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Luiz Antonio Scavone Junior

No caso de alienação fiduciária de bem imóvel, a Lei n. 9.514/97 autoriza o público leilão em
até trinta dias do registro da consolidação da propriedade em nome do fiduciário (credor), no
caso de inadimplemento do fiduciante (devedor).

No primeiro leilão, o valor oferecido deverá suplantar o valor do imóvel constante do contrato.
Não havendo adquirentes, em até quinze dias o fiduciário levará a efeito o segundo leilão, no
qual o imóvel será vendido pelo maior lance, desde que, nesse caso, seja superior à dívida com
juros, correções e multa, acrescida dos prêmios de seguro, encargos, tributos, condomínios e
despesas com o leilão.

Se algum valor sobrar, deverá ser entregue ao devedor. Portanto, se nada sobrar, restará a
perda total das parcelas pagas pelo fiduciante (devedor).

Nesse sentido, ante a possibilidade de perda total dos valores pagos, questiona-se a
aplicabilidade do art. 53, do Código de Defesa do Consumidor (Lei n. 8.078/90) aos negócios
regidos pela Lei n. 9.514/97.

Esse questionamento surge da redação do art. 53, do Código de Defesa do Consumidor: Nos
contratos de compra e venda de móveis ou imóveis mediante pagamento em prestações, bem
como nas alienações fiduciárias em garantia, consideram-se nulas de pleno direito as cláusulas
que estabeleçam a perda total das prestações pagas em benefício do credor que, em razão do
inadimplemento, pleitear a resolução do contrato e a retomada do pr+.oduto alienado.

Marcelo Terra (Alienação Fiduciária de imóvel em garantia. São Paulo, Porto Alegre, Sérgio
Antonio Fabris Editor, 1998), entende que, em virtude da previsão de entrega da quantia que
sobejar o valor da dívida ao fiduciante (devedor) em razão da alienação pelo inadimplemento,
não se aplicaria o art. 53 do Código de Defesa do Consumidor.

Demais disso, segundo ele, a Lei Consumerista fala em retomada de produto alienado, o que
não ocorre, em virtude do bem ser de propriedade do fiduciário (credor).
Por fim, cita decisão que emana do Segundo Tribunal de Alçada Civil (Apelação n. 479.247-
00/6), que não aplicou o precitado artigo à alienação fiduciária tradicional, em virtude dessa
modalidade possuir legislação específica.

Nada obstante essas abalizadas considerações, entendemos que se aplica, integralmente, o


art. 53 do Código de Defesa do Consumidor às alienações fiduciárias de bens imóveis e
daremos os motivos de nossa convicção.

Primeiramente, não é porque existe lei especial que não se aplica o Código de Defesa do
Consumidor.

A Lei n. 8.078/90 se aplica às relações de consumo, ou seja, onde quer que estejam presentes
o consumidor e o fornecedor, nos termos dos arts. 2º e 3º.

Ora, da leitura desses artigos é impossível inferir a inexistência absoluta de relação de


consumo no negócio em tela.

Portanto, é juridicamente impossível afastar, da alienação fiduciária de bem imóvel, a


incidência da Lei n. 8.078/90.

Se assim não se entendesse, dificilmente haveria uma relação de consumo. Existem leis
específicas regulando incorporações e loteamentos e, não por isso, se deixa de aplicar a Lei n.
8.078/90 nesses casos.

O fato da Lei n. 9.514/97 prever a restituição do montante que superar o valor da dívida no
caso de alienação trata-se de superfetação legal, o que se afirma na exata medida em que a
retenção desses valores constituiria enriquecimento ilícito do fiduciário (credor).

É verdade que é possível a exclusiva aplicação das disposições da Lei n. 9.514/97 nas hipóteses
em que não se vislumbre uma relação de consumo, como, por exemplo, a alienação fiduciária
celebrada entre uma incorporadora e um agente financeiro.
Todavia, existindo uma relação de consumo, resta evidente a aplicação integral do art. 53 da
Lei de Consumo.

Nesse sentido, clara a lição de Nelson Nery Junior (Código de Defesa do Consumidor
comentado pelos autores do anteprojeto. 6a. ed. São Paulo, Forense Universitária, 1999. pp.
546 e 547), segundo o qual, para as compras a prestação, sejam de móveis ou imóveis, com
garantia hipotecária, com cláusula de propriedade resolúvel, de alienação fiduciária, reserva de
domínio ou outro tipo de garantia, o Código não permite que se pactue a perda total das
prestações pagas, no caso de retomada do bem ou resolução do contrato pelo credor, por
inadimplemento do consumidor.

Não se prega, como insiste Nelson Nery, a devolução total das parcelas pagas. O que a norma
consumerista proíbe é a perda total das parcelas, o que não é impossível ante a sistemática da
Lei n. 9.514/97.

Por via de conseqüência, do valor das parcelas pagas pelo consumidor fiduciante (devedor),
devem ser descontados os prejuízos causados ao fiduciário (credor) nos termos do art. 1.056
do Código Civil.

Assim, serão restituídas as parcelas pagas, descontadas, por exemplo, dos valores referentes à
fruição correspondente, bem como, eventualmente, de eventual desvalorização do imóvel,
além dos impostos e condomínios.

Se o fiduciário preferir, dessa devolução, poderá ser descontada a cláusula penal


compensatória, desde que tal operação não afaste os preceitos cogentes do Código de Defesa
do Consumidor.

Outrossim, nos termos do art. 918 do Código Civil, é vedada a cumulação da cláusula penal
com os prejuízos efetivos, vale dizer, será descontado o valor dos prejuízos demonstrados ou o
valor da cláusula penal compensatória.

O que não se admite, de acordo com a Lei n. 8.078/90, é o fato do credor fiduciário agir como
se apenas seu crédito existisse, ignorando o art. 53 e ignorando cristalino direito do devedor.
Demais disso, com os juros abissais que normalmente são praticados, não é incomum o valor
do imóvel permanecer estável e o saldo devedor se acumular, suplantando o valor do próprio
bem financiado, o que se traduz pela perda total, pelo fiduciante (devedor), dos valores pagos.

Esse risco é do credor, não do devedor, de tal sorte que o valor da dívida não pode ser
considerado.

O fato do art. 53 do Código de Defesa do Consumidor ter se referido à retomada do bem, não
significa, a não ser em obtusa interpretação gramatical, que esse artigo não se aplica à
alienação fiduciária, na qual a retomada do bem não é pleiteada. A uma, porque a retomada
pode ser da posse direta, que evidentemente ocorrerá com o inadimplemento e, a duas,
porque o Código de Defesa do Consumidor é anterior à lei da alienação fiduciária de bem
imóvel e, por óbvio, não poderia prever as peculiaridades do novel instituto.

Por fim, não se pode olvidar o teor do que dispõe o art 5º da Lei de Introdução ao Código Civil:
na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem
comum.

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