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A NORMA INTERNACIONAL

CELSO D. DE ALBUQUERQUE MELLO

1. Introdução 2. As normas internacionais 3. A nor-


ma jurídica internacional 4. A elaboração da norma
jurídica internacional 5. A obrigatoriedade da norma ju-
rídica internacional 6. Conclusão.

1. Introdução

o presente trabalho contém algumas observações para uma intro-


dução ao estudo da norma internacional, isto é, as regras de con-
duta existentes na sociedade internacional.
A norma internacional não é apenas a norma jurídica, mas
abrange ainda outros tipos: a moral e a cortesia internacional.
O artigo que apresentamos tratará acima de tudo da norma
jurídica, apesar de não se cingir exclusivamente a ela. Por outro
lado, não nos vamos limitar ao seu aspecto formal, já bastante sis-
tematizado pelos autores europeus, mas pretendemos fazer uma
pequena avaliação do processo de elaboração da norma jurídica
internacional. ~ste processo, como veremos, é eminentemente polí-
tico e não democrático, sendo de certo modo os seus maiores pes-
quisadores os internacionalistas norte-americanos.
Na verdade, a importância da norma jurídica internacional
nem sempre é grande na vida internacional, sendo de se lembrar
que ela é constantemente abandonada a fim de se atingir mera-
mente soluções políticas. Outras vêzes, ela tem quase que um
papel apenas secundário, ou melhor, sem ser abandonada, mas ir-
relevante, porque se os estados adotam-na não é porque estão em
boas relações econômicas e políticas. Por outro lado, elas podem
ser abandonadas até mesmo para um melhoramento destas re-
lações.

R. Cio pol., Rio de Janeiro, 6 (1): 51-64, jan./mar. 1972


Em sentido semelhante ao que afirmamos podemos citar a se-
guinte pasagem de J oseph - Marie Bipoun - W oum sôbre as re-
lações internacionais no continente africano:
"Nous pouvons indiquer, des à présent que le droit international
africain est tres peu formaliste, dans ce sens que la regle posée
n'est pas le phénomene le plus important, mais plulôt les relations
de confiance au niveau personnel. En d'autres termes, on consi-
dere que tout n'est jamais dit dans un texte, parce que le texte ne
peut pas tout prévoir. Le sens du sacré ne porte pas encore sur
le texte, il demeure à la parole donnée, au verbe".l
Na verdade, a norma jurídica internacional, estudada no seu
conjunto e nos diferentes setores como ela se manifesta, é o ob-
jeto do direito internacional público (DIP) , que sempre parte
da sua análise mesmo para propor a sua modificação. A finalida-
de do DIP é exatamente a de estabelecer a paz, isto é, uma convi-
vência harmônica entre os estados inspirada pelo ideal da justiça.
Ora, o DIP é ainda essencialmente formalista; êle estuda as nor-
mas jurídicas nas suas diferentes manifestações: tratado, costume,
decisões das organizações internacionais, atos unilaterais, prin-
cípios gerais de direito e estatuto interno das organizações inter-
nacionais. Assim sendo, nós não estudamos, por exemplo, "as
relações de confiança no nível pessoal", que são no continente
africano mais importantes do que tôdas aquelas manifestações da
norma jurídica internacional. Em conseqüência, o DIP tem-se tor-
nado formalista e perdido o contato com a realidade internacional
ou, pelo menos, só tomando conhecimento desta quando ela se
formaliza em uma norma jurídica. Entretanto, aquelas "relações
de confiança" muitas vêzes atendem melhor a paz internacional do
que qualquer norma jurídica no seu aspecto formal.
:f:ste é o grande dilema de quem estuda o DIP: saber qual a
delimitação do campo entre êle e as relações internacionais. O
DIP surge aparentemente, muitas vêzes, como um corpo de nor-
mas sem qualquer aplicação efetiva, isto é, se adotarmos um visão
formalista sem compreendermos o processo de elaboração da nor-
ma internacional e, em conseqüência, a sua obrigatoriedade. Na
verdade, a visão formalista tem sido abandonada a cada dia que
passa sendo substituída por uma visão essencialmente dinâmica.
De qualquer modo, o problema de uma divisão nítida e clara entre
o DIP e as relações internacionais permanece.

1 Ver Le droit international africain. 1970. p. 127.

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2. As normas internacionais
As normas internacionais - regras de conduta nas relações in-
ternacionais - surgem sôbre três formas: a cortesia, a moral e a
norma jurídica internacionais.
A cortesia internacional (comitas gentium) são aquêles
usos surgidos na sociedade internacional por simples conveniência,
como é o caso do cerimonial marítimo. Esta norma, se violada, não
configura um ato ilícito internacional. Tal fato significa que a vio-
lação é considerada um ato inamistoso, que possui sanções próprias
(ex.: opinião pública), que são diferentes das sanções aplicáveis
na violação de normas jurídicas (ex.: indenização). :E:stes usos so-
ciais muitas vêzes são simples etapas na evolução ou "degenera-
ção" de uma norma jurídica internacional; ou são usos em vias de
se transformarem em costume (norma jurídica internacional) ou
são costumes que se transformaram em simples usos.
É preciso salientar que a cortesia internacional tem obrigato-
riedade e sanção como vimos anteriormente e que neste ponto ela
não se distingue do direito, como bem demonstra Gustav Adolf
Walz:
"Não é exato que os usos sociais ou normas de cortesia. .. somen-
te dirigem a seus destinatários um convite; também elas aspiram,
na sua esfera, a uma validade incondicional,... e igualmente as
normas jurídicas ameaçam o descumprimento com uma sanção".:!
O que distingue a cortesia internacional do DIP é o aspecto
formal da norma violada. Por outro lado, nem sempre a distinção
é possível tendo em vista a sanção em caso de violação, porque em
certos casos a sanção é semelhante. Por exemplo, no DIP existe a
retorsão que é uma lei do talião quando não há violação da norma
jurídica internacional na sua aplicação. Ora, existe também nos
usos internacionais a reciprocidade.
Na verdade, a diferença entre norma jurídica internacional e
cortesia internacional é meramente formal. O direito surge por
modos predeterminados. Tem suas fontes próprias e determinadas.
Em outras palavras, só são DIP as normas que surgirem por cer-
tos modos de produção jurídica, preestabelecidos. As normas de
cortesia internacional nascem da convivência social sem que haja
qualquer modo de produção predeterminado.
É de se repetir a frase do internacionalista alemão Gustav
Adolf Walz:
"o direito aparece como a conditio sine qua non da comunidade,
como a constituição da comunidade, graças a qual esta existe; os
2 Ver DeTecho internacional. 1943. p. 356.

NOTm4 internacional 53
USOS SOCIaiS aparecem como um complexo de normas que susten-
tam e complementam o direito e, com sua fôrça predominante in-
consciente e instintiva, facilitam sua realização".
A existência de norma de moral internacional nem sempre foi
admitida no campo das relações internacionais. Ora declarando-se
que o estado não possuía uma natureza moral (concepção antimo-
ralista de Nietzche), ora afirmando-se que êle encontrava-se à
margem da moral (concepção amoralista de Maquiavel). Entre-
tanto, a maior parte da doutrina afirma, nos dias de hoje, a exis-
tência da moral internacional. É como bem assinala Mariano
Aguilar Navarro:
"O homem não se pode limitar a registrar a existência de uma
norma jurídica como se se tratasse de um puro fato, ou de um
ato ao qual se lhe imputa - por um órgão competente - uma de-
terminada sanção; o homem ajuíza o direito no seu conteúdo e o
faz de acôrdo a uns juízos de valor moral. Todo direito positivo
reduz-se a nada sem alguns fortes apoios morais".3
Um dos maiores estudiosos da moral internacional Herbert
Kraus define-a como sendo "o conjunto de normas morais que
se aplicam nas relações dos diferentes estados ou de outros sujeitos
assimilados aos estados entre êles, assim como as relações mútuas
dos sujeitos independentes, estrangeiros por suas respectivas nacio-
nalidades, e as relações entre o Estado com os estrangeiros". 4
As normas da moral internacional são sempre dirigidas ao
homem, seja como membro de uma coletividade estatal, seja como
"gestor" desta coletividade e atuando na vida internacional.
Nicolas Politis (La morale internationale. 1944) considerou
como principais regras da moral internacional: a lealdade, a mo-
deração, o auxílio e o respeito mútuos, o espírito de justiça e a so-
lidariedade.
A moral internacional influencia a criação e a elaboração do
DIP e da cortesia internacional. No caso de sua violação, à seme-
lhança da cortesia internacional, ela não acarreta a responsabili-
dade internacional (procedimento jurídico) do autor da violação.
A violação de uma norma moral pode trazer sanções porque, de
certo modo, os estados já as consideram incorporadas à cortesia in-
ternacional, ou influenciando o DIP, por exemplo, a não-prestação
de auxílio conduz a procedimento idêntico. Tudo isto dentro do
princípio da reciprocidade que domina a vida internacional e que

3 Ver Derecho internacional público. 1952. v. 1, t. 1, p. 238.


4 Ver La morale internationale - In: Recueil des cours de l' Académie de
Droit International de la Haye. 1927. v. 1, t. 16, p. 410.

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pertence, a nosso ver, mais ao campo da política do que do direito
(é óbvio que excluímos aquêles casos em que êle está consagrado
juridicamente, por exemplo, em um tratado).

3. Norma jurídica internacional


A norma jurídica internacional tem modos de produção próprios,
que são denominados de fontes formais do DIP. Durante um longo
período os autores consideravam como fontes apenas os tratados
e o costume. No período entre as duas guerras mundiais, ao ser
elaborado o estatuto da antiga Côrte Permanente de Justiça In-
ternacional, acrescentaram-se os princípios gerais de direito, con-
sagrados nas legislações internas estatais e cuja existência é com-
provada pelo direito comparado. A inclusão desta nova fonte de
modo positivo no DIP foi para evitar que houvesse um non liquet,
ou melhor, que a Côrte não pudesse decidir um litígio devido a
inexistência de normas convencionais ou consuetudinárias. Reco-
nhecia-se o pouco desenvolvimento das normas internacionais.
Após a 11 Guerra Mundial o fenômeno do societarismo, isto é,
a criação de organizações internacionais tomou um grande impul-
so e novas fontes foram sendo reconhecidas pela doutrina e pela
prática internacional: as decisões das organizações internacionais
e o seu estatuto interno. A doutrina passou a realçar os atos uni-
laterais, salientando que a jurisprudência já lhes reconhecera um
poder de criarem normas de conduta obrigatória.
É preciso mencionar que os tribunais internacionais fazem
apêlo à eqüidade quando as partes lhes dão podêres para tal. Ela
é "a aplicação dos princípios da justiça a um determinado caso". ;;
A mais moderna doutrina sôbre a matéria não a inclui nas fontes
dos DIP.6 Na verdade, a eqüidade não cria uma norma jurídica
como fazem as demais fontes do DIP; ela necessita do caso con-
creto em que vai ser aplicada para ser realmente elaborada. De
qualquer modo, não podemos deixar de negar que ela atua nas re-
lações internacionais, principalmente nos tribunais judiciários e
arbitrais.
O sistema jurídico internacional apresenta características em
alguns pontos semelhantes ao direito interno: a) é uma ordem
normativa; b) tem idêntica noção de ato ilícito, isto é, êle consiste
na violação de uma norma; c) é dotado de sanção. Entretanto, a
sanção no DIP é "primitiva" se fôr comparada com a do direito
interno, porque ela ainda é coletiva (isto é, atinge a todo o estado
sem distinguir os autores do ilícito dos demais habitantes).
::t Rousseau, Charles. Droit international publico 1953. p. 71-2.
ti Degan, V. D. L'équité et le droit international. 1970. p. 40.

NOT"ITUl internacional 55
Piero Ziccardi aponta as seguintes particularidades para a or-
dem jurídica internacional: a) "a ausência de tôda estrutura au-
toritária ou hierárquica" em nome da "igualdade dos estados";
b) a liberdade ampla de que gozam os estados. 7
Mariano Aguilar Navarro 8 em observações semelhantes for-
nece estas características da comunidade internacional em relação
à ordem jurídica internacional: a) a comunidade internacional é
ampla e com poucos membros, "todos êles poderosos". "A comu-
nidade internacional, uma comunidade de comunidades, provoca
fatalmente um distanciamento dos problemas concretos" e, com
êle, uma marcante nota de abstração; b) o aspecto "individualista
que preside a atividade da comunidade internacional"; c) a co-
munidade internacional não interfere na criação de seus membros.
Ela "limita-se a registrar uns fatos consumados". "Esta será a tô-
Illca do direito internacional clássico: deixar-se guiar e presidir
pelo princípio da efetividade".
Como verdadeiras conseqüências das apontadas antes pode-
mos apresentar as características da norma jurídica internacional
que são dadas por Mariano Aguilar Navarro: 9 a) "são muito pou-
cas em número"; b) "são extremamente abstratas, quase que se re-
duzem a mero invólucro, aparato técnico a que falta tôda referên-
cia de conteúdo". Em conseqüência, estão "distanciadas dos proble-
mas reais" e "exercem muito pouca influência na constituição das
situações políticas"; c) são "atributivas", sua "missão consiste em
outorgar uma competência sem assinalar a materialidade da ação
a cumprir".
No tocante à ordem jurídica internacional, uma grande dis-
cussão tem ocorrido no campo doutrinário, isto é, a questão de se
saber se tôdas as normas que a compõem são dispositivos ou se
ela comporta também normas imperativas.
Os autores voluntaristas, como Dionisio Anzilotti, 10 afirmam
ser o DIP o produto de um acôrdo de vontade dos estados e negam
a existência de normas imperativas:
"a primeira observação que se oferece é que os estados são ao mes-
mo tempo criadores de normas e sujeitos das obrigações impostas
por ditas normas: os estados que fixarem uma determinada nor-

j Ver Les caracteres de l'ordre juridique international. In: Recuei! des cours
de l'Académie de Droit International de la Haye. 1958. v. 3, t. 95, p. 374 e
sego
8 Cf. Derecho internacional público. 1952. V. 1, t. 1, p. 244-5.
9 Derecho internacional público. cito p. 245-6.
10 Corso di diritto internazionale. 1955. V. 1, p. 90 e sego

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ma podem sempre concordar em não observá-la ou em substituí-la
por outra. Neste sentido poder-se-ia dizer que tôdas as normas
internacionais são dispositivas".
Na verdade, não há no campo internacional razão para se dis-
cutir a existência ou não de norma imperativa. Esta consideração
prende-se ao fato de que tôda e qualquer norma jurídica impera-
tiva ou dispositiva é revogável. A única diferença que existe entre
os dois tipos de norma é que as imperativas só podem ser revoga-
das pelo mesmo processo que as criou, ou previsto quando elabo-
radas, ou seja, por um procedimento especial, enquanto as normas
dispositivas podem ser revogadas pelos particulares. Um caso de
norma imperativa na ordem jurídica internacional é a Carta da
ONU. Entretanto, ela mesma prevê um processo para a sua revi-
são. A distinção entre norma imperativa e dispositiva não tem, no
fundo, maior valor: tôdas elas são revogáveis. Dentro da diferença
clássica dos dois tipos de normas podemos salientar que ambas
existem dentro da ordem jurídica internacional. Por outro lado,
podemos lembrar que certas normas são na prática irrevogáveis
devido ao fato de elas serem universais; por exemplo, a liberdade
dos mares ou a inviolabilidade dos mares. A revogação aqui é me-
ramente hipotética, porque é quase impossível que todos os esta-
dos (sem exceção) reúnam-se para fazerem convenção revogando
tais normas. Entretanto, nada impede juridicamente que assim
procedam.
A grande questão, a nosso ver, dentro da ordem jurídica in-
ternacional consiste em saber se ela tem normas cogentes, isto é,
irrevogáveis. Fazemos aqui uma distinção entre normas de jus
cogens e normas imperativas. As de jus cogens são poucas no
DIP, tendo em vista a própria estrutura da sociedade internacio-
nal, ou melhor, os estados elaborando as normas e tentando man-
ter a possibilidade de revogá-las quando assim lhes fôr interessan-
te. A "liberdade contratual" do estado é restringida pelo jus co-
gens, bem como "poderia ser considerado um ataque à soberania
dos estados". 11 As normas de jus cogens seriam muito poucas e
universais devido a sua importância. A sua derrogação por um
tratado acarretaria a nulidade do próprio tratado. Por exemplo,
derrogar a norma pacta sunt servanda é impossível, porque seria
o caso de se fazer a derrogação por um tratado dizendo que as
obrigações livremente assumidas não são obrigatórias, entretanto,
estar-se-ia assumindo uma nova obrigação que para ser respeitada
faria apêlo à norma pacta sunt servanda.

11 Virally, Michel. Réflexions sur le "jus cogens". In: Annuaire Français


de Droit International. 1966. v. 12, p. 5 e sego

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Em conclusão, sustentamos no DIP, como em todo e qual-
quer sistema jurídico, a existência de normas de jus cogens, sob
pena de a sociedade internacional cair em verdadeiro estado anár-
quico. É preciso salientar que mesmo se admitindo o jus cogens
como norma imperativa, nem tôda norma imperativa é de jus co-
gens. A fim de se evitar maiores confusões é que preferimos estu-
dar o jus cogens em separado das normas imperativas. Não pode-
mos deixar de reconhecer que estas surgem cogentes para os es-
tados, por exemplo, a Carta da ONU, uma vez que êles podem
revogá-las. Contudo, na sua essência não são de jus cogens, vez
que são passíveis de revogação por um procedimento especial.

4. A elaboração da norma jurídica internacional

o direito internacional é um produto da sociedade internacional e


uma vez constituído passa a influenciar a própria sociedade que o
criou. Assim sendo, as influências entre sociedade e direito são
recíprocas.
O DIP apresentou normas estáveis através dos séculos, uma
vez que a sociedade internacional era estável e homogênea. A
própria base cultural era uniforme: a civilização cristã ocidental.
Na segunda metade do século :XX, a sociedade internacional é
bastante ampliada, várias dezenas de estados atingem a indepen-
dência e passam a participar no processo de elaboração das nor-
mas internacionais. A própria base cultural perde a sua unifor-
midade. Os denominados "novos estados" passam a reivindicar
normas internacionais que atendam aos seus interêsses, vez que as
elaboradas pelas grandes potências, no que poderíamos chamar de
DI clássico, visavam a defender o intervencionismo, os países in-
vestidores de capital, etc. Enfim, o DI clássico foi um direito de e
para grandes potências. Vários autores têm-se interessado pelo
processo de revisão do DIP, que teria se desenvolvido após a II
Guerra Mundial. Entretanto, é necessário que se estude a ela-
boração da norma jurídica internacional para que se possa verifi-
car os obstáculos que existem para uma reformulação do DIP.
í:stes obstáculos à primeira vista parecem inexistentes por-
que os interessados no processo de revisão são em maior número
do que os interessados na manutenção do status quo.
í:ste estudo da elaboração da norma de DIP tem sido feito
pelos modernos doutrinadores norte-americanos. Têm êles salien-
tado o papel relevante do ato unilateral na formação da norma

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jurídica internacional. Neste sentido têm-se manifestado vários
autores:
"Teoricamente, as regras só podem ser estabelecidas ou emenda-
das por acôrdo formal ou por consentimento tácito baseado nas
práticas passadas. Quando as regras não tenham sido formalizadas
por tratados, são criadas pelo processo mais fluído de exigências
e concessões, ou seja, pela ação unilateral justificada ou justificá-
vel pelo Estado, pela referência aos interêsses da comunidade in-
ternacional, pela concessão a outros estados do direito de agir e
obrigação de abster-se de agir da mesma maneira em outras cir-
cunstâncias" .

"A revogação unilateral geralmente não é reconhecida como juri-


dicamente apropriada, mas pode ser politicamente exeqüível se
houver apoio para a alegação de "deslealdade" ou "injustiça" no
tratado. O normal é legitimar a revogação por referência a viola-
ções anteriores e a condições implícitas, ou interpretar o tratado
com parciabilidade de modo a torná-lo menos prejudicial. Tam-
bém pode ser reconhecida expressamente a intenção de obedecer-
se no futuro a novos princípios". 12

No mesmo sentido manifesta-se Myres McDougal e Richard


A. Falk:

"As Myres McDougal consistently emphasizes, international law


is developed by the unilateral claims of states that are respected
or tolerated because they are regarded by the world community as
reasonable in their particular context of assertion and because
the claiming state has the power to make them effective" 13

O papel da política no campo do DIP tem sido cada vez mais


realçado. Desde as observações de Kaplan e Katzenbach. 14

"O direito só existe e os institutos legais só operam dentro de de-


terminadas contexturas políticas".

12 Kaplan, Morton A. & Katzenbach, Nicolas B. Fundamentos políticos do


Direito Internacional. 1964. p. 34 e 37.
13 Falk, Richard A. Gaps and biases in contemporary theories of interna-
tional law. In: Falk, Richard A. The status of law in international society.
1970. p. 28 e 29.
H Kaplan & Katzenbach. op. cito p. 15.

Norma internacional 59
Até a escola de New Haven (McDougal, Lassueell, etc.) que
reduz o DIP a uma policy,15 o que faz B. Rosenthal 16 salientar
que a "identificação entre direito e policy, ou se se quer entre as
noções de regra do jôgo e de estratégia dos jogadores, constitui
uma das funções mais importantes do direito, a saber, a função
que consiste em manter a ordem".
Não adotamos a concepção da escola de New Haven, contudo
não podemos deixar de reconhecer que a política tem um papel
relevante no campo internacional, fazendo com que muitas vêzes,
não consigamos distinguir o direito da política.
Na verdade, a norma internacional é elaborada por uma série
de atos unilaterais seja para dar origem a um tratado ou a um
costume. Se a sociedade internacional fôsse materialmente demo-
crática, no processo de formação das normas internacionais pre-
dominariam os atos unilaterais do maior número de estados inte-
ressados.
O maior número prevalece no tocante à elaboração das nor-
mas convencionais, que ainda são minoritárias dentro do sistema
jurídico internacional. Por outro lado, estas normas apenas codi-
ficam os princípios gerais de cada matéria. Enfim, um largo cam-
po, o mais amplo, é deixado para o D. costumeiro com tôda a sua
incerteza. Ora, predominam as interpretações que podem ser tor-
nadas efetivas, isto é, das grandes potências que podem impô-las.
É verdade que, em certos casos, pequenos estados podem tornar
efetivos os seus atos unilaterais, o que tem ocorrido em inúmeros
casos de nacionalização de emprêsas. Entretanto, são exceção no
plano internacional.
É preciso lembrar que no campo internacional a igualdade é
meramente formal e que mesmo naqueles casos em que os esta-
dos negociam em pé de igualdade um tratado, na realidade, esta
não existe por dois motivos: a) a política de blocos - nas ques-
tões mais importantes os estados acompanham o voto da potência-
líder do seu bloco; b) a assistência externa - a maior parte dos
estados sobrevive graças aos auxílios dados pela grande potência
econômica do seu bloco. São poucas as vêzes em que os estados
em vias de desenvolvimento rompem com esta liderança e afir-
mam os seus interêsses. Para que tal fato ocorra, com sucesso, é
necessário uma rigorosa interpretação do momento político inter-

15 " ... la policy science consiste dans une action conduite avec les moyens
de la science et visant à la réalisation d' un certain état de choses souhaité."
In: Rosenthal, Bent. Étude de l'oeuvre de Myres Smith McDougal en ma-
tiere de droit international publico 1970. p. 37.
16 Rosenthal, B. op. cito p. 131.

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nacional, por exemplo, que seja mais conveniente a grande po-
tência de suportar a insubordinação do seu liderado do que per-
dê-lo. Entretanto, mesmo que isto se dê, a grande potência tudo
fará para que não se transforme em precedente para a formação
de uma norma jurídica internacional e figure apenas como uma
manifestação tolerada, mas não legal.
Finalmente, é de se recordar a frase de Louis Henkin que
talvez explique o inexplicável no campo internacional:
"Sometimes foreign policy is not made; it happens, and can only
later be sorted out of the confusion of many actions and inac-
tions" .1i
Assim sendo, a revisão do DIP é extremamente difícil e lenta
e só vem sendo conseguida parcialmente graças à atuação do de-
nominado terceiro mundo dentro de organizações internacionais
em que êle atua como um verdadeiro grupo de pressão.

5. A obrigatoriedade da norma jurídica internacional


A grande questão no DIP é a de se saber se êle é respeitado nas
relações internacionais. Dois grandes problemas existem nesta
matéria: a) não há uma autoridade superior para aplicar as san-
ções em caso de violação. Os próprios estados são autores e des-
tinatários das normas internacionais. Em conseqüência, são os
gendarmes dêles mesmos; b) as normas internacionais, na sua
maioria, não são escritas, o que dá margem às mais diferentes in-
terpretações. Os próprios estados não elaboram normas detalha-
das para terem liberdade de ação.
Kaplan e Katzenbach 18 fazem uma observação realista:
"Concordamos que as nações muitas vêzes agem com parcialidade
para apoiar objetivos políticos imediatos. Objetamos, porém, que
grande parte da conduta internacional é doutrinàriamente obe-
diente a princípios normativos, mesmo que contrariem objetivos
particulares imediatos, e que o interêsse próprio longínquo pode
fornecer apoio político a uma conduta internacionalmente lícita".
Salientam os mesmos autores 19 que as violações ocorrem
"particularmente nos tempos de crise".

17 Ver em How nations behave. 1968. p. 8.


1S Kaplan & Katzenbach. op. cito p. 22.
19 Kaplan & Katzenbach. op. cito p. 21.

Norma internacional 61
Richard Falk 20 observa com razão acêrca das violações dQ
DIP:
"International law is a weak legal system not because it is often
or easily flouted by powerful states, but beca use, certain vio-
lations, however infrequent, are highly destructive and far-reaching
in their implications".

Na verdade, tudo e qualquer ramo do direito é essencialmen-


te violável, porque êle se dirige sempre em última instância ao
homem, ser livre:
"No system of law can satisfy its membership - or intimidate i t -
sufficiently to attain perfect, or anything approaching perfect,
compliance". ~1

Louis Henkin 2~ é quem melhor estudou as razões que levam


os estados a respeitarem ou a violarem as normas jurídicas inter-
nacionais. Entre as que conduzem os estados a se submeterem ao
DIP podem ser mencionadas as seguintes:
a) um estado para obter o contrôle do comportamento de outro
precisa submeter-se também às normas internacionais;
b) o receio das suas violações acarretarem sanções (represálias,
retorsão, etc.).
c) o estado só viola uma norma internacional depois que fizer
uma análise do "custo" e da "vantagem" desta violação;
d) se um estado cometer violações constantes a sua política ex-
terna entra em descrédito;
e) o direito interno e as instituições estatais "contribuem" para
a observância do DIP;

Por outro lado, algumas razões conduzem os estados à viola-


ção do DIP:
a) quando a violação traz maiores vantagens do que preJUlZOS;
b) muitas vêzes a violação é ilegal, mas é considerada justa, por
que as normas jurídicas existentes são ultrapassadas e não aten-
dem às necessidades atuais;

~o Falk, Richard. op. cito p. 29.


~1 Falk, Richard. The relevance of political context to the natur"e and
functioning of international law: an intermediate view. op. cito p. 50 .
.,., Henkin, Louis. op cit. esp. p. 31 e sego

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c) quando o autor da violação pode colocar a sociedade interna-
cional diante de um "fato consumado" que não seja suficiente-
mente relevante para conduzir a uma guerra, porque as sanções
de natureza moral não o atingirão de modo efetivo;
d) as próprias instituições políticas internas levam o estado a
cometer a violação.

o direito, na realidade, não é um fim em si mesmo, mas um


simples instrúmento da sociedade para organizar a si própria e
distribuir a justiça entre os seus componentes. Assim sendo, não
se pode deixar de reconhecer com Henkin: ~3

"All law is an instrument of policy broadly conceived".

o DIP não apresenta maior número de violações do que o


direito interno, apenas as suas, como têm maiores conseqüências,
provocam nos indivíduos um impacto psicológico de maior inten-
sidade do que as, por exemplo, do d. penal. Se considerarmos que
existe na sociedade internacional cêrca de uma centena e meia de
estados, de sociedades comerciais instalando-se em estados estran-
geiros, de indivíduos viajando no exterior podemos dizer mesmo
que a regra geral é a de se respeitar o direito internacional pú-
blico.
As violações não constituem privilégio das grandes potências,
mas as denominadas pequenas potências também as cometem. A
violação só é compensadora quando o lucro é maior do que o risco.
Ora, na sociedade internacional de hoje, em que a guerra inter-
nacional está quase abolida, esta situação pode-se apresentar para
qualquer potência, seja grande ou pequena. É possível se dizer
que as violações cometidas pelas grandes potências são de maior
repercussão, porque atingem maior número de interêsses. Geral-
mente as grandes potências que têm meios de pressão para obte-
rem o que desejam só cometem violações flagrantes naqueles ca-
sos em que os seus interêsses são muito grandes (ex: intervenção
do Pacto de Varsória na Tcheco-Eslováquia; os EUA no Vietnã,
etc.). Finalmente, podemos salientar que muitas vêzes é difícil
afirmar-se se houve ou não violação do DIP devido as suas la-
cunas ou falta de precisão. Na sociedade internacional bipolar (les-
te-oeste ou norte-sul) em que vivemos é comum um bloco acusar
o outro de violação, sendo que não raramente é difícil garantir
qual a norma jurídica internacional na matéria.

23 Henkin, op. cito p. 86.

Norma internacional 63
6. Conclusão

o DIP, como todo e qualquer outro direito, é violável. As viola-


ções diminuirão à medida que se conseguir o estabelecimento de
um poder central com monopólio das sanções. Tal objetivo não me
parece atingível ainda nas próximas décadas.
É necessário que o estudioso do DIP não limite a sua pesqui-
sa às "normas formais" (tratados, costumes, etc.), mas inclua tam-
bém as "normas informais". Estas são muitas vêzes mais impor-
tantes do que aquelas; é, por exemplo, o acôrdo entre as grandes
companhias petrolíferas dividindo as áreas de exploração de pe-
tróleo. O DIP recorrerá cada vez mais às relações internacionais,
onde estas "normas informais" são devidamente estudadas jun-
to com os seus autores.
A conclusão que podemos apresentar é que o DIP é rele-
vante nas relações internacionais, o que é demonstrado pela preo-
cupação dos estados em apresentarem sempre fundamentação ju-
rídica para as suas reivindicações. Nenhum estado ousa violar o
DIP frontalmente (raríssimos foram, no passado, os casos em que
ocorreu) sem apelar pelo menos para uma noção de justiça. Ne-
nhum estado declara que viola o DIP, o que demonstra a sua
fôrça no campo internacional.

REEMBõLSO POSTAL
OBSERVAÇÃO IMPORTANTE:

A fim de simplificar e tornar mais rápido o envio de pedi-


dos de publicações da Fundação Getúlio Vargas, sugerimos o
uso do reembôlso postal, que beneficiará principalmente às
pessoas residentes em locais afastados dos grandes centros.
Assim, na ausência, em sua cidade, de representantes creden-
ciados ou livrarias especializadas, dirija-se diretamente pelo
reembôlso ao

SERVIÇO DE PUBLICAÇÕES
PRAIA DE BOTAFOGO, 188 CAIXA POSTAL, 21.120, ZC-05,
RIO DE JANEIRO - GB.

64 R.C.P. 1/72

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