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SEMINÁRIO PRESBITERIANO NOROESTE DO BRASIL

NILTON MOTA DE OLIVEIRA

Artigo: O Calvinismo e a Política

Ji-Paraná
2023
NILTON MOTA DE OLIVEIRA

Artigo: O Calvinismo e a Política

Trabalho apresentado à SPNB – Seminário


Presbiteriano Noroeste do Brasil, como parte dos
requisitos da disciplina de Cosmovisão
Calvinista, entregue como cumprimento parcial
para a obtenção do título de Bacharel em
Teologia.

Prof. Rev. Ivo Tavares Oliveira

Ji-Paraná
2023
3

O CALVINISMO E A POLÍTICA
Nilton Mota de Oliveira1

RESUMO

Neste artigo analisaremos o pensamento do calvinismo com relação à política.


Em suas análises, Abraham Kuyper traz de forma primordial, qual é a visão que o
calvinismo tem de estado, e até onde vai a soberania deste. Além disso o pecado
afetou toda a ordem política, e o estado pode ser um instrumento de Deus para frear
o despotismo daqueles que detêm o poder.
Calvino em suas Institutas defendeu de forma clara, a participação atuante dos
cristãos nas questões políticas, não somente como participantes indiretos, como nas
democracias, mas também de forma direta como magistrado civil. Ele diz ainda que
a política não é uma prática mundana, mas que ela também faz parte do reino de
Deus na terra, por isso, como cristãos, devemos participar ativamente dela.
Este artigo, de forma resumida, fala sobre as três formas de governo citadas
por Calvino em suas Institutas, e demonstra o que o reformador pensava de cada
uma delas e qual ele considerava sua favorita.

PALAVRAS-CHAVE
Governo; Política; Sociedade; Soberania; Calvinismo; Estado;

INTRODUÇÃO

A impressão que temos quando falamos de calvinismo é de que não passa de


ideias e doutrinas religiosas e que suas convicções estão restritas a isso, mas o
calvinismo se tornou uma cosmovisão abrangente, ele é um pensamento que
envolve toda a área da vida humana, e a política não fica de fora dessa abrangência.
A política que é tratada nesse artigo, não é a eclesiástica, mas sim a política que
tem como obra normativa o governo da sociedade civil. E sobre isso, o calvinismo

1
Estudante do nono período no curso de Bacharel em Teologia no Seminário Presbiteriano Brasil Central
Extensão Rondônia (2019 a 2023). Endereço: Rua João Batista Neto, 2356. Jardim Nova Brasília – Ji-paraná –
Ro. E-mail: niltom_2@hotmail.com
4

conseguiu trazer uma concepção própria, pois leva em consideração a depravação


total do homem e a dependência que este tem do Criador, e com isso deixou bem
definido que nem o homem e nem o estado são soberanos em si mesmos, mas
precisam existir e governar tendo em mente que o Senhor é o único soberano, e
sem Ele entraríamos em colapso e nos autodestruiríamos.
Estudiosos de vários segmentos reconhece a rica contribuição que o
calvinismo tem prestado ao aperfeiçoamento do campo político, principalmente no
mundo ocidental.
De fato, o calvinismo provocou mudanças políticas em países como Holanda,
Inglaterra e a América, países esses onde a liberdade se tornou um fato evidente.
O pensamento calvinista, de princípio foi elaborado por João Calvino, e com o
passar do tempo foi aperfeiçoada por sucessores do reformador. Em nossos dias a
visão política do calvinismo se espalhou através das obras de homens como
Abraham Kuyper (1837 a 1920) e Herman Dooyeweerd (1894 a 1977).

1 O Envolvimento do Cristão no Governo Civil

Um dos trabalhos mais relevantes de Calvino, sem dúvidas, foram as Institutas


da Religião Cristã. Nesta obra Calvino discorre sobre várias doutrinas cristãs
importantes. Mas o reformador, apesar de ser criticado pelos anabatistas, pois esses
diziam que o governo civil era uma área onde o cristão não deveria atuar 1, escreveu
em suas Institutas um capítulo com 32 seções onde as seções 1 e 2 tratam sobre o
tema da participação do cristão na ordem política do mundo, com o intuito de
combater os argumentos contrários.
Já na primeira seção Calvino expressa essa preocupação da seguinte forma:

Ora, ainda que o teor desta consideração pareça ser em natureza distinto da
doutrina espiritual da fé, o qual me propuz haver de tratar, contudo o andamento
da matéria mostrará que com razão tenho que enfrentá-la, mais ainda, sou
impelido pela necessidade a fazer isso, especialmente porque, de uma parte,
homens dementes e bárbaros tentam furiosamente subverter esta ordem
divinamente estabelecida; de outra, porém, os aduladores dos príncipes,
exaltando-lhes desmedidamente o poder, não duvidam opô-la ao domínio do
próprio Deus. A menos que se resista a um e outro desses dois males, a
integridade da fé perecerá.2

1
PORTELA, S. Ministério Fiel, 12 jul. 2009. Disponível em: <https://ministeriofiel.com.br/artigos/o-
calvinismo-e-o-governo-civil/>. Acesso em: 16 maio 2023.
2
CALVINO, J. As Institutas. Clássica. ed. São Paulo: Cultura Cristã, v. 4, 2006. Pg 451
5

Calvino argumenta que o governo é uma ordem divinamente estabelecida e


que este é instituído pelo próprio Deus, defendendo assim a soberania divina sobre
qualquer governo.
No final da primeira seção Calvino escreve:

Mas quem sabe discernir entre o corpo e a alma, entre esta vida presente e
transitória, e aquela vida futura e eterna, não terá dificuldade em entender que o,
reino espiritual de Cristo e a ordem civil são coisas muitíssimo distintas entre si. E
visto ser uma loucura judaica buscar e incluir o reino de Cristo sob os elementos
deste mundo, nós, refletindo melhor ser um fruto espiritual o que a Escritura
claramente ensina, fruto que se colhe do benefício de Cristo, nos lembramos ainda
mais de conter dentro de seus limites toda esta liberdade que nele nos é
prometida e oferecida.3

É muito claro que aqui o reformador está defendendo que há uma separação
entre o governo de Cristo e o magistrado civil. Calvino tece uma crítica aos judeus
por não terem compreendido essa separação.
Calvino defendia que a ordem civil não era algo imundo e “impertinente aos
cristãos”. Apesar de alguns defenderem que os cristãos não devem se preocupar
com as coisas desse mundo, pois pertencemos a um mundo celestial, Calvino
defende que o governo terreno, apesar de ser diferente do governo de Cristo, de
forma alguma é contrário a ele, pois esse reino espiritual começa exatamente aqui.4
De forma mais prática Calvino enumera os objetivos do governo terreno, que
ele chama de “governo temporal”:

Mas o objetivo do governo temporal é manter e conservar o culto divino externo, a


doutrina e religião em sua pureza, o estado da Igreja em sua integridade, levar-nos
a viver com toda justiça, segundo o exige a convivência dos homens durante todo
o tempo que vivermos entre eles, instruir-nos numa justiça social, fomentar a
harmonia mútua, manter e conservar a paz e tranqüilidade comuns, coisas essas
que reconheço serem supérfluas, se o reino de Deus, como ora se acha entre nós,
extingue a presente vida.5

De forma brilhante, Calvino argumenta que o governo civil não deve intervir na
ordem eclesiástica, a não ser para protegê-la de ataques esternos que dificultem a
livre manifestação do culto.
O objetivo de Calvino com a primeira e segunda seção das institutas é afirmar
que o cristão não deve se privar de participar do governo civil, por isso ele conclui:

3
(CALVINO, 2006, p. 451-452)
4
(CALVINO, 2006, p. 452)
5
(CALVINO, 2006, p. 452-453)
6

Se, pelo contrário, for a vontade de Deus que, enquanto aspiramos à verdadeira
piedade, peregrinemos sobre a terra, enquanto suspiramos por nossa verdadeira
pátria; e se, além do mais, tais auxílios nos forem necessários para nossa jornada,
aqueles que querem privar aos homens delas, os querem impedir que sejam
homens.6

A conclusão é que o reino de Deus se acha entre nós, que vida presente é uma
extensão do reino porvir, por isso o cristão não deve se privar de participar do
governo civil, pois precisaremos do auxílio deste enquanto peregrinarmos aqui na
terra.

2 As Formas de Governo

Calvino não levantava a bandeira de uma forma de governo específica, pois ele
entendia que todas são dignas de crítica, ele entendia que todas estavam afetadas
pelo pecado contido no coração do homem.

E se se comparar entre si também as próprias formas de governo, à parte das


circunstâncias, a tal ponto se confrontam em iguais condições, que não é fácil
discernir qual delas seria de mais utilidade. A monarquia se inclina à tirania. Numa
aristocracia, por sua vez, a tendência é não menos à facção de uns poucos,
enquanto na ascendência popular há a mais forte tendência para a sedição.1

Calvino analisa três formas de governo, a monarquia, a aristocracia e a


democracia, o reformador encontra problema nas três formas, na monarquia 2, o rei
pode se tornar um tirano. na aristocracia3, há a possibilidade de controle de uns
sobre os outros e isso pode levar a uma facção. E na democracia 4 há uma séria
tendência à quebra da ordem ou revolta popular.
Mas mesmo vendo problemas nas três formas de governo, Calvino diz que a
melhor é a aristocracia, quanto a isso o reformador escreve:
6
(CALVINO, 2006, p. 453)
1
(CALVINO, 2006, p. 458)
2
Monarquia é uma forma de governo em que um monarca (tal como um rei ou imperador) exerce a função de
chefe de Estado e mantém-se em tal cargo até a sua morte ou abdicação. Existem duas principais formas de
monarquia: a absoluta, em que o poder do monarca vai além do de chefe de Estado e é superior ao dos outros
órgãos do governo, e a constitucional ou parlamentar, em que o poder do monarca é limitado por uma
Constituição, podendo ser meramente cerimonial.
3
O termo foi usado pela primeira vez por antigos filósofos gregos, que o usaram para descrever um sistema
político em que apenas os melhores cidadãos, escolhidos por meio de um cuidadoso processo de seleção, se
tornariam governantes, no qual o governo hereditário não seria permitido, a menos que os filhos dos governantes
tivessem melhor desempenho e fossem mais bem dotados com os atributos que tornam uma pessoa adequada
para governar em comparação com todos os outros cidadãos da política.
4
Democracia é um regime político em que os cidadãos no aspecto dos direitos políticos participam igualmente
— diretamente ou através de representantes eleitos — na proposta, no desenvolvimento e na criação de leis,
exercendo o poder da governação através do sufrágio universal. Ela abrange as condições sociais, econômicas e
culturais que permitem o exercício livre e igual da autodeterminação política.
7

Quando essas três formas de governo, das quais tratam os filósofos, são
consideradas em si mesmas, de minha parte longe estou de negar que a forma
que se sobressai muitíssimo às demais é a aristocracia, quer pura ou modificada
pelo governo popular, não deveras em si mesma, mas porque mui raramente
sucede que os reis não governem a si mesmos de tal modo que nunca discordem
do que é justo e direito, ou se deixem possuir de tanta intensidade que não
conseguem ver corretamente.5

Segundo Calvino, para frear os vícios e defeitos dos homens é mais seguro
quando diversos exerçam o governo, pois assim eles podem se prover de
aconselhamento mútuo, punindo aqueles que se exalta mais do que é justo. Para
defender essa teoria o reformador utiliza o argumento da experiência e da própria
Escritura Sagrada, onde instituiu entre os israelitas um sistema de governo
semelhante ao aristocrata (Êx 18.13-26; Dt 1.9-17).
O ponto mais importante para Calvino, não era a forma de governo em si, mas
se esta promovia entre o povo a liberdade:

E como de bom grado admito não haver nenhum gênero de governo mais ditoso
do que aquele em que a liberdade é combinada a uma conveniente moderação, e
devidamente constituída de modo a ser durável, assim também considero mui
ditosos aqueles a quem é possível usufruir desta condição, e se para conservá-la
e retê-la laboram árdua e constantemente, concordo que não fazendo de seu
ofício algo alheio. Mais ainda, mesmo os magistrados devem fazer o máximo
empenho para prevenir a liberdade, da qual foram designados guardiães, para que
não permitam seja ela diminuída, e muito menos violada.6

Os verdadeiros traidores, segundo Calvino, não são aqueles que assumem


uma forma de governo específica, mas aqueles que utilizam essas formas para
tirarem a liberdade de seus cidadãos. “Se nisto (promoverem a liberdade) forem
omissos ou pouco solícitos, são pérfidos traidores de seu ofício e de sua pátria”.
(Acréscimo meu)

3 O Estado e a Soberania de Deus

A tese calvinista sobre o estado não é baseada em uma teocracia1. Segundo


Kuyper a tese calvinista é uma fé política baseada na soberania de Deus, e que

5
(CALVINO, 2006, p. 458)
6
(CALVINO, 2006, p. 458)
1
Teocracia (do grego Teo: Deus + cracia: poder) é o sistema de governo em que as ações políticas, jurídicas e
policiais são submetidas às normas de algumas religiões. O poder teocrático pode ser exercido direta ou
indiretamente pelos clérigos de uma religião: a subdivisão de cargos políticos pode ser designada pelos próprios
líderes religiosos (tal como foi Justiniano I) ou podem ser cidadãos laicos submetidos ao controle dos clérigos
(como ocorre atualmente no Irã, onde os chefes de governo, estado e poder judiciário estão submetidos ao aiatolá
e ao conselho dos clérigos).
8

pode ser resumida em três pontos:

1. Somente Deus – e nunca qualquer criatura – possui direitos soberanos sobre o


destino das nações, porque somente Deus as criou, as sustenta por seu poderoso
poder, e as governa por suas ordenanças. 2. O pecado tem, no campo da política,
demolido o governo direto de Deus, e por isso o exercício da autoridade com o
propósito de governo tem sido subseqüentemente conferido aos homens como um
remédio mecânico. 3. E, em qualquer forma que esta autoridade possa revelar-se,
o homem nunca possui poder sobre seu semelhante em qualquer outro modo
senão por uma autoridade que desce sobre ele da majestade de Deus.2

Como oposição a esses pressupostos existem duas vertentes bem definidas


que é a Soberania Popular, que foi proclamada pela Revolução Francesa de 1789 e
a Soberania do Estado que foi desenvolvida por pensadores alemães.
“Entretanto, em oposição tanto à soberania popular ateísta dos enciclopedistas,
como a soberania do estado panteísta dos filósofos alemães, o calvinista mantém a
soberania de Deus, como a fonte de toda autoridade entre os homens”.3
Kuyper acrescenta que o calvinismo, apontando para a Soberania de Deus,
nos mostra que devemos honrar os magistrados, pois isso é uma exigência da
soberania divina, e embora o estado possa se tornar tirano e opressor o tribunal dos
Reis dos reis mantém o direito de apelação para todos os oprimidos, para quem a
oração do povo sempre sobe, abençoado nossa casa e nossa nação.

2
KUYPER, A. Calvinismo. 1ª. ed. São Paulo: Cultura Cristã, 2002. Pg 69
3
(KUYPER, 2002, p. 72)
9

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Sabemos que enquanto estivermos nesta terra nunca teremos governadores


justos e nem formas de governo perfeitas, pois o pecado sempre levará o homem a
busca pelo poder, nem que para isso seja necessário passear sobre sangue e
ossos. É por isso que as ideias políticas trazidas pela reforma protestante, através
de Calvino e tantos outros, são de fundamental importância. Pois ela leva em
consideração o pecado humano e sabe que para refreá-lo é necessário um Deus
soberano que imponha limites sobre ele. Por isso o sistema de governo que mais se
aproxima da perfeição tem o Senhor como fonte principal de autoridade.
Todo protestante acredita que as Escrituras Sagradas são sua única regra de
fé e de prática e que todas as pessoas devem moldar suas vidas através dela, e na
política não é diferente, cremos que Jesus é o soberano senhor e que ele governa
hoje e governará por toda a eternidade.
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CALVINISM AND POLITICS

ABSTRACT
In this article we will analyze the thinking of Calvinism in relation to politics. In
his analyses, Abraham Kuyper brings, in a primordial way, what is the vision that
Calvinism has of the state, and how far its sovereignty goes. In addition, sin affected
the entire political order, and the state can be an instrument of God to curb the
despotism of those who hold power.
Calvin in his Institutes clearly defended the active participation of Christians in
political matters, not only as indirect participants, as in democracies, but also directly
as civil magistrates. He also says that politics is not a worldly practice, but that it is
also part of the kingdom of God on earth, therefore, as Christians, we must actively
participate in it.
This article, in summary form, talks about the three forms of government cited
by Calvin in his Institutes, and demonstrates what the reformer thought of each of
them and which he considered his favorite.

KEYWORDS
Government; Policy; Society; Sovereignty; Calvinism; State.
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5 Bibliografia

CALVINO, J. As Institutas. Clássica. ed. São Paulo: Cultura Cristã, v. 4, 2006.

KUYPER, A. Calvinismo. 1ª. ed. São Paulo: Cultura Cristã, 2002.

MATOS, A. S. D. Monergismo. Disponivel em:


<http://www.monergismo.com/textos/calvinismo/calvinismo_alderi2.htm>. Acesso
em: 16 maio 2023.

MEETER, H. H. Bereianos Apologética e Teologia Reformada, 09 jun. 2015.


Disponivel em: <https://bereianos.blogspot.com/2015/06/o-calvinismo-politica-e-
biblia.html>. Acesso em: 16 maio 2023.

PORTELA, S. Ministério Fiel, 12 jul. 2009. Disponivel em:


<https://ministeriofiel.com.br/artigos/o-calvinismo-e-o-governo-civil/>. Acesso em: 16
maio 2023.

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