido primeiro, a 1/5/2020. Nos termos do art. 584.º, CC, se o mesmo crédito
for cedido a várias pessoas, prevalece a cessão que primeiro for notificada ao devedor ou que por este
tiver sido aceite. Assim, prevalece a cessão de T, Lda. a L, S.A., por ter sido notificada em primeiro
lugar ao devedor.

Insolvência
A Insolvência está regulada no CIRE. O CIRE aplica-se, nos termos do artigo 2º a:
1. Todas pessoas singulares ou coletivas, com ou sem empresas;
2. Outras entidades – heranças, estabelecimentos individuais de responsabilidade limitada.

Apesar disto, o CIRE tem regimes parcialmente diferentes para cada entidade.

Todas as pessoas singulares ou coletivas estão sujeitas ao CIRE? O artigo 2º/2 exclui do CIRE as
entidades publicas empresariais, pessoas coletivas publicas e as pessoas da alínea b (sociedades
comerciais ligadas à banca ou ao sistema financeiro). Quando não exista regra especial que se aplique
a estas entidades, aplica-se o CIRE (que passa a ser o regime subsidiário).

No que consiste a situação de insolvência?


Ser insolvente significa ser incapaz de cumprir as suas obrigações. Essa incapacidade de
cumprimento pressupõe uma avaliação complexa podendo ser realizada através de dois critérios
principais (mas não os únicos):

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a. Critério do fluxo de caixa – O devedor é insolvente logo que se torna incapaz, por ausência
de liquidez suficiente, de pagar as suas dividas no momento em que se vencem. Este é o critério
usado pelo nosso legislador.
Este critério, por si só, não é perfeito. Ponto negativo: a insolvência pretende excluir do
mercado as entidades que não têm património suficiente para pagar as suas dividas. Este
critério permite que uma empresa com 10 000 000€ em imoveis, com divida de 500 000€ seja
insolvente. A empresa tem património, mas não é líquido. E por isso, não paga as dívidas.
b. Critério do balanço ou ativo patrimonial – está insolvente a entidade que tem um passivo
superior ao ativo.
Este critério também tem pontos negativos: o valor dos ativos pode ser muito instável. Uma
sociedade que tem por ativos as ações de bolsa, essas ações variam de preço, o que altera
rapidamente o património da sociedade. Para alem disso, este critério pode não ter em conta
uma série de questões relativas à avaliação do próprio ativo e do próprio passivo. No ativo da
sociedade, podem estar dívidas relativamente a sócios. Esses ativos não deviam ser
considerados para declarar a insolvência. por último, o ativo das empresas é a soma do valor
das mesas, cadeiras. Estes valores individuais não são iguais ao valor da empresa no seu todo,
quando desempenha as suas funções.

No artigo 3º, o legislador determina que o critério para determinar se uma pessoa singular ou
coletiva esta insolvente é a impossibilidade de cumprir as suas obrigações vencidas. Não interessa
se o passivo é superior ao ativo.
Para além disso, no nº2 prevê o critério do balanço: é insolvente a pessoa que rem um passivo
manifestamente superior ao ativo. Quis afastar as situações em que a diferença é mínima e variável.
O “manifestamente” é um conceito indeterminado, definido no caso concreto.
O legislador, no nº 3, faz correções ao critério:
❖ Alínea a – Consideram-se no ativo e no passivo os elementos identificáveis, mesmo que não
constantes do balanço, pelo seu justo valor. Ex: Na Uber, tem de se ter em conta o valor da
marca Uber.
❖ Alínea b – quando o devedor seja titular de uma empresa, a valorização baseia-se numa
perspetiva de continuidade ou liquidação, consoante o que se afigure mais provável, mas em
qualquer caso com exclusão da rubrica de trespasse.
❖ Alínea c – não se incluem no passivo dívidas que apenas hajam de ser pagas à custa de fundos
distribuíveis ou do ativo restante depois de satisfeitos ou acautelados os direitos dos demais
credores do devedor. É o caso dos suprimentos. Uma empresa com ativo de 90 000€ e um

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passivo de 100 000€. Se 70 000€ do passivo são suprimentos, não são considerados para
insolvência.
❖ Artigo 3º/4 – equipara-se à situação de insolvência atual a que seja meramente iminente, no
caso de apresentação pelo devedor à insolvência.

Processo de insolvência
O processo inicia-se com o requerimento.
Quem pode requerer? O devedor, os credores, o MP e outras pessoas que respondam pelas mesmas
dividas do devedor (exemplo: fiadores, avalistas, etc).
Requerimento apresentado pelo devedor – o devedor está obrigado a apresentar-se à insolvência
a partir do momento em que tenha conhecimento de que está insolvente. Presunção: se o devedor não
tiver conseguido cumprir as dividas durante 3 meses, presume-se que tinha conhecimento de que
estava em situação de insolvência. A partir desse momento, está obrigado a apresentar-se à insolvência.
Se não o fizer, presume-se que a insolvência é culposa (186º). Isto tem efeitos negativos previstos no
artigo 189º. A acrescentar, o artigo 228º do Código Penal criminaliza a insolvência negligente em
algumas situações.

Quanto às restantes categorias, pode ser complicado provar a existência dos critérios da declaração
de insolvência, porque as entidades, em princípio, são opacas. Por isso, o legislador apenas exige que
provem algum dos fatos-índice do artigo 20º CIRE:

Requerimento apresentado pelo credor - porque é que um credor tem interesse em requerer a
insolvência de outra entidade? O legislador atribui um benefício ao credor que requer a insolvência de
outra entidade: um crédito imobiliário geral. Artigo 98º nº1 CIRE: Os créditos não subordinados do
credor a requerimento de quem a situação de insolvência tenha sido declarada passam a beneficiar
de privilégio creditório geral, graduado em último lugar, sobre todos os bens móveis integrantes da
massa insolvente, relativamente a um quarto do seu montante, num máximo correspondente a 500 UC.
O devedor pode opor-se no prazo de 10 dias. Ele terá o ónus de provar ou a solvência ou a inexistência
do facto-índice.

Dedução de pedido infundado – se uma entidade pedir a insolvência de uma pessoa e esse pedido
for infundado, há lugar a responsabilidade civil do requerente. A declaração de insolvência pode trazer
graves prejuízos para o devedor.

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O artigo 30º refere-se à oposição do devedor:


1 - O devedor pode, no prazo de 10 dias, deduzir oposição, à qual é aplicável o disposto no n.º 2 do
artigo25.º
2 - Sem prejuízo do disposto no número seguinte, o devedor junta com a oposição, sob pena de não
recebimento, lista dos seus cinco maiores credores, com exclusão do requerente, com indicação do
respectivodomicílio.
3 - A oposição do devedor à declaração de insolvência pretendida pode basear-se na inexistência do
facto em que se fundamenta o pedido formulado ou na inexistência da situação de insolvência.
4 - Cabe ao devedor provar a sua solvência, baseando-se na escrituração legalmente obrigatória, se
for o caso, devidamente organizada e arrumada, sem prejuízo do disposto no n.º 3 do artigo 3.º
5 - Se a audiência do devedor não tiver sido dispensada nos termos do artigo 12.º e o devedor não
deduzir oposição, consideram-se confessados os factos alegados na petição inicial, e a insolvência é
declarada no dia útil seguinte ao termo do prazo referido no n.º 1, se tais factos preencherem a
hipótese de alguma das alíneas do n.º 1 do artigo 20.º

Declaração de insolvência
O CITIUS tem uma parte especifica sobre os insolventes. Pelo que há uma obrigação de consulta
regular para verificar se algum devedor foi declarado insolvente.
Declarada a insolvência, produzem-se determinados efeitos. O artigo 36º nº 1 CIRE dispõe o
seguinte:
1 - Na sentença que declarar a insolvência, o juiz:
a) Indica a data e a hora da respectiva prolação, considerando-se que ela teve lugar ao meio-dia na
falta de outra indicação;
b) Identifica o devedor insolvente, com indicação da sua sede ou residência;
c) Identifica e fixa residência aos administradores, de direito e de facto, do devedor, bem como ao
próprio devedor, se este for pessoa singular;
d) Nomeia o administrador da insolvência, com indicação do seu domicílio profissional;
e) Determina que a administração da massa insolvente será assegurada pelo devedor, quando se
verifiquem os pressupostos exigidos pelo n.º 2 do artigo 224.º;
f) Determina que o devedor entregue imediatamente ao administrador da insolvência os documentos
referidos no n.º 1 do artigo 24.º que ainda não constem dos autos;
g) Decreta a apreensão, para imediata entrega ao administrador da insolvência, dos elementos da
contabilidade do devedor e de todos os seus bens, ainda que arrestados, penhorados ou por qualquer
forma apreendidos ou detidos e sem prejuízo do disposto no n.º 1 do artigo 150.º;

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h) Ordena a entrega ao Ministério Público, para os devidos efeitos, dos elementos que indiciem a
prática de infracção penal;
i) Caso disponha de elementos que justifiquem a abertura do incidente de qualificação da insolvência,
declara aberto o incidente de qualificação, com caráter pleno ou limitado, sem prejuízo do disposto
no artigo 187.º;
j) Designa prazo, até 30 dias, para a reclamação de créditos;
l) Adverte os credores de que devem comunicar prontamente ao administrador da insolvência as
garantias reais de que beneficiem;
m) Adverte os devedores do insolvente de que as prestações a que estejam obrigados deverão ser feitas
ao administrador da insolvência e não ao próprio insolvente;
n) Designa dia e hora, entre os 45 e os 60 dias subsequentes, para a realização da reunião da
assembleia de credores aludida no artigo 156.º, designada por assembleia de apreciação do relatório,
ou declara, fundamentadamente, prescindir da realização da mencionada assembleia.

Para além destes, a declaração de insolvência produz outros efeitos:


▪ Artigo 81º nº 1 - “(…) a declaração de insolvência priva imediatamente o insolvente, por si
ou pelos seus administradores, dos poderes de administração e de disposição dos bens
integrantes da massa insolvente, os quais passam a competir ao administrador da
insolvência.”;
▪ Artigo 82º nº 1 - Os órgãos sociais do devedor mantêm-se em funcionamento após a
declaração de insolvência, não sendo os seus titulares remunerados, salvo no caso previsto no
artigo 227.º
▪ Artigo 91º nº 1 - A declaração de insolvência determina o vencimento de todas as obrigações
do insolvente não subordinadas a uma condição suspensiva.

Fase de reclamação de créditos e hierarquização dos créditos


Os créditos da massa insolvente podem ser garantidos, privilegiados, comuns e subordinados. Para
além destes, há dividas da massa.
a. Dividas da massa insolvente (artigo 51º) – créditos que decorrem do próprio processo de
insolvência. Incluem-se aqui custas do processo, remunerações do administrador de
insolvências e dividas de atos praticados pelo administrador. Estas dividas são consideradas as
mias importantes e, por isso, são pagas em primeiro lugar. Não tem de ser reclamadas, na

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medida em que dizem respeito ao processo de insolvência pelo que já vêm no processo e o
administrador de insolvência já tem conhecimento delas.
É possível responsabilizar o administrador da insolvência em caso de insuficiência da massa
insolvente para a satisfação das dividas que tenham sido constituídas por ato do administrador,
este pode ser responsável pessoalmente por esses dividas perante os respetivos credores.

Restantes créditos (artigo 47º)


a. Créditos garantidos – aqueles que beneficiam de uma garantia real. Compreendem não apenas
o capital, mas também os juros respetivos até ao valor dos bens objeto da garantia. As garantias
pessoais não relevam para a qualificação do crédito como garantido. São pagos após terem sido
deduzidas as importâncias necessárias a satisfação das dividas da massa insolvente. O
pagamento ocorre respeitando a prioridade que lhes caiba. Se existem duas hipotecas sobre o
o mesmo imóvel, em primeiro lugar paga-se o crédito e juros da primeira hipoteca e só depois,
se houver dinheiro, é que se paga a 2º hipoteca.
Não sendo os objetos da garantia suficientes para a liquidação integral, e respondendo o
devedor pelos mesmos com a generalidade do seu património, são os saldos respetivos
incluídos entre os créditos comuns atendidos nos rasteiros que se realizarem entre os credores
comuns.
Extinguem-se, com a declaração da insolvência (97º):
 os privilégios creditórios gerais ou especiais que forem acessórios de créditos sobre a
insolvência de que forem titulares o Estado, as autarquias locais e as instituições de
segurança social constituídos mais de 12 meses antes da data do inicio do processo de
insolvência;
 as hipotecas legais cujo registo haja sido requerido dentro dos dois meses anteriores à
data do inicio do processo de insolvência, e que forem acessórias de créditos sobre a
insolvência do Estado, as autarquias locais e das instituições de segurança social.
 Se não forem independentes de registo, as garantias reais sobre imóveis ou móveis
sujeitos a registo integrantes da massa insolvente, acessórias de créditos sobre a
insolvência e já constituídas, mas ainda não registadas nem objeto de pedido de registo;
 As garantias reais sobre bens integrantes da massa insolvente acessórias dos créditos
havidos como subordinados.

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b. Créditos privilegiados – privilégio creditório é a faculdade que a lei, em atenção à causa do


crédito, concede a certos credores, independentemente do registo, de serem pagos com
preferência a outros (733º CC).
Nos termos do artigo 175º CIRE, O pagamento dos créditos privilegiados é feito à custa dos
bens não afectos a garantias reais prevalecentes, com respeito da prioridade que lhes caiba,
e na proporção dos seus montantes, quanto aos que sejam igualmente privilegiados.

c. Créditos comuns – não beneficiam de garantias nem de privilégios e não são objeto de
subordinação.
Podem beneficiar outras garantias, as pessoais, mas estas não relevam na insolvência.
O pagamento dos créditos comuns é feito após a satisfação dos outros créditos.
Pagamento com base em rateio na proporção do valor nominal dos respetivos créditos.

d. Créditos subordinados (artigos 48º e 49º) – os artigos 48º e 49º determinam quais são os
créditos comuns. São pagos pela ordem do artigo 48º. Dentro deles, existe vários créditos
subordinados. Os suprimentos são os mais subordinados de todos. Nos termos do artigo 20º,
os créditos comuns atribuem legitimidade para requer a insolvência. Não conferem, em
princípio, o direito de voto na Assembleia de credores (73º/3) nem permitem o respetivo credor
integrar a comissão de credores. Não podem ser compensados dividas da massa. São pagos
apenas depois de satisfeitos os créditos comuns.

Caso Prático nº 6
I.
A Assembleia Geral de sócios da A, supermercados S.A. aprovou, no passado dia 15 de Março
o relatório de contas relativo ao ano passado. Do relatório de contas consta nomeadamente que
a sociedade tem um passivo de 1.5 milhões de euros e um ativo de 1.4 milhões de euros, sobretudo
por possuir 4 imóveis (onde explora 4 supermercados) que valorizaram bastante nos últimos
anos mas que cujas prestações do preço ainda não foram pagas.
i) Está a sociedade comercial mencionada em situação de insolvência?
Esta sociedade encaixa-se no âmbito subjetivo da declaração de insolvência, ao abrigo do
art. 2.º, CIRE. Não preenche o n.º 2 do art. 2.º, CIRE, que exclui determinadas sociedades
do regime da insolvência.

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Encaixa-se no âmbito objetivo? A incapacidade de cumprimento das obrigações pressupõe


uma avaliação complexa, podendo ser realizada através de dois critérios principais – o
critério do fluxo de caixa e o critério do balanço.
Relativamente ao critério de fluxo de caixa, não temos qualquer informação.
Poderia ser aplicado o segundo critério, pois o passivo da sociedade é maior em 100.000€
que o ativo. Contudo, questiona-se se essa superioridade será manifesta – em princípio,
para uma sociedade com um capital de 1.5M€, uma superioridade de 100.000€ do passivo
em relação ao ativo não parece ser manifesta. Para esta avaliação, deve, ainda, ter-se em
conta os critérios de correção do balanço previstos no art. 3.º, n.º 2, CIRE.
Em princípio, a entidade não está insolvente, uma vez que não é aplicável qualquer critério
de determinação da situação de insolvência.

ii) A resposta seria a mesma se estivéssemos perante um balanço aprovado pela B, águas
e energia de S. Cristóvão, E.P.E.?
Não, porque está excluída da insolvência.

iii) Como classifica os seguintes créditos da massa insolvente:


a. Preço a pagar pela aquisição de um equipamento de etiquetagem que será fornecido
em 2020, por encomenda do Administrador da Insolvência;
É uma dívida da massa, pelo que é paga em primeiro lugar (art. 51.º, als. c) e d), CIRE). O seu
pagamento está sempre garantido. Não tem de ser reclamada. O Administrador da Insolvência pode
ser responsabilizado.

b. Prestações relativas a um contrato de mútuo celebrado com Manuel, sobrinho do


anterior gerente da sociedade, garantidas pela hipoteca sobre um dos imóveis detidos
pela sociedade;

Trata-se de um crédito subordinado. O facto de ser garantido por hipoteca não significa que
seja um crédito privilegiado ou garantido – uma vez que se trata de um crédito subordinado, as
respetivas garantias extinguem-se com a declaração de insolvência (art. 97.º, CIRE).

Este crédito será pago pela ordem do art. 48.º, CIRE, sendo satisfeito após a satisfação das
dívidas da massa, dos créditos privilegiados/garantidos e dos créditos comuns.

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O crédito subordinado atribui legitimidade ao credor para requerer a declaração de insolvência


do devedor (art. 20.º, CIRE); contudo, estes credores não terão direito de voto nas assembleias de
credores (art. 73.º, n.º 3, CIRE). É, ainda, proibida a compensação entre o crédito detido sobre a massa
e uma dívida que também detenham sobre a massa.

c. Preço pela aquisição de uma empilhadora garantido por Joaquim;

Corresponde a um crédito comum, na medida em que não possui qualquer garantia ou


privilégio, nem está sujeito a qualquer fundamento de subordinação. Será pago depois das dívidas da
massa e dos créditos garantidos/privilegiados, com base num rateio, i.e., na proporção do valor
nominal dos respetivos créditos.

d. Salários em atraso a cinco trabalhadores;

Consiste num crédito privilegiado. Nos termos do art. 333.º, CT, os créditos do trabalhador
emergentes do contrato de trabalho gozam de privilégio imobiliário geral e de um privilégio
imobiliário especial sobre o imóvel do empregador no qual presta a sua atividade.

e. Custas relativas ao processo de insolvência.

Corresponde a uma dívida da massa.

II.

A Sardinhas S.A., sociedade anónima que tem por objeto o fornecimento de sardinhas
possui, atualmente, um passivo de 100.000,00€ (onde se incluem 45.000,00€ relativos a suprimentos
realizados pelos acionistas da sociedade) e um ativo de 70.000.00€.

a. Está a sociedade obrigada a apresentar-se à insolvência?

Segundo o critério do cash flow, a entidade estará insolvente quando não consiga, a cada
momento, pagar as dívidas que se vencem (art. 3.º, n.º 1, CIRE). Quanto a este critério, não há qualquer
informação.

Segundo o critério do balanço, uma entidade estará insolvente quando tenha um passivo
manifestamente superior ao ativo (art. 3.º, n.º 2, CIRE). Tendo em conta os critérios de correção do

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art. 3.º n.º 3, não são considerados para efeitos do critério do balanço os créditos provenientes de
suprimentos. Como tal, Sardinhas S.A. não terá um passivo superior ao ativo, pelo que não estaria
obrigada a apresentar-se à insolvência. A obrigação de apresentação à insolvência apenas recai sobre
sujeitos que se encontrem em situação de insolvência de acordo com os critérios previstos no CIRE.
A obrigação de apresentação à insolvência não existe no caso de o devedor ser uma pessoa singular
não titular de empresa (art. 18.º, n.º 2, CIRE).

Poderia, contudo, em caso de insolvência iminente, requerer a sua declaração de insolvência,


embora a tal não esteja obrigada. Nos termos do art. 3.º, n.º 4, CIRE, a situação de insolvência iminente
é equiparada à insolvência no caso de apresentação pelo próprio devedor à insolvência.

b. Poderá a insolvência da Sardinhas S.A. ser requerida por terceiros?

Sim. A lei atribui legitimidade aos credores da sociedade, ao Ministério Público ou e a outras
pessoas que respondam pelas dívidas do devedor para requererem a insolvência do devedor. Estas
entidades requerem a declaração de insolvência com base em factos indiciários da situação de
insolvência (art. 20.º, CIRE). Assim, caberá ao devedor provar que não se verifica qualquer facto que
indicie a sua situação de insolvência ou que, mesmo que se verifique um desses factos, não está
efetivamente insolvente, por não se aplicar qualquer dos critérios que determinam a insolvência à sua
situação.

Na eventualidade de alguma destas entidades requerer a insolvência do devedor e esta vir a ser
declarada, passará a ser detentora de um privilégio mobiliário geral (art. 98.º, n.º 1, CIRE). Deste
modo, deixa de deter apenas um crédito comum, passando a ter um crédito privilegiado, podendo ver
o seu crédito satisfeito em primeiro lugar em relação a outros credores.

No caso de ser apresentado um pedido infundado de declaração de insolvência, a entidade que


o tenha requerido poderá estar sujeita a responsabilidade civil, quando provoque danos reputacionais
que diminuam o valor da própria empresa. Contudo, a lei limita a responsabilização destes casos a
hipóteses de dolo, não abrangendo casos de culpa grave.

c. Como qualifica o crédito que os acionistas da sociedade detêm a título de suprimentos?


Sabendo que os suprimentos foram realizados em 2009 e por um prazo de 11 anos, quando é que se
venceriam em caso de ter sido declarada a insolvência da sociedade em 2018?

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Corresponde a um crédito subordinado (art. 48.º, CIRE), sendo satisfeito depois dos restantes
créditos sobre a insolvência.

Um dos efeitos da declaração da insolvência é o vencimento antecipado de todas as obrigações


do insolvente, desde que não subordinadas a condição suspensiva (art. 91.º, n.º 1, CIRE). No caso de
declaração de insolvência da sociedade em 2018, o crédito de suprimentos em causa vencer-se-ia nesse
mesmo ano, sendo imediatamente exigível pelos acionistas à sociedade.

d. A 3 de Janeiro, a Sardinhas S.A. e a Camiões Lda. celebraram um contrato de compra e


venda de 5 automóveis de transporte de mercadorias, acordando ainda que cada automóvel seria
entregue (e pago) no início de cada mês até Maio. Quid iuris se a Sardinhas S.A. é declarada
insolvente a 15 de Março?

Após a declaração de insolvência, caberá ao administrador de insolvência decidir se cumpre ou


não uma série de contratos em curso (art. 102.º, CIRE). Perante um contrato bilateral em que ainda
não tenha havido total cumprimento por nenhuma das partes, o administrador de insolvência poderá
optar entre executar o contrato ou recusar o seu cumprimento, atendendo à viabilidade da empresa.
Neste caso, está em causa um contrato bilateral celebrado entre a Sardinhas S.A. e a Camiões Lda., do
qual emergem obrigações para ambas as partes (por um lado, a obrigação de pagar o preço
mensalmente e, por outro lado, a obrigação de entregar um automóvel mensalmente).

Se o administrador de insolvência optar por executar os contratos em curso, todos os créditos


decorrentes da declaração de execução do contrato serão dívidas da massa, sendo protegidos face aos
outros créditos (art. 51.º, CIRE). Quando opta pelo cumprimento do contrato, o administrador de
insolvência transforma o crédito comum sobre a insolvência numa dívida da massa.

Se o administrador de insolvência optar por recusar o cumprimento dos contratos em curso,


aplica-se o regime do art. 102.º, n.º 3, CIRE, sempre que se esteja perante uma situação em que não
tenha havido cumprimento integral das prestações por ambas as partes, como é o caso. Quando tal se
verifique, nenhuma das partes estará obrigada a devolver aquilo que já prestou (art. 102.º, n.º 3.º, al.
a), CIRE).

Por um lado, quando haja a realização de uma prestação por uma parte sem a respetiva
contraprestação pela contraparte, o valor da diferença entre ambas será um crédito sobre a massa –
assim, a massa insolvente terá o direito de exigir o valor da contraprestação correspondente à prestação
já efetuada pelo devedor, na medida em que não tenha sido ainda realizada pela outra parte (art. 102.º,

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n.º 3, al. b), CIRE). Assim, p.ex., se a Sardinhas S.A. já tivesse pago 3 carros e só tivesse recebido 2,
terá o direito a exigir o valor desse terceiro carro a Camiões Lda.

Por outro lado, também a outra parte terá o direito de exigir, como crédito sobre a insolvência,
o valor da prestação do devedor, na parte incumprida, deduzido do valor da contraprestação
correspondente que ainda não tenha sido realizada (art. 102.º, n.º 3, al. c), CIRE). Assim, se Camiões
Lda. já tiver entregado 3 carros e Sardinhas S.A. só tiver pagado 2, a primeira terá direito a receber o
valor do terceiro carro. As als. b) e c) do art. 102.º, n.º 3 aplicam-se quando haja incumprimentos
parciais ao correspetivos ou quando haja um incumprimento total de um contraente e parcial do outro.

Pode, ainda, haver lugar a indemnização por parte da massa relativamente ao credor (art. 102.º,
n.º 3, al. d), CIRE). Esta indemnização será um crédito sobre a insolvência que, não tendo uma garantia
nem estando sujeito a qualquer motivo de subordinação, será comum. O direito à indemnização apenas
existe até ao valor da obrigação eventualmente imposta nos termos da al. b) – assim, o valor da
indemnização está limitado ao valor da contraprestação a que o insolvente poderia ter direito por ter
cumprido mais do contrato do que o credor. Parte da doutrina entende que esta aplicação se aplica
sempre, a qualquer tipo de indemnização. O professor Pestana Vasconcelos, contudo, considera que
esta limitação apenas se aplica quando efetivamente exista algum valor nos termos da al. b). neste
caso, não havendo uma limitação, cabe ao credor provar efetivamente qual o dano que sofreu e será
esse o valor a que terá direito com a indemnização. Por fim, do valor desta indemnização, calculada
segundo as regras anteriores, deverá ser abatido do quantitativo a que a outra parte tenha direito, por
aplicação da al. c), de forma a que não haja enriquecimento sem causa.

Processo especial de revitalização

Destina-se a permitir à empresa que comprovadamente se encontre em situação económica


difícil ou em situação de insolvência meramente iminente, mas que ainda seja suscetível de
recuperação, estabelecer negociações com os respetivos credores de modo a concluir com estes um
acordo conducente à sua revitalização. Corresponde a uma espécie de negociação institucionalizada,
no intuito de evitar que a empresa entre em situação de insolvência.

Inicia-se desde que a empresa obtenha acordo com credores que não estejam especialmente
relacionados com ela e que sejam titulares de 10% de créditos não subordinados para encetarem
negociações conducentes à revitalização daquela por meio de aprovação de um plano de recuperação.

O juiz nomeia de imediato um administrador judicial provisório. Esta nomeação implica a


inibição da empresa para a prática de atos de especial relevo (art. 17.º-E, n.º 2, CIRE). Uma vez

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recebida a comunicação, a empresa deve comunicar a todos os seus credores que se iniciou um plano
de revitalização, para que todos sejam convidados a participar na negociação (art. 17.º-D, n.º 1, CIRE).
Os credores terão 20 dias para virem ao processo reclamar os seus créditos. Com a nomeação, a
empresa fica impedida de exercer, por si só, um conjunto de atos considerados de especial relevo, que
necessitam da aprovação do administrador judicial provisório – ex: venda da empresa, alienação de
bens necessários à exploração de empresa, alienação de participações sociais, aquisição de imóveis,
celebração de novos contratos de execução duradoura, entre outros. Uma série de serviços deve ser
continuado a ser prestado durante o PER – art. 17.º-E, n.º 8, CIRE. Esses efeitos visam colocar as
partes numa posição confortável para poderem, durante determinado período de tempo, chegar a um
acordo quanto a um plano de revitalização.

Os declarantes dispõem de um prazo de 2 meses para concluir as negociações. Se o plano for


aprovado, o processo termina (art. 17.º-G, n.º 1, CIRE). Se entrar em insolvência, os credores que
participaram no PER têm algumas vantagens – as garantias que decorram das negociações dentro do
processo de revitalização não se extinguem com a insolvência (art. 17.º-H, n.º 1, CIRE) e os credores
que tenham colocado dinheiro novo na empresa terão um privilégio mobiliário geral (art. 17.º-H, n.º
2, CIRE). Se o plano não for aprovado, o administrador poderá requerer a declaração de insolvência
da sociedade.

Caso prático n.º 6:

III.

Imagine agora que a Camiões Lda. se encontra em risco de deixar de conseguir pagar aos
seus credores.

i. Deverá a Camiões Lda. apresentar-se à insolvência?

Estando apenas em situação de insolvência iminente ou em situação económica difícil, a


Camiões Lda. não terá uma obrigação de se apresentar à insolvência. O devedor pode apresentar-se à
insolvência, mesmo que não se tenha verificado já o incumprimento das obrigações vencidas, desde
que esse incumprimento se venha a produzir necessariamente face ao posterior vencimento de
obrigações que o devedor venha a assumir (art. 3.º, n.º 4, CIRE). A obrigação de requerer a insolvência
apenas existe quando a insolvência seja atual e não iminente.

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ii. A Camiões Lda. pretende iniciar o seu processo especial de revitalização. Que terá de fazer
para o efeito?

O processo especial de revitalização inicia-se com a declaração de vontade da empresa nesse


sentido, e com o acordo de um conjunto de credores (art. 17.º-C, n.ºs 1 e 2, CIRE).

iii. Tendo já sido nomeado um administrador judicial provisório, diga se poderá a sociedade
comercial Motores, S.A. propor ação declarativa de condenação ao cumprimento de obrigação
pecuniária contra a Camiões Lda..

A nomeação de um administrador judicial provisório obsta à instauração de ações de cobrança


de dívidas face àquele devedor durante todo o período de tempo em que durarem as negociações e
suspende as ações de cobrança de dívida que já estiverem em curso durante o período de tempo em
que se mantenham as negociações (art. 17.º-C, n.º 3, CIRE). Neste ponto, surge uma divergência
doutrinal em relação a saber se as ações de cobrança de dívidas em causa se referem às ações
declarativas ou executivas – considera o professor que se refere apenas às ações executivas, por serem
as únicas capazes de prejudicar efetivamente o funcionamento da empresa. Considera o professor que
a nomeação não impede que uma eventual ação declarativa seja proposta, uma vez que não afeta o
património do devedor. A doutrina maioritária, contudo, tem entendido no sentido contrário,
considerando que se refere a ambas. No Ac. do STJ de 17.11.2016, o tribunal veio considerar que estão
abrangidas por esta proibição não apenas as ações executivas para pagamento de quantia certa, mas
também as ações declarativas em que se pretenda obter a condenação do devedor no pagamento de um
crédito que se pretende ser reconhecido.

iv. 3 meses volvidos do início da nomeação do Administrador judicial provisório, o tribunal


declarou a insolvência da Camiões Lda. Como graduaria um crédito detido pela Águas, Lda., por
ter esta última disponibilizado 5.000€ para a revitalização da empresa detida pela Camiões, Lda.
durante o Processo Especial de Revitalização?

Corresponde a um crédito privilegiado. A lei atribui uma garantia especial ao fresh money, ou
seja, ao financiamento concedido ao devedor pelos seus credores, através da concessão de um
privilégio mobiliário geral especialmente forte, graduado acima dos restantes (art. 17.º-H, n.º 2, CIRE).

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Obrigação de adotar firma

A obrigação de adotar firma é uma obrigação de qualquer comerciante (art. 18.º, C.Com.).
Contudo, esta obrigação não recai apenas sobre sujeitos comerciantes, na medida em que existem
entidades não comerciantes que estão obrigadas a adotar uma firma.

As noções de firma, empresa e sociedade comercial são distintas. A firma corresponde ao nome
do comerciante e é algo que todos os comerciantes devem ter, seja um comerciante em nome individual
ou uma pessoa coletiva.

A empresa, em sentido objetivo, é uma organização de meios, i.e., uma organização produtiva
com uma determinada independência que visa a produção de determinado bem ou serviço.

A sociedade comercial é uma pessoa coletiva com personalidade própria que está obrigada,
enquanto comerciante, a ter uma firma, embora possa não ter uma empresa em sentido objetivo.
Existem sociedades comerciais constituídas única e exclusivamente para deter determinados bens
(sociedades comerciais fantasma) – por exemplo, certas sociedades comerciais existem apenas com o
objetivo de serem proprietárias de aviões. Assim, se o sujeito pretender vender os bens detidos pela
sociedade comercial, terá que vender toda a sociedade que detém esses mesmos bens, o que poderá
trazer benefícios em termos fiscais ou em termos das formalidades necessárias para a transação do
bem.

Uma sociedade comercial tem sempre que ter uma firma, mas nem sempre tem uma empresa,
da mesma forma que pode haver uma empresa detida por um comerciante em nome individual, sem
que haja uma sociedade comercial por trás. No direito comercial, os conceitos de firma, empresa e
sociedade comercial têm um significado próprio, pelo que não podem ser confundidos.

A firma é utilizada pelos comerciantes e visa sobretudo ajudar a distinguir os comerciantes na


sua prática comercial. Corresponde a um sinal distintivo do comércio obrigatório. Existem outros
sinais distintivos de comércio que não são obrigatórios, nomeadamente os logótipos e marcas. É, ainda,
um sinal distintivo do comércio nominativo e não figurativo, na medida em que é composto por
palavras e não por imagens ou formas desenhadas. Tratando-se de um sinal distintivo de comércio, a
firma deve obedecer ao princípio da novidade – assim, uma firma, para ter caráter distintivo, deve ser
diferente das firmas já existentes, i.e., deve ser nova.

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Tipos de firma:

• Firma-nome – constituída pelo nome total ou parcial do comerciante em si ou dos vários sócios da
sociedade.
• Firma-denominação – constituída pela alusão ao objeto social da sociedade, isto é, à atividade
exercida pelo comerciante ou por expressões de fantasia (expressões inventadas, não relacionadas
com o nome dos sócios ou com o objeto social).
• Firma mista – combinam ambos os elementos.

Regime das firmas

O regime aplicável às firmas varia consoante o comerciante em causa seja um comerciante em


nome individual ou uma sociedade comercial.

No que diz respeito ao comerciante em nome individual, o regime encontra-se previsto no art.
38.º, RRNPC. A sua firma deve ser uma firma-nome, i.e., deve ser composta pelo nome do
comerciante, completo ou abreviado, na medida em que seja possível identificar a pessoa. Pode, ainda,
ser aditada alguma alcunha ou expressão relativa à atividade exercida. Não é possível adotarem uma
firma-denominação, uma vez que deve haver sempre uma referência ao nome do comerciante. Ao
nome do comerciante podem anteceder títulos académicos, profissionais ou nobiliárquicos a que o
sujeito tenha direito. Não pode incluir quaisquer outras expressões ou siglas.

Em princípio, uma firma de um comerciante em nome individual não é exclusiva, uma vez que
podem existir sujeitos comerciantes distintos com o mesmo nome. O princípio da novidade não se
aplica completamente aos comerciantes em nome individual, pois reconhece-se o direito ao nome da
cada comerciante. Contudo, existe uma exceção: há a possibilidade de haver uma proteção da firma
do comerciante ao nível do seu concelho de atividade, na medida em que ao nome do comerciante se
junte uma alcunha ou uma expressão alusiva à sua atividade.

No que toca às sociedades em nome coletivo, o regime das firmas vem previsto no art. 177.º,
CSC. A firma deve ser constituída pelo nome ou firma de um ou vários dos sócios e deve conter um
aditamento abreviado ou por extenso que indique a existência de mais sócios.

Uma sociedade em nome coletivo é uma sociedade de responsabilidade ilimitada, o que


significa que quando os credores da sociedade não conseguirem ver os seus créditos totalmente
ressarcidos pelo seu património, podem reclamá-los dos seus sócios. Neste tipo societário, o
património dos sócios responde pelas dívidas da sociedade (art. 175.º, CSC). Daí que este tipo de

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sociedades não seja tão frequentemente utilizado – os sujeitos, ao constituir uma sociedade comercial,
pretendem, em regra, limitar a sua responsabilidade. O regime das firmas das sociedades em nome
coletivo visa, portanto, identificar quais os responsáveis pelas dívidas da sociedade, de forma a que
quem contrate com esta sociedade saiba, à partida, que haverá mais do que uma pessoa responsável
pelas suas dívidas.

Coutinho de Abreu entende que, apesar de não vir expressamente previsto no art. 177.º, CSC,
é possível a inclusão de uma sigla, expressão de fantasia ou alusão ao objeto da sociedade, desde que
haja sempre referência à parte da firma-nome (por analogia ao art. 42.º, n.º 1, RRNPC). É, portanto,
possível que adotem uma firma mista.

A lei admite, ainda, que da firma conste o nome de um sujeito que não seja sócio da sociedade.
Nesse caso, o sujeito que autorize que o seu nome conste da firma da sociedade em nome coletivo será
responsável nos mesmos termos que os sócios, de forma pessoal, solidária e ilimitada.

Quanto às sociedades por quotas e às sociedades anónimas, podem adotar uma firma-nome,
uma firma-denominação ou uma firma mista, conforme a escolha dos sócios (arts. 200.º e 275.º, CSC).
Devem sempre incluir uma expressão que identifique o tipo de sociedade em causa – “Limitada ou
Lda.” em caso de sociedades por quotas ou “Sociedade Anónima” ou “SA” em caso de sociedade
anónima.

No regime das firmas das sociedades por quotas e das sociedades anónimas relevam dois
aspetos relativos ao princípio da verdade – as firmas não podem conter expressões indicativas de um
objeto social que não esteja especificamente previsto na respetiva cláusula do contrato de sociedade.
Por outro lado, no caso de objeto contratual da sociedade ser alterado, deixando de incluir a atividade
especificada na firma, a alteração do objeto deve ser simultaneamente acompanhada da modificação
da firma.

As sociedades em comandita são simultaneamente sociedades de responsabilidade limitada e


ilimitada, consoante em causa estejam os sócios comanditados ou os sócios comanditários. Dentro da
mesma sociedade, existem sócios que respondem integralmente pelas dívidas da sociedade – os sócios
comanditados – e sócios que não respondem por essas mesmas dívidas – os sócios comanditários. Na
medida em que se esteja parcialmente perante uma sociedade de responsabilidade ilimitada, aplicam-
se proporcionalmente as regras do regime das firmas das sociedades em nome coletivo.

A firma da sociedade em comandita deve ser composta pelo nome de um ou mais sócios
comanditados, de forma a que quem contrate com a sociedade saiba que existe pelo menos um sócio
que poderá ser responsabilizado pelas dívidas da sociedade no caso de o património desta ser

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insuficiente. Podem, ainda, conter outras siglas ou expressões de fantasia. Se figurar na firma o nome
de um sócio que não era comanditado, na medida em que o seu nome aparece na firma, os credores
poderão responsabilizar o património desse sujeito nos exatos termos em que poderiam responsabilizar
o património dos sócios comanditados. Isto só não ocorre se se demonstrar que os credores sabiam que
o sócio em causa era comanditário, apesar de o seu nome figurar na firma.

Princípios subjacentes à adoção da firma

1. Princípio da verdade: a firma não pode induzir em erro as pessoas que contactam com o
comerciante, sobretudo quanto a três aspetos centrais – quanto à identificação do comerciante,
quanto à natureza do comerciante e quanto à atividade desenvolvida pelo comerciante. Como tal,
em princípio, a firma não pode conter o nome de alguma pessoa que não seja sócio da sociedade,
a não ser que essa pessoa o autorize, caso em que poderá ser responsabilizado pelas dívidas dessa
sociedade. Também não pode conter referência a uma atividade que não seja efetivamente
realizada, nem conter elementos que induzam em erro quanto à caracterização jurídica dos
respetivos titulares.
Este princípio dita que se o objeto da sociedade for alterado, a firma deve ser alterada em
conformidade, no caso de incluir referência ao objeto social. Se um sócio cujo nome conste da
firma sair da sociedade, a firma deve ser alterada em conformidade, salvo se o próprio sócio
consentir na sua manutenção.

2. Princípio da novidade ou exclusividade: nos termos do art. 33.º, RRNPC, a firma de um


comerciante deve ser nova e diferente das restantes. A firma não pode induzir em erro quanto a
outras firmas já existentes de outros comerciantes.
O juízo de confundibilidade sobre a distinção e a não suscetibilidade de confusão ou erro entre as
firmas deve ter em conta o tipo de pessoa, o seu domicílio ou sede, a afinidade ou proximidade das
suas atividades e o âmbito territorial destas. A confundibilidade também é aferida em relação a
marcas e logótipos. Uma firma violará o princípio da novidade na medida em que, atendendo à
grafia das palavras, ao efeito fonético das expressões, ao seu núcleo caracterizante, o público
médio, de normal capacidade, diligência e atenção, não a consiga distinguir de uma outra já
existente, quando seja confundida com outra. Para que haja confundibilidade, não basta que as
firmas tenham palavras em comum; se todo o resto da firma permitir afirmar que se trata de

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comerciantes diferentes, não haverá confundibilidade. O juízo de confundibilidade não se aplica


apenas no âmbito de atividades concorrentes.
Para os comerciantes em nome individual, o princípio da exclusividade não se aplica; apenas se
aplicará nos casos de a firma conter uma expressão ou denominação para além do nome do
comerciante. Essa proteção será apenas no âmbito do concelho do estabelecimento do comerciante.
Contudo, isto não significa que um comerciante que adote como firma simplesmente o seu nome
não tenha proteção jurídica – poderá beneficiar da tutela do direito ao nome (art. 79.º, CC) e da
proibição da concorrência desleal conferida pelo Código da Propriedade Industrial.
No caso das sociedades comerciais, o âmbito de proteção conferido pelo princípio da novidade é
todo o território nacional.

3. Princípio da capacidade distintiva: em princípio, as firmas das sociedades comerciais não podem
ser constituídas por elementos de fraca distinção, isto é, por palavras abrangentes, usadas no
quotidiano. Este princípio não se aplica aos comerciantes em nome individual nem às firmas-nome
ou firmas mistas. Quando as firmas envolvem o nome dos sócios ou dos comerciantes, isso, por si
só, basta para que haja capacidade distintiva – estas têm capacidade distintiva por inerência.

4. Princípio da unidade: como regra geral, um comerciante apenas pode ter uma firma, exceto no
caso dos EIRLs. Nesse caso, terá uma firma enquanto comerciante e uma firma enquanto titular de
um EIRL.

5. Princípio da ilicitude residual: as firmas não podem incluir uma série de elementos considerados
ilícitos, nomeadamente expressões proibidas por lei ou ofensivas da moral e dos bons costumes,
expressões incompatíveis com as liberdades individuais ou expressões relativas a símbolos
nacionais ou personagens históricas.

Alteração da firma

A firma pode ser livremente alterada pelo comerciante. Existem situações em que essa alteração
será obrigatória, nomeadamente quando saia da sociedade algum sócio cujo nome conste da firma,
quando seja alterado o objeto social da sociedade e quando haja transformação da natureza da

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sociedade. No caso da liquidação da sociedade, quando os sócios determinam encerrar uma sociedade
comercial, a firma deve passar a incluir a expressão “Sociedade em Liquidação”.

Transmissão da firma

Em princípio, a firma, sendo um nome, não poderia ser transmissível. Contudo, a firma detém
um valor comercial próprio, distinto do comerciante em si, podendo ser objetivada na medida em que
passa a ser relacionada com um estabelecimento comercial específico. O legislador visou proteger dois
interesses: por um lado, o interesse da firma como um objeto com valor próprio e, por outro lado, o
interesse dos credores que normalmente contratam com essa firma.

Nos termos do art. 44.º, RRNPC, é possível a transmissão da firma, desde que se transmita
também a empresa, de forma a que o público continue consciente de que àquela empresa corresponde
aquela firma, e que as partes o consintam por escrito. O princípio da verdade determina que, em caso
de transmissão da firma, seja incluída a qualidade de sucessão na firma.

Também é possível a transmissão da firma por morte, caso em que deverá ser aditada a
expressão “Herdeiro de” ou “Sucessor de”.

Tutela da firma

A firma pode ser protegida de duas formas – preventivamente, através dos certificados de
admissibilidade da firma (oferece uma confirmação prévia, a priori, da legalidade de uma firma) ou
posteriormente, através da tutela das primeiras firmas existentes. Esta tutela faz-se, pelo menos, através
da possibilidade de o titular da primeira firma pedir ao RRNPC a revogação da outra firma, pela
possibilidade de interpor uma ação de nulidade de uma firma (art. 35.º, n.º 4, RRNPC) e pela
possibilidade de pedir uma indemnização pelas perdas e danos causados (art. 62.º, RRNPC).

Caso prático n.º 7:

I.

António Manuel Ferreira da Silva é dono e explora uma quinta, situada em Baião, na qual
produz um vinho de mesa, que comercializa sob a firma “Dr. António Manuel Ferreira”, e que tem
tido um enorme sucesso nos restaurantes da zona norte.

a. Diga se o António é comerciante.

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b. Entretanto, António Carlos Felisberto Silva abriu uma loja de venda de vinhos, no Porto,
onde para além do mais, vende vinhos da zona de Baião, tendo adotado a firma “AFS – António F.
Silva, Vinhos”. António Manuel Ferreira da Silva quer reagir contra a utilização daquela firma por
parte do Felisberto, porquanto entende que a mesma induz em erro o mercado. Quid iuris?

Os comerciantes em nome individual não beneficiam da proteção conferida pelo princípio da


exclusividade, a menos que detenham uma firma mista. Neste caso, António Manuel Ferreira da Silva
tem uma firma-nome, não beneficiando de proteção relativamente às outras firmas que possam existir
nesse âmbito. Mesmo que a sua firma contivesse outras expressões para além do nome do comerciante,
a proteção conferida pelo princípio da exclusividade abrangeria apenas o concelho do estabelecimento
principal (art. 38.º, n.º 4, RRNPC). Como o seu estabelecimento principal se situa no concelho do
Porto, não haveria violação do princípio da exclusividade no caso de abrir outro estabelecimento em
Baião, pois não pertencem ao mesmo concelho. O problema da confundibilidade nem sequer se
colocava.

Quanto à firma de António Carlos Felisberto Silva, não poderia ser antecedida de qualquer
outra expressão que não título académico ou nobiliárquico. Assim, não poderia incluir “AFS” na sua
firma, por violação do art. 38.º, n.º 3, RRNPC.

II.

Bonifácio e Agostinho são sócios-gerentes da “Bonitinho, restauração e fabrico de


conservas, Lda.”, que explora um restaurante e uma fábrica de conservas de peixe na zona de
Matosinhos. Após contactarem o seu banco com o objetivo de negociar o financiamento para
adquirir a Carolina um snack-bar, veem o seu pedido recusado com a justificação de que a empresa
tem tido dificuldades em satisfazer os seus compromissos financeiros – o que era totalmente falso.
Após várias diligências, apura-se afinal que a sociedade fora confundida com a “Bonitinho,
restauro e conservação de edifícios, Lda.”, com sede na Guarda, e relativamente à qual estava a
correr um processo de insolvência.

1. Parece-lhe existir alguma irregularidade na constituição e/ou utilização de alguma das


firmas referidas? Explique porquê e em que circunstâncias, referindo também se e como poderão
reagir os titulares da firma que eventualmente goze de exclusividade.

Neste caso, estão em causa duas sociedades por quotas (art. 200.º, CSC). Em princípio, as
sociedades por quotas podem adotar uma firma-nome, uma firma-denominação ou uma firma mista,
pelo que dificilmente haverá violação do regime das firmas das sociedades por quotas.

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Não parece, também, haver violação de qualquer princípio conformador da firma. Poderiam
surgir dúvidas quanto à violação do princípio da exclusividade ou da novidade. Se se considerar que,
à luz do homem médio, estas duas firmas são confundíveis, quer pelo seu aspeto isolado, quer pela sua
fonética, haverá confundibilidade. Em causa, estão duas sociedades com objetos sociais totalmente
distintos. Em princípio, o objeto social, apesar de dever ser tido em conta, não é elemento suficiente
para averiguar da violação do princípio da confundibilidade. Apesar de estas firmas terem apenas uma
palavra em comum, as firmas em causa apontam para alguma confundibilidade, na medida em que são
utilizadas expressões muito semelhantes.

Havendo violação do princípio da exclusividade, o titular da primeira firma registada poderá


pedir ao RRNPC que declare a perda do direito à firma, poderá intentar ação judicial a pedir a
declaração de nulidade da firma ou pedir indemnização pelos prejuízos causados pela confundibilidade
das firmas (arts. 35.º, n.º 4, 60.º e 62.º, RRNPC).

2. Imagine que, para resolver a situação, Agostinho e Bonifácio fazem uma proposta de
aquisição da firma (e só da firma) à sociedade da Guarda. Podem fazê-lo?

Nos termos do art. 44.º, RRNPC, a transmissão da firma é possível. Porém, a transmissão da
firma apenas é possível se for acompanhada da transmissão da empresa. Não é possível comprar
simplesmente a firma sem mais.

3. Bonifácio pretende abrir um restaurante por conta própria e adotar a firma "O imperador
das sardinhas". Poderá fazê-lo? E poderá adotar a firma “Bonifácio, o Rei das Sardinhas”, e a
mesma ser protegida nos termos do RRNPC? E se a sua firma for tão-só “Bonifácio Joaquim da
Silva Costa”, o regime dessa proteção será o mesmo?

Conforme o art. 38.º, os comerciantes em nome individual devem adotar uma só firma
composta pelo seu nome conforme seja necessário para a identificação da pessoa. Devem adotar uma
firma-nome ou uma firma mista. Como tal, a firma “O imperador das sardinhas” não seria admissível.

O comerciante em nome individual poderá beneficiar da proteção da firma conferida pelo


RRNPC se a sua firma contiver alguma expressão para além do seu nome. Se adotasse a firma
“Bonifácio, o Rei das Sardinhas”, apenas poderia beneficiar da proteção conferida pelo RRNPC no
âmbito do concelho do seu estabelecimento principal.

Se o comerciante em nome individual tiver uma firma-nome, apenas pode beneficiar da tutela
geral conferida pelo direito ao nome e pela proibição da concorrência desleal.

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Regime das dívidas dos comerciantes

Por regra, vigora o regime do art. 601.º, CC, nos termos do qual pelo cumprimento das dívidas
responde o património do devedor. No entanto, em determinadas situações, é difícil perceber qual o
património do devedor, nomeadamente no caso de dívidas dos cônjuges, uma vez que, nos casos de
regime de comunhão de bens, existe uma confusão de patrimónios.

Estabelece o art. 1691.º, n.º 1, al. d), CC que serão dívidas de ambos os cônjuges as dívidas
contraídas por qualquer um dele no exercício do comércio, salvo se se provar que não foi feita em
proveito comum do casal ou se vigorar o regime de separação de bens. Sendo estas dívidas comuns,
irão responsabilizar, em primeiro lugar, o património comum do casal e, solidariamente, o património
do comerciante ou o património do seu cônjuge não comerciante (art. 1695.º, CC). Se se provar que
que a dívida é exclusiva de um dos cônjuges, responderá, em primeiro lugar, o património próprio
desse cônjuge e, em segundo lugar, a sua meação dos bens comuns do casal (art. 1696.º, CC).

A aplicação do art. 1691.º, n.º 1, al. d), relativa à comunicabilidade das dividas dos
comerciantes, está sujeita a requisitos:

• A dívida deve ser contraída no exercício do comércio. A demonstração deste pressuposto é


simplificada pela presunção do art. 15.º, C.Com., que estabelece que se presumem
comerciais todas as dívidas contraídas no exercício do comércio. Assim, não é necessário
provar que a dívida foi contraída no exercício do comércio, mas apenas que a dívida em
causa é comercial, isto é, que resulta de atos comerciais objetivos, ou que o sujeito em causa
é comerciante.
• Deve vigorar o regime de comunhão de bens;
• Não se pode provar que as dívidas não foram contraídas em proveito comum do casal. Para
se provar que não houve proveito comum do casal, deve provar-se que houve uma
separação total dos patrimónios, isto é, que o cônjuge não beneficiou de modo algum com
a dívida.

Preenchidos estes requisitos, a dívida será comum de ambos dos cônjuges, pelo que os credores
poderão atacar o património de ambos para satisfazer os seus créditos.

Caso prático n.º 8:

I.

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António Silva, farmacêutico, dono da "Farmácia Ideal", vendeu, em maio de 2017, a


Belmiro Tadeu, arquiteto, aquele seu estabelecimento, pelo preço de 2.500.000€.

Recusando-se Belmiro a pagar parte do preço acordado, diga quem e que bens pode António
responsabilizar, sabendo-se que está a correr o processo de divórcio entre Belmiro e Carla, casados
em regime de comunhão de adquiridos.

Neste caso, está em causa um trespasse de um estabelecimento comercial, que corresponde a


um ato objetivamente comercial. António Silva e Belmiro Tadeu são ambos comerciantes.

Sendo Belmiro comerciante, a sua dívida será comercial, e presume-se que foi contraída no
exercício do seu comércio (art. 15.º, C.Com.). Estando os cônjuges casados em regime de comunhão
de bens e presumindo-se que a dívida foi contraída em proveito comum do casal, a dívida será da
responsabilidade de ambos os cônjuges. Apenas poderia ser considerada uma dívida exclusiva de
Belmiro se se provar que não foi contraída no exercício do seu comércio, ilidindo a presunção do art.
15.º, C.Com., ou se se provar que não foi feita em proveito comum do casal.

II.

Armindo, casado em regime de comunhão geral de bens com Belmira, é dono de uma
empresa gráfica (conhecida por “Grafimpress”), a qual explora três pequenas oficinas de
impressão.

a) Diga se Armindo e Belmira são comerciantes.

b) Que bens de Armindo e de Belmira responderão pelo preço das 5 impressoras que
Armindo comprou para uma das oficinas?

Tratando-se de uma dívida exclusiva de Armindo, apenas o seu património e a meação do


património comum responderão pela dívida (art. 1696.º, CC). Tratando-se de uma dívida comum,
responderá, em primeiro lugar, o património comum de ambos os cônjuges e, solidariamente, o
património de cada um dos cônjuges (art. 1695.º, CC).

Preenchidos os requisitos do art. 1691.º, n.º 1, al. d), CC, a dívida será comum do casal. Para
que haja comunicabilidade, a dívida deve ter sido contraída pelo comerciante no âmbito do seu
comércio. Nos termos do art. 15.º, C.Com., quando se trate de dívida comercial, presume-se que foi
contraída no exercício do comércio. A dívida será comercial se resultar de um ato objetiva ou
subjetivamente comercial. Neste caso, a dívida de Armindo parece ser comercial, por estar em causa
um ato subjetiva e objetivamente comercial. Quanto ao segundo pressuposto, relativo ao regime de

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comunhão de bens do casal, também se encontra verificado. Por último, se não se provar que não
houve proveito comum do casal, isto é, que Belmira não beneficiou de forma nenhuma daquele ato de
comércio, será uma dívida própria de Armindo. Se Belmira não conseguir provar a total separação de
patrimónios do casal, a dívida será comum do casal.

Estabelecimentos comerciais e empresas


No Direito, as empresas revelam-se em duas aceções principais:
1) Em sentido subjetivo – empresas como sujeitos jurídicos que exercem uma atividade
económica;
2) Em sentido objetivo – empresas como instrumentos ou estruturas produtivo-económicos
objetivos de direitos e de negócios.

A empresa em termos objetivos é:


▪ Um processo produtivo;
▪ Composto por um conjunto de bens e elementos (prédios, máquinas, etc);
▪ Organizados, articulados, interrelacionais com vista a um fim;
▪ Em intercâmbio com o exterior (extroversão);
▪ Autossuficiente:
 em termos técnico-funcionais – processo produtivo de extroversão é autónoma do
qualquer um dos seus fatores (exclusão de profissionais liberais);
 em termos económico-reditícios – a empresa não tem de dar lucros, mas apenas criar
excedentes para cobrir os custos e reproduzir o processo.

Negócios sobre as empresas


São dois os negócios:
1- Trespasse – transmissão inter vivos com carater definitivo de um estabelecimento comercial
ou não. O contrato não tem de ser oneroso;
2- Locação de empresa / cessão de exploração – contrato pelo qual uma das partes se obriga a
proporcionar à outra o gozo temporário de um estabelecimento comercial ou não mediante
retribuição. Este contrato tem obrigatoriamente de ser oneroso.

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Trespasse
❖ É sempre uma transmissão definitiva da empresa;
❖ Negócio que pode ser gratuito ou oneroso;
❖ Para efeitos do direito de preferência do artigo 1112º/4 CC, o trespasse tem sempre de ser um
negócio oneroso, ou seja, o senhorio só tem direito de preferência no trespasse se ele for
oneroso;
❖ Segundo Coutinho de Abreu, o trespasse tem que (pelo menos) ser celebrado por escrito
(aplicação extensiva do artigo 112º/3 CC).
Cassiano dos Santos diz que há liberdade de forma, não é necessário celebrar um trespasse por
forma escrita.
No caso especial de transmissão de um imóvel, em princípio, na prática, tem de ser celebrado
por escritura pública. Há autores que dizem que não é necessário, basta um documento escrito.
É sempre necessário ter em conta a interpretação do contrato.

Âmbito de negociação da empresa


1. Âmbito mínimo – constituído pelos elementos necessários e suficientes para a transmissão de
um concreto estabelecimento (analise casuística).
O âmbito mínimo é o núcleo duro de bens sem os quais aquela empresa passa a ser outra
empresa.
Desrespeitando-se o âmbito mínimo de entrega o trespasse fica impossibilitado. Objeto do
negócio translativo serão então os bens de um estabelecimento, não o próprio estabelecimento.
Orlando de Carvalho enunciou a lei tendencial, segundo a qual uma empresa necessita tanto
menos de elementos corpóreos para a tornar reconhecível aos olhos do público quanto mais
tempo de funcionamento tiver.

2. Âmbito natural – constituído por elementos que se transmitem naturalmente com o


estabelecimento trespassado, isto é, os meios transmitios ex silentio, independentemente de
estipulação ad hoc.
Incluem-se neste âmbito:
 Logótipos e marcas – desde que não incluam nomes ou firmas;
 Bens detidos não alugados ou emprestados do estabelecimento;
 Imóveis (dependente da interpretação do contrato);
 Prestações laborais, salvo se houver oposição pelo trabalhador (285º e ss CT);

53
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 Posição do arrendatário e locatário financeiro.

3. Âmbito convencional – constituído por elementos empresariais que apenas se transmitem por
estipulação ou conceção expressa ou tácita entre trespassante e trespassário.
Incluem-se neste âmbito:
 Firma;
 Logótipos e marcas com nomes;
 Dívidas, créditos e relações contratuais:
- A transmissão só exonera o trespassante havendo declaração expressa dos credores,
respondendo ele solidariamente com o trespassário caso não haja essa declaração;
- As dívidas laborais e segurança social – responsabilidade do trespassário (285º CT).

Orlando carvalho distingue:


❖ Débitos puros – meros desvalores do património do devedor. Incluem-se no âmbito
convencional;
❖ Débitos impuros – contrapartidas de posição de crédito. Incluem-se no âmbito natural.

Modo de entrega da empresa


Uma coisa é a obrigação de dare (de entrega); mas aqui o importante são as obrigações de facere
e non facere. Há obrigações que recaem sobre o transmitente:
1. Apresentar clientes ao adquirente da empresa;
2. Transmitir os conhecimentos técnicos (know-how);
3. Obrigação de não concorrência
 Segundo Aureliano e Pais de Vasconcelos, não há uma obrigação de não concorrência
– analogia com contrato de agência e de trabalho. Ademais, argumento ser contrário à
liberdade de iniciativa económica;
 Segundo Coutinho de Abreu, há uma obrigação de não concorrência.

Obrigação de não concorrência


O trespassante fica obrigado a, num certo espaço e tempo, não concorrer com o trespassário e
sucessivos adquirentes. Qual o fundamento? A obrigação do alienante de entrega da coisa.

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Além do trespassante, outras pessoas podem ficar vinculadas à obrigação de não concorrência:
é o caso do cônjuge, dos seus filhos e de alguns sócios (se em causa estiver uma sociedade comercial).
Porque é que estas pessoas podem ficar vinculadas à obrigação de não concorrência?
❖ Os familiares têm de conhecer os valores da organização e de exploração da empresa cedida,
representando um perigo acrescido;
❖ Têm de continuar a retirar proveito económico da empresa cedida e continuar em economia
comum com o empresário.

Esta obrigação tem limites. Ela justifica-se apenas na medida em que seja necessária para uma
entrega efetiva do estabelecimento trespassado. Por isso:
➢ Limites objetivos – atividade concorrente;
➢ Limites espaciais – irradiação geográfica do estabelecimento;
➢ Limites temporais – enquanto o comerciante não consolidar os elementos do estabelecimento.

Se esta obrigação não for cumprida, pode haver lugar à:


➢ Resolução do contrato;
➢ Manutenção do contrato e indemnização;
➢ Sanção Pecuniária Compulsória;
➢ Possibilidade de destruição da obra (829º CC).

Trespasse de estabelecimento instalado em prédio arrendado


O trespassante arrendatário pode ceder a sua posição de arrendatário ao trespassário sem
necessidade de autorização do senhorio (1112º CC).
Não há trespasse quando:
1. Não se respeite o âmbito mínimo de transmissão do estabelecimento (nº2 al. a)) – interpretação
corretiva desta norma;
2. Haja alteração do ramo de comercio ou afetação a outro destino (nº2 al. b)).

O artigo 1112º termina dizendo que quando após a transmissão seja dado outro destino ao prédio,
o senhorio pode resolver o contrato.

Direito de preferência
Segundo o artigo 1112º/4, o senhorio tem direito de preferência nos trespasses onerosos (e
apenas nestes).

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O exercício do direito de preferência é feito de acordo com as regras gerais dos arts. 416.º e
1410.º, CC. A violação desta comunicação para preferência permite apenas propor ação para
preferência.
Assim, o trespassante tem que proceder a duas notificações ao senhorio:
1. Uma notificação com a intenção de venda, comunicando o negócio que pretende realizar com
o trespassário, de forma a que o senhorio, querendo, possa exercer o direito de preferência no
trespasse no prazo de 8 dias (art. 416.º, CC). A violação desta comunicação apenas dá direito
a exercer ação de preferência (art. 1410.º, CC).
2. Uma notificação da cedência da posição de arrendatário, no prazo de 15 dias (art. 1038.º, al.
g), CC). Parte da doutrina adota uma interpretação extensiva do art. 1109.º, CC, defendendo
um prazo de 30 dias para comunicação da cedência da posição de arrendatário ao senhorio,
através da analogia com o regime da locação de empresa. Contudo, tem sido de defender a
aplicação do art. 1038.º, al. g), CC, relativo ao prazo de 15 dias.
A falta desta comunicação pode ser motivo de despejo, isto é, de resolução do contrato de
arrendamento. Segundo o artigo 1049º, a não comunicação não dá direito a resolução do
contrato se o senhorio tiver reconhecido o beneficiário da cedência como tal ou se a
comunicação lhe tiver sido feita por este no caso da alínea g).

Locação da empresa
A locação consiste na transmissão temporária da empresa. Esta transmissão tem sempre de ser
onerosa.

Âmbitos de entrega
Mantém-se o referido quanto ao trespasse com algumas especificidades, por exemplo:
➢ As marcas e logótipos transmitem-se sempre;
➢ A propriedade dos meios empresariais mantém-se no locador – existe apenas um direito de
disposição.

Sob o locador da empresa recai a obrigação de não concorrência. Há uma obrigação de entrega da
empresa com todas as suas características, com todos os seus valores sui generis de organização e de
exploração.
Esta obrigação tem os limites referidos anteriormente (temporais, geográficos e objetivos).

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O locatário da empresa também está impedido de concorrer durante todo o período da locação de
empresa, pois, se o pudesse fazer, podia facilmente desviar a clientela para uma nova empresa, afetar
os valores de organização e exploração para outra empresa, etc. Portanto a violação do dever de
manutenção e restituição da coisa está a cargo do locatário (artigo 1043º).
Esta obrigação tem os limites temporais, geográficos e objetivos explicados anteriormente.

A obrigação de não concorrência mantém-se depois de cessar a locação da empresa?


Parte da doutrina diz que a obrigação de não concorrência se mantém.
Coutinho de Abreu defende que não haverá obrigação de não concorrência, por analogia com o
regime laboral e do contrato de agência.

Dever de exploração da empresa


O locatário tem direito de explorar a empresa pelo período que foi convencionado; mas mais
do que isso, ele tem um poder dever de explorar a empresa, na medida em que tem de assegurar a
devolução da empresa.

Locação de empresa situada em prédio arrendado


A locação do estabelecimento rege-se com as necessárias adaptações pelas regras relativas ao
arrendamento para fins não habitacionais.
Não havendo uma cedência de posição de arrendatário, o locador da empresa continua a ser
arrendatário do senhorio, sendo que ele responde por eventuais incumprimentos contratuais por parte
do locatário.

Caso prático n.º 9:

I.

Ambrósio é proprietário da Roque & Role, uma loja de venda de discos situada no centro do
Porto que funciona num prédio arrendado a Casimiro. O seu negócio tem prosperado graças aos
contactos privilegiados que mantém com distribuidores discográficos, e que lhe permitem ter em
primeira mão as novidades musicais. Ambrósio acaba por aceitar uma oferta de Barata,
trespassando-lhe o estabelecimento por €250.000. No contrato apenas se diz que o estabelecimento
é transmitido "com todo o seu património".

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1. Dias após a celebração do contrato, Barata telefona a Ambrósio com vista a combinar um
dia para procederem às formalidades relativas à transferência da firma ("Ambrósio Roque, discos
e cassetes"), e para que este o apresente pessoalmente a alguns distribuidores de discos. Ambrósio
recusa-se, dizendo que não queria nem era obrigado a transmitir a firma e que só apresentava os
seus conhecidos a quem quisesse. Quid iuris?

Neste caso, está em causa um trespasse, que corresponde a um negócio com vista à transmissão
definitiva de uma empresa. Subjacente a um contrato de trespasse podem existir diversas figuras,
designadamente um contrato de compra e venda. Não está em causa uma locação temporária da
empresa, mas antes um trespasse, na medida em que a transmissão tem caráter definitivo.

Por regra, a firma integra o âmbito convencional de negociação de empresa, apenas se


transmitindo por estipulação expressa ou tácita entre o trespassante e o trespassário (art. 44.º, RRNPC).
Como tal, se as partes não previrem especificamente a transmissão da firma aquando da celebração do
negócio de trespasse, esta não será transmitida. Só haverá transmissão da firma se houver um acordo
expresso entre transmitente e adquirente. Por outro lado, o adquirente da firma não se pode bastar a
usar a firma, tem de aditar à sua a firma que adquiriu. Neste caso, Ambrósio não era obrigado a
transmitir a firma se tal não estivesse estipulado no negócio de trespasse.

A questão da apresentação pelo trespassante dos distribuidores dos discos ao novo dono do
estabelecimento comercial prende-se, não com o âmbito de negociação da empresa, mas com o modo
de entrega da mesma. O trespassante deve entregar não apenas os elementos que fazem parte da
empresa, mas todas as qualidades e valores de organização e exploração, que são valores sui generis.
Portanto, o trespassante tem obrigações não apenas de dare, mas também de facere ou non facere,
relacionadas com o assegurar na pessoa do adquirente as qualidades específicas da própria empresa.
O trespassante tem a obrigação de avisar quem será o novo dono da empresa, tanto a montante, seja a
distribuidores e fornecedores, como a jusante, seja a clientes. A apresentação dos distribuidores dos
discos ao novo proprietário é, portanto, uma obrigação de facere que recai sobre o trespassante. Se não
o fizer, aplicam-se as regras gerais das obrigações: o trespassário pode recorrer à resolução do contrato
ou pode preferir manter o contrato e pedir uma indemnização pelos prejuízos causados.

2. Dois meses após Barata ter tomado posse do estabelecimento, recebe uma carta de
Casimiro em que este lhe comunica a intenção de o despejar. Invoca, para o efeito, os seguintes
fundamentos:

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a. Apesar de ter já por duas vezes aceite o pagamento da renda por Barata, Casimiro não foi
devidamente notificado do trespasse do estabelecimento, o que o impediu de exercer (como
alegadamente pretendia) a preferência legal que a lei lhe atribui;

Nos termos do art. 1112.º, n.º 4, CC, nos casos de trespasse por venda ou dação em
cumprimento, o senhorio terá direito de preferência no trespasse. Sendo notificado das condições
essenciais do negócio de trespasse, o senhorio terá 8 dias para exercer o seu direito de preferência,
sendo que, se nada disser, o seu silêncio equivale a dizer que não pretende preferir (neste caso, o
silêncio tem valor declarativo), conforme resulta do art. 416.º, CC.

Neste caso, o senhorio pretende terminar o contrato de arrendamento, alegando que não foi
notificado do trespasse e que não foi permitido exercer a preferência no trespasse. O senhorio confunde
a comunicação do trespasse com a comunicação para preferência. Portanto, o senhorio pretende
resolver o contrato de arrendamento, despejando o inquilino, com base na falta de notificação para a
preferência. O incumprimento da obrigação de comunicação para a preferência no trespasse não é
fundamento de resolução do contrato de arrendamento. Em caso de omissão da comunicação para a
preferência, o senhorio pode apenas intentar ação para a preferência no prazo de 6 meses (art. 1410.º,
CC).

Para além do mais, não existe uma obrigação de comunicação do trespasse ao senhorio, mas
antes da cedência da posição de arrendatário, para a qual não é necessário o seu consentimento (art.
1112.º, n.º 1, CC). Assim, a única maneira que o senhorio tem de se opor a esta cedência é através do
exercício do direito de preferência ou da ação para a preferência. Contudo, em caso de violação da
obrigação de comunicação da cedência da posição de arrendatário no prazo de 15 dias, o senhorio
poderá resolver o contrato de arrendamento (art. 1038.º, al. g), CC). Neste caso, aplica-se o art. 1049.º,
CC, que estabelece que não haverá direito à resolução do contrato se o senhorio tiver conhecimento
do novo inquilino, caso que se verificou através do recebimento das rendas por parte de Barata.

b. O trespasse não acarretou, como deveria por força da lei, a transferência de todos os bens
que compunham o estabelecimento, tendo Ambrósio ficado para si com um gira-discos, as colunas
de som e um disco autografado de Elvis Presley (que desde sempre decorava a loja e que se tornara
mesmo na sua imagem de marca, aparecendo como imagem de fundo na publicidade incluída em
jornais da especialidade);

O art. 1112.º, n.º 2, al. a), CC estabelece que não haverá trespasse quando a transmissão não
seja acompanhada da transferência, em conjunto, das instalações, utensílios, mercadorias ou outros

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elementos que integram o estabelecimento. Contudo, não se pode fazer uma interpretação literal deste
art., antes devendo ler-se como exigindo a transmissão de todos os elementos do âmbito mínimo da
empresa, sob pena de não haver trespasse. Se não houver trespasse, não se aplica a dispensa do
consentimento do senhorio para a cedência da posição de arrendatário no art. 1112.º, n.º 1, al. a), CC,
aplicando-se o regime geral.

Quais são os elementos do âmbito mínimo? Esta questão não pode ser respondida em abstrato,
pois cada empresa funciona à sua maneira e, em determinados casos, o âmbito mínimo pode incluir a
localização, noutros casos a marca, noutros casos o know-how. Em termos gerais, o âmbito mínimo
corresponde ao conjunto de elementos sem os quais aquela empresa se torna irreconhecível aos olhos
do público. Assim, nenhum dos elementos referidos no argumento apresentado parece estar dentro do
âmbito mínimo, pelo que, em princípio, haverá trespasse.

c. Sendo Barata um grande apreciador e especialista de heavy-metal (género que Ambrósio


praticamente não vendia), a clientela do estabelecimento alterou-se substancialmente desde o
trespasse, sendo constantes as queixas dos outros inquilinos do prédio, a quem desagrada o estilo
dos novos clientes.

Serão estes argumentos procedentes?

Nos termos do art. 1112.º, n.º 2, al. b), CC, não haverá trespasse quando a transmissão vise o
exercício, no prédio, de outro ramo de comércio ou indústria ou, de um modo geral, a sua afetação a
outro destino. Contudo, na aferição deste elemento, interessa apenas a vontade das partes no momento
do trespasse. A mudança posterior deve ser entendida como um indício de que não houve trespasse;
contudo, não há uma presunção de que não há trespasse, mas apenas um sinal de que porventura as
partes não quiseram trespassar a empresa. Esta mudança é apenas um sinal, pelo que, caso pretenda
invocar que não houve trespasse, o sujeito deve provar a vontade das partes no sentido da afetação do
prédio a outro destino.

3. Cerca de seis meses depois do trespasse, Ambrósio resolve retomar a atividade profissional
e abre uma nova loja de discos em Valongo. Ao saber disso, Barata procura saber se pode ou não
impedir Ambrósio de realizar esse propósito, e quais os meios legais ao seu dispor para o efeito.
Qual é a sua opinião?

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Neste caso, está em causa o modo de entrega da empresa, que corresponde à forma como a
entrega se deve fazer, isto é, ao conjunto de atos materiais que devem acompanhar a transmissão da
empresa, bem como de atos que o trespassante ou locador se deve inibir de praticar quando transmite
a empresa de forma a que essa transmissão se faça com todas as características, nomeadamente no que
diz respeito aos valores de organização da empresa, permitindo assim ao adquirente da empresa
continuar a ocupar a mesma posição de mercado que o trespassante ocupava. A par destas obrigações
de facere, existe uma outra obrigação, muito concreta e desenvolvida na nossa jurisprudência, apesar
de não ter consagração positiva na nossa lei, que é uma obrigação de non facere – a obrigação de não
concorrência.

A obrigação de não concorrência é, portanto, uma obrigação implícita, nos termos da qual o
trespassante de estabelecimento fica obrigado, num certo espaço e durante certo tempo, a não concorrer
com o trespassário e sucessivos adquirentes. Nomeadamente, fica vinculado a não iniciar atividade
similar à exercida através do estabelecimento trespassado. O fundamento desta obrigação reside na
obrigação do alienante entregar a coisa alienada e assegurar o seu gozo pacífico.

Além do trespassante, outras pessoas podem ficar vinculadas pela obrigação implícita de não
concorrência. É o caso do cônjuge do trespassante, dos seus filhos e, se o alienante for uma sociedade
comercial, também de alguns sócios (designadamente aqueles que possuem conhecimentos relativos à
empresa trespassada indispensáveis a uma concorrência qualificada).

A resposta seria a mesma no caso de a proprietária do novo estabelecimento ser Dora, com
quem este é casado em regime de separação de bens, ou a sua filha Ester?

Há dois critérios cumulativos para impor essa obrigação de não concorrência a familiares: em
primeiro lugar, os familiares do trespassante têm de conhecer, de facto, os valores de organização e de
exploração da empresa cedida, representando um perigo acrescido; em segundo lugar, têm de continuar
a retirar proveito económico da empresa cedida e continuar em economia comum com o empresário.

Importa referir que se estivermos a falar de um funcionário ou trabalhador da empresa, com o


qual não havia nenhuma cláusula de não concorrência, não se lhe impõe qualquer obrigação de não
abrir uma empresa concorrente com a empresa onde ele trabalhou.

E se a nova loja de Ambrósio se dedicasse exclusivamente à venda de discos de Jazz e música


clássica?

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A obrigação implícita de concorrência tem limites, apenas se justificando na medida em que


seja necessária para uma entrega efetiva do estabelecimento trespassado. Esta obrigação tem limites
objetivos, espaciais e temporais – apenas se aplica em lugares delimitados pelo raio de ação do
estabelecimento comercial trespassado, pelo tempo suficiente para se consolidarem os valores de
organização e exploração da empresa, e apenas em atividades concorrentes.

Se os obrigados a não concorrer violarem a sua obrigação, o trespassário pode optar entre várias
alternativas: pode exigir uma indemnização por perdas ou danos, resolver o contrato de trespasse,
intentar ação de cumprimento e requerer sanção pecuniária compulsória ou exigir que o novo
estabelecimento do obrigado seja encerrado. Se o prejuízo causado pelo encerramento do
estabelecimento comercial for superior ao benefício esperado por esse mesmo encerramento, cessa a
obrigação de encerramento, restando sempre a obrigação de indemnização pelo prejuízo patrimonial
causado pela abertura do estabelecimento comercial.

4. Entretanto, a "Cooperativa Musical de Silves" pretende responsabilizar Barata pelo


pagamento do preço em falta referente à compra de vinis, efetuada em julho de 2016, por parte de
Ambrósio, uma vez que a mesma o foi para a exploração da empresa em causa. Poderá fazê-lo?

Neste caso, está em causa a questão da transmissão das dívidas no caso de transmissão da
empresa.

Na posição de Orlando de Carvalho, é necessário distinguir entre débitos puros, que


correspondem a uma espécie de puro desvalor do património do devedor, e débitos impuros, que são
uma contrapartida da posição de crédito. Segundo este autor, os débitos puros não se transmitem,
estando inseridos no âmbito convencional, enquanto os débitos impuros pertencem ao âmbito natural.

Na perspetiva de Coutinho de Abreu, deve aplicar-se à transmissão de dívidas o regime geral


da cessão de créditos, nos termos do qual o devedor só poderá transmitir a dívida se houver vontade
expressa nesse sentido, bem como o consentimento do credor (art. 595.º, n.º 2, CC).

II.

António é proprietário do restaurante O cantinho do António, situado num prédio arrendado


a Clarisse. Graças à sua magnífica localização, mesmo em frente à praia de Leça, e à excelência
dos seus grelhados de peixe o restaurante tem grande sucesso, sendo também bastante caro.

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Decidido a tirar umas prolongadas férias, António celebrou com Bento, em Outubro, um
contrato que designaram como "cessão de exploração", nos termos do qual o segundo explorará o
restaurante por um período de dois anos, pagando ao primeiro uma renda mensal de € 7500.

1. Em janeiro, Clarisse comunicou a António e a Bento a sua intenção de resolver o contrato


de arrendamento. Os argumentos aduzidos são, em síntese, os seguintes:

a. para que o prédio fosse ocupado por alguém que não o arrendatário seria necessário o
consentimento da senhoria, que não foi pedido nem prestado;

Neste caso, está em causa uma locação temporária de empresa, que corresponde à cedência de
um estabelecimento comercial, temporariamente, mediante retribuição. Nos termos do art. 1109.º, CC,
a transferência temporária onerosa de estabelecimento instalado em local arrendado não carece de
autorização do senhorio, mas deve ser-lhe comunicada no prazo de um mês. O que diz o art. 1109.º,
n.º 2, CC é que a locação da empresa não carece do consentimento do senhorio. Isto é um erro enorme
do legislador, porque nunca a transferência temporária da empresa precisaria do consentimento do
senhorio. O consentimento do senhorio apenas seria necessário para ceder o gozo do prédio ao
locatário da empresa.

b. ainda que assim não se entenda, seria sempre obrigação do arrendatário comunicar a
cedência do local ao senhorio;

Nos termos do art. 1109.º, CC, a transferência temporária e onerosa de estabelecimento


instalado em local arrendado não carece de autorização do senhorio, mas deve ser-lhe comunicada no
prazo de um mês. A comunicação da cedência do local ao senhorio é, portanto, uma obrigação do
arrendatário. A omissão desta comunicação pode ser causa de despejo, sendo a cedência da posição de
arrendatário ineficaz (art. 1083.º, n.º 2, al. e), CC).

c. sendo sabido por todos que o sucesso do restaurante se devia em grande parte à arte da
cozinheira Deolinda (esposa de António, e que deixou de trabalhar no restaurante durante o período
da locação), só por falácia se poderá dizer que o estabelecimento que agora funcionava no locado
era o mesmo que António explorava; prova clara disso era o facto de o Espadarte à Deolinda, o
prato mais célebre da casa, ter sido suprimido da ementa.

Serão estes argumentos procedentes? Justifique.

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Faculdade de Direito da Universidade do Porto

Nos termos do art. 1109.º, CC, a transferência temporária e onerosa do gozo de um prédio ou
de parte dele, em conjunto com a exploração de um estabelecimento comercial ou industrial nele
instalado, rege-se pelas regras do trespasse, com as necessárias adaptações. A não ser em casos
contados, excecionais, o cozinheiro não é essencial ao funcionamento da empresa. Caso contrário, com
a morte desta a empresa desapareceria. Assim, a não transferência do know-how da cozinheira na
locação da empresa não põe em causa a subsistência do restaurante enquanto tal. O senhorio pretendia
com este argumento alegar que não havia locação e que, por isso, seria aplicável o art. 1112.º, n.º 2,
al. a), CC (por remissão do art. 1109.º, n.º 1, CC). Baseia-se na não transmissão dos elementos do
âmbito mínimo, havendo uma cessão da posição de arrendatário e violação das suas obrigações. No
entanto, o senhorio não tem razão, uma vez que, apesar de os elementos não transmitidos serem
importantes, não são essenciais ao ponto de descaracterizarem a empresa no seu âmbito mínimo.

2. Um ano após o contrato, António resolveu retomar a sua atividade. Arrenda para o efeito
um espaço na praça da alimentação num centro comercial no Porto onde, com a inestimável
colaboração da sua esposa Deolinda, serve peixe frito. Sabendo desse facto, Bento ameaça recorrer
aos tribunais se António não encerrar imediatamente o negócio. Quid Juris? E se António
adquirisse um restaurante de peixe na Afurada, cujos gerentes eram os seus filhos Manuel e
Joaquim?

Neste caso, está em causa a obrigação de não concorrência. Nos termos do art. 1037.º, CC, o
locador não pode praticar atos que impeçam ou diminuam o gozo da coisa pelo locatário, com exceção
dos que a lei ou os usos facultem ou o próprio locatário consinta em cada caso, mas não tem obrigação
de assegurar esse gozo contra atos de terceiro. A obrigação de não concorrência tem limites,
justificando-se apenas na medida em que seja necessária para uma entrega efetiva do estabelecimento
trespassado.

O locatário da empresa está também impedido de concorrer durante todo o período da locação
da empresa, pois, se o pudesse fazer, podia facilmente desviar a clientela para a nova empresa, afetar
os valores de organização e exploração para outra empresa, etc., violando o dever de manutenção e
restituição da coisa a cargo do locatário (art. 1043.º, CC). Assim, estará impedido de concorrer durante
todo o período de exploração da empresa (limite temporal), apenas quanto a empresas com o mesmo
objeto da empresa (limite objetivo) e apenas no âmbito de irradiação da empresa locada (limite
geográfico).

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O locatário da empresa tem direito de explorar a empresa pelo período que foi convencionado,
mas ele tem mais do que isso, tem um poder-dever de explorar a empresa, porque ele tem que
assegurar, nos termos dos arts. 1038.º e 1043.º, CC, a devolução da empresa com todas as suas
qualidades e valores. Se ele deixar de explorar a empresa, isso vai afetar a empresa que tomou de
locação. O locatário tem este poder-dever que implica que ele explore a empresa (isto é, que não a
possa encerrar) e mantenha a empresa com as suas características e qualidades.

Cessando a locação de empresa, certos autores fazem um raciocínio idêntico ao do


trespassando, considerando que o locatário também tem uma obrigação de não concorrência. Contudo,
Coutinho de Abreu faz uma aplicação analógica do regime do trabalhador – o trabalhador, quando
cessa o contrato de trabalho, pode, a menos que seja convencionado em sentido contrário, no dia
seguinte, passar a exercer numa empresa concorrente (não tem uma obrigação de não concorrência, a
menos que venha prevista no contrato). Deste modo, deve aplicar-se analogicamente, à cessão da
locação de empresa o regime previsto para o trabalhador; isto é, esta obrigação de não concorrência
deve ser paga ao locatário (art. 136.º, CT).

III.

A sociedade C explora três estabelecimentos de venda ao público, todos eles denominados


“Conforto & Décor”. Em Fevereiro de 2010 a sociedade procedeu à venda de um desses
estabelecimentos a Givanildo, pelo preço global de 75.000€. Na passada semana, Hugo, proprietário
do imóvel onde o mesmo se encontra instalado, denunciou o contrato de arrendamento invocando
os seguintes fundamentos:

1. a suposta venda da empresa não tinha sido acompanhada da transferência do logótipo;

No caso em apreço, está em causa um trespasse. Por regra, o logótipo insere-se no âmbito
natural de entrega, sendo transmitido sem necessidade de consentimento das partes nesse sentido.
Neste caso a transmissão do logótipo requeria convenção expressa nesse sentido (art. 31.º, n.º 5, CPI).
Em abstrato, a não transmissão do logótipo não coloca em causa a existência de trespasse para efeitos
da aplicação do art. 1112.º, n.º 2, al. a), CC, por não parecer fazer parte do âmbito mínimo da empresa.
Assim, este não seria um fundamento de resolução do contrato.

2. em Novembro passado, Givanildo anunciara publicamente uma “liquidação de stock para


mudança de ramo”, tendo a loja reaberto pouco depois como uma galeria de arte.

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Nos termos do art. 1112.º, n.º 5, CC, o senhorio tem direito a resolver o contrato quando, após
a transmissão, seja dado outro destino ao prédio.

3. Nunca Hugo tinha sido formalmente informado da venda da empresa ou da identidade do


novo inquilino.

Pronuncie-se sobre a procedência destes argumentos.

A falta de notificação a Hugo pode levar à resolução do contrato, mas apenas se este não tiver
reconhecido Givanildo como seu inquilino no período que decorreu desde o trespasse, e se demonstrar
que essa situação tem gravidade suficiente (arts. 1049.º, 1083.º, n.º 2 e 1112.º, n.º 3, CC).

Os títulos de crédito

O título de crédito é um documento que incorpora um direito literal e autónomo que legitima
o seu titular a exercê-lo e serve de suporte à sua circulação e mobilização. Desempenha como função
titular e incorporar direitos de modo a permitir e facilitar a sua circulação e mobilização, tutelando
terceiros de boa-fé. Existe um grande número de títulos de crédito, sendo os mais comuns as letras de
câmbio, as livranças e os cheques.

A letra de câmbio é um documento em papel que contém uma ordem de pagamento de uma
quantia determinada dada por um sujeito (o sacador) a outro sujeito (o sacado) e à ordem de um terceiro
(o tomador). O sacador (aquele que dá a ordem) garante que o sacado (a pessoa a quem deu a ordem)
vai pagar perante o tomador. O sacador promete, ainda, pagar uma quantia ao beneficiário ou à sua
ordem. Existe uma relação tripartida.

Na livrança, por sua vez, há uma estrutura bipartida, uma vez que não há uma ordem de
pagamento, mas antes uma promessa de pagamento que é dada pelo subscritor a favor do tomador.
Neste caso, é o próprio subscritor que promete pagar ao tomador ou à sua ordem no prazo estipulado.
Fora a sua particularidade, o regime é basicamente o mesmo do das letras, por aplicação do art. 77.º,
LULL.

O cheque é um título de crédito emitido por uma pessoa para benefício da entidade nele
indicada ou ao portador, contendo uma ordem pura e simples de pagamento da quantia nele inscrita
dirigida a um estabelecimento bancário e no qual o seu emitente possua fundos disponíveis. Existe,

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também, uma relação tripartida, mas o sacado (a entidade a quem é dada a ordem de pagamento) é
sempre um banco. Nessa medida, deixa de haver necessidade de haver espaço para preencher a
informação relativa à identificação do sacado. O cheque tem um regime específico, previsto na LUC
e no DL n.º 454/91, que prevê o crime de emissão de cheque sem provisão (art. 11.º). Sendo o cheque
uma parte fundamental do comércio, é importante que os beneficiários saibam que quem o passa
efetivamente terá a provisão suficiente para pagar os valores que está a ordenar ao banco que pague.

Definições prévias

Desde logo, importa distinguir o direito cartular do negócio subjacente. O direito cartular é o
direito incorporado no título e do qual são devedores todos os obrigados cambiários, que vão dando,
através da sua assinatura, a garantia de pagamento futuro. É um direito pecuniário e o seu montante é
o que está inscrito no título. O seu prazo de prescrição é diferente do prazo de prescrição do negócio
subjacente.

Por outro lado, o negócio subjacente é o negócio que explica o direito cartular, isto é, é o
direito que lhe deu origem. Não tem de ser necessariamente pecuniário, desde que crie, de alguma
forma, a necessidade de efetuar determinado pagamento. Na verdade, nem tem de haver pagamento
efetivo, basta que seja, por exemplo, uma garantia. No âmbito da compra e venda de empresas e da
transmissão de sociedades comerciais, é comum a passagem de letras em branco como garantia. Sendo
estas letras em branco, apenas serão preenchidas caso, por algum motivo, o contrato for incumprido
pela parte que passa a letra.

Exemplos de negócios subjacentes:

• Subjacente ao saque pode haver um crédito do tomador sobre o sacador.


• Subjacente ao aceite pode haver um crédito do sacador sobre o sacado-aceitante (resultante, por
exemplo, de um contrato de depósito).
• Subjacente a cada um dos endossos pode haver um crédito do endossatário sobre o endossante.
• Subjacente ao aval pode existir uma liberalidade ou um crédito sobre o avalista se este estiver
extracartularmente obrigado a avalizar.

Quanto aos sujeitos envolvidos, é necessário distinguir:

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• Sacador – aquele que dá a ordem de pagamento e que saca a letra. Compromete-se a pagar caso o
sacado não pague.
• Sacado – aquele que recebe a ordem de pagamento. Quando aceita a ordem, passa a ser aceitante.
O subscritor de uma livrança é responsável da mesma forma que o aceitante de uma letra.
• Tomador/beneficiário – aquele que vai ser pago em determinada data pelo sacador e que pode,
nalguns casos, ser o próprio sacador.
• Endossatário – o novo tomador. Sujeito a quem a letra foi endossada.
• Endossante – o tomador que transmite a letra. Fica obrigado a garantir o pagamento se o aceitante
não pagar.

Quanto às relações existentes, distingue-se entre:

• Relações imediatas: quando entre dois intervenientes num título existe uma relação subjacente,
diz-se que a sua relação é imediata. Corresponde à relação existente entre o portador da letra e a
pessoa a quem está a ser exigido o pagamento da letra. Apenas estas podem ser invocadas nas
letras como forma de se opor à obrigação de pagamento da quantia prevista na letra.
• Relações mediatas: quando os intervenientes não estão ligados por uma relação subjacente
específica, diz-se que a relação é mediata. Corresponde à relação existente entre os obrigados da
letra, mas que não envolve diretamente, por um lado, o portador da letra, e, por outro lado, a pessoa
a quem o portador está a exigir o cumprimento.

Quanto aos negócios:

• Saque: negócio que cria o título. Corresponde à ordem de pagamento dada pelo sacador ao sacado
para que pague uma determinada quantia em determinada data à ordem do sacador ou do tomador.
Com o saque, o sacador garante que o sacado aceita e que pagará (contém uma espécie de garantia
– art. 9.º, LULL).
• Aceite: negócio jurídico cambiário unilateral pelo qual o sacado aceita a ordem de pagamento que
lhe foi dirigida pelo sacador e promete pagar a letra no vencimento ao tomador ou à sua ordem
(art. 28.º, LULL). O sacado, antes de aceitar, não tem qualquer responsabilidade na letra (não está
obrigado a pagar ao tomador – apenas passa a ser obrigado cambiário a partir do aceite). O sacado
não é obrigado a aceitar a letra. O aceite pode ser parcial. No caso do cheque, não há aceite, não

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se tornando, consequentemente, a instituição bancária num obrigado cambiário a favor do


beneficiário.
• Endosso: negócio cambiário que circula o título (corresponde ao novo saque). Consiste numa nova
ordem dada ao sacado ou aceitante para pagar a outra pessoa ou à sua ordem (arts. 11.º e ss.,
LULL). É, ainda, uma promessa de que o endossante pagará a letra se o sacado não aceitar ou não
pagar ou se algum dos demais obrigados não o fizer, salvo apondo uma cláusula de exoneração de
responsabilidade (art. 15.º, LULL). O tomador passa a ordem de pagamento para outra pessoa,
obrigando-se a pagar ao endossatário nos exatos termos em que o sacado se havia obrigado a pagar
perante ele. Corresponde a uma declaração escrita e assinada no verso do título ou na simples
assinatura nesse local, podendo identificar o endossatário ou não.
• Aval: promessa de pagar a letra por um terceiro, tendo por função a garantia desse pagamento (art.
30.º, LULL). Corresponde a uma garantia prestada por um terceiro relativamente ao negócio
cambiário. Se o sacado não pagar o valor da obrigação cambiária, o avalista responsabiliza-se pelo
seu pagamento. O aval pode ser parcial. Existe uma responsabilidade solidária e cumulativa
juntamente com um dos obrigados (art. 32.º, LULL). Aqui reside a grande diferença face à fiança
– na fiança, a responsabilidade dos obrigados é subsidiária (em primeiro lugar, responde o original
devedor e apenas se este não tiver património suficiente para pagar a obrigação se recorre ao
fiador). Assim, se o credor cambiário quiser, pode ir diretamente exigir o pagamento ao avalista,
não tendo primeiro que esgotar o património da pessoa que beneficia do aval. O avalista que seja
chamado a pagar a letra fica sub-rogado nos direitos emergentes da letra contra a pessoa a favor
de quem foi dado o aval e contra os obrigados para com esta, em virtude da letra (art. 32.º, n.º 3,
LULL).
• Protesto: ato jurídico declarativo não negocial pelo qual se certifica a falta de aceite ou falta de
pagamento (art. 44.º, LULL). Tem uma função probatória e de segurança, eliminando os riscos de
prova quanto à falta de aceite ou de pagamento. O protesto é uma condição de efetivação da
obrigação de garantia, isto é, é condição necessária para que o portador do título possa ir atrás dos
outros obrigados cambiários que não o aceitante ou o sacado. O protesto comprova a existência da
recusa e deve ser feito no prazo de 2 dias úteis seguintes à recusa. O portador que protesta a letra
deve, no prazo de 4 dias, avisar da falta de aceite ou de pagamento aquele que lhe endossou a letra
e o sacador. Cada um dos endossantes deve avisar o que o antecede na cadeia cambiária no prazo
de 2 dias e assim sucessivamente até se chegar ao sacador. Os avalistas devem ser avisados nos
prazos dos seus avalizados (art. 45.º, LULL).

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Características dos títulos de crédito

a. Literalidade: os títulos de crédito são sempre documentos escritos, pelo que das palavras e
algarismos escritos no documento resulta o direito neles incorporado. O conteúdo e extensão do
direito incorporado no título são aqueles que dele constarem escritos. Não podem ser contestados
com o auxílio de elementos estranhos ao título (ex: condições não previstas no título). Sempre que
é emitida uma letra em branco, tem que ter havido, prévia ou simultaneamente à emissão, um
acordo quanto ao critério do preenchimento. Porém, o preenchimento abusivo não é oponível ao
portador (art. 10.º, LULL). Ao demandado prejudicado restará demandar aquele com quem
convencionou o preenchimento.
b. Autonomia do direito cartular: o direito emergente e incorporado no título é autónomo em
relação ao direito não cambiário subjacente que lhe deu origem. Esta autonomia deve-se ao facto
de estes direitos terem devedores diferentes e prazos de prescrição distintos.
c. Autonomia da posição do portador do título: existe uma autonomia da titularidade do título em
relação a outros portadores anteriores que tenham sido desapossados (arts. 16.º, 17.º e 77.º, LULL
e arts. 21.º e 22.º, LUC). O detentor de uma letra é considerado portador legítimo se justificar o
seu direito por uma série ininterrupta de endossos, mesmo se o último for em branco. Assim, se
uma pessoa foi, por qualquer maneira, desapossada de uma letra, o portador dela, desde que
justifique o seu direito por uma série ininterrupta de endossos, não é obrigado a restituí-la, salvo
se a adquiriu de má fé ou se, adquirindo-a, cometeu uma falta grave.
d. Incorporação: o direito cambiário só existe na medida em que exista um título. Estabelece a
necessidade da presença do título para o exercício do direito cartular e para a sua própria circulação.
O portador da letra ou da livrança, para exercer o direito de crédito incorporado, deve apresentar a
letra ou a livrança ao obrigado. Também na transmissão e circulação é necessária a presença do
título.
e. Legitimação: a posse do título de acordo com a lei de circulação legitima o portador a exercer o
direito cartular (arts. 35.º, LUC e 40.º, n.º 3, LULL). O portador não precisa, assim, de provar a
titularidade e ela não lhe pode ser contestada. Do lado passivo, o devedor fica habilitado a cumprir
perante quem se apresentar portador de acordo com a lei de circulação. O obrigado, ao apresentar-
se-lhe alguém portador de acordo com a lei de circulação, não precisa de investigar a verdadeira
titularidade do credor e, ao cumprir perante esse portador, fica desonerado sem que lhe possa ser
oposta a eventual ilegitimidade da pessoa a quem pagou.
f. Circulabilidade: os títulos de crédito destinam-se a circular. Estes circulam de acordo com o
regime que a lei lhes atribui e que se designa usualmente por lei de circulação.

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Meios de defesa

Dada a virtude do direito cartular face aos direitos subjacentes, nas letras, livranças e cheques
não são, em princípio, invocáveis contra o portador que cobra o título as exceções fundadas nas
relações extracartulares, designadamente na relação subjacente (arts. 17.º, LULL e 22.º, LUC).

Contudo, existe uma exceção – segundo o art. 17.º, LULL, as pessoas acionadas em virtude de
uma letra não podem opor ao portador as exceções fundadas nas relações pessoais delas com o sacador
ou com os portadores anteriores, a menos que o portador, ao adquirir a letra, tenha procedido
conscientemente em detrimento do devedor (com dolo). É possível invocar exceções como meios de
defesa relativamente ao portador na medida em que se esteja perante relações imediatas, entre o
portador e o obrigado ao cumprimento. Ao portador que se apresenta a cobrar a letra podem ser opostas
exceções fundadas nas relações extracartulares vigentes com o obrigado e o próprio portador.

Se uma letra incompleta no momento de ser passada tiver sido completada contrariamente aos
acordos realizados, não pode a inobservância desses acordos ser motivo de oposição ao portador, salvo
se este tiver adquirido a letra de má fé ou, adquirindo-a, tenha cometido uma falta grave (art. 10.º,
LULL).

Caso prático n.º 10:

I.

A sociedade comercial “Zénon Transportes, Lda.” deve 1500€ a Xavier, em pagamento de


um curso de informática que este deu aos seus funcionários. Para satisfação desta dívida, Vasco
(gerente da sociedade) sacou, à ordem de Xavier, uma letra em nome daquela sobre Ulisses, que
devia à sociedade uma soma avultada. Vasco equivocou-se no momento em que preencheu a letra,
tendo-a sacado pela quantia de 2500€.

Xavier, por sua vez, endossou a letra a Teodoro, que desconhecia as relações entre os outros
sujeitos cambiários, e que dois dias antes do vencimento a apresentou a pagamento.

a) Ulisses está obrigado a pagar a quantia inscrita no título?

U (sacado) – Z (sacador) – X (tomador) – T (novo tomador)

Neste caso, a sociedade saca sobre Ulisses, a favor de Xavier, que endossa a Teodoro, uma
letra de 2500€, sendo que a sociedade só deve 1500€. Teodoro pode exigir a letra, desde que seja o

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legítimo portador, isto é, se justificar a sua posse numa série ininterrupta de endossos (art. 16.º, LULL),
o que se verifica. Na data de vencimento, tem de exigir a letra ao sacado para que aceite e pague, ou,
se já tiver aceite, para que pague. Assim, Teodoro pode exigir o pagamento a Ulisses. Se Ulisses não
pagar, Teodoro terá que fazer protesto em 4 dias úteis e, feito o protesto, pode exigir o pagamento a
qualquer obrigado cambiário, sendo a sua responsabilidade solidária. Assim, poderá exigir o
pagamento a Zénon ou a Xavier.

Havendo um erro no preenchimento da letra, isso não poderá ser invocado contra Teodoro.
Prevê o art. 17.º, LULL que as pessoas acionadas em virtude de uma letra não podem opor ao portador
as exceções fundadas sobre as relações pessoais delas com o sacador ou com os portadores anteriores,
a menos que o portador, ao adquirir a letra, tenha procedido conscientemente em detrimento do
devedor. Este meio de defesa não pode ser invocado contra Teodoro, uma vez que se trata de um meio
de defesa relativo a uma relação mediata e Teodoro não atuou em detrimento do devedor.

b) E de quem mais, e em que condições, pode Teodoro exigir o pagamento?

Se Ulisses não pagar, Teodoro terá que fazer protesto (ato formal comprovativo da recusa de
aceite ou de pagamento) em 2 dias úteis e, feito o protesto, pode exigir o pagamento a qualquer
obrigado cambiário, sendo a responsabilidade de todos solidária (arts. 43.º e 44.º, LULL). Assim,
poderá exigir o pagamento de Zénon e de Xavier.

Se Teodoro fez o protesto e vier a exigir o pagamento a Xavier, este deve pagar e exigir o título
de volta. Xavier também pode exigir a todos os que estão através dele na cadeia cambiária, isto é, a
Ulisses e à Sociedade, porque é deles credor (art. 47.º, LULL). Se Xavier pagar, pode exigir à
sociedade o pagamento. Contudo, se o fizer, a sociedade pode invocar a situação de erro, na medida
em que se está perante uma relação imediata.

II.

Como forma de satisfazer créditos e débitos recíprocos resultantes das suas sessões de poker,
Silva sacou uma letra sobre Rocha, que aceitou, à ordem de Queirós no valor de 2000€.

Queirós endossa posteriormente a letra a Paula, uma jovem de 21 anos com quem mantinha
uma relação extramatrimonial, perante a ameaça formulada por esta de contar o caso à sua mulher.

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Paula, por sua vez, endossa a letra a Olegário, dono de uma loja de pronto-a-vestir onde esta
tinha crédito e também ele parceiro ocasional daquelas sessões de poker. De quem pode Olegário
exigir o pagamento?

R (sacado) – S (sacador) – Q (tomador) – P (1.º novo tomador) – O (2.º novo tomador)

O portador só pode exigir o pagamento se for portador legítimo, justificando a sua posse numa
série ininterrupta de endossos. Sendo o portador legítimo, deve exigir o pagamento ao aceitante, que é
o Rocha e, se este não pagar, deve fazer um protesto no prazo de 2 dias úteis. A partir do protesto, o
portador pode exigir indistintamente todos os obrigados cambiários, que respondem solidariamente.
No âmbito das relações mediatas, em princípio, não são oponíveis as exceções causais, pelo que o
argumento da dívida ser uma dívida de jogo não é oponível a Olegário.

Se conhecia que a dívida era de jogo, questiona-se se estaria de boa-fé. Nesse caso, a boa-fé
intermédia de Paula sanaria a má fé de Olegário, pelo que não se pode dizer que Olegário, sendo um
portador mediato, seja um portador de má fé, porque Rocha sempre teria que pagar a letra a Paula.

Quanto a Paula, esta não poderá exigir o pagamento a Queirós. Estamos no âmbito das relações
imediatas, pelo que, sabendo que foi vítima de coação moral, Queirós poderia recusar o pagamento,
invocando esta exceção.

III.

Guilherme, com o aval de Hugo, aceita uma letra no valor de 5000€, sacada por Filomena
(a quem tinha encomendado tecidos nesse valor) à ordem de Elizabete. A letra é endossada por
Elizabete a Daniel, um carpinteiro que conhece bem os demais obrigados cambiários, e sabe (ao
contrário de Elizabete) que os tecidos comprados por Guilherme a Filomena nunca tinham sido
entregues.

a) Daniel quer saber de quem pode exigir o pagamento da letra, que se venceu há
precisamente uma semana.

H (avalista) – G (aceite) – F (sacador) – E (tomador) – D (novo tomador)

Na data do vencimento, deve exigir o pagamento ao aceitante, que é G. A falta de apresentação


a pagamento da letra à vista importa para o portador a perda dos direitos emergentes da letra contra o
sacador, contra os endossantes e demais obrigados (art. 53.º, LULL). As letras sacadas a termo de data
ou pagáveis em dia fixado vencem-se nos termos dos respetivos prazos e devem ser apresentadas a
pagamento no próprio dia do vencimento ou num dos dois dias úteis seguintes (art. 38.º, LULL).

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b) A resposta seria a mesma se tivesse vencido anteontem?

Daniel pode exigir o pagamento da letra se for o legítimo portador, justificando a sua posse
numa série ininterrupta de endossos. Na data de vencimento, deve exigir o pagamento ao aceitante.
Daniel apenas poderá exigir o pagamento aos outros obrigados cambiários depois de ter feito o protesto
nos 2 dias úteis seguintes à recusa de cumprimento. Tendo passado esse prazo, já não pode exigir o
pagamento aos restantes obrigados cambiários.

Quanto à exceção de não cumprimento, se estivéssemos no âmbito da relação causal, não teria
de pagar a dívida. No entanto, estando no âmbito das relações cambiarias, as exceções causais não são
oponíveis ao portador mediato de boa fé. Porém, Daniel tem conhecimento da existência da exceção
causal que poderia ser exigida por G, pelo que, como tal, questiona-se se será portador de má fé. Para
que haja má fé, não basta o mero conhecimento, é preciso que haja comportamento doloso no senido
de ser intencional para prejudicar o devedor.

IV.

Para garantia de pagamento de equipamentos que comprou, a Carlos, para a loja, António
aceitou uma letra de câmbio em branco sacada por aquele. Na letra não foram colocados o valor e
a data de vencimento, porque ficou acordado entre as partes que a mesma se venceria no prazo de
três meses depois da entrega de uns móveis e que o valor corresponderia ao montante global dos
fornecimentos efetuados por Carlos.

Entretanto, Carlos preencheu os elementos em falta e endossou a letra a Daniel que, por sua
vez, a endossou a Ernesto.

Diga quem, e em que termos, poderá exigir o pagamento da letra, sabendo-se que

i) António se recusa a pagar a letra, invocando que

a. ela foi preenchida por um valor superior ao que deve a Carlos e

b. que a entrega dos móveis ainda não se verificou.

ii) Por seu turno, Carlos, também se recusa a pagar a letra, invocando que é credor de
Ernesto de montante superior ao que consta da letra de câmbio.

A (aceite) – C (sacador) – C (tomador) – D (novo tomador) – E (novo tomador)

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Ernesto poderá exigir o cumprimento de António? Em princípio, sim. A violação do pacto de


preenchimento não releva, pois situa-se no âmbito das relações mediatas entre E e A. Por este motivo,
A também não pode invocar a exceção de não cumprimento face a D e E.

Carlos pode invocar a existência de créditos face a E para se eximir ao pagamento da letra, pois
está-se no âmbito de uma relação imediata.

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