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Jogos e Brincadeiras na

Educação Física Escolar


Jogar e Aprender

Responsável pelo Conteúdo:


Prof. Dr. Fabio Luiz D´Angelo

Revisão Textual:
Prof. Me. Claudio Brites
Jogar e Aprender

• Introdução;
• Por que Ensinar Jogos e Brincadeiras na Escola?

OBJETIVOS DE APRENDIZADO
• Conhecer o potencial educativo dos jogos e brincadeiras para o desenvolvimento integral
das crianças em aprendizagens que envolvem as dimensões do fazer, saber, ser e conviver;
• Compreender as possibilidades de intervenção pedagógica que envolvem os jogos e as brin-
cadeiras na legitimação do Se Movimentar no currículo escolar;
• Valorizar os jogos e as brincadeiras como conteúdos que aproximam, na educação das crian-
ças, o presente e o futuro, o fazer e o compreender, a rua e a escola, o quadro e a quadra;
• Identificar as infinitas possibilidades de aprendizagens que são mobilizadas no espaço do
jogo e da brincadeira.
UNIDADE Jogar e Aprender

Introdução
Nesta unidade, vamos estudar e refletir sobre a pedagogia da educação física, mais
precisamente sobre o potencial educativo dos jogos e suas manifestações para o de-
senvolvimento integral das crianças em aprendizagens que envolvem as dimensões do
fazer, saber, ser e conviver. A ideia é que possamos nos sentir mais competentes para
argumentar a favor de uma intervenção pedagógica que envolve os jogos na legitimação
do Se Movimentar no currículo escolar.

Por que Ensinar Jogos e


Brincadeiras na Escola?
As melhores aulas que até hoje ministramos como professor de educação física pas-
saram pelos jogos e pelas brincadeiras. Por que foram as melhores aulas? Porque nos
sentimos cumprindo com o nosso ofício de professor que é o ofício de ensinar. Porque
nessas aulas, na maioria das vezes, vimos as crianças motivadas, interessadas e com-
prometidas com os seus estudos e as suas aprendizagens. Claro que as experiências de
ensino/ensinar e aprendizagem/aprender são complementares e indissociáveis, mas não
podemos fugir à nossa responsabilidade de ser professor em um país que enfrenta há
décadas o desafio de qualificar a educação oferecida nas escolas. É por este motivo que
nos espaços de estudo, planejamento, formação permanente e intervenção pedagógica
recorremos à seguinte premissa: Só há ensino, quando houver aprendizagem!

A aproximação entre ensino ↔ aprendizagem


Vamos conversar um pouco mais sobre esta conexão entre o ensino e a aprendiza-
gem? Da nossa parte, como professores, é preciso encarar de frente que a aprendizagem
das crianças passa também pela nossa aprendizagem. Como nos ensinou o Professor
Lino de Macedo, (2005), na lógica de uma escola inclusiva, existe uma interdependência
entre ensinar e aprender. Para o mestre Lino, “uma relação pedagógica ou educacional
pautada pela lógica da inclusão supõe que ultrapassemos a forma usual de dependência/
independência professor-aluno em favor de um modo mais interdependente” (p. 49). Vo-
cês, caros leitores, como alunos ou como professores já escutaram, no ambiente escolar,
coisas do tipo: “Eu ensinei, mas o fulano não aprendeu; o problema é dele!”, “Aquela
menina nunca vai aprender tal conteúdo, ela não nasceu para isso!”, “O meu grupo-classe
é muito heterogêneo, por isso alguns aprendem mais do que outros!”, “De que adianta o
esforço de planejar as aulas, os alunos não querem nada com nada!”. Na forma de pensar
e agir dos professores acima, parece predominar a exclusão: se os alunos não aprendem,
o professor ensinou e foram eles que não aprenderam, ou seja, a atividade ou qualidade
da ação do professor é independente dos resultados ou das aprendizagens construídas.

Sabemos todos e todas que são muitas as variáveis que fazem parte e interferem nos
processos de aprendizagem e não estamos aqui para crucificar os professores. A nossa

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ideia é provocar reflexões sobre a importância do estudo e de uma formação inicial
ou permanente que possa realmente aproximar professores e estudantes nas aulas de
educação física. Isso porque ao aproximar professores e estudantes estamos também a
associar o ensino e a aprendizagem.

Pode o leitor nos questionar: O que tudo isso tem a ver com o ensino de jogos e brin-
cadeiras na escola? Até onde pode nos interessar uma reflexão sobre a aproximação en-
tre ensino e aprendizagem, quando a temática é jogo? Por que ponderar sobre o desafio
de fazermos da escola um espaço mais inclusivo, onde todos e todas tenham assegurado
o seu direito à aprendizagem?

Estamos mais do que a conversar, estamos, na verdade, a compartilhar uma visão de


mundo e de educação que irá justificar, mais adiante, uma proposta de ensino dos jogos
comprometida com a cidadania. Ensinar jogos e brincadeiras na escola é, antes de tudo,
considerar conteúdos e princípios que expressam o nosso jeito de ser e de enxergar a
nossa profissão de educador, a escola e a sociedade. Uma ótima oportunidade para
celebrarmos a vida de ser educador, de ser um professor/pedagogo da educação física,
não é mesmo?

E o que vem a ser um pedagogo, seja ele da educação física ou qualquer outra área
do saber?

Para a etimologia (VIARO, 2004), a palavra pedagogo vem da raiz grega √pawid – “criança”
(paîs), ide. *pou, “pequeno” (paucus “pouco”, puer “menino”). O pedagogo <pai.agog.ó.s> é
aquele que faz pedagogia, que conduz as crianças pequenas, os meninos à escola; é o especia-
lista em pedagogia.

E o que é a pedagogia? A pedagogia é a teoria da prática educativa. Tentando simpli-


ficar, diríamos que a pedagogia está na fronteira da relação educador-educando. Na es-
cola se faz pedagogia, mais precisamente na relação professor-aluno e na orientação do
processo de ensino e aprendizagem. O nobre professor Dermeval Saviani (2010), nos
chama a atenção para a importância de se fazer, na escola, uma pedagogia comprome-
tida com a aprendizagem. Diz o professor, “o pedagogo é, então, um profissional que
busca compreender a educação em suas várias determinações, nos diversos aspectos
que a constituem, tendo em vista organizar o processo educativo da maneira mais ade-
quada para garantir a eficácia do ato de educar”.

Orientar o processo de ensino e aprendizagem a partir de uma intencionalidade e


da organização e sistematização pedagógica é o que nos diferencia como professores,
certo? As crianças e os jovens não aprendem só na escola, mas na presença de pedago-
gos, deveriam ter aumentadas as suas chances de aprender e construir conhecimentos
sobre si, sobre o outro e sobre o mundo; conhecimentos para uma vida melhor, com
mais liberdade, autonomia, responsabilidade e protagonismo. Estamos, neste sentido, a
valorizar a autoridade dos professores na escola, não autoridade no sentido de autorita-
rismo, mas autoridade no sentido de autorização, concordância e licença para a assumir
a responsabilidade de ensinar.

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UNIDADE Jogar e Aprender

A aproximação entre educador ↔ educando


Como nos ensinou Paulo Freire, o patrono da educação brasileira, uma educação
para a autonomia e a libertação, como acenamos acima, exige uma pedagogia huma-
nista e dialógica, de encontros permanentes entre professores e estudantes. Em “Peda-
gogia do Oprimido”, (1982), Freire nos diz: “Ninguém educa ninguém, ninguém educa
a si mesmo, os homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo”. A pedagogia do
jogo e das aulas de educação física que aqui começamos a desenhar é uma pedagogia
pautada pelo princípio da construção coletiva1, que busca transpor, ou melhor, romper
com uma relação perversa em que os alunos vivem a memorizar e a reproduzir os sa-
beres que são trazidos e entregues pelos professores durante as aulas. Para Freire, uma
educação para a autonomia e a libertação é, antes de tudo, uma educação problematiza-
dora, uma educação mais horizontal e menos contraditória na relação entre educadores
e educandos. Senão, vejamos (FREIRE, 1982, p. 78):

Em verdade, não seria possível à educação problematizadora, que rompe


com os esquemas verticais característicos da educação bancária, rea-
lizar-se como prática da liberdade, sem superar a contradição entre o
educador e os educandos. Como também não lhe seria possível fazê-lo
fora do diálogo.
É através deste que se opera a superação de que resulta um termo novo:
não mais educador do educando do educador, mas educador-educando
com educando-educador.
Desta maneira, o educador já não é o que apenas educa, mas o que,
enquanto educa, é educado, em diálogo com o educando que, ao ser
educado, também educa. Ambos, assim, se tornam sujeitos do processo
em que crescem juntos e em que os “argumentos de autoridade” já, não
valem. Em que, para ser-se, funcionalmente, autoridade, se necessita de
estar sendo com as liberdades e não contra elas.

Uma pedagogia da educação física e do jogo fundada no pressuposto da educação


libertadora e não bancária e no princípio da construção coletiva, em que educador-
-educando e educando-educador dialogam e se fazem parceiros no processo de ensino
e aprendizagem, é, para nós, uma pedagogia comprometida com a educação integral
das crianças e jovens brasileiros.

Educação bancária: É aquela que conduz os educandos à memorização mecânica do con-


teúdo narrado. Mais ainda, a narração os transforma em “vasilhas”, em recipientes a serem
“enchidos” pelo educador. Quanto mais vá “enchendo” os recipientes com seus “depósitos”,
tanto melhor educador será. Quanto mais se deixem docilmente “encher”, tanto melhores
educandos serão.
Educação libertadora/problematizadora: É aquela que se impõe aos que verdadeiramente
se comprometem com a libertação e que não pode fundar-se numa compreensão dos homens
como seres “vazios” a quem o mundo “encha” de conteúdos; não pode basear-se numa
consciência especializada, mecanicista e compartimentada, mas nos homens como “corpos

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Princípio da Construção Coletiva – Será abordado de uma forma mais aprofundada posteriormente.

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conscientes” e na consciência como consciência intencionada ao mundo. Não pode ser a do
depósito de conteúdos, mas a da problematização dos homens em suas relações com o mundo.

Fonte: FREIRE, 1982

A aproximação jogo ↔ educação integral ↔ cidadania


Advogamos por uma educação integral, que defendida pela ótica do direito, faz refor-
çar a ideia de que os espaços de ensino e aprendizagem, dentro e fora da escola, devem
contribuir para o desabrochar de todas as potencialidades humanas. Entendemos que
autonomia e liberdade, expressas em valores, saberes e atitudes que envolvem tomada
de decisão, leitura crítica de mundo, responsabilidade coletiva, sustentabilidade social e
ambiental, valorização do diálogo e da democracia e ações de protagonismo são con-
quistas, ou melhor, frutos de uma escola que pensa e atua na perspectiva da aprendiza-
gem multidimensional e do desenvolvimento global.

Quando assumimos a responsabilidade de contribuir com o desenvolvimento global


das crianças e jovens que frequentam a escola e as “nossas” aulas de educação física,
estamos referendando a educação integral como oportunidade para o desenvolvimento
pleno da pessoa e que sugere a integralidade como um princípio pedagógico em que,
segundo Gadotti (2009, p. 42), “a aprendizagem é vista sob uma perspectiva holística”.
Refletida na ótica do sujeito que aprende, essa integralidade (perspectiva holística) se
processa pelo equilíbrio entre os aspectos cognitivos, afetivos, psicomotores e sociais,
conectando a educação ao desenvolvimento das capacidades físicas, intelectuais, sociais
e afetivas de crianças e adolescentes (GUARÁ, 2009). Essa visão da educação integral,
como um jeito de educar que valoriza todas as dimensões do ser humano, é destaque
em outras definições pesquisadas:

A educação integral considera o sujeito em sua condição multidimensio-


nal: física, cognitiva, intelectual, afetiva, social e ética, inserido num con-
texto de relações, assim como o desenvolvimento de todas essas dimen-
sões humanas como condição de cidadania, num projeto democrático de
sociedade. (CENPEC, S.d.)
A concepção de educação integral que a associa à formação integral
traz o sujeito para o centro das indagações e preocupações da educação.
Agrega-se à ideia filosófica de homem integral, realçando a necessidade
de desenvolvimento integrado de suas faculdades cognitivas, afetivas, cor-
porais e espirituais, resgatando, como tarefa prioritária da educação, a
formação do homem, compreendido em sua totalidade. (GUARÁ, 2006)
A educação integral é uma concepção que compreende que a educação
deve garantir o desenvolvimento dos sujeitos em todas as suas dimensões
– intelectual, física, emocional, social e cultural e se constituir como pro-
jeto coletivo, compartilhado por crianças, jovens, famílias, educadores,
gestores e comunidades locais. (CENTRO DE REFERÊNCIAS EM EDU-
CAÇÃO INTEGRAL, S.d.)

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UNIDADE Jogar e Aprender

Pensar toda uma intervenção pedagógica para o ensino de jogos nas escolas e nas
aulas de educação física, a partir de uma visão de mundo e de educação que valoriza
aspectos como: a) o valor da construção coletiva; b) a importância do diálogo e da inte-
ração entre os sujeitos (educadores-educandos/educandos-educadores) e os objetos de
conhecimento que envolvem liberdade, autonomia e protagonismo e c) a relevância da
integralidade como um conceito que expressa a oportunidade de vivermos experiências
de aprendizagem que aproximam as dimensões intelectual, motora, social, afetiva, mo-
ral e cultural é, no final das contas, se envolver e se engajar com um propósito maior,
educar para a cidadania. É nessas idas e vindas que fazemos ao longo do texto, transi-
tando entre ensino ↔ aprendizagem, educador ↔ educando, jogo ↔ educação integral,
educação integral ↔ cidadania, que encontramos os argumentos mais potentes para
justificar a presença do jogo na escola.

Trocando Ideias...
Seria possível pensarmos o ensino dos jogos nas escolas sem fazer uma conexão deste
fenômeno da cultura corporal com a nossa visão de mundo e de educação? Que sujeitos
queremos formar? Nossa ambição é “grande”, mas tem seu valor, concordam? Vamos con-
versar mais sobre esta relação entre jogo, educação física, educação integral e cidadania?

O sociólogo e historiador José Murilo de Carvalho considera nos seus escritos que
cidadão é aquele que tem direito à vida, à propriedade, à liberdade e à igualdade peran-
te a lei. É também cidadão aquele que exerce o seu direito de participar do destino da
sociedade quando vota ou é votado. O direito à educação, ao trabalho, ao salário justo
e à saúde são aspectos igualmente importantes na construção do conceito de cidadania
(CARVALHO, 2014).

Exercer a cidadania plena, segundo Pinsky (2003, p. 9), “é ter direitos civis, políti-
cos e sociais”. Para o autor, cidadania não é uma definição estanque, mas um conceito
histórico que se atualiza nos diferentes contextos da vida humana. Na sua acepção mais
ampla, cidadania é algo a ser conquistado e que se expressa na triangulação dos dife-
rentes direitos, isto é, o exercício de alguns direitos não gera automaticamente o acesso
a outros. Como nos alerta Carvalho (2014, p. 15), “a cidadania inclui várias dimensões
e algumas podem estar presentes sem as outras”. De acordo com o autor, a cidadania
plena, que combina liberdade, participação e igualdade para todos, é um ideal talvez
inatingível, mas serve de referência para que possamos julgar a qualidade da cidadania
em cada país e em cada momento histórico.

No cenário atual da educação física nos interessa pensar se existe relação possível
entre o jogo, a educação integral e a cidadania, porque, respeitadas a complexidade e
as limitações do nosso campo de atuação (componente curricular), definimos como sua
finalidade ou objetivo “maior” de aprendizagem a aquisição por parte das crianças
de conhecimentos que favoreçam uma vida de melhor qualidade, de direitos civis
e sociais, de autonomia, ética e responsabilidade para consigo e para com os
outros. Buscamos amparo em marcos legais como a Lei de Diretrizes e Bases, LDB
(Artigo 26, parágrafo 3º) e a Base Nacional Comum Curricular, BNCC, e encontramos
referências que definem a educação física como um dever da escola, um direito de todos

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e todas as crianças e jovens brasileiros e uma área (componente curricular) cuja prática
pedagógica tem a finalidade de promover o desenvolvimento integral e o consequente
exercício da cidadania.

A LDB, Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (9694/96), no artigo 26, parágrafo
3°, coloca a Educação Física como disciplina integrada a proposta pedagógica da escola. Va-
loriza a Educação Física como área do conhecimento e disciplina importante para formação
do aluno.
A BNCC, Base Nacional Comum Curricular, Ministério da Educação – Brasília, 2018, indica
a Educação Física como um dos componentes curriculares da área de linguagens. O docu-
mento sugere competências, objetos de conhecimento e habilidades para a educação bási-
ca, nos ciclos do ensino fundamental e ensino médio.

Como a relação do jogo com a educação integral e a cidadania se manifesta no dia


a dia da nossa prática pedagógica? Aprendemos que a aplicação de documentos e re-
ferenciais curriculares, como um direito, exige mais do que boas intenções; ela supõe
competência pedagógica e educacional e implica a tradução de valores e princípios em
ações. Nossa premissa é que a educação, seja ela através do jogo ou não, é fator impor-
tantíssimo na construção da cidadania. Para Carvalho (2014), a educação é uma exce-
ção na sequência de direitos. Definida como direito social, ela tem sido historicamente
pré-requisito para a expansão de outros direitos, porém, a ineficiência na aplicação dos
projetos educacionais tem sido sempre um dos principais obstáculos à construção da
cidadania civil e política.

A professora Nilda Teves Ferreira (1993), aprofunda essa reflexão quando nos chama
a atenção para a necessidade de que educar para a cidadania não é somente questão
de conhecimento, mas, também, de vontade política e de ter clareza de quais são os
pressupostos e as bases que orientam o processo educativo. Como disse a professora,
ainda no final do século XX, “Educar o homem para a cidadania continua sendo, por-
tanto, um problema central, que traz para a arena das discussões a questão dos valores
subjacentes a essa formação” (FERREIRA, 1993, p. 3). Educar para a cidadania através
da educação física não admite reduzir sua prática aos conhecimentos técnicos e restritos
a cada modalidade ou ao discurso de que ela educa per se. Sobre isso, a autora adverte,
“Como um fim educacional, por si só, ela (a cidadania) não diz nada. É necessário que
se explicitem os fundamentos desse conceito de cidadão, os valores que o suportam e as
condições objetivas necessárias para efetivá-lo” (FERREIRA, 1993, p. 6).

Os nossos valores se efetivam no compromisso com a aprendizagem, com a transfor-


mação e o desenvolvimento humano. São princípios como inclusão de todos, educação
integral, respeito à diversidade, construção coletiva e autonomia2 que regem a nossa
prática e nos convidam a romper e transcender a ideia de educação para a cidadania
fundada apenas na racionalidade técnica, com pretensões de conformar o homem a
modelos postos e considerados ideais. Essa racionalidade prevê a cidadania de confor-
mação, de adaptação, e nunca de construção da sociedade a partir da ação do próprio
ser humano em seu processo de emancipação e libertação.

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Princípios da Educação Física Escolar que serão abordados com mais profundidade posteriormente.

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UNIDADE Jogar e Aprender

A cidadania para a libertação demanda o enfrentamento das relações de poder que


se constituem na vida em sociedade. O espaço do cidadão se define de acordo com o
maior ou menor peso que cada um dos atores como o Estado, o Mercado e a Comuni-
dade, assumem na organização social. Estamos acostumados com um sistema gregário,
mais particularmente, um sistema educacional, em que cidadania é algo abstrato, sem
a participação concreta da Comunidade, no caso as crianças e os jovens. Ora o que
prevalece é a mão do Estado, quase sempre a serviço dos mais poderosos, ora o poder
do Mercado que, no processo de globalização, fez excluir uma legião de estudantes do
acesso ao conhecimento e direitos sociais.

Não basta ir para a escola ou praticar esporte, ginásticas, lutas, danças, brincadeiras
ou outras manifestações do jogo para ser ou se tornar um cidadão. Para Ferreira (1993,
p. 12), “A cidadania vai além da aquisição do conhecimento de conteúdos sistematiza-
dos”. Se na escola a educação para a cidadania não reduz os objetivos dos componentes
curriculares ao domínio de seus conteúdos, fazendo-os repercutir em outras esferas, es-
pecialmente na vida em sociedade, o mesmo se pode dizer do jogo: o jogo não pode ter
fim nele mesmo; não se deve ensinar o jogo pelo jogo, mas ensiná-lo incluindo elemen-
tos que sugiram possibilidades de transcendência, da educação que possa ultrapassar os
muros da quadra.

Quando o assunto é educação para a cidadania, como não cair na armadilha de uma
pedagogia da educação física que carrega consigo a visão mecanicista, mera reproduto-
ra da discriminação, da seletividade e de modelos pautados pela exclusão e marginaliza-
ção dos sujeitos? Por outro lado, como não fazer predominar a visão messiânica, que vê
a educação física como salvadora da pátria e redentora de todos os males da sociedade?
A resposta está na compreensão de que não basta inserir as pessoas no mundo das le-
tras, das ciências, das artes ou da educação física (o mundo do Se Movimentar). O modo
como se dá esse ensino, o seu efeito e poder de transformação é o que vai decidir a
formação para a cidadania.

O que há então de tão interessante no jogo, quando pensamos na educação integral


e na formação da cidadania?

O jogo, nas suas mais diversas manifestações, dá a possibilidade de seu praticante


viver a integralidade. Quando nos referimos às crianças e aos jovens, a razão de existir
da escola, diríamos que o jogo tem o potencial de fazer desabrochar o real valor de uma
educação que respeita o lugar do corpo em movimento, o chamado Se Movimentar, na
aprendizagem e no desenvolvimento integral dos alunos e das alunas.

Tese de Doutorado defendida em 2017, na Escola de Educação Física e Esporte da Univer-


sidade de São Paulo (EEFEUSP), com o título “Avaliação de uma sequência didática do
programa oficinas do esporte em crianças de 8 a 11 anos”, apresenta evidências inte-
ressantes sobre o potencial do jogo, como conteúdo privilegiado da educação física, para a
educação integral das crianças e jovens. Disponível em: https://bit.ly/2TOX4fe

Por que ensinar jogos na escola? Porque o jogo se constitui, na nossa visão, no conte-
údo mais adequado ao conceito e a oportunidade de aprender a Se Movimentar, ou seja,

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oportunizar o movimento é favorecer uma educação que integra o corpo e a mente, o
fazer e o compreender e o sensível e o inteligível.

Jogo, Se Movimentar e aprendizagem


Todas as crianças, durante as rotinas escolares e, principalmente, nas aulas de edu-
cação física, devem ser estimuladas a estar sempre em movimento. Estamos falando do
movimento para o jogo, o que para o professor significa movimento para boas aprendi-
zagens. A lógica dessa orientação didática está em afirmar que a aprendizagem se faz
em movimento. Não se trata aqui do movimento atrelado à visão instrumental ou biológi-
ca somente. Para nós não há a separação afirmada pela tradição entre o que é corporal e
o que é mental; procuramos superar essa dicotomia, especialmente quando defendemos
o princípio da educação integral e a formação para a cidadania. É em movimento que as
crianças aprendem de maneira integral, é no Se Movimentar que o jogo ganha sentido
e mobiliza a ação dos sujeitos (que jogam) sobre os diferentes objetos de conhecimento.
Mauri (1998, p. 88), chama-nos a atenção para a natureza ativa e construtiva do conhe-
cimento. Para ela, “[...] a construção de conhecimento pelo aluno ou pela aluna é possível
graças à atividade que eles desenvolvem para atribuir significado aos conteúdos apresen-
tados”. As crianças são ativas quando perguntam, quando se dispõem a superar um desa-
fio, quando pedem ajuda, quando testam corporalmente uma hipótese levantada para a
realização de um movimento, quando constroem coletivamente as regras do jogo, enfim,
quando estabelecem relações entre os diversos objetos de conhecimento, atribuem-lhe um
significado e elaboram uma representação pessoal sobre a realidade.

Importante!
Vocês estão lembrados do conceito de Se Movimentar apresentado anteriormente? O Se
Movimentar expressa uma pedagogia do movimento que se faz coerente com os fun-
damentos e os conceitos de corpo-sujeito e corpo-vivido, onde aprender é viver as expe-
riências mais positivas com o movimento. O Se-movimentar é interpretado como uma
conduta humana, onde a Pessoa do “Se movimentar” não pode simplesmente ser vista
de forma isolada e abstrata, mas inserida numa rede complexa de relações e significados
para o Mundo, que configura aquele “acontecimento relacional”, onde se dá o diálogo
entre Homem e o Mundo” (KUNZ, 2001, p. 174).

Na relação entre o Se Movimentar e a aprendizagem, os escritos de Freire (1992) e


Demo (2002) são relevantes e contribuem para fortalecer a nossa prática pedagógica.
No ensino do Se Movimentar vale o recado de Freire, quando aborda as pedagogias que
fazem controlar e confinar o corpo das crianças nas escolas, como se a aprendizagem só
fosse possível a partir de atitudes de imobilidade, rigidez e controle. No entanto, apren-
demos que é difícil separar a aprendizagem do movimento, não é mesmo? Corpo livre
para aprender é criança livre nas suas ideias, na sua criatividade, na sua curiosidade, nos
seus sentimentos, isso, sim, um possível caminho para a educação cidadã.

Freire (1992) e Demo (2002) rejeitam a ideia de simplificação e acolhem a ideia de


complexidade. Para Demo, fiel crítico do ensino instrucionista, a aprendizagem, sob o

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olhar da complexidade, é algo dinâmico e não linear. Suas palavras, ao caracterizar a


aprendizagem sob o paradigma da complexidade, são marcantes: “Sua identidade não
é aquela de sempre a mesma coisa, mas da mesma coisa em processo, em vir a ser”
(DEMO, 2002, p. 13). Encontramos aqui uma oportunidade para legitimar ainda mais
o nosso argumento a favor do jogo nas aulas de Educação Física. Conforme acenamos
na Unidade 01, jogo e complexidade nos são temas muito caros e estimados. O jogo,
na sua complexidade, se configura como um eterno vir a ser; ele nunca está pronto ou
acabado, muito pelo contrário, ele está a todo o momento nos cobrando não só a ma-
nutenção e o aperfeiçoamento de aprendizagens já construídas, como nos convidando a
vencer novos desafios e a produzir novos conhecimentos, novas aprendizagens.

Esta ideia de olhar para o fenômeno jogo como gerador de movimento e aprendi-
zagem é, para nós muito importante, pois nos faz olhar para o futuro, em direção dos
adultos e da sociedade que queremos formar. Porém, como olhar para a futuro, sem
esquecer o presente. Vamos nos aproximar um pouco mais do chão da escola, ou me-
lhor, da quadra? Como fazer uma conexão entre os fundamentos da pedagogia até aqui
sugerida com os desejos e as necessidades presentes das crianças e jovens que estudam
nas nossas escolas?

Aprender para Jogar ou Jogar para Aprender?


A melhor resposta talvez esteja na capacidade dos professores em articular o presen-
te e o futuro, ou seja, o aprender para jogar e o jogar para aprender. Vamos conversar
um pouco sobre a nossa relação com as crianças e como elas comunicam, muitas vezes
verbal ou corporalmente, as suas impressões e percepções sobre as experiências de
jogar corporalmente nas aulas de educação física.

Na nossa trajetória de professor, nunca vimos um aluno ou uma aluna chegar até
nós, e falar: “Professor, você me ensina a jogar futebol, porque jogando futebol eu vou
me tornar uma criança mais cooperativa, participativa, crítica e consciente dos meus
direitos e deveres”. Estranho, não é mesmo? Difícil até de entender que este “discurso”
não esteja na “boca” da gurizada, afinal, fomos, todos nós professores, educados para
reproduzir e ensinar o modelo de que nossas aulas vão salvar vidas por aí, não é mesmo?
A verdade é que as “coisas” não são tão “simples” assim!

Nas aulas, ao longo de quase trinta anos como professor, o que mais escutamos,
principalmente no início das classes foi: “Professor, hoje vai ter jogo?” No início de
toda esta história como educadores, confessamos uma grande uma dificuldade para
lidar com esta pergunta. Por muito tempo, a nossa resposta foi: “Primeiro vamos fazer
alguns exercícios, treinar nossas habilidades e, depois, no final da aulas, se vocês não
fizerem bagunça, jogamos um pouquinho”. O que fazíamos era lembrar do nosso tempo
de menino e das horas e horas que passamos, nas aulas de educação física e esportes,
correndo em círculo para aquecer o corpo, chutando a bola na parede para aprimorar
o passe e o chute, contornando os cones para melhorar o drible etc. Parece que esta
experiência ficou tatuada no nosso corpo e os anos de estudos na faculdade não foram
suficientes para romper com este modelo cartesiano onde prevalece a visão de que se o
sujeito souber as partes, ele vai saber o todo. Por isso, não nos culpem! O que fizemos
foi apenas repetir o que vivemos como criança e estudante universitário.

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O que aprendemos com tudo isso? Aprendemos que quando os meninos e as meninas
vêm para a nossa aula para jogar futebol, vôlei, queimada, pique à bandeira, pega-pega
ou qualquer outro jogo, eles precisam ser satisfeitos quanto a isso. Nesta perspectiva,
eles precisam aprender para jogar, ou seja, precisam desenvolver competências mínimas
para conseguir participar dos espaços de prática do jogo e suas manifestações, sejam
eles formais (escola) ou informais. Lembrem-se do seu tempo de criança ou até mesmo
das suas experiências como educador. Quantas vezes sentimos na pele ou já vimos
crianças serem excluídas por não conseguirem dar um “trato” refinado para a bola, um
dos brinquedos mais queridos da cultura infantil? Quem nunca escutou nos campinhos
de terra ou nos recreios escolares algo do tipo: “Sai daí seu perna de pau”, “Sai fora seu
grosso”, “Como você é ruim”. Por isso, defendemos uma educação corporal, a educação
do Se Movimentar que nos ensina a se comunicar corporalmente nos esportes, nas
brincadeiras, nas danças ou em qualquer manifestação do jogar.

A lógica das crianças, às vezes, é mais ou menos assim, quem não sabe ou não apren-
deu, não joga. A criança real é amável, sensível e tolerante, mas em alguns momentos
também é cruel, impaciente e egocêntrica. Aprender para jogar, neste sentido, quer
dizer inserir-se socialmente, sentir-se incluído e com a sensação de que “sou capaz”, de
que “consigo jogar”. Vejam que a palavra aprender é realçada e valorizada. Isto porque
acreditamos que ninguém nasce mais ou menos educado na sua corporeidade e na
expressão do Se Movimentar. Assim, se tem alguém que aprende, existe alguém que
ensina, alguém que pode contribuir para que todos tenham a oportunidade de exercer
seu direito ao Se Movimentar, seja como lazer, educação, rendimento ou trabalho.

Bem, mas se é preciso ensinar bem o jogo para todos, não podemos esquecer que
o nosso compromisso é com a educação para além dos muros da quadra. Como pro-
fessor, nos permitimos olhar para o futuro e ver no jogo o princípio de que as crianças
também jogam para aprender. Imaginamos que esta ideia do jogar para aprender vai
de encontro à proposta de que o jogo, na sua dimensão educacional, não tem fim nele
mesmo. A nossa missão é potencializar valores como a criatividade, a cooperação, o
protagonismo, o respeito etc.; todos muito presentes no momento do jogo e da prática
do Se Movimentar. A isso damos o nome de cidadania, um conjunto de aprendizagens
e conhecimentos que servem não só para os tempos em que a bola rola na quadra, mas
principalmente para as situações de vida que acontecem fora do jogo. Quando nos per-
guntam se é possível educar para a cidadania através do jogo, respondemos que sim.
Porém, fazemos uma ressalva: tudo é uma questão de método.

O grande desafio está em articular as intenções e as ações. Falando de forma mais


simples, é preciso que os discursos sejam colocados em prática. Todos os professores
devem orientar as suas aulas de acordo com um jeito de fazer que objetiva a construção
de conhecimentos que, não só estejam vinculados ao jogar bem, mas também possam
contribuir para a formação da cidadania. Mais do que jogar para aprender ou aprender
para jogar, o método se orienta pela máxima de que jogar se aprende jogando. Nada
a ver com aquele professor que solta a bola e vai tomar um cafezinho ou ler o jornal.
As famosas rodas de conversa, as boas perguntas, os bons desafios, a diversificação dos
materiais, a caixa de ferramentas recheada, a lousa para os registros, as tarefas com-
partilhadas, a interação com os alunos, o jogo e suas manifestações fazem parte de um
método que se caracteriza pela qualidade da intervenção do professor e pela ação das
crianças como construtores do próprio conhecimento.

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UNIDADE Jogar e Aprender

Neste aspecto Jogar para Aprender e Aprender para Jogar são como duas faces
de uma mesma moeda, ou seja, complementares, irredutíveis e indissociáveis. O fim
deste processo está em acreditar numa pedagogia do jogo que integra o fazer e o com-
preender, que fomenta a tomada de consciência através do conflito, da contradição,
algo que o Professor João Batista Freire (2012), descreve como “voar sobre a ação, ver
dentro de nós o que a gente viu ou fez fora de nós, olhar para dentro e ver com clareza
a própria ação realizada”. Todas as vezes que nas aulas diversificamos, fazemos uma
variação ou criamos um obstáculo para os alunos, provocamos uma contradição entre o
velho e o novo, entre aquilo que já sabemos e aquilo que devemos aprender. Aí os alunos
ficam com dúvidas. Essas dúvidas geram reflexões, compreensões e obrigam a todos a
olhar para dentro de si. Olhar para dentro é tomar consciência, é mais ou menos como
saber o que se faz, saber o que se sabe.

E o que isso tudo tem a ver com cidadania? A resposta é simples, simples no sentido
de simplicidade e não de facilidade. Crianças e jovens que nas experiências de jogar
tomam consciência e sabem o que sabem e o que fazem, fortalecem o seu pensamento.
O pensamento fortalecido é o primeiro passo para o exercício da cidadania. Sabem
por que? Quando eu tenho o pensamento fortalecido, tenho mais condições de fazer as
boas escolhas, sem que os outros o façam por mim. Isso quer dizer autonomia, atitude
essencial para a formação da cidadania.

A pedagogia do jogo e os objetivos de ensino


O caminho está dado! Professores assumirem o desafio e a responsabilidade de com-
patibilizar, na prática e intervenção pedagógica, o jogar para aprender e o aprender
para jogar como um caminho para a educação do Se Movimentar e por disseminar,
através do jogo, os valores que realizem a ideia de termos pessoas melhores, habitando
um mundo melhor. Neste caminho de transição para a próxima unidade, que tal alinhar-
mos algumas questões que se referem à sistematização de uma pedagogia e um método
de ensino do jogo que seja coerente com os pressupostos colocados acima?

Na obra de Freire (1998), encontramos alguns princípios pedagógicos que podem nos
ajudar a alicerçar a nossa prática. Por seu caráter bem objetivo e com foco na ação dos
professores, nos permitimos dizer que esses princípios se configuram como objetivos
de ensino. Eles nos orientam a como caminhar das belas intenções para a uma prática
mais coerente e consistente, quando a nossa atenção deve estar voltada para a constru-
ção de uma pedagogia do jogo que seja universal e inclusiva. Não podemos esquecer de
dizer que esses objetivos foram pensados para o ensino do esporte, mas permanecem
coerentes com a pedagogia do jogo; isso porque durante todo o nosso percurso, temos
defendido a ideia de que o esporte é uma manifestação do jogar.

Jogo e jogar, nos próximos parágrafos, podem ser substituídos pelas práticas conhecidas
como brincadeiras, esportes, danças, lutas etc.

• Ensinar o jogo a todos e todas: nossa concepção de educação física, como um


componente curricular presente na escola, não admite exclusão. Portanto, em

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nossas práticas pedagógicas e aulas, não há seleção ou exclusão. Não nos furtamos
à responsabilidade de que o jogo, como nosso objeto de ensino, deve ser ensinado
com competência e qualidade. Porém, quando partimos do pressuposto de que o
jogo é conteúdo a ser aprendido, devemos assumir o compromisso de ensiná-lo a
todos e todas. O desafio está em romper com modelos de ensino que, muitas vezes,
acabam por dar atenção somente àqueles ou àquelas que, por algum motivo, gené-
tico ou ambiental, apresentam maiores habilidades. Entendemos a importância de
ampliar a educação cultural de um povo, porém, o que está ao nosso alcance tem
limites. Não podemos dar conta de todo o leque de necessidades educacionais das
crianças e dos jovens. Lidamos com o jogo, ele é o nosso principal conteúdo, o
tema gerador de uma pedagogia que pretende ser forte. Mesmo considerando os li-
mites de nossa atuação, naquilo que nos toca, o jogo será ensinado a todos e todas,
independentemente de credos religiosos, de cor da pele, de gênero, de opção sexu-
al, de idade, de constituição física, ou qualquer outra característica. O compromisso
é com a inclusão, a participação e a nossa premissa está em acreditar que qualquer
pessoa, dentro das suas potencialidades e limitações, pode aprender a jogar;
• Ensinar bem o jogo a todos e todas: nas aulas de educação física o jogo é tra-
tado como um direito de todos e todas, mas não basta que o cidadão (crianças e
jovens) tenha esse direito reconhecido apenas como uma vivência. Ele deve ter o
direito de aprender o jogo para poder praticá-lo e, assim, usufruir das coisas boas
da vida. O reconhecimento desse direito, porém, para nós vai mais longe, além de
aprendê-lo e praticá-lo, o cidadão tem o direito de aprendê-lo bem, para praticá-lo
com qualidade. Não importa se em menor ou maior tempo, é preciso ter paciência
e conhecer cada aluno e cada aluna, acreditando que todos e todas, dentro de suas
limitações e das suas potencialidades motoras, cognitivas e socioafetivas, podem
jogar com qualidade e bom desempenho;
• Ensinar mais do que o jogo: de modo geral, onde quer que se ensine o jogo, dá-
-se por cumprida a missão quando as crianças mostram boas habilidades na prática
das brincadeiras, esportes, danças, ginásticas, lutas etc. Entretanto, trata-se, ainda,
apenas de um bem fazer, um fazer com êxito, um exercício de habilidades que não
ultrapassa os limites da própria prática. Cada aula de educação física ministrada
na escola deve ir além, deve deixar uma herança para a vida dos alunos. O papel
do jogo e suas manifestações ultrapassam o ensino dos fundamentos e técnicas e
incluem os seus valores subjacentes, ou seja, conteúdos relacionados às dimensões
atitudinal e conceitual. A questão que se coloca é a seguinte: Que conhecimentos
os alunos deverão adquirir a respeito do jogo e suas manifestações, a fim de se tor-
narem cada vez mais competentes para enfrentar as exigências da vida social, exer-
citar a cidadania e melhorar sua condição humana? Cada aula deverá deixar uma
herança para a vida dos alunos. Quando um jovem aprende, por exemplo, o jogo
da queimada, por melhor que o aprenda, caso seu conhecimento seja exclusiva-
mente técnico, nada restará após o jogo. O conhecimento apenas técnico, prático,
tornará o aluno prisioneiro dessa técnica, sem condições de ir além dela. Porém,
se, ao aprender o jogo da queimada, ele puder compreender o que ocorre no jogo,
talvez, como já mencionamos, saia do jogo com uma herança de conhecimentos
aplicáveis a outras circunstâncias de vida;
• Ensinar a gostar do jogo: o jogo possui componentes que por si só encantam.
O esporte, por exemplo, é um jogo, um tipo de brincadeira de gente grande, um faz

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UNIDADE Jogar e Aprender

de conta, uma simulação, que contém elementos de imprevisibilidade, de mistério,


que exercem forte atração nos praticantes. Portanto, a pedagogia do jogo não pode
tirar esse encanto, não pode transformar a educação do Se Movimentar em uma
rotina maçante. Nas melhores aulas de educação física, os alunos e as alunas apren-
dem a jogar gostando do jogo, mantendo, assim, o seu encanto e a sua sedução.
Vislumbramos o futuro com a visão de que a nossa missão não é tão difícil assim,
afinal de contas, uma vez que as crianças gostam tanto de jogar, a nossa tarefa é
que elas, quando maiores, continuem a gostar do jogo.

A síntese
As palavras do sociólogo e professor Miguel Arroyo, especialista no tema da educa-
ção integral, nos ajudam a realizar uma síntese da reflexão proposta até aqui. Qual a
importância do Se Movimentar na educação integral e na vida das crianças e dos jovens?
Por que argumentar a favor do jogo como um conteúdo privilegiado na educação do Se
Movimentar? Por que ensinar jogos na escola e nas aulas de educação física?

Ao analisar os programas educacionais e governamentais com foco na educação


integral, Arroyo (2012) nos chama a atenção para a precarização dos tempos-espaços
do viver na escola. Estamos vivendo, segundo o professor, “tempos e espaços, nos
quais a infância-adolescência, em condições materiais precárias (moradia, espaços, vilas,
favelas, rua, comida, descanso), está perdendo o direito a viver o tempo da infância”
(ARROYO, 2012).

As escolas, que objetivam a educação integral, deveriam ter como núcleo central po-
líticas afirmativas do direito da infância-adolescência à vida, corpos, tempos-espaços de
um digno e justo viver (ARROYO, 2012, p. 41). Se é pelo jogo que nos comunicamos
corporalmente, deveríamos ir para a escola para aprendermos a ser corpo, aprender-
mos a Se Movimentar e, mais do que isso, para construirmos a nossa identidade corpo-
ral e cultural. Todas as vezes que temos esse direito negado, a tendência é a exclusão, a
marginalização e a supressão da nossa identidade, daquilo que é o mais importante para
cada um de nós, ou seja, a nossa individualidade.

As repercussões do confinamento e da inação tendem a ser desastrosas no presente


e no futuro dos nossos alunos. As consequências advindas da atitude corporal restriti-
va, dentro e fora da escola, atingem a formação intelectual, social, afetiva, emocional
e, principalmente, a formação moral dos nossos alunos. As aulas de educação física
centradas no jogo têm o mérito de conectar as crianças e os jovens com o presente e,
quem sabe, prospectar um futuro melhor. Por isso, a importância de mobilizar gestores,
docentes e o sistema escolar para o reconhecimento de que lidamos, como diz Arroyo
(2012, p. 41), “com gente que é vida, corpo, espaço-tempo. Gente que desde a infância
é condenada pelas relações sociais, econômicas e políticas a formas precaríssimas de
vida-corpo-espaço-tempo”.

O que fazemos quando levamos a referência do jogo para as escolas e seus currí-
culos é defender a ruptura com aquilo que o professor Arroyo (2012, p. 42), chama de
moralismo e intelectualismo pedagógico, aquilo que “reduziu as aprendizagens e secun-
darizou a vida, os corpos, os espaços-tempos do viver e aprender, como se fôssemos

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mentes, vontades abstratas incorpóreas, aespaciais, atemporais que pouco relacionam
as possibilidades de aprender com as possibilidades do viver”.

As evidências encontradas na ciência e na pedagogia empreendida nos últimos anos


são inspiradoras para educadores que acreditam no potencial educativo do jogo. Acre-
ditamos sim que é possível superar visões como afirma Arroyo (2012, p. 44), “muito
espiritualistas, que só veem os educandos como mentes, pensamento e saberes incor-
póreos. Visões que cultivam o desprezo pelo corpo, que polarizam cuidar-proteger-viver
de um lado e ensinar-aprender de outro”. Nossa opção é pela integralidade, pelo reco-
nhecimento de que o ser humano, de criança a adulto, é uma totalidade que passa pelo
Se Movimentar. Assim também são os direitos e a educação para cidadania, ou seja,
indivisíveis. Fragmentá-los é negá-los.

O ser do corpo, o ser corpóreo, está irremediavelmente atrelado ao ser espacial, ao


ser temporal, ao sermos humanos. Vida-corpo-espaço-tempo são inseparáveis como
direitos básicos humanos (ARROYO, 2012, p. 40). Sonhar com a cidadania é dar o di-
reito a todo o ser humano de Se Movimentar, de ser corpo em movimento. Só pode ser
cidadão quem vive a experiência de ser corpo, de sentir-se pleno e inteiro.

A motricidade é o sintoma vivo do mais complexo de todos os sistemas: o corpo hu-


mano. É pela corporeidade que o homem diz que é de carne e osso. Ela é a testemunha
carnal da nossa existência. A corporeidade integra tudo o que o homem é e pode mani-
festar neste mundo: espirito, alma, sangue, ossos, nervos, cérebro etc. A corporeidade
é mais do que um homem só: é cada um e todos os outros. A motricidade é a manifes-
tação viva dessa corporeidade, é o discurso da cultura humana (FREIRE, 1991, p.63).

Pela motricidade, expressa no jogo e suas dimensões, o homem se afirma no mun-


do, realiza-se, dá vazão à vida. É pela motricidade, ou melhor, pelo jogo e experiências
positivas de Se Movimentar, que ele dá registro de sua existência e cumpre sua condição
fundamental de cidadão, de ser e estar presente no mundo.

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UNIDADE Jogar e Aprender

Material Complementar
Indicações para saber mais sobre os assuntos abordados nesta Unidade:

Livros
O Jogo dentro e fora da Escola
FREIRE, J. B.; VENÂNCIO, S. O jogo dentro e fora da escola. Editora Autores Associa-
dos. Campinas, 2005.

Vídeos
Canal João Batista Freire
https://bit.ly/3iNxsKa
A Importância do Brincar | Renata Meirelles e Severino Antônio
Assista ao documentário A importância do brincar, com Renata Meirelles e Severino
Antônio. Uma produção do Instituto CPFL.
https://youtu.be/tc136kE-bQc

Leitura
Os Jogos e sua Importância na Escola
https://bit.ly/2S2AJKL

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Referências
ARROYO, M. G. O direito a tempos-espaços de um justo e digno viver. In.: MOLL, J.
et al. Caminhos da educação integral no Brasil: direito e outros tempos e espaços
educativos. Porto Alegre: Penso, 2012.

CARVALHO, J. M. de. Cidadania no Brasil: o longo caminho. 18. ed. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2014.

CENPEC. Guia Políticas de Educação Integral. [s.d.]. Disponível em: <https://legado.


educacaoeparticipacao.org.br/tematica/educacao-integral-um-conceito-em-busca-de-
-novos-sentidos>. Acesso em: 13/01/2021.

CENTRO DE REFERÊNCIAS EM EDUCAÇÃO INTEGRAL. Conceito: o que é educa-


ção integral? [s.d.]. Disponível em: <http://educacaointegral.org.br/conceito/>. Acesso
em: 13/01/2021.

DEMO, P. Complexidade e aprendizagem: a dinâmica não linear do conhecimento.


São Paulo: Atlas, 2002.

FERREIRA, N. T. Cidadania: uma questão para a educação. Rio de Janeiro: Nova


Fronteira, 1993.

FREIRE, J. B. De corpo e alma: o discurso da motricidade. São Paulo: Summus, 1991.

________. Métodos de confinamento e engorda (como fazer render mais porcos, gali-
nhas, crianças...). In.: MOREIRA, W. W. (org.). Educação Física e esportes: perspecti-
vas para o século XXI. Campinas: Papirus, 1992.

________. Pedagogia do futebol. Londrina: Midiograf, 1998.

________. Ensinar esporte, ensinando a viver. Porto Alegre: Mediação, 2012.

FREIRE, P. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Ed. Paz e Terra, 1982.

GADOTTI, M. Educação integral no Brasil: inovações em processo. São Paulo: Edi-


tora e Livraria Paulo Freire, 2009.

GUARÁ, I. M. F. R. É imprescindível educar integralmente. Cadernos Cenpec: pesqui-


sa e ação educacional, Tema: Educação integral, v. 1, n. 2, 2006.

________. Educação e desenvolvimento integral: articulando saberes na escola e além


da escola. In.: MAURÍCIO, L. V. Educação integral e tempo integral. “Em Aberto”, Pu-
blicação do INEP (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio
Teixeira), Brasília, v. 22, n. 80, p. 1-165, abr. 2009.

KUNZ, E. Educação Física: ensino e mudança. 2. ed. Ijuí: Unijuí, 2001.

MACEDO, L. de. Ensaios pedagógicos: como construir uma escola para todos? Porto
Alegre: Artmed, 2005.

MAURI, T. O que faz com que o aluno e a aluna aprendam os conteúdos escolares? In.:
COLL, C. et al. O construtivismo na sala de aula. São Paulo: Ática, 1998.

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UNIDADE Jogar e Aprender

PINSKY, J. Introdução. In.: PINSKY, J.; PINSKY, C. B. (orgs.). História da cidadania.


São Paulo: Contexto, 2003.

SAVIANI, D. Interlocuções pedagógicas: conversa com Paulo Freire e Adriano No-


gueira e 30 entrevistas sobre educação. Campinas, SP: Autores Associados, 2010.

VIARO, M. E. Por trás das palavras: manual de etimologia do português. São Paulo:
Editora Globo, 2004.

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