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1º ano de Direito Introdução ao Estudo do Direito CAD

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1º ano de Direito Introdução ao Estudo do Direito CAD

Com o inicio da pandemia COVID-19 em 2020, em Portugal, veio também mais tempo livre no
sentido em que nos encontrávamos em confinamento geral obrigatório. Com mais tempo livre,
já que, por exemplo, as horas despendidas em transportes diariamente para a faculdade
podiam ser agora direcionadas para outras questões. Decidi então, literalmente de um dia
para o outro, criar a CAD, Comunidade de Aficionados de Direito. Com que objetivo? Queria
ligar os estudantes de Direito de todo o país, queria divulgar e criticar as mais recentes notícias
jurídico-políticas, queria levar a cabo iniciativas que aproveitassem a todo e qualquer jurista,
professor, estudante, advogado, etc… Criei o site, a página no Instagram e assim se começou a
erguer o projeto. Entretanto, com as aulas online, pensei também em elaborar apontamentos
semanais e divulgar com os meus colegas, utópico para um trabalho a sós, mas perfeitamente
possível com a entreajuda dos meus colegas porque cada grupo de estudantes faria os
apontamentos semanais de cada cadeira. Porque fazer os apontamentos semanais? A resposta
é extensa, mas simples. Com a “obrigação” de preparar esses mesmos apontamentos, tenho
também um duplo dever de assistir às aulas, de perceber e apontar as mesmas, porque não o
fazendo, falharia comigo e com os restantes colegas com quem me comprometi a partilhar os
apontamentos. Desta forma, dividimos até pelos vários estudantes a tarefa de recolher os
escritos relativos às diversas matérias. É trabalhoso, mas, inevitavelmente, ao preocuparmo-
nos com nos próprios estamos também a ajudar todos os outros alunos. Ou seja, no 1º ano,
começamos apenas a partir de março com os apontamentos semanais, mas no 2º ano, ano
letivo 2020/2021, os apontamentos semanais começaram no inicio e acabaram apenas no fim
do ano letivo! Dito isto, pode conter falhas de escrita ou de direito, foi feito ao longo do tempo
por juristas em formação, entregue semanalmente, portanto, é compreensível e pedimos
também que quando notada alguma falha grave nesse sentido, que nos seja comunicado. Este
projeto ajudou também a impulsionar um ambiente saudável no curso de Direito na nossa
universidade, não que já não o houvesse, mas esta iniciativa só o veio melhorar. Esperamos
ainda que esta iniciativa inspire ad aeternum o maior número de estudantes possíveis, já que
ficou demonstrado que a entreajuda tem efeitos positivos para todos nós. Se tiveres interesse
em colaborar connosco, envia-nos mensagem no Instagram. Somos vários estudantes da
licenciatura em Direito com vontade de mudar, ajudar e com disponibilidade em ser ajudados.
Obrigado a todos aqueles que todos os dias se esforçam por uma comunidade melhor,
saudavelmente competitiva, consciente e dedicada.

João Paulo Silva, Fundador da Comunidade de Aficionados do Direito.

Introdução ao Estudo do Direito (Frequência)

Índice
Tema 1: Ordem Social......................................................................................................1
Tema 2: Ordem jurídica...................................................................................................5
Tema 3: Sistematicidade do Direito...............................................................................38
Tema 4: Orientações metodológicas:............................................................................41
Tema 5: Técnica jurídica................................................................................................43
Tema 6: Aplicação da lei no tempo................................................................................52

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Tema 1 – Ordem Social


1. Ordem social:
 O Homem é um ser cuja natureza é essencialmente social: é um animal político
porque nasce para viver em comunidade (polis). Com efeito, sendo dotado de
sentimentos e de razão, precisa de comunicar, de trocar experiências, de produzir
bens para si e para os outros, de utilizar o produto do trabalho alheio, porque é
absolutamente impossível criar sozinho tudo o que necessita para viver.

Instituição e Instituto (regular a nossa vida para que tenha sentido)


 O Homem é um ser naturalmente inacabado, carece de um equipamento instintivo
que o oriente e permita encontrar um rumo de ação no meio em que se integra.

 Por isso, tem necessidade de criar instituições que o guiem e ofereçam, nas
relações com os outros, a segurança indispensável à previsibilidade em que assenta
a planificação da vida e o progresso.

 Juridicamente, instituição designa um conjunto mais ou menos extenso de normas


que, subordinadas a princípios comuns, disciplinam um determinado tipo de
relações sociais.
De destacar que existem instituições fundamentais e secundárias:
 Às primeiras pertencem:
1. Família: instituição básica que constitui o ponto de partida das demais;

2. Propriedade: o sustentáculo do sistema social e político de um povo;

3. Estado: povo se organiza política e juridicamente numa unidade de poder.

 As segundas complementam as instituições fundamentais e nem sempre se


encontram em todas as sociedades: parlamento, tribunal, igreja, escola, sindicato,
etc.
Funções das Instituições:

 Estabilidade normativa: permite orientar os seus membros na prossecução de


objetos comuns e transmite a segurança indispensável à planificação do futuro.

 Integração: a instituição precisa de se integrar numa organização que unifica e


identifica os seus elementos.

Institutos:

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 Grupo menor de normas disciplinadoras de uma situação da vida. Na propriedade


(ocupação, demarcação), na família (casamento, poder paternal).

2. Ordens normativas:
 Porque o Homem vive necessariamente na companhia de outros homens com os
quais estabelece várias relações, é absolutamente necessário que o seu
comportamento seja disciplinado por normas ou regras de organização e de
conduta.

Principais ordens éticas ou Normativas:


A ordem social é constituída por um conjunto de regras provenientes de ordens
normativas de diversa índole:

a) Ordem Religiosa:
 As normas religiosas são criadas por um Ser transcendente e ordenam as condutas
dos crentes nas suas relações com Deus. Apresentam características próprias que
as distinguem das demais normas sociais.

Características:
1. Instrumentais: preparam a vida além-terrena.
2. Intra-individuais: destinam-se ao íntimo do homem crente.
3. Sanções de foro espiritual: não são suscetíveis de imposição pelo Estado. Dizem
respeito à crença e à fé numa vida ultraterrena na qual cada homem receberá a
retribuição da sua conduta.

Ordem Religiosa vs. Ordem jurídica:


 A relação predominante entre estas duas ordens normativas é a indiferença.
Contudo, em determinadas sociedades a religião tem forte influência na
configuração da sociedade. Veja-se o que se passa nos países de religião oficial
islâmica, judaica, ou hindu, onde a ordem jurídica é influenciada em grande parte
pelas doutrinas da religião.
Relações entre a Religião e o Direito:
 Relação de Indiferença: normas jurídicas cujo conteúdo é completamente
irrelevante do ponto de vista religioso. (ex: regra que manda conduzir pela direita).

 Relação de afinidade: normas jurídicas de origem religiosa (ex: proibição de matar,


fixação do dia semanal ao domingo).

 Relação de Antagonismo: normas jurídicas contrárias aos preceitos religiosos. (ex:


divórcio nos casamentos católicos, o aborto, a eutanásia).

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b) Ordem Moral:
 A moral refere-se à interioridade do ser Humano e determina-lhe um especifico
comportamento que visa o aperfeiçoamento da pessoa em função daquilo que se
considera ser o Bem e o Mal. As normas de conduta da ordem moral visam o
indivíduo e não a organização social.

 Concluindo, pode-se afirmar que a ordem moral aponta regras dirigidas à


consciência dos indivíduos e tem como sanção a reprovação da formação moral da
pessoa.

Ordem Moral vs. Ordem jurídica:


A distinção entre Direito e Moral tem sido feita de acordo com diferentes critérios:
1. Critério teleológico: a moral interessa-se pela realização plena do homem (fim
pessoal), enquanto que o direito somente tem em vista a realização da justiça para
assegurar a paz social necessária à convivência em liberdade (fim social).

2. Critério da perspetiva: a moral incide sobre a interioridade (a motivação) dos atos


(lado interno) e o direito atende ao que externamente se manifesta (lado externo).

3. Critério da imperatividade: a moral, porque visa a perfeição pessoal, é


simplesmente imperativa, ou seja, limita-se a impor deveres; pelo contrário,
regulando as relações sociais segundo a justiça, o direito é imperativo-atributivo:
impõe deveres e reconhece direitos correlativos.

4. Critério do motivo da ação: a moral é autónoma e o direito é heterónomo. Isto é, o


cumprimento da norma moral requer o assentimento do obrigado, enquanto a
norma jurídica se cumpre independentemente da opinião dos seus destinatários.

5. Critério da forma ou dos meios: as normas morais são incoercíveis, isto é, o seu
cumprimento só poderá efetuar-se espontaneamente, não há recurso à força. As
normas jurídicas gozam de coercibilidade: há a possibilidade de se recorrer à força
para que sejam observadas.

6. Critério do mínimo ético: A relação entre o direito e a moral pode ser


representada por dois círculos concêntricos – o círculo menor representa o direito:
tudo o que é jurídico é moral; o circulo maior: nem tudo o que é moral é jurídico.

Relações entre a Moral e o Direito:


 Relação de indiferença: há normas morais que o Direito não impõe (ex: dar
esmola aos pobres, ajudar os cegos a atravessar a rua). Há normas de Direito sem
qualquer significado para a moral (ex: regra de conduzir pela direita).

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 Relação de antagonismo: normas jurídicas contrárias aos preceitos da moral (ex:


o testamento a favor do médico, enfermeiro, padre).

 Relação de afinidade: há normas de Direito que coincidem com a moral (ex:


prioridade no trânsito às ambulâncias, proibição de estacionar no lugar destinado
a deficientes).

c) Ordem de Trato Social


 As normas de trato social são usos ou convencionalismos sociais destinados a
tornar a convivência mais agradável.

 Dirigem a maioria dos nossos atos, como a forma de vestir, saudar e responder a
uma saudação, oferecer presentes a certas pessoas em determinadas épocas,
retribuir uma visita, dar os pêsames aos familiares de uma pessoa falecida, etc.
Estas normas revestem-se de duas características:

1. Impessoais: têm origem em usos ou práticas sociais regularmente observadas.

2. Coativas: impõe-se através da pressão exercida pelo grupo social a que se pertence
e a sua inobservância é punida com diversas sanções (ex: a perda de prestígios e de
dignidade, a marginalização e o afastamento do grupo, etc.).

Ordem de Trato Social vs. Ordem jurídica:


 As características desta Ordem mostram que existem semelhanças entre esta
ordem e a ordem jurídica. No entanto, é de realçar as diferenças que as separam.

 Desde logo, o Direito prevê e quantifica as sanções que se aplicam a condutas


determinadas; e há órgãos especificamente criados pelo ordenamento jurídico
para as aplicar e impor segundo procedimentos adequados. Pelo contrário, os usos
sociais são dotados de sanções e de meios de coação indeterminados, inforais e
inorganizados.

 Depois, enquanto as normas jurídicas possuem uma estrutura bilateral ou


imperativo-atributivo, as normas de trato social são unilaterais: obrigam, mas não
facultam.

d) Ordem Jurídica:
 A ordem jurídica é constituída pelo conjunto de normas jurídicas que regulam os
aspetos mais relevantes da vida em sociedade. É a ordem regulada pelo Direito e
serve para assegurar a segurança das pessoas.
Características do Direito:

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 Necessidade: a sociedade onde o Homem necessariamente convive, requer um


conjunto de normas jurídicas que disciplinem o seu comportamento.

 Alteridade: o Direito não disciplina a conduta do homem isolado, mas enquanto


vive em sociedade, produzindo e consumindo bens, convivendo.

 Imperatividade: o direito orienta as nossas condutas independentemente da nossa


vontade, porque só assim cumprirá a sua função ordenadora indispensável à
subsistência da sociedade.

 Coercibilidade: é a suscetibilidade de aplicação pela força das sanções prescritas


pelo direito.

 Exterioridade: as normas jurídicas disciplinam comportamentos que se manifestam


exteriormente.

 Estatalidade: reduz a criação e aplicação do Direito ao Estado. Existem, no entanto,


algumas exceções, sobretudo, no que diz respeito às normas não criadas pelos
órgãos do Estado (ex: Direito Internacional) e, às normas não aplicadas pelos
tribunais do Estado (ex: Tribunal Internacional de Justiça).

 Sistematicidade: O Direito é mais do que um conjunto de normas, é um sistema de


normas, onde estas estão articuladas em torno da ideia de Direito.

Tema 2: Ordem jurídica


3. Direito objetivo e Direitos Subjetivos:
Há dois grandes elementos que integram a ordem jurídica, nomeadamente:

 Direito objetivo: sistema de regras de conduta social, obrigatórias para todos os


membros da comunidade, para garantir a justiça e segurança, sob ameaça de
sanções, com a coercibilidade como importante condição da sua eficácia.

 Direito subjetivo privado: é a faculdade ou poder, reconhecido pela ordem


jurídica a uma pessoa, de exigir ou pretender de outra um determinado
comportamento positivo (facere) ou negativo (non facere) ou de, por ato da sua
livre vontade, só de per si ou integrado por um ato de autoridade pública, produzir
determinados efeitos jurídicos que inevitavelmente se impõem a outra pessoa
(adversário ou contraparte).

3.1. Natureza dos Direitos Subjetivos:

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1. Teoria da Vontade: tem a sua origem em Savigny que concebeu o direito


subjetivo como um instrumento que permite a liberdade da ação, o livre
desenvolvimento da vontade autónoma. Contudo, a sua expressão final pertence a
Windscheid que entende ser o direito subjetivo o poder da vontade reconhecido
pela ordem jurídica: é a vontade juridicamente protegida.
Contra esta teoria ergueram-se várias críticas, das quais se destacam as seguintes:
a) Há pessoas, como os menores e os deficientes mentais, que carecem de
vontade psicológica. São incapazes de querer e, no entanto, são titulares de
direitos subjetivos. Se a natureza destes direitos exigisse a presença dessa
vontade, tais direitos não podiam existir.

b) As pessoas coletivas têm também direitos subjetivos e, tão-pouco, têm uma


vontade psicológica ou humana; logo, não poderiam ser titulares desses
direitos.

c) Há direitos que não têm temporariamente titular (ex: um crédito incorporado


num título abandoado); e há direitos cujo titular se aguarda que nasça. Tais
direitos deveriam extinguir-se porque não há vontade.

d) Pode o titular de um direito subjetivo não querer exigir o seu cumprimento. Se


dependesse da vontade, esse direito devia extinguir-se, o que não se sucede.

2. Teoria do Interesse: partindo de uma conceção conflitualista da sociedade e do


direito (concebido como a regulação de interesses em conflito) e procurando uma
resposta para as insuficiências da teoria da vontade, Ihering considera que o
direito subjetivo é constituído por dois elementos igualmente importantes: um
formal (a proteção ou tutela que a lei confere); o outro, material (o interesse
entendido em sentido amplo). E, em consequência caracteriza os direitos
subjetivos como interesses juridicamente protegidos.
Contudo, também a teoria do interesse suscitou várias críticas, das quais são de
destacar as seguintes:
a) Se o interesse fosse essencial na definição de direito subjetivo, este não existiria se
aquele faltasse. Ora, se um credor não estiver interessado em exigir o pagamento
da obrigação contraída por um amigo pobre, o seu direito não deixa de existir: não
depende do seu interesse.

b) Há interesses juridicamente protegidos a que não correspondem direitos


subjetivos. É o caso dos interesses reflexamente protegidos: quando a vacinação
contra determinada epidemia é obrigatória, o nosso interesse está protegido, mas
não dispomos de um direito subjetivo à vacinação do vizinho. Ninguém pode
dirigir-se às autoridades sanitárias impondo que seja vacinado.

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c) Pode também suceder que o ordenamento jurídico proteja interesses não através
da concessão de direitos, mas restringindo a capacidade dos indivíduos: para
proteger os menores determina-se a sua incapacidade de exercício de direitos.

3. Teoria normativista: foi elaborada com maior rigidez por Kelsen que, procurando
tratar cientificamente o direito, depurou-o dos elementos não estritamente
jurídicos (ex: psicológicos, sociológicos, ideológicos). Considera o Direito uma
técnica peculiar de controlo social em que o único elemento juridicamente
relevante é a forma, a proteção e não a substância, o conteúdo. Numa palavra, a
norma (o dever ser) e não os factos (o ser). Suprime a dualidade direito objetivo –
direito subjetivo, anulando a especificidade deste perante aquele.
 Concluindo, uma norma jurídica estabelece um dever e aquilo, a que se chama
direito subjetivo, não é senão um simples reflexo, uma consequência desse dever.
No entanto, também esta teoria suscitou críticas, das quais são de destacar:
a) O facto de ter identificado os direitos objetivo e subjetivo, confundindo norma e
faculdade, ou seja, proteção (judicial) e atuação (dos indivíduos). Ora, há direitos
subjetivos que carecem de proteção; e há caso em que a uma ação judicial pode
não corresponder um direito subjetivo.

b) Há, nesta teoria, uma abdicação valorativa, pois o direito reduz-se a uma simples
técnica de controlo social neutra: os valores, que não foram admitidos pelo direito
positivo, não se questionam e, por isso, não tem sentido falar-se de justiça.

4. Conceção normativo-integrante: considera o direito subjetivo a positiva


afirmação jurídica da autonomia pessoal no contexto de uma certa comunidade
(portanto, de uma determinada ordem jurídica), que se traduz na titularidade ou
na pretensão pessoal, impositiva e dispositiva (cabendo de qualquer modo na
disposição pessoal do titular) jurídico-normativamente válida de certos valores ou
bens jurídicos. Traduz esta conceção, o entendimento de participação pessoal, mas
convoca também a comunidade, onde a autonomia individual se integra e realiza.

5. Doutrina defendida por Orlando de Carvalho : define o direito subjetivo como


um mecanismo de regulamentação, tutelado pelo Direito, que consiste na concreta
situação de poder que se reconhece a uma pessoa, em sentido jurídico, de intervir
autonomamente na esfera jurídica de outrem.

3.2. Direitos Subjetivos Privados:

a) Direito Subjetivo em sentido estrito:


 O Direito subjetivo em sentido estrito traduz a faculdade ou poder, que a ordem
jurídica reconhece a uma pessoa, de exigir ou pretender de outra um determinado
comportamento que pode ser positivo (facere) ou negativo (non facere).
Contrapõe-se-lhe um dever jurídico.

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 Fala-se de faculdade ou poder de exigir quando, não obtendo a satisfação do


seu direito, o titular pode solicitar ao tribunal que aplique determinadas
medidas que lhe proporcionem a mesma ou uma vantagem equivalente ou
outras sanções que impliquem um sacrifício ao adversário.

 Estaremos perante a faculdade ou poder de pretender, quando o titular do


direito subjetivo não pode reagir contra o adversário que não cumpra o seu
dever jurídico. Nestes casos, fala-se também de direito subjetivo “de potencial
reduzido”.

b) Direito Potestativo:
 O Direito potestativo é um direito que se traduz na faculdade ou poder de, por ato
livre de vontade, só de per si ou integrado por uma decisão judicial, produzir
efeitos jurídicos que se impõem à contraparte. Corresponde-lhe a sujeição do
adversário, ou seja, a necessidade de suportar as consequências do exercício de
tais direitos.

Modalidades do Direito Potestativo:


Consoante o efeito jurídico que tendem a produzir, os direitos potestativos podem ser:
1. Constitutivos: cria-se uma nova ordem jurídica (ex: quando o proprietário de m
terreno encravado exerce o seu direito potestativo de exigir a constituição de uma
servidão de passagem através do terreno que se interpõe entre aquele e a via
pública. O exercício desse direito produz uma relação jurídica nova: uma servidão
de passagem).

2. Modificativos: modifica-se uma relação jurídica pré-existente (ex: quando um dos


cônjuges, em perigo de perder o que é seu pela má administração do outro, exerce
o seu direito potestativo de pedir a simples separação de bens).
3. Extintivos: extingue-se uma relação jurídica anterior (ex: quando um dos cônjuges
requer o divórcio invocando a separação de facto por um ano, sem interrupção: a
relação conjugal dissolve-se).

3.3. Classificação dos Direitos Subjetivos Privados:


1. Inatos: Direitos que nascem com a pessoa e que, por isso, não precisa de os
adquirir (ex: direito à vida, integridade física, e moral).

2. Não inatos: Direitos que se adquirem posteriormente ao nascimento (ex: direito ao


nome, direito à propriedade, direito moral de autor, etc.).

3. Essenciais: direitos indissoluvelmente ligados à pessoa (ex: direitos de


personalidade).

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4. Não essenciais: direitos concebíveis sem a pessoa (ex: direitos de crédito, reais e
sucessórios).

5. Pessoais: Direitos que não podem ser reduzidos a um valor pecuniário (ex: direitos
de personalidade).

6. Patrimoniais: Direitos suscetíveis de avaliação pecuniária (ex: alguns direitos de


família e a maioria dos direitos de crédito, reais e sucessórios).

7. Absolutos: os direitos absolutos concedem ao seu titular um poder direto e


imediato sobre uma pessoa ou um bem corpóreo ou não corpóreo. Concluindo,
são direitos de exclusão: impõem à generalidade das pessoas o seu respeito e
abstenção. Todas são obrigadas a respeitá-los; são poderes diretos e imediatos
sobre uma pessoa ou coisa.

8. Relativos: os direitos relativos são direitos que versam diretamente sobre a


conduta de uma pessoa e só indiretamente sobre um bem ou uma coisa.
Concluindo, são direitos de colaboração: exigem a colaboração da pessoa que se
obrigou; são poderes através de um comportamento.

9. Disponíveis: direitos que se podem desligar do se titular (ex: generalidade dos


direitos patrimoniais).

10. Indisponíveis: são os direitos intransmissíveis (ex: direitos de personalidade,


direitos de família e alguns direitos patrimoniais).

11. Simples: direitos que se traduzem numa pretensão e numa prestação especifica
(ex: direito de crédito em que o devedor se obriga a restituir determinada quantia
de dinheiro ou uma certa coisa).

12. Complexos: direitos constituídos por um feixe de possibilidades de atuação (ex:


direito de propriedade, responsabilidades parentais, tutela).

3.3. Direitos de direção, poderes-deveres ou poderes-funcionais:


 São direitos acompanhados de deveres: o seu titular não é livre de exercer as
inerentes faculdades ou poderes; é também obrigado a atuar, porque em causa
estão interesses que não são apenas seus. Assim se sucede com as
responsabilidades parentais, a tutela e o direito de direção do empresário, que
devem ser exercidos no interesse, respetivamente, do filho, do pupilo e da
empresa.

3.4. Direitos Subjetivos Públicos:


Direitos Subjetivos Públicos:

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 São direitos que os cidadãos podem invocar contra o Estado, exigindo certa
atuação ou impondo limites ao exercício dos seus poderes (ex: direito à segurança
social, direito ao segredo de justiça, direito ao Trabalho, etc.).

 A natureza dos direitos subjetivos públicos relaciona-se intimamente com a


limitação jurídica do poder político que, só pode considerar-se existente na ordem
positiva, desde que os cidadãos tenham direitos a que correspondam deveres da
parte do Estado.
Por isso, se destacam duas diretivas que sucessivamente se impuseram:
1. A doutrina contratualista: parte da anterioridade dos indivíduos em relação ao
Estado e sustenta que no “estado de natureza”, em que se encontrava, cada
homem era já portador de direitos que o Estado deve respeitar. Assim:
a) John Locke: considera que, no estado de natureza, os homens eram titulares de
direitos naturais, com destaque para os direitos à vida, à liberdade e à
propriedade. No entanto, faltava uma ordem política organizada que se
encarregasse de extinguir os litígios (derivados das paixões humanas) e de
defender os seus direitos. Por isso, através de um contrato social criaram o
Estado, devendo o direito positivo respeitar a propriedade, a liberdade e a
integridade de consciência e de pensamento dos homens.

b) Jean Jacques Rousseau: idealizou um estado de natureza onde os homens


viviam felizes, em paz e harmonia, quer pela sua bondade natural, quer porque
a natureza satisfazia todas as suas necessidades. Tudo se alterou quando, em
tempos pré-históricos, se iniciou a ideia de propriedade privada, e, com ela, a
desigualdade e o desejo de domínio dos homens. Por esta razão, o estado de
natureza deu lugar ao Estado: através de um contrato social, os homens
cederam ao Estado os direitos que possuíam naquele estado de natureza e o
Estado devolveu-lhos transformados em direitos civis, ou seja, garantidos e
protegidos por leis.
c) Thomas Hobbes: sendo o Homem mau por natureza, teve necessidade de
passar para um estado de sociedade.

2. A doutrina de autolimitação: vê na soberania o poder de decidir em última


estância e, por isso, entende que ao Estado cabe delimitar o que pertence ao
indivíduo.
 Também esta doutrina suscitou algumas críticas: se o Estado se autolimita, os
indivíduos ficam à sua mercê.

3.5. Figuras afins


Meros interesses jurídicos:

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 São interesses tutelados pela ordem jurídica a que não correspondem direitos
subjetivos.

 Podem consistir na subjetiva pretensão a um bem suscetível de satisfazer uma


necessidade (interesse em sentido subjetivo) ou na relação entre a necessidade e o
bem capaz de a satisfazer (interesse em sentido objetivo).

 Na vida são inúmeros os interesses que a ordem jurídica tutela e em cuja proteção
estamos individualmente interessados, sem que possamos falar de direitos
subjetivos (ex: o interesse do automobilista na boa conservação das estradas).

 Porém, falta-nos a faculdade ou poder de exigir ou pretender esses


comportamentos que definem os direitos subjetivos.

Faculdades em sentido estrito:


 São possibilidades de agir que a ordem jurídica admite e garante sem, todavia,
constituírem direitos subjetivos (ex: faculdade de passear no jardim; faculdade de
celebrar negócios jurídicos).

Direitos reflexos:
 São posições jurídicas que nos são tuteladas por efeito de especiais obrigações que
oneram (obrigam) os outros (ex: no direito civil, com a posição dos filhos
(segurança, saúde, sustento) que resulta das obrigações parentais).

Expectativas jurídicas:
 São situações em que se encontra uma pessoa que ainda não tem um direito
subjetivo, mas conta razoavelmente vir a ter (ex: a probabilidade de um filho vir a
ser herdeiro legitimário do pai. Enquanto este viver, aquele só tem uma
expectativa e não um direito à herança paterna: ainda não há sequer herança; o
pai pode dispor do seu património e pode suceder que, à sua morte, não deixe
bens. Todavia, a expectativa do filho existe e o direito protege-a).
4. Fins do Direito
4.1. Justiça:
 A justiça é um dos fins primordiais do Direito. Consiste na vontade constante e
perpétua de atribuir a cada um o seu direito. Apontam-se-lhe várias características:
a) Impessoalidade: a justiça estabelece um limite e uma medida, diferenciando-
se do amor e da caridade que, sendo o que mais de pessoal há no homem, não
conhecem limites nem medida;

b) Dinamismo: a justiça é uma categoria do mundo cultural em contínua


evolução.

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c) Alteridade: a justiça orienta-se para o social. É uma categoria ética que aspira à
socialização.

Elementos lógicos da justiça:


Os elementos lógicos da justiça são:
a) Proporcionalidade: há na justiça uma ideia de proporção entre o que se dá e o que
se recebe, entre os delitos e as penas, o que se exige e o que se presta.

b) Igualdade: resulta da proporcionalidade, que implica que sejam igualmente


tratados os casos iguais e desigualmente o que é diferente. É assegurada pela
generalidade e abstração das normas jurídicas.

c) Alteridade: a justiça valora as condutas socialmente relevantes, ou seja, dirigidas


aos outros com quem nos relacionamos. Daqui resulta uma consequência
importante: toda a pessoa possui o mesmo valor e, por isso, o respeito pela
dignidade humana impõe-se ao direito positivo.

Apresentam-se, três premissas que apontam o atual sentido possível da justiça:


1. Pressuposto material: é a sociedade em que os homens convivem com opiniões
divergentes.

2. Participação pessoal na realização dos valores e no domínio dos bens que formam
o património do todo social, de modo a que cada membro da comunidade em
causa possa constituir uma participação pessoal própria.

3. Integração comunitária que nos oferece a complementaridade e a colaboração de


que necessitamos para nos realizarmos numa vida plenamente humana,
assentando na solidariedade e corresponsabilidade. Em consequência, é nos
princípios da solidariedade e da corresponsabilidade que havemos de encontrar o
critério ou a intenção regulativa por que se afiram os direitos e os deveres, os
benefícios e os encargos, a distribuição das funções e a repartição dos bens.

Modalidades da justiça:
Consoante os sujeitos de relação, distinguem-se as seguintes modalidades de justiça:
a) Comutativa: visa corrigir os desequilíbrios que se verifiquem nas relações
contratuais e nos atos ilícitos. Assegura a equivalência entre prestações ou entre
dano e indemnização, atribuindo a cada um o que é seu. É a justiça das relações de
coordenação e pertence ao direito privado.

b) Distributiva: rege a repartição dos bens comuns pelos membros da sociedade,


segundo um critério de igualdade proporcional, e visa atenuar a desigualdade

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económica e social dos membros da comunidade, para uma sociedade mais justa. É
a justiça própria das relações de subordinação e pertence ao direito público.

c) Geral ou legal: rege a participação dos membros da sociedade nos encargos


comuns, segundo o critério da igualdade proporcional.

Equidade:
 É a forma de solução de conflitos jurídicos que assenta na aplicação da justiça
conforme as circunstâncias específicas de cada caso em concreto. Opõe-se à justiça
geral.

 Inspirada em critérios morais, e tendo um caráter intuitivo e irracional-emocional,


a equidade distinguir-se-ia da justiça que é racional, rígida, indiferente e dura. Por
isso, à equidade caberia desempenhar as seguintes funções:

a) Dulcificadora: suaviza o rigor da lei e humaniza o direito com certos valores ou


sentimentos.

b) Resolutória ou decisória: constitui um critério de decisão dos casos, em


substituição das soluções pré-estabelecidas nas normas jurídicas.

c) Flexibilizadora: ajusta a norma jurídica (geral) ao caso concreto.

d) Interpretativo-aplicadora: adequa a norma geral e abstrata ao caso em


julgamento.

e) Integradora: constitui um fator a ponderar no processo de integração das lacunas,


que não dispensa a consideração das circunstâncias do caso que reclama uma
solução jurídica.

f) Corretiva: corrige, modifica ou restringe a lei, afastando soluções absurdas ou


injustas e apelando à ideia de justiça comutativa.

Concluindo, a equidade é a justiça do caso concreto ou, uma virtude especial que faz
parte da justiça.

4.2. Segurança jurídica:


 Além da justiça, também a segurança jurídica é outro fim relevante do direito. Visa
garantir a paz, a tranquilidade e segurança.
Princípios e institutos em que a exigência da segurança jurídica é suscetível de
restringir a justiça:
a) Principio de que a ignorância da lei não escusa o seu cumprimento: é uma
exigência da segurança. Apesar de ser injusto exigir o conhecimento de toda a lei

15
1º ano de Direito Introdução ao Estudo do Direito CAD

ao infrator, não pode ser permitido que o mesmo alegue a sua ignorância com a
intenção de fugir à pena que lhe é imposta.

b) O caso julgado: é também uma exigência da segurança, pois seria absurdo que um
litígio se arrastasse para sempre, sem ninguém estar seguro do seu desfecho.
Portanto o caso julgado traduz a impossibilidade de o mesmo conflito voltar a ser
apreciado quer no âmbito do mesmo processo quer noutro processo.

c) A não retroatividade da lei: constitui uma imposição da segurança jurídica que não
tolera que as nossas condições de vida, que o direito reconhece e protege, sejam
destruídas por uma lei que se aplique ao passado.

d) Usucapião: é um instituto em que a ideia de segurança jurídica se manifesta para


impedir que se perpetuem situações de incerteza. Decorrido determinado tempo e
cumpridas certas condições, o possuidor pode adquirir a propriedade, por uma
questão de segurança do tráfico jurídico.

e) Caducidade: é um instituto por via do qual um direito se extingue pelo facto de ter
decorrido o prazo assinalado na lei ou derivado da vontade das partes.

f) Prescrição: é um instituto que determina a extinção de direitos subjetivos quando


não exercitados durante certo tempo fixado na lei (ex: inércia do titular da ação).

5. Nação, Estado e Direito


5.1. Nação:
 A Nação é definida como uma comunidade que assenta numa convivência mais ou
menos longa de homens ligados pela mesma etnia, religião, língua, etc. Trata-se de
uma realidade simultaneamente cultural e natural.

 É a nação que permite aos homens que se ajudem mutuamente ao longo do


tempo, fornecendo-lhes valores que acrescentam e transmitem de geração em
geração e, por isso, constituem uma herança que enriquece e serve de apoio firme
e orienta a vida física e moralmente.

5.2. Estado:

 Como o ser humano é um ser eminentemente social, necessita de viver em


comunidade para desenvolver a sua personalidade. Desta forma, tornou-se
necessário que existisse uma estrutura organizada, de modo a proporcionar, nas
melhores condições possíveis, essa convivência e cooperação, daí o surgimento do
Estado.

16
1º ano de Direito Introdução ao Estudo do Direito CAD

 O Estado é a forma como as sociedades políticas modernas se encontram


organizadas, correspondendo a uma entidade com uma estrutura organizada de
poder e ação, desempenhando a função de garantir, entre os homens, uma
coerência ordenada de forma harmoniosa e segura, sobretudo a de manter a paz e
a segurança jurídica.

Elementos de um Estado:
Na definição de Estado observamos três elementos essenciais: o povo, o território e
poder politico.
1. Povo: Conjunto de cidadãos ou nacionais, ou seja, de pessoas ligadas ao Estado
pelo vínculo jurídico de nacionalidade que lhes reconhece o gozo de direitos
políticos.

Que se distingue de População: Conjunto de pessoas que residem num determinado


território, independentemente da sua nacionalidade. Com efeito, a população é
constituída pelos estrangeiros, pelos apátridas e pelos nacionais residentes no
território nacional.

2. Território: é o espaço geográfico em que o poder do Estado se faz sentir. Integra o


solo e o subsolo, o espaço aéreo e o mar territorial, no caso de o Estado ter costa
marítima. O território do Estado é limitado por fronteiras e define o âmbito da
competência no espaço dos seus órgãos supremos.

a) Espaço terrestre/solo: é delimitado pelas fronteiras, e pode ser contínuo ou


descontínuo.

b) Espaço aéreo: é toda a extensão aérea existente sobre o solo terrestre e mar
territorial.

c) Espaço marítimo:
 Mar territorial: corresponde à faixa de águas marítimas adjacentes à costa
marítima, sendo a sua distância medida a partir da costa até às 12 milhas,
onde os Estados exercem plena jurisdição.

 Zona Económica Exclusiva: corresponde à faixa de mar situada até 200


milhas da costa e dentro da qual os Estados têm direito exclusivo de explorar
os recursos marítimos.

3. Poder político: é a faculdade exercida por um povo de, por autoridade própria,
instituir órgãos que exerçam, com relativa autonomia, a jurisdição sobre um
território, nele criando e executando normas jurídicas.

17
1º ano de Direito Introdução ao Estudo do Direito CAD

Poderes do Estado:

 Os poderes do Estado devem estar distribuídos por diferentes órgãos, de modo a


que, por exemplo, quem crie a lei, não a possa também aplicar, para evitar o
arbítrio e o abuso do poder. Por isso, para que o Estado possa cumprir as missões
ou tarefas a que se propõe necessita de atribuir poderes ou competências a
diferentes órgãos de soberania. De entre esses poderes contam-se:

1. Poder legislativo: o poder de fazer leis (Assembleia da República);


2. Poder executivo: o poder de executar as decisões tomadas;
3. Poder Judicial: o poder de resolver os conflitos entre os indivíduos (Tribunais).

Funções do Estado:

1. Função política: definição e prossecução, pelos órgãos do poder político, dos


interesses essenciais da comunidade, realizando as opções para o efeito
consideradas mais adequadas.
2. Função legislativa: prática de atos legislativos pelos órgãos competentes na forma
prevista na Constituição.
3. Função jurisdicional: consiste no julgamento de litígios suscitados por conflitos
entre interesses privados ou públicos e privados; e na punição da violação das
normas jurídicas. É desempenhada pelos tribunais.
4. Função administrativa: consiste na satisfação das necessidades da comunidade
que cumpre ao Estado realizar.

5.3. Estado e Direito:

Interessa, conhecer algumas doutrinas que assinalam pontos de vista diferentes acerca
da relação entre o Estado e o Direito. Destacam-se:

1. A doutrina normativista: o Estado é, segundo Kelsen, a personificação da própria


ordem jurídica, o somatório das suas próprias leis, e, por isso, identifica-se com o
Direito. O Estado surge como verdadeiro sujeito de direitos e de obrigações,
podendo, desta forma, afirmar-se que o Direito é anterior e superior ao Estado.

2. A doutrina marxista: vê a realidade económico-social constituída por uma


estrutura (a relação de produção capitalista) e por uma supraestrutura formada
pelo Estado, direito, religião, moral, etc. que funcionam como valores de defesa.
Como o direito, o Estado não passa de um instrumento nas mãos da classe
dominante para a sujeição das outras. E, quando a classe capitalista for
exterminada, deixará de haver oposição entre as classes e o Estado tornar-se-á
desnecessário: desaparecerá. O mesmo destino terá o direito e a religião.

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1º ano de Direito Introdução ao Estudo do Direito CAD

 Contudo, este ideal é, na prática, impossível de se realizar. A realidade


encarregou-se, portanto, de desfazer esta utopia nos países que procurara pôr
em prática o marxismo.

 Acontece que, tanto o Estado de Kelsen como o Estado marxista, não refletem a
realidade. O Direito não se confunde com o Estado: cabe-lhe limitá-lo e legitimá-lo,
funções que seria impossível desempenhar se se confundissem. Ao Direito cumpre
realizar a justiça; mas também o Estado, a quem incumbe instituir e garantir a
ordem jurídica, lhe deve obediência. Numa palavra, o Estado só pode ser de
Direito.

5.4. Estado de Direito:


 O Estado de Direito pressupõe a submissão do Estado ao Direito. O ordenamento
jurídico é um todo hierarquicamente estruturado e tem na lei a fonte mais
importante. São afirmados e protegidos os direitos humanos fundamentais, entre
os quais o de participação ativa na vida do Estado. A atuação administrativa pode
ser objeto de impugnação graciosa e contenciosa, as quais tutelam os direitos dos
administrados. A legislação é jurisdicionalmente controlada, assim garante-se a
obediência à Constituição.

6. Fundamento (95)
6.1. O problema:
 Jamais o homem deixou de questionar: por que devemos obedecer à lei? Em que
se fundamenta a obrigatoriedade do direito? E este trata-se do problema da
justificação das leis.

 Na resposta a este problema destacam-se duas orientações que têm marcado o


pensamento jurídico: o jusnaturalismo e o positivismo.

6.2. A solução jusnaturalista. O Direito Natural:


 O pensamento jusnaturalista fundamenta o direito positivo num direito superior:
o Direito Natural.

 Entendido como a justiça do caso concreto que se projeta na ordem social ou, com
um ordenamento de raiz ética que a razão retira de uma ordem objetiva inserida
nas coisas e nos homens, o Direito Natural sempre esteve presente no
pensamento jurídico.

 Agrupamos as diversas doutrinas jusnaturalistas em dois grupos ou conceções: o


jusnaturalismo transcendente que atribui a Deus a criação do Direito Natural: deus

19
1º ano de Direito Introdução ao Estudo do Direito CAD

inseriu-o na natureza as coisas, na natureza humana; e o jusnaturalismo


racionalista que dispensa Deus e fundamenta o Direito Natural na razão humana.

Críticas:
 Hoje, o Direito Natural hibernou semiesquecido por uns e superado ou recusado
pelo diferente pensamento jurídico de outros.
São várias as críticas dirigidas ao Direito Natural, das quais se destacam as seguintes:

 Há quem entenda que, constituindo um sistema axiológico (de valores) fechado,


estático e a-histórico, não pode pautar a validade do direito positivo que,
destinando-se a disciplinar as situações concretamente vividas, nunca poderá
comungar dessas características.

 Há, também, quem o considere uma pura moral, o reduza a uma metáfora ou a
simples reflexo do direito positivo de uma época; quem o recuse, por apoiar, com
igual eficácia, o absolutismo e a democracia; quem entenda que a ideia de Direito
Natural é multívoca e responde a conceção do mundo de cada pensador.

6.3. A solução positivista:


Superação do Direito Natural:
Para o advento do positivismo jurídico contribuíram as doutrinas que debilitaram e
eliminaram o Direito Natural. Destacam-se:
1. As doutrinas contratualistas: que procuram explicar a génese do status civilis,
onde verdadeiramente só há lugar para o direito positivo. Referem-se a doutrina
de Hobbes: no status naturalis, os homens viviam em guerra contínua. Para acabar
com este status insustentável, os homens constituíram, através de um contrato, o
Estado (status civilis), ao qual cederam os seus direitos para obterem a segurança e
o fim da luta; e a doutrina de Rousseau: no status naturalis, os homens tornaram-
se egoístas e a insegurança, insuportável. Através de um contrato social, os
homens obrigaram-se a submeterem-se à vontade geral que, traduzindo as suas
vontades, implica a sujeição do indivíduo à própria vontade. Doravante, só a
vontade geral (que se manifesta na lei) é fonte de direito, suprimindo-se o Direito
Natural.

2. A teoria de Kant: afirma que o nosso conhecimento só pode atingir os fenómenos


(as nossas representações da realidade) e não a própria realidade. A realidade, que
conhecemos, é uma construção do espírito, uma interpretação subjetiva e, por
isso, é impossível conhecer a metafísica e o Direito Natural.

3. A Escola Histórica: afirma que o direito é uma criação espontânea do espírito do


povo, como a arte, a linguagem, a música, a literatura e até o sentimento religioso:
cada povo tem a sua alma, o seu espírito que cria a cultura de que o direito é uma

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1º ano de Direito Introdução ao Estudo do Direito CAD

das várias manifestações. Desta forma se justifica o não reconhecimento do Direito


Natural.

6.4. Positivismo jurídico:


Considerações gerais:
 Foi no século XIX que, por influência de vários fatores, o positivismo jurídico se
impõe como forma de pensamento que recusa a metafisica e o Direito Natural e,
ao jurista, a facultade de emitir um juízo crítico sobre a justiça ou injustiça do
direito (positivo) que lhe é dado a aplicar.

 Afigura-se oportuno caracterizar o positivismo jurídico segundo uma perspetiva


funcional que o distingue do jusnaturalismo clássico. Destacam-se quatro aspetos
fundamentais:

1. O conceito de direito: o direito é um comando imposto pela vontade do legislador


e, a validade das suas normas afere-se por critérios de vigência e de eficácia,
podendo a lei injusta ser válida e vinculativa;
2. As fontes do direito: à lei devemos uma obediência absoluta ou incondicional;
3. O método: o juiz limita-se a aplicar a norma ao caso concreto, segundo um
processo lógico-dedutivo e subsuntivo (adequação de uma conduta ou facto
concreto à norma jurídica (norma-tipo)). Trata-se de uma operação meramente
reprodutiva da vontade do legislador que reduz o juiz a puro técnico;
4. A epistemologia: A filosofia do Direito separou-se da ciência do Direito que se
pretendeu submeter a modelos e métodos do tipo formalista ou naturalista.

Críticas:
 Critica-se o positivismo jurídico afirmando que é insustentável: o seu agnosticismo
(não conhecimento) axiológico e a neutralidade cientifica constituem uma
experiência particularmente dolorosa.

Positivismo legalista ou exegético:


 O início do positivismo exegético coincide com a publicação do Código de
Napoleão, onde convergiram os ideais progressistas da Revolução Francesa e o
racionalismo jurídico que lhe transmitiu o prestígio de um código perfeito. Com
efeito, os mesmos ideais que tinham inspirado aquela Revolução foram positivados
nas normas jurídicas: grande parte dos preceitos do Direito Natural converteram-
se em direitos subjetivos protegidos pelas leis positivas; e o Código é a expressão
acabada do racionalismo jurídico.
Apresentam-se, ainda, as seguintes características:

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1º ano de Direito Introdução ao Estudo do Direito CAD

1. Identificação do direito com a lei e esta com o Código Civil. A lei é a expressão da
vontade geral e, como a vontade geral é sempre justa, logo conclui-se que não há
leis injustas.

2. A interpretação deve procurar a intenção do legislador que prevalece sobre o


sentido literal dos vocábulos em que se expressa. Se não for possível determinar a
vontade real do legislador, procurar-se-á a sua vontade presumida através da
jurisprudência.

3. Não reconhecimento da existência de verdadeiras lacunas, porque se considera o


sistema jurídico completo e fechado.

Criticas:
 No positivismo legalista observa-se que a lei perdeu a sua mística santidade e a
infalível injustiça que lhe era pressuposta pelo facto de nascer democraticamente:
é um facto humano que pode, como todos os factos humanos, ser bom ou mau,
justo ou injusto. Ademais, a lei é insuficiente: não pode prever todas as situações
com que a vida nos surpreende. E o juiz não pode ser escravo da lei; deve assumir
uma atitude crítica na procura da solução mais justa.

Positivismo normativista:
 Hans Kelsen, criou uma das mais grandiosas e coerentes doutrinas de todos os
tempos em que representa o marco mais importante na história do pensamento
jurídico do século XIX: a teoria pura do direito.

 A sua atitude foi exclusivamente epistemológica e o seu positivismo científico


impôs-lhe a necessidade de depurar a ciência do direito de todos os elementos que
pertencem a outras ordens do conhecimento.

 Por isso, Kelsen começou por separar radicalmente a realidade social e histórica (o
mundo do ser) das normas (o mundo do dever-ser). Considera, assim, o direito um
conjunto de normas desligadas da realidade social em que atuam.

 Kelsen vê na justiça um ideal irracional, inacessível ao conhecimento racional e


científico; e a ideia de valor não passa de uma máscara que encobre interesses
sociais ou políticos. Por isso, reduz o direito a uma peculiar técnica de controlo
social essencialmente coativa, cujo conhecimento é objeto da ciência jurídica que
recusa o contributo da Sociologia, da Política, da Ética, da História, etc.

 A validade de uma norma é conferida por uma norma superior que determina o
seu modo de produção e o órgão competente. Kelsen construiu, portanto, uma
cadeia de validades segundo uma hierarquização de normas em pirâmide, cujo
vértice positivo culmina na Constituição política. Mas em que se funda esta
validade? Numa norma fundamental que manda obedecer à Constituição. Não se
trata, porém, de uma norma real, mas hipotética, pressuposta, que tem por função

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1º ano de Direito Introdução ao Estudo do Direito CAD

transmitir validade à ordem jurídica. Kelsen viu-se, portanto, obrigado a recorrer


ao mundo da facticidade (do ser), debilitando a sua construção lógica.

Críticas:
 No positivismo normativista observa-se que a inconsideração de juízos de valor
transforma o direito numa peculiar técnica de controlo social suscetível de ser
utilizada para a realização de quaisquer fins por mais iníquos (injustos) que sejam;
e atribui a validade do ordenamento jurídico a uma norma fictícia que manda
obedecer à Constituição.

 Ora, nem a validade das normas jurídicas se resolve em meras suposições lógicas,
nem o direito se reduz a uma mera técnica de controlo social indiferente aos fins e
valores a realizar.

6.5. Outras soluções:


 É de referir duas doutrinas alternativas importantes ao neopositivismo e à doutrina
da natureza das coisas: a doutrina defendida por Baptista de Machado e
Castanheira Neves.
Baptista Machado:

 Baptista Machado entende que os textos legais não determinam ou criam


autonomamente o jurídico: antes, eles são já uma expressão ou tradução dessa
juridicidade.

 No direito (que é vigente) existe uma permanente tensão e transação dialética,


traduzida por uma incessante e cruzada cadeia de reenvios entre uma polaridade
positiva e uma polaridade extrapositiva. E, Baptista Machado conclui: se
pudéssemos chamar à referida polaridade extrapositiva Direito Natural, diríamos
que, no plano hermenêutico (interpretar leis), não existe um Direito Positivo sem
um Direito Natural e também não existe um Direito Natural sem um Direito
Positivo. Neste sentido, caberia ao Direito Natural aquela função hermenêutica
indispensável à compreensão dos textos legais positivos.

 De referir ainda que, o juiz chamado a aplicar o Direito, não é um mandatário


sujeito às diretivas de quem o designou, mas um órgão e porta-voz autónomo do
Direito, no exercício de cuja função bem pode ter de frustrar um determinado
desígnio do legislador.
Castanheira Neves:

 Segundo Castanheira Neves, a dimensão axiológica é a dimensão fundamentante e,


mesmo significante, da normatividade jurídica, que a constitui como direito, o que
implica que terá de reconhecer-se no valor e não na norma. E, se o problema é o
de saber que valores estarão hoje a dar sentido fundamentante à normatividade
jurídica e são suscetíveis de sustentar, através dela, o integrante consensus

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1º ano de Direito Introdução ao Estudo do Direito CAD

comunitário, urge procurar esses valores no fundo ético da nossa cultura, neste
momento histórico, ou seja, no momento histórico-cultural e comunitário em que
o problema se põe.

 Esta compreensão da validade do direito convoca, ainda, o jurista a desempenhar a


sua verdadeira função: a de assumir criticamente a ideia de direito. Merece,
também, uma especial referência a solução a dar ao problema da lei injusta, ou
seja, a norma legal que não realize ou não permita realizar concretamente a ideia
de direito. A única atitude legitima face a uma lei injusta é a de recusar a sua
aplicação. Para tanto, é necessário que a função judicial seja verdadeiramente
independente.

Tema 2: Normatividade Jurídica


7. Normas jurídicas:
7.1. Noção:
 A norma jurídica constitui um elemento fundamental do direito, na sua função de
ordenar a convivência humana. O seu sentido não é unívoco: fala-se de disposição,
preceito, lei e regra jurídica. No entanto, acolhemos a definição de Oliveira
Ascensão e definimos norma jurídica como um critério de qualificação e decisão de
casos concretos.
Estruturalmente, a norma jurídica é constituída por duas partes:
1. Previsão ou hipótese: refere uma situação típica da vida cuja verificação, em
concreto, desencadeia o efeito ou a consequência jurídica estabelecida na
estatuição. Isto significa que nesta parte, surge a previsão de situações futuras, ou
seja, a norma jurídica regula situações de casos que se prevê que venham
acontecer.

2. Estatuição ou injunção: é a prescrição (determinação) de efeitos jurídicos no caso


de a situação prevista se verificar. Isto significa que as normas jurídicas impõem
uma conduta a adotar quando se verifica a sua previsão.

7.2. Características:
A norma jurídica apresenta as seguintes características:
a) Hipoteticidade: os efeitos jurídicos, que a norma estatui, só se produzem se se
verificarem as situações ou factos previstos; se não ocorrerem, a norma jurídica
não se aplicará.
b) Generalidade: a norma jurídica aplica-se a uma categoria abstrata de pessoas e
não a uma ou a uma pluralidade de pessoas determinadas no momento da sua
elaboração.

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1º ano de Direito Introdução ao Estudo do Direito CAD

c) Abstração: a norma jurídica aplica-se não a um caso específico, mas a um número


indeterminado de situações submissíveis à categoria prevista. A norma não pode
disciplinar situações concretas, mas somente formular os modelos de situação,
uma vez que, é impossível ao legislador prever todas as possibilidades que podem
ocorrer nas relações sociais.
Há também quem refira outras características: a imperatividade, a violabilidade, a
bilateralidade, a heteronímia e a coercibilidade.

d) Imperatividade: as normas jurídicas são obrigatórias. Não dependem da vontade


dos destinatários. Não são meros conselhos, opiniões, nem simples
recomendações. Traduzem uma ordem, um comando, que deve ser respeitado ou
cumprido.

e) Bilateralidade: esta característica tem relação com a própria estrutura da norma,


pois, normalmente, a norma é dirigida por duas partes, sendo que uma parte tem o
dever jurídico, ou seja, deverá exercer determinada conduta em favor de outra,
enquanto que, essa outra, tem o direito subjetivo, ou seja, a norma concede a
possibilidade de agir diante da outra parte.

f) Coercibilidade: pode ser explicada como a possibilidade do uso da força para


combater aqueles que não observam as normas. A sua função. Que não deixa de
ser importante, cumpre-se na contribuição para dotar as normas jurídicas de
eficácia.

7.3. Classificação das normas:


Quanto à sua relação com a vontade dos seus destinatários, as normas jurídicas
podem ser:
1. Imperativas: a sua aplicação não depende da vontade das pessoas. Impõe-se-lhe,
exigindo um comportamento que pode ser positivo (facere) ou negativo (non
facere). Podem ser proibitivas quando proíbem uma conduta (ex: normas penais),
ou então preceptivas quando impõem uma conduta.

2. Permissivas: são normas que permitem ou autorizam certos comportamentos.


Podem ser facultativas quando permitem ou facultam certos comportamentos,
reconhecendo determinados poderes ou faculdades; interpretativas quando
determinam o alcance e o sentido de certas expressões ou declarações negociais
suscetíveis de dúvida; supletivas quando suprem a falta de manifestação da
vontade das partes sobre determinados aspetos de um negócio jurídico que
carecem de regulamentação.

Quanto ao âmbito de validade espacial, as normas jurídicas podem ser:

25
1º ano de Direito Introdução ao Estudo do Direito CAD

1. Universais: aplicam-se em todo o território do Estado (ex: normas contidas na


maior parte das leis e decretos-leis).

2. Regionais: só se aplicam numa determinada região.

3. Locais: aplicam-se apenas no território de uma autarquia local (ex: as normas


contidas nas posturas municipais).

Em relação ao âmbito pessoal de validade, as normas jurídicas classificam-se em:


1. Gerais: estabelecem o regime-regra para o setor de relações que disciplinam.

2. Especiais: consagram uma disciplina nova ou diferente para círculos mais restritos
de pessoas, coisas ou relações, mas não diretamente oposta ao regime comum das
normas gerais (ex: normas que regulam as relações jurídicas dos comerciantes).

3. Excecionais: consagram um regime oposto ao regime-regra, num setor restrito (ex:


as normas que exigem escritura pública ou documento particular autenticado para
compra e venda de bens imóveis).

Quanto à plenitude do seu sentido, as normas jurídicas distinguem-se em:


1. Autónomas: expressam um sentido completo, isto é, possuem um conteúdo
independente do de outras normas jurídicas (ex: a norma que fixa os efeitos da
maioridade).

2. Não autónomas: não têm um sentido completo e, para o obterem, remetem para
outra ou outras normas que as complementam. Importa distinguir as normas de:

a) Remissão explícita: referem expressamente a norma ou normas para que


remetem. Pode ser:
I. Modificativa: a norma não só remete para outra ou outras, mas também
modifica o seu alcance.

II. Não modificativa: a norma limita-se a remeter para outra que a completa,
sem modificar o seu alcance.

b) Remissão implícita: a norma jurídica não remete expressamente para outra


norma, mas estabelece que o facto ou situação a regular é, ou se considera
igual, ao facto ou situação disciplinada por outra norma para a qual
implicitamente remete. São remissões implícitas as:
I. Ficções legais: o legislador determina que um determinado facto ou
situação é ou se considera como se fosse igual ao facto ou situação
prevista noutra lei.

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1º ano de Direito Introdução ao Estudo do Direito CAD

II. Presunções legais: o legislador dispõe que, provada a existência de um


determinado facto, se considere também provada a existência de outro.
As presunções podem ser absolutas ou relativas.

Quanto à sanção que aplicam, as normas jurídicas classificam-se em:


1. Leges plus quam perfectae (leis mais do que perfeitas): determinam a invalidade
dos atos que as violem e aplicam, ainda, uma pena aos infratores (ex: o casamento
celebrado por quem é casado. Não estando o casamento anterior dissolvido, o
segundo é anulável).

2. Leges perfectae (leis perfeitas): só determinam a invalidade dos atos contrários


(ex: a compra e venda e a doação de bens imóveis sem escritura pública ou
documento particular autenticado).

3. Leges minus quam perfectae (leis menos que perfeitas): não estabelecem a
invalidade do ato contrário, mas determinam que não produzirá todos os seus
efeitos (ex: no casamento de um menor, com mais de 16 anos de idade, sem a
autorização dos pais ou do tutor: o casamento é válido, mas o menor não deixa de
o ser quanto à administração de bens que leve para o casal ou adquira
posteriormente a título gratuito).

4. Leges imperfectae (leis imperfeitas): não estabelecem nenhuma sanção (ex: as


normas constitucionais que reconhecem o direito à proteção da saúde e
estabelecem o dever de o Governo criar um serviço nacional de saúde universal e
geral tendencialmente gratuito – se esta disposição não for cumprida, poderá
haver uma sanção política, mas não jurídica).

8. Sanção
8.1. Noção:
 A sanção pode definir-se como uma consequência, ou efeito, imposto pela ordem
jurídica. No entanto, podem distinguir-se duas aceções:

1. Correntemente, fala-se de consequência negativa ou reação desfavorável da


ordem jurídica ao cumprimento de uma norma jurídica. Trata-se da sanção
negativa que se traduz na privação de um bem.

2. Menos correntemente, refere-se como sanção uma reação favorável ao


cumprimento de uma norma jurídica. É a sanção positiva ou premial, que se traduz
na atribuição de prémios ou recompensas.

 De realçar ainda que a sanção nem sempre está presente nas normas jurídicas: as
obrigações naturais, porque não são judicialmente exigíveis, não a admitem
8.2. Classificação:
27
1º ano de Direito Introdução ao Estudo do Direito CAD

As sanções classificam-se em:

1. Reconstitutivas: restabelecem a situação que existiria se a norma jurídica não


tivesse sido violada.
a) Reconstituição em espécie: repõe a situação anterior à violação da norma.

b) Execução específica: traduz-se na realização da prestação imposta pela norma


ofendida.

c) Indeminização específica: repõem a situação com um bem que, não sendo o


que foi danificado, permite desempenhar a mesma função (ex: o caso de
alguém que é obrigado a restituir um objeto igual ao que destruiu).

2. Compensatórias: estabelecem uma situação que, embora diferente, se considera


valorativamente equivalente à situação que existia antes da violação da norma
jurídica. Tal situação obtém-se através da indemnização dos danos causados a que
o transgressor fica obrigado. A indemnização pode cobrir os danos emergentes e
também os lucros cessantes, ou seja, a frustração de um ganho (art.º 564).
Tratando-se de danos não patrimoniais ou pessoais, a indemnização tão-só permite
compensar o lesado e, por isso, é preferível falar de reparação ou de compensação
da dor ou do desgosto sofrido (art.º 496).

3. Punitivas: visam impor um castigo ao infrator que violou uma norma jurídica.
Tratam-se de punições particularmente graves que funcionam quando os valores
fundamentais da ordem jurídica são desrespeitados. Implicam a privação de um
bem (a vida, a liberdade, bens patrimoniais) e a reprovação da conduta do infrator.
Estas sanções podem ser:

a) Criminais: são as mais graves, porque correspondem a violações que a ordem


jurídica considera criminosas. Estas sanções estão relacionadas com a violação
de normas do Direito Penal.

b) Civis: são estabelecidas pelo Direito Civil em relação a condutas indignas (ex: a
incapacidade sucessória por motivos de indignidade – art.º 2034).

c) Disciplinares: aplicam-se à infração de deveres de determinadas categorias


profissionais no exercício da respetiva atividade laboral. Situam-se no âmbito do
Direito do Trabalho.

d) Contraordenacionais: são resultantes da Administração Pública e punem, com


coimas, certas condutas suscetíveis de lesarem interesses fundamentais.

4. Preventivas: visam afastar futuras violações, sujo receio é justificado pela prática
de um determinado ilícito (ex: medidas de segurança, inibição do exercício de

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1º ano de Direito Introdução ao Estudo do Direito CAD

determinada profissão, prisão preventiva, inibição do exercício da tutela a quem


praticou crimes que façam temer o seu mau exercício).

5. Compulsórias: procuram que, embora tardiamente, o infrator adote a conduta


devida e, portanto, que a violação não se prolongue; por isso, cessam logo que a
norma jurídica desrespeitada seja observada. Assim, o principal objetivo deste tipo
de sanção é forçar e compelir o agente a cumprir determinado comportamento
(ex: pagamento de uma quantia pecuniária por cada dia de atraso no cumprimento
da obrigação – art.º 829).

8.3. Ineficácia jurídica:


 A ineficácia jurídica corresponde a uma reação da ordem jurídica, que impede que
os atos jurídicos desconformes com a lei produzam todos ou alguns efeitos
jurídicos que, em condições normais, produziriam. A ineficácia jurídica comporta as
seguintes modalidades:

1. Inexistência jurídica: trata-se de casos muito graves em que para o direito


nada há e, por isso, nenhum efeito jurídico pode produzir-se (ex: o casamento
celebrado sem a declaração da vontade de um ou ambos os nubentes).

2. Invalidade: verifica-se quando um ato, que existe materialmente, sofre de um


vício que justifica a não produção de efeitos jurídicos; por isso, deverá ser
restituído tudo o que tiver sido prestado ou, se não for possível a restituição
em espécie, o valor correspondente. Compreende duas modalidades:

a) Nulidade: ocorre quando a violação da norma jurídica ofende um interesse


público. Pode ser invocada por qualquer pessoa que tenha interessa na não
produção dos efeitos jurídicos e é insanável pelo decurso do tempo, ou seja,
é perpétua.

b) Anulabilidade: ocorre quando a violação da norma jurídica ofende um


interesse particular, por isso, é necessário que seja invocada pela pessoa ou
pessoas a favor de quem foi estabelecida e é sanável pelo decurso do
tempo.

3. Ineficácia em sentido estrito: ocorre quando o ato que transgrediu a lei não
produz todos ou parte dos seus efeitos.

9. Tutela (proteção dos nossos direitos)


9.1. Tutela pública:
 A tutela pública é a função do Estado destinada a defender a legalidade e garantir
a aplicação e cumprimento das normas jurídicas. Constitui uma garantia dos
direitos subjetivos, conferindo-lhes uma consistência prática.
9.2. Modalidades da tutela pública:

29
1º ano de Direito Introdução ao Estudo do Direito CAD

Tutela preventiva:
 Funciona antes da violação do direito e procura evitá-la, dificultando-a ou
tornando-a inconveniente. Importa destacar:
1. A autoridade pública que fiscaliza, limita e sujeita a autorização prévia de
certas atividades para evitar danos sociais a que podiam conduzir.

2. Medidas de segurança: visam colocar as pessoas consideradas perigosas em


situação de não poderem praticar, ou dissuadi-las da prática de crimes.

3. Inabilitação para o exercício de uma certa atividade ou profissão .

4. Ação declarativa de simples apreciação: visa apenas obter a declaração da


existência ou inexistência de um direito ou de um facto, afastando uma
situação de incerteza e prevenindo uma eventual ofensa ao direito
reconhecido.

5. Procedimentos cautelares: procuram evitar que se produza uma lesão grave e


dificilmente reparável de um direito, enquanto não houver uma sentença
definitiva.

Tutela repressiva:
 A tutela repressiva funciona depois de consumada a violação do direito e consiste
na reação traduzida na aplicação de uma sanção, ou seja, na aplicação de
determinados efeitos jurídicos desfavoráveis ao infrator. Relaciona-se com a
coercibilidade que, por sua vez, se traduz na suscetibilidade de aplicação de
sanções com recurso à força.

 Porém, o direito ou é vigente ou não é direito e a sua vigência depende, em boa


parte, da coercibilidade. Assim, importa ver na coercibilidade um instrumento da
eficácia do direito que requer um poder social organizado dotado da força
necessária que o direito legitima.

O aparelho estadual
Os tribunais:
Função e princípios estruturantes:
 A tutela pública realiza-se, principalmente, através da intervenção dos tribunais. Os
tribunais são órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em
nome do povo. Pertence-lhes, portanto, o exercício da função jurisdicional do
Estado, que se traduz na aplicação da Constituição e das outras normas jurídicas,
para resolverem os conflitos, não só entre interesses privados, mas, também, entre
interesses privados e públicos. Os tribunais estruturam-se segundo os seguintes
princípios:

30
1º ano de Direito Introdução ao Estudo do Direito CAD

a) Independência: os juízes só obedecem à lei. Por isso, não estão sujeitos a


ordens, instruções ou diretivas de qualquer autoridade, mesmo judicial.

b) Imparcialidade: os juízes julgam de forma livre e descomprometida dos


interesses dos litigantes.

c) Passividade: os juízes não podem resolver o conflito de interesses que as ações


pressupõem, sem que uma das partes tenha pedido e, a outra tenha sido
devidamente chamada a deduzir oposição.

Organização judicial:
 Além do Tribunal Constitucional e do Tribunal de Contas, existem,
fundamentalmente, duas categorias de tribunais estaduais: os tribunais judiciais e
os tribunais administrativos e fiscais.

 Os tribunais judiciais escalonam-se numa estrutura hierárquica, que funciona com


vista à interposição de recursos dos tribunais inferiores para os superiores. Assim,
seguindo a ordem crescente, temos:
1. Os tribunais de 1ª instância: são, em regra, os tribunais de comarca.
2. Os tribunais de 2ª instância que se denominam Relações.
3. O Supremo Tribunal de Justiça.

 Aos tribunais administrativos e fiscais compete o julgamento de litígios


emergentes de relações jurídicas administrativas e fiscais. Seguindo a mesma
ordem, existem os seguintes tribunais administrativos e fiscais:
1. Os tribunais administrativos de círculo.
2. Os tribunais centrais administrativos.
3. O Supremo Tribunal Administrativo.
4. Tribunais tributários.

Administração Pública:
 A administração pública é um conceito da área do direito que descreve o conjunto
de funcionários, serviços e órgãos instituídos pelo Estado, com o objetivo de fazer a
gestão de certas áreas de uma sociedade, como a Educação, a Saúde, a Cultura,
etc. O seu principal objetivo consiste em trabalhar a favor do interesse público, e
dos direitos e interesses dos cidadãos que administra.

Garantias administrativas:

31
1º ano de Direito Introdução ao Estudo do Direito CAD

 As garantias graciosas resultam da atuação de órgãos da Administração Pública


com vista a controlar a sua atividade. Distribuem-se por três grandes grupos:

1. Garantias petitórias: visam prevenir a lesão de direitos ou interesses legalmente


protegidos dos cidadãos e, não pressupõem, em regra, um ato administrativo.
Compreendem:
a) O direito de petição: faculdade de pedir à Administração Pública que tome
determinadas decisões ou providências;

b) Direito de representação: é a faculdade de fazer uma exposição, manifestando


uma opinião contrária à de um órgão da Administração Pública.

c) Direito de queixa: é a faculdade de denunciar qualquer inconstitucionalidade ou


ilegalidade, bem como o funcionamento anómalo de qualquer serviço, a fim de
que sejam adotadas medidas contra os responsáveis.

d) Direito de oposição administrativa: é a faculdade de deduzir oposição contra


atos da administração que lesem direitos ou interesses legalmente protegidos.

2. Garantias impugnatórias: são os atos que os particulares podem utilizar para


atacar um ato administrativo perante os órgãos da Administração Pública. São:
a) Reclamação: é o pedido de reapreciação do ato administrativo dirigido ao seu
autor.

b) Recurso hierárquico: em sentido próprio, dirige-se ao superior hierárquico do


órgão que praticou o ato administrativo para que o revogue ou modifique.

c) Recurso hierárquico impróprio: permite impugnar um ato administrativo


perante um órgão da mesma pessoa coletiva que, não sendo superior, exerce
poderes de supervisão sobre o órgão que o praticou.

d) Recurso tutelar: impugnação por um órgão de uma pessoa coletiva pública


perante um órgão de outra pessoa coletiva de direito público que sobre aquele
exerça poderes de tutela ou de superintendência.

3. Queixa ao provedor de justiça: embora não tenha poder decisório, o Provedor de


Justiça tem um poder persuasório (fazer recomendações às autoridades
competentes) particularmente importante porque, na sua base, estão o prestigio e
a independência.

Tutela jurisdicional

32
1º ano de Direito Introdução ao Estudo do Direito CAD

 A Constituição da República Portuguesa garante aos cidadãos, perante a


Administração Pública uma tutela jurisdicional efetiva dos seus direitos ou
interesses legalmente protegidos, nomeadamente, para obterem o
reconhecimento desses direitos ou interesses e para impugnarem os atos
administrativos que os lesem. Essa tutela é efetivada, em regra, através dos
tribunais administrativos, que constitui a forma mais eficaz de defesa dos direitos
subjetivos públicos e de outras posições jurídicas ativas dos cidadãos.

Ministério Público:
 O Ministério Público é um órgão constitucional da administração da justiça. Goza
de autonomia em relação aos demais órgãos do poder central, regional e local, mas
não é um órgão de soberania, nem se confunde com os órgãos do poder judicial,
porque não tem competência para praticar atos materialmente jurisdicionais.
Dispõe de estatuto próprio e é constituído por um corpo de magistrados
responsáveis e hierarquicamente subordinados. Compete ao Ministério Público:
representar o Estado, as regiões autónomas, as autarquias locais, os incapazes e os
incertos; exercer a ação penal; defender a legalidade e a constitucionalidade.

Jurisdição e administração:
 É necessário distinguir a Jurisdição da Administração. A Jurisdição traduz-se na
apreciação e decisão de uma situação jurídica concreta, a cargo de órgãos do
Estado independentes e imparciais, nos termos de um processo organizado e
disciplinado pela lei. Pelo contrário, enquanto que a Administração é
desempenhada por órgãos que são parte nas suas decisões.

9.3. Tutela privada:


 A tutela privada é a defesa de direitos realizada pelos particulares nas situações
excecionais legalmente previstas. Comporta várias figuras jurídicas:
a) Direito de resistência: é a faculdade de resistir a qualquer ordem que ofenda os
nossos direitos, liberdades e garantias e de repelir pela força qualquer agressão,
se não for possível recorrer à autoridade pública (art.º 21 - CRP).

b) Ação direta: é o recurso à força para evitar a inutilização prática de um direito,


no caso de ser impossível recorrer aos meios coercivos normais, contando que o
agente não exceda o que for necessário para evitar o prejuízo, nem sacrifique
interesses superiores ao que vai usar (art.º 336).

c) Legitima defesa: é o ato que afasta uma agressão atual ou iminente ilícita
contra a pessoa ou o património do agente ou de terceiro, quando não for
possível recorrer à autoridade pública e, o prejuízo causado não exceder o que
puder resultar da agressão (art.º 337).

33
1º ano de Direito Introdução ao Estudo do Direito CAD

d) O estado de necessidade: é a situação em que alguém se encontra, que justifica


a licitude da ação de destruir ou danificar uma coisa alheia para remover o
perigo atual ou iminente de um dano manifestamente superior quer do agente,
quer de terceiro. O autor do dano é obrigado a indemnizar o lesado pelo
prejuízo sofrido se o perigo for provocado por sua culpa. O estado de
necessidade afasta a ilicitude, mas a violência aqui permitida não traduz a
reação a uma agressão (art.º 339).

e) O direito de retenção: é a faculdade que o credor goza de reter uma coisa do


devedor para o coagir a cumprir a sua obrigação (art.º 754/755).

10. Fontes do Direito


10.1. Noção:
 Quando se fala em fontes do Direito, quer-se com esta expressão jurídica referir ao
processo como o direito é formado e revelado, enquanto conjunto sistematizado
de normas, com um sentido e lógica próprios, conformador e disciplinador da
realidade social de um Estado. Tradicionalmente, são apontadas como fontes do
Direito: a lei, o costume, a jurisprudência, a equidade e a doutrina.

10.2. Classificação das fontes do direito:


a) Imediatas: são as leis e as normas corporativas. As leis são as disposições
provenientes dos órgãos estaduais competentes. As normas corporativas são as
regras provenientes de diversos órgãos representativos.

b) Mediatas: a sua força vinculativa resulta da lei. Surgem-nos a equidade (juízo de


ponderação e resolução de um conflito, proferido por um tribunal, segundo um
sentido de justiça e experiência aplicados ao caso concreto, sem recurso a lei) e os
usos.
As fontes do direito distinguem-se, ainda, em:
c) Voluntárias: explicitam uma vontade dirigida, especificamente, à criação de uma
norma jurídica (ex: a lei, a jurisprudência e a doutrina).

d) Não voluntárias: não traduzem essa vontade. Surgem involuntariamente no


âmbito da convivência comunitária (ex: o costume e os princípios fundamentais do
direito).

10.3. Fontes voluntárias

1. A lei:
34
1º ano de Direito Introdução ao Estudo do Direito CAD

 No seu significado mais amplo, é o conjunto de princípios que regem todos os


seres. Enquanto fonte do direito, a lei é frequentemente definida como toda a
norma escrita proveniente dos órgãos estaduais competentes. Contudo, não
devemos confundir as normas jurídicas com os textos legais, que são simples
instrumentos de manifestação: uma coisa é a norma; outra, os textos que a
manifestam.
Distinguem-se dois sentidos:
1. A lei formal: é um diploma emanado do órgão legislativo, que reveste uma
forma pré-determinada. Pode conter algumas normas jurídicas ou comandos
individuais e concretos;

2. Lei material: é um diploma ditado pelo órgão competente, contendo uma ou


mais normas jurídicas.

 No entanto, a lei propriamente dita é, simultaneamente, formal e material e, por


isso, pode definir-se como uma declaração solene com valor normativo ditada pela
autoridade competente, observando a forma estabelecida.

Classificação:
Atendendo à solenidade, as leis podem classificar-se em:
a) Solenes – Revestem determinada forma prevista da Constituição da República
Portuguesa. São:
1. Leis constitucionais;
2. Leis ordinárias: leis e decretos-leis;
3. Decretos legislativos regionais.

b) Não solenes (comuns):


1. Leis emanadas dos órgãos centrais do Estado (decreto do Presidente da
República; decreto regulamentar do Governo);
2. Leis elaboradas pelos órgãos locais do Estado (regulamentos dos Governos
Civis);
3. Leis das regiões autónomas;
4. Leis das autarquias.

Hierarquia:
 A necessidade de algumas leis se ocuparem dos aspetos gerais e outras dos
pormenores e da possibilidade de surgirem conflitos entre as leis justificam que
estas sejam dispostas num sistema piramidal hierarquizado que tem, no seu
vértice, a lei mais importante e, nos escalões sucessivamente inferiores, as leis
cada vez menos importantes.

35
1º ano de Direito Introdução ao Estudo do Direito CAD

1. As leis constitucionais: fixam os grandes princípios da organização política e da


ordem jurídica e os direitos e deveres fundamentais dos cidadãos. Constituem as
leis fundamentais do Estado e, por isso, situam-se no vértice da pirâmide, sendo
que as restantes leis lhe devem obediência. E, dentro delas ainda existem em
primeiro lugar, as leis ditadas pelo poder constituinte originário; as leis emanadas
do poder constituinte de revisão; as leis constitucionais mediatas ou
constitucionalizadas.

2. Leis ordinárias: devem obediência à Constituição sob pena de


inconstitucionalidade.

a) As leis e os decretos-leis: que estabelecem, em regra, as normas, princípios e


institutos para a resolução dos problemas.

b) Os decretos legislativos regionais: têm âmbito regional e versam sobre


matérias enunciadas no estatuto-político-administrativo da respetiva região
autónoma.

3. Regulamentos: possibilitam a aplicação ou execução das leis e decretos-leis, quer


pormenorizando as suas normas, quer formulando normas complementares e
instrumentais. Não podem violar a lei ou decreto-lei sob pena de ilegalidade.

Resolução de conflitos:
Pode suceder que das leis se retirem normas jurídicas conflituantes. Neste caso,
importará recorrer aos critérios da:
1. Superioridade: aplica-se a lei superior.
2. Posterioridade: aplica-se a lei mais recente.
3. Especialidade: aplica-se a lei especial que prevalece sobre a lei geral, salvo se
outra for a intenção inequívoca do legislador.

Desvalores do ato legislativo:


 O ato legislativo de que resulta a lei deve obedecer a requisitos exigidos pela
Constituição da República, sob pena de aquela padecer de inconstitucionalidade
que pode ser formal, orgânica e material.
Uma lei pode ser:
a) Existente: a violação da Constituição da República é tão grave que se recusa
existência à lei, por isso não produz quaisquer efeitos (ex: lei não promulgada pelo
Presidente da República).

b) Nula: a violação da Constituição da República não afeta a existência da lei, mas


justifica a sua nulidade.

36
1º ano de Direito Introdução ao Estudo do Direito CAD

c) Ineficaz: a lei sofre de um vício que a impede de produzir os seus efeitos (ex: a não
publicação no Diário da República).

Aspeto dinâmico:
Publicação:
 Para concluir o processo legislativo a lei deve ser publicada porque, para poder
orientar as nossas condutas, é necessário que seja conhecida.

 Entretanto, o Código Civil estabelece que a lei só se torna obrigatória depois de


publicada no jornal oficial; e, em consequência, consagra o princípio de que todos
somos obrigados a ler a lei, não podendo afirmar a ignorância perante esta.

Vacatio legis:
 A vacatio legis é o tempo que decorre entre a publicação e a entrada em vigor da
lei, considerado necessário para que a lei possa ser conhecida.

 A vacatio legis é de cinco dias em todo o território nacional e no estrangeiro. E o


prazo conta-se a partir do dia imediato ao da sua disponibilização no sítio da
Internet.

 Quanto aos diplomas das autarquias locais, o Código Administrativo determinou


imperativamente que a vacatio legis não pode ser inferior a oito dias contados da
afixação.

Retificações:
 Pode suceder que, por virtude de falhas técnicas na revisão das provas tipográficas
e de anomalias do processo legislativo, o texto publicado no Diário da República
divirja do texto real. Importa, por isso, fazer as necessárias retificações.

Cessação da vigência:
Segundo o nosso Código Civil, a vigência de uma lei pode cessar por:
1) Caducidade: a lei deixa de vigorar quando ocorre um facto que ela própria
prevê ou desaparece a realidade que disciplinava.

2) Revogação: a lei cessa a sua vigência por efeito de uma lei posterior de valor
hierárquico igual ou superior. Pode ser:
a) Expressa: a nova lei declara que revoga a lei anterior.
b) Tácita: resulta de uma incompatibilidade entre as leis nova e antiga.
c) Global: a lei nova regula completamente um instituto jurídico ou um ramo do
direito e, por isso, ficam revogados os respetivos preceitos da lei anterior.

37
1º ano de Direito Introdução ao Estudo do Direito CAD

d) Individualizada: a lei nova revoga a lei anterior ou uma ou algumas das suas
normas.
e) Total: a lei anterior cessa totalmente a sua vigência.
f) Parcial: só uma parte da lei deixa de vigorar.

 Repristinação: com a revogação (anulação) da lei nova é reposta a vigência da lei


antiga.

 Principio da não repristinação: a revogação (anulação) de uma lei não determina a


repristinação (renascimento) automática da lei que esta revogou, a não ser que a
repristinação seja expressamente prevista pela nova lei revogatória.

2. Normas corporativas:
 O nosso Código Civil considera as normas corporativas fontes imediatas do direito
e, podemos defini-las, como as regras ditadas pelos organismos representativos
das diferentes categorias morais, culturais, económicas ou profissionais, no
domínio das suas atribuições, bem como os respetivos estatutos e regulamentos
internos. Tais normas constituem leis em sentido material, disciplinam
determinados setores da vida social, são ditadas por entidades competentes e
devem obedecer às formas estabelecidas para a criação normativa.

3. Jurisprudência:
 Entende-se por jurisprudência o conjunto das decisões em que se exprime a
orientação seguida pelos tribunais, ao julgarem os casos em concreto que lhes são
submetidos. Embora não seja fonte do direito, a jurisprudência não deixa de ter
um contributo importante quer na formação do ambiente necessário à elaboração
das leis, quer na criação do direito.

4. Doutrina:
 A doutrina são as opiniões ou decisões dos jurisconsultos acerca de uma questão
do direito, expostas em tratados, manuais, monografias, etc.

 Historicamente, constitui uma fonte do direito muito importante. No Direito


Romano era a fonte por excelência. No entanto, a vulgarização em que o Direito
Romano caiu no ocidente teve, como causa fundamental, a ignorância, a que
conduziu a decadência do ensino do direito e, portanto, da jurisprudência.

 Entre nós, a doutrina foi também uma importante fonte do direito que lhe deve a
modernização por que sucessivamente passou. No entanto, a lei da boa razão
afastou das fontes do Direito a opinião comum dos doutores.

 Assim, desapareceu a doutrina como fonte do nosso direito, mas o seu elevado
valor continua irrecusável. Na verdade, sendo a doutrina o estudo científico do

38
1º ano de Direito Introdução ao Estudo do Direito CAD

direito a que se dedicam os jurisconsultos, a sua influência na vida jurídica é de


extrema relevância: na construção de institutos jurídicos, na determinação dos
princípios gerais do direito, na formação dos juristas, etc.

10.4. Fontes não voluntárias


1. O costume:

 O costume é definido como a prática social constante observada com o sentimento


ou convicção de que é juridicamente obrigatória. Trata-se de uma fonte anónima
do direito, sem origem certa ou paternidade, cujas normas têm a sua eficácia
automaticamente assegurada: os próprios interessados e destinatários são os
responsáveis pela sua constituição e subsistência.
A doutrina romano-canónica vê no costume dois elementos fundamentais:
1. Corpus (elemento material ou objetivo): é uma prática social reiterada, o que
significa a repetição de condutas.

2. Animus (elemento espiritual ou subjetivo): é a consciência, a convicção ou


reconhecimento, pelos membros do grupo social, de que aquela prática é
juridicamente obrigatória.

Relação costume-lei:
 Embora a lei seja atualmente a fonte do direito predominante, não está acima do
costume: a sua juridicidade radica nos mesmos valores e princípios normativos da
consciência jurídica geral de uma comunidade. Por isso, na sua relação com a lei o
costume pode ser:

1. Secundum legem (de acordo com a lei): quando o costume coincide com a lei,
nada lhe acrescentando, mas antes a confirmando.

2. Praeter legem (além da lei): o costume vai além da lei, num claro alargamento
da juridicidade, disciplinando matérias que a lei não previu.

3. Contra legem (contra a lei): o costume opõe-se à lei, ao produzir normas que
são antinómicas ao que esta dispõe.

O costume no Direito Português:


 O nosso Código Civil não refere o costume no capítulo das fontes de direito e exclui
expressamente o costume contra legem. Também o costume praeter legem foi
silenciado no processo previsto para a integração das lacunas.

39
1º ano de Direito Introdução ao Estudo do Direito CAD

 No Direito Internacional Público, a nossa Constituição determina que as suas


normas e princípios de alcance geral ou comum fazem parte integrante do direito
português e os costumes internacionais são aí particularmente importantes.

 Quanto ao Direito Internacional Privado, ao aplicar a “lei” do país para que


remete, têm de ser aplicados os costumes que constem no seu ordenamento
jurídico.

 O Código Civil não deixou de reconhecer o costume, quando permite a invocação


do direito consuetudinário sem afastar o dever de o tribunal procurar
oficiosamente obter o seu conhecimento. É que nada vale à lei ignorar ou excluir o
costume como fonte de direito pois o que interessa não é a intenção ou a
declaração, é a eficácia que porventura se consiga imprimir a essa declaração e se a
não conseguir, a declaração legal perde-se no vazio.

10.5. O uso:
 O uso é uma prática mais ou menos constante e reiterada, mas desacompanhada
do sentimento ou convicção da sua obrigatoriedade jurídica: há um corpus, mas
falta o animus para ser costume, e, portanto, fonte antónoma do direito.

 A lei reconhece aos usos, que não sejam contrários aos princípios da boa fé, o
caráter de fonte mediata do direito. Apesar de em muitos casos minimizar o
contributo dos usos para as mais diversas esferas politicas, existem, no nosso
ordenamento jurídico, referencias pontuais em que a lei recorre aos usos, como
por exemplo: valor do silêncio como declaração negocial.

10.6. Princípios fundamentais do direito:


 Os princípios fundamentais do direto são exigências feitas a todo e qualquer
ordenamento jurídico que pretenda ser coerente com a sua própria pretensão de
legitimidade e validade. Transcendem o direito positivo e são válidos porque
representam postulações eliciadas da própria ideia de Direito. São princípios
universais de direito, por imporem as suas exigências a todo e qualquer
ordenamento jurídico.

10.7. Posição do Direito Português:


 O nosso direito positivo consagrou os princípios fundamentais do direito. Desde
logo, a constituição da república acentua a dignidade humana, a soberania popular,
a igualdade perante a lei, etc.

 Quanto ao Código Civil, este admite, igualmente, vários desses princípios como a
não retroatividade da lei, a liberdade contratual, a responsabilidade civil por culpa,
etc. Questionar-se-á o lugar que ocupam os princípios fundamentais do direito no

40
1º ano de Direito Introdução ao Estudo do Direito CAD

quadro das fontes de direito e a resposta poderá passar pela supremacia que
exercem sobre a constituição sendo que esta não os pode recusar.

Tema 3: Sistematicidade do Direito


11. Sistema jurídico:
11.1. Noção e estrutura:
 Importa saber que o direito se estrutura num sistema: um conjunto de elementos
que se interrelacionam e ordenam numa unidade intrínseca.

 Sendo uma unidade em construção, o sistema jurídico, a que corresponde, só pode


ser um sistema aberto e de reconstrução dialética, situando-se, hierarquicamente,
em três estratos distintos e relacionados entre si:

1. Princípios normativos: formam o primeiro estrato e têm uma natureza


puramente axiológico-normativa. Fundamentam a juridicidade positiva e
transmitem o dinamismo constitutivo que impede o direito de se esgotar num
normatum (padrão).

2. Normas e dogmática: constituem o segundo estrato e traduzem o momento de


objetividade do sistema jurídico: aquele em que os problemas jurídicos
encontram a sua solução, que se obtém através do diálogo dos princípios
normativos com a realidade social.

3. Realidade jurídica: constitui o terceiro estrato jurídico e traduz o momento de


unidade e de ação histórica do direito com a sua institucionalização jurídico-
social em tipos práticos de ação e em modos concretos de organização e de
associação.

11.2. Ramos do direito:


Direito público e direito privado:
 A doutrina largamente dominante divide o direito em dois grandes hemisférios: o
do direito público e o do direito privado.
De acordo com a doutrina do interesse, importa referir os principais critérios que
distinguem os direitos público e privado:
a) Critério da natureza dos interesses: integram o direito público, as normas que
asseguram a realização dos interesses próprios da comunidade, ou seja, coletivos
ou públicos. Ao direito privado pertencem as normas dirigidas à satisfação de
interesses que tão-só dizem respeito aos indivíduos.

41
1º ano de Direito Introdução ao Estudo do Direito CAD

b) Critério da qualidade dos sujeitos: o direito público disciplina as relações jurídicas


em que o Estado ou qualquer ente público intervenha; o direito privado, as
relações entre particulares.

c) Critério da posição dos sujeitos: pertencem ao direito público as normas jurídicas


que disciplinam as relações de subordinação, isto é, aquelas que se ocupam da
constituição e da organização do Estado e dos demais entes públicos e regulam as
relações em que intervêm numa posição de superioridade. Ao direito privado
cumpre disciplinar as relações jurídicas em que os sujeitos se encontram numa
posição de paridade.

Direito público:
1. Direito Internacional Público:

 O Direito Internacional Público é constituído por um complexo de normas que


disciplinam as relações em que intervêm os Estados, outras entidades coletivas,
certas organizações internacionais e os próprios indivíduos.

 Nada justifica a recusa da juridicidade ao Direito Internacional Público, cuja


importância não pára de crescer com a universalização dos fenómenos sociais,
económicos, culturais e políticos a que assistimos.

 As fontes do Direito Internacional Público são: o costume internacional; os acordos


ou convenções internacionais; os atos das organizações internacionais a que
Portugal pertence.

2. Direito Constitucional:
 O Direito Constitucional ocupa-se da organização e do funcionamento do Estado e
dos entes públicos menores e, dos direitos e deveres fundamentais das pessoas.
Constitui a pedra angular do ordenamento jurídico, quer porque estrutura os
órgãos do poder, quer porque estabelece as esferas de ação do poder público e
dos cidadãos.

3. Direito Administrativo:
 O Direito Administrativo é o sistema de normas jurídicas que regulam a
organização e o funcionamento da Administração Pública, bem como as relações
por ela estabelecidas com outros sujeitos de direito no exercício da atividade
administrativa de gestão pública.

4. Direito Penal:
 O Direito penal é um conjunto de normas jurídicas que definem os crimes e
estabelecem as correspondentes penas e medidas de segurança.

42
1º ano de Direito Introdução ao Estudo do Direito CAD

 Trata-se de um ramo do direito público que protege a ordem jurídica de ataques


cuja particular gravidade ofende as condições essenciais da vida social e, por isso,
justifica a aplicação de sanções especialmente graves. Na sua base está o principio
da legalidade.

5. Direito Processual:
 O Direito Processual é o complexo das normas que disciplinam a atividade de
quem participa na realização jurisdicional de direitos ou interesses juridicamente
tutelados.
Merecem destaque dois setores pela sua particular importância:
1. Direito Processual Civil: disciplina a atividade nos tribunais com vista à realização
de direitos privados que não lhe foram subtraídos; por isso, constitui o processo
comum.

2. Direito Processual Penal: fixa os trâmites (rumos) a observar na instauração e no


desenvolvimento da ação penal.

Direito Privado:
 O Direito Privado é constituído por normas que disciplinam as relações jurídicas
quer entre simples particulares quer entre estes e o Estado.

1. Direito Civil:
 O Direito Civil pode definir-se como um conjunto de normas jurídicas que
disciplinam as relações em que se destacam os aspetos espiritual e afetivo do
homem (personalidade, família e a sucessão na sua esfera jurídica) e o património
normal (direitos de crédito e das coisas).

2. Direito Comercial:
 O Direito Comercial é o conjunto de normas jurídicas que disciplinam os atos de
comércio quer objetiva, quer subjetivamente, considerados. Os primeiros estão
especialmente previstos na lei comercial; os outros são, na terminologia do nosso
Código Comercial, os contratos e as obrigações dos comerciantes, que não forem
de natureza exclusivamente civil.

3. Direito do Trabalho:
 O Direito do Trabalho é um conjunto de normas que disciplinam as relações
jurídicas privadas de trabalho livre, remunerado e subordinado.

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1º ano de Direito Introdução ao Estudo do Direito CAD

 Trata-se de um direito privado especial que adquiriu autonomia quando a política


de proteção ao trabalhador o subtraiu ao direito civil, dotando-o de normas e
princípios diferentes.

4. Direito Internacional Privado:


 O Direito Internacional Privado é o conjunto de normas que demarcam
(delimitam) a competência de várias ordens jurídicas. Ou seja, não resolve
diretamente os problemas, mas designa, por remissão, o direito que os decidirá.

Tema 4: Orientações metodológicas:


12.Pensamento jurídico romano:
 A jurisprudência foi, em Roma, a ciência do Direito. Cumpriu as funções de
resolver, através de pareceres (responsa), casos práticos (respondere); de
aconselhar os particulares na realização dos seus negócios jurídicos (cavere); e de
acompanhar as partes na tramitação dos processos (agere).

 Destaca-se, no entanto, a função criadora do direito (o direito não pode subsistir se


não houver jurisperito por quem diariamente possa ser aperfeiçoado).

 De realçar que a sua atividade é dominada pela preocupação de determinar o justo


e o injusto, segundo a consciência social que juridicamente representa; por isso, a
jurisprudência romana vive a realidade prática e procura a solução jurídica que se
lhe ajuste, apoiado no saber socialmente reconhecido.
Expedientes utilizados de que se destaca:

 Ações fictícias: para permitir que o direito civil (ius civile) se aplicasse também a
estrangeiros, fingiam que estes eram cidadãos romanos.

 Ações ad exemplum: estendiam, por analogia, uma ação civil a casos não previstos.

 Ações in factum: são ações que permitiam integrar as lacunas do ius civile quando
fosse impossível recorrer à analogia.

 Merece ainda referência o recurso à boa fé, que se impôs no mundo inteiro,
sobretudo nos contratos; officium que nos ensina a ser úteis: tutela, poder
paternal, mandato, gestão de negócios; equidade; amizade; humanidade e outros
valores que assinalam a humanização do direito romano e o cristianismo viria a
adotar.

13.Pensamento jurídico medieval:


 Depois da queda do Império Romano do Ocidente no ano 476 e até ao século XII, a
crise, por que já vinha passando o pensamento jurídico, agudizou-se: o Direito

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1º ano de Direito Introdução ao Estudo do Direito CAD

Romano deixou de ser estudado como disciplina antónoma e a ciência jurídica


praticamente desapareceu. O empirismo impôs-se.

 Nos finais do século XI, o Direito Romano e a ciência jurídica renascem em Bolonha.
Explicam este renascimento fatores de natureza política, religiosa, económica e
cultural.

 Em consequência, surgiu, em Bolonha, a Escola dos Glosadores fundada por Inério.


O Corpus Iuris Civilis é estudado segundo o método exegético e redigem-se breves
comentários ou glosas que contêm uma interpretação dos textos justinianeus.

 À Escola de Bolonha sucedeu a Escola dos Comentadores. Os comentadores


estudaram não diretamente o Corpus Iuris Civilis, mas as glosas e socorreram-se de
outras fontes, designadamente costumes locais, direitos estatuários e o Direito
Canónico. E utilizaram o método dialético ou escolástico. Através dos Glosadores e
dos Comentadores, o direito prudencial conheceu, na Idade Média, um grande
desenvolvimento.

 Trata-se de um pensamento jurídico que não podemos considerar dogmático, mas


antes reveste uma profunda humildade intelectual, uma vez que, se move no
domínio do provável, do talvez, que é um grau intermédio entre o verdadeiro e o
falso.

14.Pensamento jurídico moderno:


 Durante os séculos XVII e XVIII impôs-se, no centro e oeste da Europa, uma nova
corrente do pensamento jurídico denominada Escola do Direito Natural
Racionalista ou Escola Moderna do Direito Natural.

 Esta Escola parte de uma nova antropologia que vê no homem uma obra divina,
mas um ser natural; e, em consequência, o novo pensamento liberta-se da
Teologia e defende a autonomia científica do Direito Natural como ciência dos
princípios supremos da convivência social.

 Entende-se que a Matemática é a ciência das necessidades, procurando contruir a


ciência jurídica com a mesma metodologia, rigor e certeza.

 No cerne do pensamento jusracionalista está a ideia de sistema constituído por


normas que derivam logicamente umas das outras e têm, numa tendência
psicológica da natureza empírica do homem, a sua base e ponto de partida: a
sociabilidade, a felicidade, o egoísmo, a bondade.

 E o pensamento jurídico, que assim pensa e constrói o direito, pode caracterizar-se


como dotado de uma intenção teorética de índole ontológico-dogmática, porque

45
1º ano de Direito Introdução ao Estudo do Direito CAD

vê o direito como um objeto, um dado inferível e fundado numa entidade


antropológica.

 Critica-se o pensamento jusracionalista por ser a-histórico; não nos oferecer um


sistema axiológico, mas de regulamentação; e ter reduzido a realidade a esquemas
frios e rigorosos, marginalizando a imaginação, a espontaneidade e o dinamismo
da vida.

Tema 5: Técnica jurídica


15.Interpretação:
15.1. Noção. Necessidade:

 A interpretação é a atividade intelectual que procura retirar de uma “fonte” do


direito o sentido normativo (a regra ou norma jurídica) que permita resolver um
caso prático que reclama uma solução jurídica.

 Ademais, um texto comporta geralmente múltiplos significados, pode conter


expressões ambíguas e obscuras e até atraiçoar o seu autor. Por isso, a
interpretação é absolutamente necessária.

15.2. Modalidades:
Interpretação autêntica:
 A interpretação autêntica provém de uma “fonte” não hierarquicamente inferior à
que se interpreta. Ocorre através de uma lei (dita interpretativa) que se integra na
lei interpretada. Trata-se, portanto, da explicitação legislativa de uma lei duvidosa,
carecida de esclarecimento, que tem força vinculativa.

 Além do órgão legislativo que elaborou a lei interpretada (autointerpretação), a


interpretação autêntica pode ser igualmente feita por outro órgão legislativo
(hétero-interpretação).

Interpretação doutrinal:
 A interpretação doutrinal é a interpretação feita por qualquer pessoa seja ou não
jurisconsulto, juiz, jurista ou executor de um ato administrativo, em obediência aos
cânones de uma metodologia correta.

 Compreende, portanto, a interpretação jurisdicional (feita pelo tribunal no âmbito


de um processo), a interpretação administrativa (a cargo da Administração
Pública), a interpretação particular (feita por qualquer pessoa não jurista) e a
interpretação doutrinal propriamente dita (realizada por jurisconsultos e juristas).

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1º ano de Direito Introdução ao Estudo do Direito CAD

 De realçar que, à interpretação dos jurisconsultos deve o Direito Romano o


dinamismo e a perfeição que o impôs como modelo. E a interpretação dos
doutores está na base do desenvolvimento do “ius commune” (direito comum)
medieval e do nosso direito. Foi, também, através da interpretação que a nossa
doutrina contribuiu decisivamente para a formação e modernização do Direito
Português.

15.3. Objetivo:
Teoria subjetivista:
 A teoria subjetivista, denominada tradicional ou clássica, foi elaborada no início do
século XIX e é representada pela Escola Alemã.

 Segundo esta teoria, a interpretação jurídica visa apreender e reconstituir o


pensamento ou a vontade real (empírica ou psicológica) do legislador que se
exprime no texto da lei.

 Assim sendo, a teoria subjetivista propõe-se: afirmar uma estrita obediência ao


poder constituído em veste legislativa e, deste modo, respeitar o princípio da
separação dos poderes; assegurar a segurança e a certeza do direito, enquanto
promove a uniformidade de soluções.

 As críticas, que não tardaram, enfraqueceram e preparam a superação da teoria


subjetivista. Destacamos as principais: o Estado e o poder político são realidades
institucionais e não pessoais e, portanto, carecem de vontade psicológica; o
legislador é um termo cómodo que personifica entidades muito complexas
(Assembleia ou Parlamento, Governo) e nem sempre é fácil ou mesmo possível
determinar a sua vontade; as leis são vocacionadas para vigorar, em regra, durante
muitos anos e de modo autónomo da vontade do legislador e os tribunais não
podem subtrair-se ao espírito do tempo em que as interpretam e decidem; e,
atribui-se à lei um âmbito mais pobre e, por isso, amplia-se o recurso à integração
das lacunas com algum sacrifício da segurança e da certeza do direito.

Teoria objetivista:
 A teoria objetivista, que se considera uma posição moderna e hoje dominante, foi
exposta por autores que se destacaram na ciência jurídica alemã.

 Segundo esta teoria, após a sua elaboração, a lei desliga-se da vontade do


legislador e assume um valor próprio: tem vida autónoma, uma “vontade”, um
“sentido” não psicológico, mas jurídico. Por isso, determinar o sentido da lei não é
procurar saber o que o legislador quer.

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1º ano de Direito Introdução ao Estudo do Direito CAD

 Desta forma, o autor da lei não é o legislador, mas a comunidade político-jurídica.


E, em consequência, aceitam-se as ideias de que a lei pode ser juridicamente mais
sábia do que a intenção do legislador e de que o intérprete poderá compreendê-la
melhor do que aquele a entendeu.

 Em abono desta teoria sustenta-se, ainda, que à lei é atribuído um conteúdo mais
amplo, rico e fecundo que permite a sua mais fácil adaptação às exigências da
justiça e às necessidades da prática; e que melhor concilia a certeza e a retidão do
direito.

 Embora se considere moderna e dominante, a teoria objetivista não é insuscetível


de crítica. Referimos duas: a de que, embora esteja limitado pelos possíveis
significados linguísticos do texto e pelo sistema do direito em que a lei se insere, o
juiz goza de uma apreciável margem de arbítrio que sacrifica a certeza e segurança
do direito e é suscetível de atentar contra o dever de obediência ao poder
constituído; e a de que a expressão “vontade da lei” é uma personificação
injustificada da lei, porque só o homem tem vontade.

Teoria mista (gradualista ou de síntese):


 Segunda esta teoria, importa retirar o que existe de verdade nas teorias
subjetivista e objetivista: naquela, o entendimento de que a lei é feita por homens
e para homens, ou seja, é a expressão da vontade do legislador dirigida à criação
de uma ordem justa e, enquanto possível, adequada às necessidades da sociedade;
nesta, a ideia de que a lei vai além da intenção do legislador, respondendo a
questões que não lhe foram postas e, portanto, adquiriu, com o decurso do tempo,
uma vida própria.

 Deste modo, o sentido da lei é o resultado de um processo de pensamento que


considera todos os momentos subjetivos e objetivos. Por isso, a sua interpretação
não dispensa a intenção do legislador histórico nem o circunstancialismo atual que
determina o seu atual sentido normativo. Numa palavra, é necessário conhecer a
decisão do legislador e os fundamentos em que se apoia, para se acomodar e
adaptar a lei ao presente.

15.4. Elementos da interpretação:


 A interpretação jurídica realiza-se através de elementos, meios, fatores ou
critérios, que devem utilizar-se harmónica e não isoladamente. O primeiro são as
palavras em que a lei se expressa (elemento literal); os outros constituem
elementos denominados lógicos (histórico, racional e teleológico), que permitem
obter o sentido profundo da lei.

Elemento literal:

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1º ano de Direito Introdução ao Estudo do Direito CAD

 O elemento literal, também dito gramatical, são as palavras em que a lei se


exprime. Constitui o ponto de partida da interpretação jurídica e desempenha duas
funções:

1. Negativa (ou de exclusão): afasta a interpretação que não tenha uma base de
apoio na letra da lei;

2. Positiva (ou de seleção): privilegia sucessivamente, de entre os vários


significados possíveis, o técnico-jurídico, o especial e o fixado pelo uso geral da
linguagem. Seleciona o sentido mais adequado que tem apoio na letra da lei.

Elementos lógicos:
a) Elemento histórico:
Este elemento atende à génese da lei e é constituído por:
1. Trabalhos preparatórios: são os projetos que registam as discussões nas comissões
e nas sessões parlamentares, etc. São importantes para determinar o sentido das
leis e a vontade do legislador.

2. Precedentes normativos: são as normas, nacionais e estrangeiras, que vigoraram


no passado ou na época da formação da lei e a influenciaram.

3. Occasio legis: é o circunstancialismo jurídico-social que rodeou a feitura da lei, que


o intérprete não deve desconsiderar.

b) Elemento sistemático:

 Na base deste elemento está a ideia de que a ordem jurídica tem unidade e
coerência jurídico-sistemática, pelo que a compreensão de uma norma requer o
conhecimento das normas afins ou paralelas. Com efeito, as normas jurídicas
relacionam-se por:
1. Subordinação: é a relação entre uma norma e os princípios gerais do sistema
jurídico.

2. Conexão: é a relação entre normas contíguas (próximas) que formam o


contexto da norma;

3. Analogia: é a relação entre preceitos semelhantes que integram outros


institutos.

c) Elemento racional (ou teleológico):

 Este elemento constitui o fim ou objetivo prático que a lei se propõe atingir. Revela
a valoração ou ponderação dos diversos interesses que a norma jurídica disciplina

49
1º ano de Direito Introdução ao Estudo do Direito CAD

e, sendo o intérprete um colaborador do legislador, a sua importância é


fundamental.

15.5. Resultados da interpretação:


 Enquanto os elementos lógicos permitem conhecer o “espírito” da lei, o elemento
literal oferece-nos o significado das palavras em que a lei se exprime. Por isso,
comparando a letra com o espírito da lei é possível realizar as seguintes espécies
de interpretação da lei: declarativa, extensiva, restritiva, enunciativa e ab-
rogante.

Interpretação declarativa:
 É a interpretação em que o sentido ou “espírito” da lei, determinado pelos
elementos lógicos, coincide perfeitamente com o significado das suas palavras.
Ocorre, quando o significado literal é indeterminado ou ambíguo e o intérprete se
limita a clarificar e a fixar um.

Interpretação extensiva:
 Esta interpretação verifica-se quando o intérprete, observando uma desarmonia
entre o significado literal e o espírito da lei, corrige aquele para, deste modo,
obedecer à mente e à vontade da lei. A prevalência desta justifica-se por serem as
palavras um meio de a exprimir e poderem atraiçoá-la: o legislador disse menos do
que queria e, por isso, o sentido literal é estendido até coincidir com o espírito da
lei.

Interpretação restritiva:
 A interpretação restritiva cumpre a função oposta à da interpretação extensiva:
perante um sentido literal que, sendo demasiado amplo, não corresponde ao
espírito da lei fornecido pelos elementos lógicos, o intérprete restringe, encurta o
significado das palavras da lei para colocar a expressão em harmonia com o seu
espírito. O legislador foi traído pelas palavras e disse mais do que quis dizer.

Interpretação ab-rogante:
 É a interpretação em que, concluindo haver uma contradição irremediável entre o
significado literal e o espírito da lei, o intérprete limita-se a reconhecer que a
“fonte” jurídica não apresenta nenhuma norma jurídica. Não se trata da revogação
da lei porque nada mais existe do que uma simples aparência da lei: as suas
palavras repugnam ao seu espírito e, por isso, concluindo que a lei é produto de
um equívoco do legislador, o intérprete considera-a inexistente. As contradições,
que justificam esta interpretação, podem ser lógicas e valorativas: lógica – há uma
impossibilidade prática em obter uma solução; valorativa – as valorações
subjacentes às disposições a interpretar são incompatíveis entre si.

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1º ano de Direito Introdução ao Estudo do Direito CAD

Interpretação enunciativa:
 É a interpretação já não de uma “fonte” do direito, mas de uma norma jurídica e
traduz-se no desenvolvimento ou exploração das suas virtualidades através do
raciocínio e da intuição.
Esta interpretação pode conduzir-nos aos seguintes resultados:
1. A lei que permite o mais também permite o menos;
2. A lei que proíbe o menos também proíbe o mais;
3. A lei que disciplina um caso excecional pressupõe uma disposição contrária para os
casos não excecionais ou comuns.

16.Integração:
16.1. Lacuna:
Noção:
 Entende-se por lacuna a ausência de uma norma jurídica que permita resolver uma
situação da vida social que reclama uma solução jurídica.

Espécies:
As lacunas, que o ordenamento jurídico pode apresentar, compreendem várias
espécies.
Segundo uma perspetiva, há lacunas:
1. Voluntárias: a inexistência de disciplina jurídica é querida pelo legislador.
2. Involuntárias: o legislador não previu o caso que reclama solução jurídica e, por
isso, não elaborou a correspondente lei.
Noutra perspetiva, a lacuna pode ser:
1. Da lei: ocorre no âmbito do direito legislado.
a) Manifestas: a lei não contém nenhuma norma jurídica, embora, a devesse ter;
b) Ocultas: a lei contém uma norma jurídica aplicável a uma certa categoria de
casos, mas não considerou situações especiais que constituem uma
subcategoria, a que não deve aplicar-se.
c) De colisão: surge, quando várias normas jurídicas contraditórias disciplinam
uma determinada situação e, na falta de um critério que afaste o conflito,
nenhuma se aplica.

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1º ano de Direito Introdução ao Estudo do Direito CAD

2. Do direito: ocorre no âmbito do ordenamento jurídico que, não constituindo um


sistema fechado, mas aberto e sujeito a uma evolução contínua, é suscetível de ser
lacunoso.
Quanto ao tempo, podemos ter lacunas:
1. Iniciais: podem ser conhecidas ou ignoradas pelo legislador. Nas primeiras, este
não quis resolver a questão e preferiu abandonar a sua solução à jurisprudência.
Nas segundas, o legislador não teve conhecimento da situação ou pensou
erradamente que já estava disciplinada.
2. Posteriores: resultam de novas questões que determinam a não aplicação de uma
lei que se tornou inadequada.

Finalmente, em relação à estrutura da norma jurídica, podemos ter lacunas:


1. De previsão: traduzem-se na falta de previsão de uma determinada situação de
facto;
2. De estatuição: manifestam-se na ausência de consequências que o direito atribui à
verificação de uma situação de facto.

16.2. Integração – Noção. Necessidade:


 A integração é a atividade intelectual destinada a encontrar a solução jurídica para
uma lacuna. A sua necessidade resulta da paz social que o direito deve
irrecusavelmente assegurar para permitir a convivência humana.

16.3. Processos intra-sistemáticos:


A analogia
Noção. Estrutura:
 A analogia é o raciocínio ou operação mental que, partindo de certas semelhanças
observadas, conclui que existem outras. Funda-se na semelhança entre dois
objetos e, por isso, a analogia não produz uma certeza absoluta, mas mera
probabilidade.

 Utilizada pelo pensamento jurídico, podemos definir analogia como o raciocínio


que, argumentando com a semelhança entre um caso omisso (omitido) e outro
contemplado no ordenamento jurídico, estende àquele a solução deste.

Espécies:
Dentro da analogia, distinguem-se tradicionalmente a:
1. Analogia legis: é a operação mental que, partindo de uma norma jurídica concreta,
purifica a sua ideia fundamental através da eliminação dos elementos não
essenciais e, depois, aplica-a aos casos lacunosos, aos quais só se distinguem da

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1º ano de Direito Introdução ao Estudo do Direito CAD

situação prevista naquela norma em pontos secundários e, por isso, não afastam
intrinsecamente a essência da norma.

2. Analogia iuris: é a operação mental que, partindo de uma pluralidade de normas


jurídicas, desenvolve, por indução, um principio geral do direito que, depois por
dedução, aplica ao caso lacunoso.

Limites:
O recurso à analogia está proibido em determinadas matérias:
1. Nas normas penais positivas. São as regras incriminatórias, onde o princípio “não
há crime sem lei, não há punição sem lei”, implica a proibição de fundar a
condenação e a punição numa lei que apenas mediatamente seja aplicável.

2. No direito fiscal: segundo o princípio da legalidade fiscal, os impostos devem ser


criados e disciplinados nos seus elementos essenciais através da lei.

3. Nas normas excecionais: também estas normas, porque disciplinam somente


determinadas situações, não comportam aplicação analógica.

Criação de uma norma ad hoc:


 Nas lacunas em que o recurso à analogia não se afigura possível, o nosso Código
Civil determina que a sua integração se faça segundo a norma que o próprio
intérprete criaria, se houvesse de legislar dentro do espírito do sistema. Portanto,
se as questões não puderem ser resolvidas pelos casos análogos, prevenidos em
outras leis, serão decididas pelos princípios do direito natural, conforme as
circunstâncias do caso.

16.4. Processos extra-sistemáticos:


Normativos:
 Segundo esta via, o juiz comunicaria a existência de uma situação lacunosa ao
legislador e este dar-lhe-ia a norma jurídica necessária. Assim, cumprir-se-ia o
princípio da separação de poderes constitucionalmente consagrado.

 Com efeito, logo se impuseram razões práticas: a excessiva morosidade; a


dificuldade de legislar com base numa situação, quiçá deficientemente definida; e
o não conhecimento antecipado da lei pelos interessados, fonte de incerteza e
insegurança na vida jurídica.

Discricionários:
 Segundo este sistema, a integração das lacunas ocorreria quando se atribui a uma
entidade administrativa o poder de resolver, com base em razões de oportunidade
ou conveniência, determinadas situações. Porém, apenas se oferece uma solução
em concreto e não disposições genéricas (normas jurídicas); por isso, esgotando-se
53
1º ano de Direito Introdução ao Estudo do Direito CAD

a decisão no caso, não se aplica às situações do mesmo género que surjam no


futuro.

Equitativos:
 Além de outras funções, a equidade desempenharia, segundo o entendimento
tradicional, uma função integradora: a de ponderar as circunstâncias do caso
(lacunoso) que reclama uma solução jurídica.

 Porém, este entendimento está superado e coloca-se, hoje, o caso concreto no


centro das preocupações da metodologia jurídica. Em consequência, a equidade é
entendida como um momento da concreta realização do direito, constituindo uma
dimensão ontológica da justiça.

 Sendo a justiça do caso concreto, a equidade está presente na aplicação das


normas jurídicas e, portanto, não constitui um processo de integração.

16.5. A crise da conceção tradicional:


 A teoria tradicional distinguia a interpretação e a integração: aquela procurava
determinar o sentido normativo que uma fonte do direito se propunha a oferecer,
esta ocupava-se de problemas jurídicos para os quais, não existia uma solução
jurídica e, por isso, criava a norma jurídica que faltava. A primeira seria reprodutiva
ou declarativa; a segunda, produtiva ou constitutiva. Enquanto a interpretação
atuaria na esfera do sentido literal possível, a integração ultrapassava-a sobretudo
através da analogia: o sentido literal assinalava o limite da interpretação.

 Porém, este entendimento, que reflete o pensamento positivista, está em


manifesta superação. Com efeito, os seus pressupostos ruíram.

16.6. O desenvolvimento do direito: a concreta realização do direito.


Perspetiva metodológica:
 Reduzida a interpretação jurídica a um momento da concreta realização do direito,
a nova metodologia jurídica, reelaborada com uma intencionalidade teleológica e
de sentido prático-normativo, não reconhece uma distinção essencial entre a
interpretação e a integração e, por isso, fala de desenvolvimento do direito que
caracteriza como o resultado da dialética entre a dimensão sistemática e a
dimensão problemática.
 Absorvidas a interpretação e a integração na figura do desenvolvimento do direito,
assume importância nuclear o juiz, cuja função judicial se exige ideologicamente
neutra e verdadeiramente independente.

16.7. Novos resultados:


Interpretação corretiva:

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1º ano de Direito Introdução ao Estudo do Direito CAD

 Esta interpretação ocorre quando a norma jurídica abrange outras hipóteses que o
espírito da lei não comporta. O intérprete verifica que as circunstâncias
determinantes da formulação da lei se alteraram e, por isso, corrige o texto da lei
para realizar a sua intenção prática, considerando que o legislador não teria
querido a norma se tivesse previsto esse resultado.

Extensão teleológica:
 A extensão teleológica ocorre quando o teor liberal da lei é demasiado restrito e,
com fundamento na sua inerente teleologia, alarga-se o seu campo de aplicação a
casos literalmente não abrangidos.

Redução teleológica:
 Esta redução verifica-se quando o âmbito de aplicação de uma norma se reduz
mais do que o limite resultante do sentido literal. Os casos abrangidos pela sua
letra são excluídos do seu campo de aplicação com fundamento na teleologia
inerente a essa norma e no princípio de justiça de tratar desigualmente o desigual.

Tema 6: Aplicação da lei no tempo


17. O problema
17.1. Caracterização:
 A vida não conhece intervalos que separem o presente do passado e, por isso,
quando uma situação definida legislativamente é alterada, surgem
frequentemente dúvidas sobre o âmbito da aplicação da lei antiga (LA) e da lei
nova (LN) que a revogou.

 Em causa estão situações que, tendo a sua origem no passado, prolongam os seus
efeitos no futuro e a entrada em vigor de uma lei nova deve respeitar essa
continuidade. Trata-se de um problema delicado que adquire maior importância
prática em virtude das alterações legislativas cada vez mais frequentes.

17.2. A solução:
O direito transitório:
 O direito transitório é a disciplina que a própria lei nova oferece para a resolução
do seu conflito com a lei antiga.
Pode ter caráter:
1. Formal: limita-se a determinar a lei que se aplica (ex: as atribuições do
testamenteiro são as que lhe foram fixadas pela lei vigente à data da feitura do
testamento, ou seja, a lei antiga);
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1º ano de Direito Introdução ao Estudo do Direito CAD

2. Material: estabelece uma regulamentação própria que não coincide com a


disciplina da lei antiga nem da lei nova (ex: os assentos secretos de perfilhação de
filhos adulterinos, validamente lavrados ao abrigo da legislação vigente, tornar-se-
ão públicos mediante averbamento oficioso sempre que sejam passadas certidões
do respetivo registo de nascimento. Deste modo, não se aplica a lei antiga (que
determinou que tais assentos sejam secretos) nem a lei nova (que estabelece que
sejam públicos), mas uma solução nova.

17.3. Critério geral: o princípio da não retroatividade da lei


Caracterização. Graus de retroatividade:
 O principio da não retroatividade significa que a lei não dispõe para o passado.
Todavia, para melhor o compreendermos, é necessário considerar
fundamentalmente três graus de retroatividade:

1. O grau máximo: a lei nova aplica-se imediatamente a todas as situações que


têm a sua origem no passado, incluindo as que já estão definitivamente fixadas
e decididas;

2. O grau agravado: a lei nova aplica-se a todas as situações do passado, mas


salvaguarda os efeitos já definidos por decisão judicial ou título equivalente;

3. O grau ordinário: a lei nova respeita todos os efeitos já produzidos ao abrigo da


lei antiga.

 Excluído o grau máximo porque constitucionalmente proibido, restam a


retroatividade agravada e a retroatividade ordinária que constitui a regra.

17.4. Fundamentação:
A doutrina dos direitos adquiridos:
 Segundo esta doutrina, que se considera clássica, os direitos adquiridos à sombra
de uma lei devem ser respeitados pelas leis posteriores.

 Esta doutrina distingue os direitos adquiridos, as faculdades legais e simples


expectativas: aqueles entraram já no nosso domínio e não podem ser-nos
retirados; as faculdades legais são-nos concedidas pelas leis e, enquanto o seu
exercício não as converter em direitos adquiridos, são essencialmente revogáveis;
e as simples expectativas são esperanças de gozarmos de um direito quando surgir.

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1º ano de Direito Introdução ao Estudo do Direito CAD

A lei nova deve respeitar os direitos adquiridos, mas não as faculdades legais e as
simples expectativas.

 Porém, logo se criticou esta doutrina: primeiro, porque o direito não deriva do seu
exercício; depois, porque nem sempre é fácil distinguir um direito subjetivo e uma
expectativa; finalmente, porque nem todos os direitos permanecem
indefinidamente sujeitos à disciplina do direito vigente quando se constituíram.

A doutrina do facto passado:


 Esta doutrina sustenta que todo o facto jurídico é regulado pela lei vigente quando
se produziu, por isso, a lei nova não deve ser retroativa.

 Aos efeitos jurídicos já consumados sob o império da lei antiga (facta praeterita),
aos ainda pendentes quando a lei nova surge (facta pendentia) e mesmo aos que
ainda não se produziram, a todos se aplica a lei antiga: a lei em vigor quando
ocorreu o facto que os produziu.

 A doutrina do facto passado reconhece a aplicação da lei antiga aos facta


praeterita, mas, quanto aos facta pendentia, distingue: se os seus efeitos já se
produziram antes da entrada em vigor da lei nova, aplicar-se-á a lei antiga; se ainda
não se produziram, aplicar-se-á a lei nova, falando-se não de retroatividade, mas
de efeito imediato.

 A crítica a esta doutrina destaca que os efeitos jurídicos são consequência imediata
dos factos jurídicos e, portanto, existem desde a sua ocorrência, mesmo que
dependam também de factos novos; por isso, se a lei nova modificar ou destruir o
que já existia, será necessariamente retroativa.

Doutrina das situações jurídicas objetivas e subjetivas:


 Esta doutrina procurou substituir o conceito de direito subjetivo pelo de situação
jurídica que compreende duas espécies: as subjetivas, que resultam das
manifestações de vontade dos indivíduos de harmonia com a lei, têm um conteúdo
individual ou particular; e as objetivas, que consistem em simples poderes legais
que a lei atribui às pessoas em virtude da ocorrência de certos factos. As primeiras
são livremente determinadas pelos indivíduos; as segundas são imperativamente
fixadas pela lei. Às situações jurídicas subjetivas vindas do passado dever-se-á
aplicar a lei antiga; às objetivas, a lei nova.

 A crítica destaca que as situações jurídicas subjetivas nem sempre resultam apenas
da vontade dos interessados. Também a liberdade de estipulação nem sempre
existe e não seria razoável aplicar-se a lei nova a estas situações jurídicas
subjetivas. E há situações objetivas (que não dependem da vontade de ninguém) a
que seria injusto aplicar a lei nova.

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1º ano de Direito Introdução ao Estudo do Direito CAD

A doutrina das situações jurídicas de execução duradoura e de execução


instantânea:
 Na base desta doutrina encontra-se a distinção entre situações jurídicas de
execução duradoura e situações jurídicas de execução instantânea: aquelas vivem
mais ou menos indefinidamente e a sua execução ocorre periodicamente; estas
surgem para morrer, executando-se de um momento para o outro mediante um
ato isolado. Nas situações jurídicas de execução duradoura, é necessário separar o
passado e o futuro: aquele pertence ao domínio da lei antiga; este, ao da lei nova.

Consagração constitucional:
 Consagrado na Carta Constitucional de 1826, o princípio da não retroatividade da
lei não assume, nas modernas constituições, uma dimensão constitucional.
Em certas áreas é expressamente proibido. Entre nós, refere-se:
1. O Direito Penal positivo: é proibida a aplicação retroativa da lei penal que crie
novos crimes ou medidas de segurança ou agrave as penas ou medidas de
segurança anteriores;
2. O Direito Fiscal: é proibida a aplicação retroativa da lei que crie impostos;
3. O caso julgado: a lei nova não deve aplicar-se retroativamente, atacando uma
decisão judicial definitivamente fixada em sentença que transitou em julgado.
4. Leis restritivas, liberdade e garantias: não podem ter efeito retroativo.

17.5. Critérios especiais:


Em determinadas matérias e ramos do direito, o critério geral da retroatividade da lei
é substituído por critérios particulares. Assim ocorre:
1. No Direito Penal negativo: aplica-se a lei mais favorável ao arguido. Trata-se do
princípio da retroatividade in mitius (suavemente).
2. No Direito Processual: aplica-se imediatamente a lei nova com base na presunção
de que contém critérios mais perfeitos.

17.6. Posição do Código Civil Português:


 O nosso Código Civil consagra, como princípio geral, a não retroatividade: “a lei só
dispõe para o futuro” (art.º 12 – nº1).
Depois, o nº2 deste artigo, distingue:
1. Na primeira parte: as condições de validade de quaisquer factos ou os seus efeitos:
aplica-se, em caso de dúvida, a lei vigente no momento da sua ocorrência: a lei
antiga.

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1º ano de Direito Introdução ao Estudo do Direito CAD

2. Na segunda parte, o conteúdo de certas relações jurídicas, que subsistam à data da


entrada em vigor da lei nova: dispõe que se aplicará a lei nova se abstrair dos
factos que lhes deram origem.
 Pelo contrário, entende-se que, se não devermos abstrair desses factos,
aplicar-se-á a lei em vigor no momento em que ocorreram: a lei antiga.

17.7. Prazos:
 O decurso de um prazo pode ter o valor de facto constitutivo ou extintivo de um
direito e pode suceder que uma lei nova altere, aumentando ou diminuindo, um
prazo que, estando em curso, ainda não permitiu que o direito se constituísse ou
extinguisse. Por isso, é necessário saber qual das leis se aplica: a lei antiga ou a lei
nova.
O nosso Código Civil disciplina esta matéria no art.º 297, distinguindo:
1. Se a lei nova estabelecer um prazo mais curto, aplicar-se-á também aos prazos
ainda em curso, mas o tempo só se conta a partir da sua entrada em vigor. Todavia,
se faltar menos tempo para o prazo se completar segundo a lei antiga, aplicar-se-á
esta;

2. Se a lei nova fixar um prazo mais longo, aplicar-se-á igualmente aos prazos em
curso, mas contar-se-á o tempo decorrido antes.

 Há, no entanto, prazos a que este regime não se aplica: são os prazos não
constitutivos, modificativos ou extintivos de relações jurídicas (ex: o período legal
de conceção e gestação e o prazo internupcial. Nestes casos, o tempo decorrido
não interessa: só o nascimento e a celebração do novo casamento são factos
constitutivos de situações jurídicas. Por isso, se a lei nova encurtar o prazo
internupcial, aplicar-se-á imediatamente sem a acomodação exigida: o tempo
decorrido será computado no novo prazo).

17.8. Particular referência aos estatutos:


Da aplicação do regime jurídico consagrado no art.º 12 do nosso Código Civil resultam
os seguintes estatutos:
1. Estatuto pessoal: quanto à sua constituição, aplica-se a lei em vigor nesse
momento: a lei antiga. Em relação ao seu conteúdo, aplica-se a lei nova;

2. Estatuto real: quanto à aquisição de um direito real, aplica-se a lei vigente nesse
momento: a lei antiga. Porém, se a lei nova alterar o conteúdo desse direito, será
de aplicação imediata;

3. Estatuto do contrato: aplica-se, em regra, a lei em vigor no momento da feitura do


contrato, com fundamento no respeito pela vontade dos contraentes, expressão
da autonomia privada. Com efeito é com base na lei vigente que os indivíduos

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1º ano de Direito Introdução ao Estudo do Direito CAD

decidem contratar e seria uma violência aplicar a lei nova que altere o equilíbrio
que arquitetaram. Todavia, o legislador deve atuar com sacrifício da autonomia da
vontade dos indivíduos quando se impõe a necessidade de proteger a parte mais
fraca. Por isso, a aplicação imediata da lei nova deve ter sida em consideração se o
interesse social determinar a tutela das categorias sociais mais fracas;

4. Estatuto sucessório: aplica-se a lei vigente ao tempo da abertura da sucessão.


Quanto à validade formal dos testamentos e pactos sucessórios e à respetiva
capacidade de agir dever-se-á aplicar a lei em vigor ao tempo da sua feitura: a lei
antiga;

5. Responsabilidade extracontratual: aplica-se a lei em vigor ao tempo da ocorrência


do facto que a gerou: a lei antiga.

17.9. Lei interpretativa:


Noção:
 A lei interpretativa realiza a interpretação autêntica: o legislador interpreta uma
lei (lei antiga) através de uma lei nova (lei nova).
É necessário, no entanto, que satisfaça os seguintes requisitos:
1. Tempo: a lei interpretativa (lei nova) deve ser posterior à lei interpretada (lei
antiga);
2. Finalidade: a lei interpretativa deve interpretar a lei antiga, cuja solução, que
oferece, se apresenta incerta;
3. Fonte: a lei interpretativa não deve ser hierarquicamente inferior à lei
interpretada.

17.10. Lei confirmativa:


 A lei confirmativa aligeira formalidades exigidas pela lei antiga que se tornaram
demasiado pesadas; dispensa algum pressuposto que, segundo a lei antiga,
condicionava a eficácia de certos negócios; elimina impedimentos que justificavam
a aplicação de determinadas sanções a certos atos; ou admite atos que a lei antiga
considerava inadmissíveis.

 Constituindo a lei confirmativa uma lei nova, aplicar-se-lhe-á o regime jurídico


fixado no art.º 12 e, portanto, não será, em regra, retroativa. No entanto, o
legislador pode ter boas razões para atribuir efeito retroativo a uma lei
confirmativa. E se a lei nova confirmar expressamente os atos anteriores, é possível
recorrer à ideia de retroatividade in mitius no caso de a lei nova ser mais favorável
aos interesses do particular sem prejuízo da contraparte ou de terceiros.

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1º ano de Direito Introdução ao Estudo do Direito CAD

AGRADECIMENTOS:
Adriana Borges

Ana Rita Alves

David Silva

Eduardo Leão

Érica Araújo

Gabriel Pinho

João Paulo Silva

Manuela

Marlene Ferreira

Matilde Campos

Miguel Ledo

Pedro Gomes

Apontamentos realizados por membros da CAD. Pedimos que qualquer erro de escrita ou de
direito verificado seja comunicado a um dos membros para posterior correção.

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