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Trata-se da ação praticada em cumprimento de um dever imposto por lei, penal ou extrapenal,

mesmo que cause lesão a bem jurídico de terceiro. Pode-se vislumbrar, em diversos pontos do
ordenamento pátrio, a existência de deveres atribuídos a certos agentes que, em tese, podem
configurar fatos típicos.

Doutrina
"Dispõe o art. 23, III, 1.ª parte, do Código Penal: 'Não há crime quando o agente pratica o
fato em estrito cumprimento de dever legal'.
(...)
Cuida-se de causa de exclusão da ilicitude, o que se extrai tanto pela rubrica marginal do art.
23 do Código Penal ('exclusão de ilicitude'), como também pela redação do dispositivo legal
('não há crime').
(...)
Ao contrário do que fez em relação ao estado de necessidade e à legítima defesa, o Código
Penal não apresentou o conceito de estrito cumprimento de dever legal, nem seus elementos
característicos.
Pode-se defini-lo, contudo, como: a causa de exclusão da ilicitude que consiste na
prática de um fato típico, em razão de cumprir o agente uma obrigação imposta por lei,
de natureza penal ou não.
(...)
Seria despropositada a lei impor a determinadas pessoas a prática de um ato, e, ao mesmo
tempo, sujeitá-la em face de seu cumprimento a uma sanção penal, em razão de consistir o
seu mandamento em um fato descrito em lei como crime ou contravenção penal. Se no Brasil,
por exemplo, fosse rotineira a aplicação da pena de morte, não poderia ser o executor
responsabilizado pelos homicídios eventualmente praticados.
Com efeito, na eximente em apreço a lei não determina apenas a faculdade, a escolha do
agente em obedecer ou não a regra por ela estabelecida. Há, em verdade, o dever legal de
agir. É o caso, por exemplo, do cumprimento de mandado de busca domiciliar em que o
morador ou quem o represente desobedeça à ordem de ingresso na residência, autorizando o
arrombamento da porta e a entrada forçada (CPP, art. 245, § 2.º). Em decorrência do estrito
cumprimento do dever legal, o funcionário público responsável pelo cumprimento da
ordem judicial não responde pelo crime de dano, e sequer pela violação de domicílio.
(...)
O dever legal engloba qualquer obrigação direta ou indiretamente resultante de lei, em
sentido genérico, isto é, preceito obrigatório e derivado da autoridade pública competente para
emiti-lo. Compreende, assim, decretos, regulamentos, e, também, decisões judiciais, as quais
se limitam a aplicar a letra da lei ao caso concreto submetido ao exame do Poder Judiciário.
O dever legal pode também originar-se de atos administrativos, desde que de caráter geral,
pois, se tiverem caráter específico, o agente não estará agindo sob o manto da excludente do
estrito cumprimento de dever legal, mas sim protegido pela obediência hierárquica (causa de
exclusão da culpabilidade), se presentes os requisitos exigidos pelo art. 22 do Código Penal.
Destarte, o cumprimento de dever social, moral ou religioso, ainda que estrito, não autoriza a
aplicação dessa excludente da ilicitude. Exemplo: comete crime de violação de domicílio o
padre ou pastor que, a pretexto de espantar os maus espíritos que lá se encontram, ingressa
sem permissão na residência de alguém.

24.6. DESTINATÁRIOS DA EXCLUDENTE


Para Júlio Fabbrini Mirabete, a excludente pressupõe no executor um funcionário público ou
agente público que age por ordem da lei, não se excluindo o particular que exerça função
pública (jurado, perito, mesário da Justiça Eleitoral etc.).2
Prevalece, contudo, o entendimento de que o estrito cumprimento de dever legal como causa
de exclusão da ilicitude também se estende ao particular, quando atua no cumprimento de um
dever imposto por lei. Nesse sentido, não há crime de falso testemunho na conduta do
advogado que se recusa a depor sobre fatos que tomou conhecimento no exercício da sua
função, acobertados pelo sigilo profissional (Lei 8.906/1994 – Estatuto da OAB, arts. 2.º, § 3.º,
e 7.º, XIX).
24.7. LIMITES DA EXCLUDENTE
O cumprimento deve ser estritamente dentro da lei, ou seja, deve obedecer à risca os limites a
que está subordinado. De fato, todo direito apresenta duas características fundamentais: é
limitado e disciplinado em sua execução.
Fora dos limites traçados pela lei, surge o excesso ou o abuso de autoridade. O fato torna-se
ilícito, e, além de livrar do cumprimento aquele a quem se dirigia a ordem, abre-lhe ainda
espaço para a utilização da legítima defesa.
(...)
A excludente é incompatível com os crimes culposos, pois a lei não obriga ninguém,
funcionário público ou não, a agir com imprudência, negligência ou imperícia.
A situação, geralmente, é resolvida pelo estado de necessidade. Exemplo: o bombeiro que
dirige a viatura em excesso de velocidade para salvar uma pessoa queimada em incêndio, e
em razão disso atropela alguém, matando-o, não responde pelo homicídio culposo na direção
de veículo automotor, em face da exclusão do crime pelo estado de necessidade de terceiro.

24.9. COMUNICABILIDADE DA EXCLUDENTE DA ILICITUDE

Em caso de concurso de pessoas, o estrito cumprimento de dever legal configurado em relação


a um dos agentes estende-se aos demais envolvidos no fato típico, sejam eles coautores ou
partícipes.
É evidente que um fato típico não pode ser lícito para um dos agentes, e simultaneamente
ilícito para os demais. Exemplo: o policial militar, auxiliado por um particular, arromba a porta
de uma residência durante o cumprimento de mandado de busca e apreensão. Inexistem
crimes de dano e de violação de domicílio para ambos os sujeitos (policial militar e particular)."
(MASSON, Cléber. Direito Penal Esquematizado: Parte Geral: arts. 1.º a 120. 7. ed. Rio de
Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2013. v. 1. p. 431-434). (grifos no original)
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"7. CONCEITO DE ESTRITO CUMPRIMENTO DO DEVER LEGAL

Trata-se da ação praticada em cumprimento de um dever imposto por lei, penal ou extrapenal,
mesmo que cause lesão a bem jurídico de terceiro. Pode-se vislumbrar, em diversos pontos do
ordenamento pátrio, a existência de deveres atribuídos a certos agentes que, em tese, podem
configurar fatos típicos. Para realizar uma prisão, por exemplo, o art. 292 do Código de
Processo Penal prevê que, 'se houver, ainda que por parte de terceiros, resistência à prisão em
flagrante ou à determinada por autoridade competente, o executor e as pessoas que o
auxiliarem poderão usar dos meios necessários para defender-se ou para vencer a
resistência...'. O mesmo se diga da previsão feita no art. 245, §§ 2.º e 3.º, do mencionado
Código, tratando da busca legal e autorizando o emprego de força para cumprir o mandado
judicial.
Para se considerar dever legal é preciso que advenha de lei, ou seja, preceito de caráter geral,
originário de poder público competente, embora no sentido lato (leis ordinárias, regulamentos,
decretos etc.).

7.1 Situações de cumprimento de dever legal


Constituem casos típicos de estrito cumprimento de dever legal as seguintes hipóteses: a) a
execução de pena de morte feita pelo carrasco, quando o sistema jurídico admitir (no caso do
Brasil, dá-se em época de guerra, diante de pelotão de fuzilamento); b) a morte do inimigo no
campo de batalha produzida pelo soldado em tempo de guerra; c) a prisão em flagrante delito
executada pelos agentes policiais; d) a prisão militar de insubmisso ou desertor; e) a violação
de domicílio pela polícia ou servidor do Judiciário para cumprir mandado judicial de busca e
apreensão ou mesmo quando for necessário para prestar socorro a alguém ou impedir a
prática de crime; f) a realização de busca pessoal, nas hipóteses autorizadas pelo Código de
Processo Penal; g) o arrombamento e a entrada forçada em residência para efetuar a prisão de
alguém, durante o dia, com mandado judicial; h) a apreensão de coisas e pessoas, na forma da
lei processual penal; i) o ingresso em casa alheia por agentes sanitários para finalidades de
saúde pública; j) a apreensão de documento em poder do defensor do réu, quando formar a
materialidade de um crime, de acordo com a lei processual penal; k) o ingresso em casa alheia
por agentes municipais para efeito de lançamento de imposto; l) a comunicação da ocorrência
de crime por funcionário público à autoridade, quando dele tenha ciência no exercício das suas
funções; m) a denúncia à autoridade feita por médicos, no exercício profissional, da ocorrência
de um crime; n) a denúncia feita por médicos à autoridade sanitária, por ocasião do exercício
profissional, tomando conhecimento de doença de notificação obrigatória; o) a violência
necessária utilizada pela polícia ou outro agente público para prender alguém em flagrante ou
em virtude de mandado judicial, quando houver resistência ou fuga (Marcello Jardim
Linhares, Estrito cumprimento de dever legal – Exercício regular de direito, p. 120-121).
Algumas dessas situações – e outras que também constituem cumprimento de dever legal –
podem ser deslocadas para o campo da tipicidade. Por exemplo: o médico tem o dever de
comunicar doença de notificação obrigatória à autoridade sanitária, sob pena de, não o
fazendo, configurar o crime previsto no art. 269 do Código Penal. Logo, se fizer a comunicação,
trata-se de fato atípico, não se necessitando utilizar a excludente de ilicitude do estrito
cumprimento do dever legal.
Em suma, quando a abstenção do cumprimento do dever configurar fato típico, o seu exercício
constitui o oposto (fato atípico). No entanto, quando o cumprimento do dever permitir a
formação do fato típico (lesão corporal durante a execução de uma prisão), valemo-nos da
excludente de ilicitude referente ao estrito cumprimento do dever legal." (NUCCI, Guilherme de
Souza. Manual de Direito Penal. 16. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020. p. 212-213). (grifos no
original)
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"(...) o estrito cumprimento do dever legal não é incompatível com outras causas de
justificação. Assim, por exemplo, o policial que fere autor de crime preso em flagrante atua a
um tempo no estrito cumprimento do dever legal e em legítima defesa, se houver reação
necessária e moderada a uma injusta agressão do agente.45" (QUEIROZ, Paulo. Direito Penal:
Parte Geral. 14. ed. Salvador: Juspodivm, 2020. v. 1. p. 374).
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"(...), o agente deve ter conhecimento (aspecto subjetivo) de que está praticando a conduta em
face de um dever imposto pela lei." (CUNHA, Rogério Sanches. Manual de Direito Penal: Parte
Geral: arts. 1º ao 120. 8. ed. Salvador: Juspodivm, 2020. p. 341).
2 MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de direito penal. Parte geral. 24. ed. São Paulo: Atlas, 2007. v. 1, p
45. Exemplo de Magalhães Noronha, Direito penal, cit., p. 210.
Jurisprudência
TJDFT
Injúria real (art. 217 do CPM) – atuação policial – inobservância dos limites legais – não
configuração da excludente da ilicitude do estrito cumprimento de dever legal
"1. Inviável o acolhimento de pleito absolutório em relação ao crime de injúria real se
comprovado nos autos que o réu, policial militar, sob o pretexto de conter o ofendido, que se
encontrava exaltado, lhe desferiu três tapas no rosto, sem que a vítima tenha tido qualquer
gesto agressivo. Não há como admitir, nessa situação, a tese de que o militar agiu no estrito
cumprimento do dever legal, visto que sua ação extrapolou os limites e parâmetros impostos
pela lei."
Acórdão 1278254, 00093020920188070016, Relator: JESUINO RISSATO, Terceira Turma
Criminal, data de julgamento: 27/8/2020, publicado no PJe: 8/9/2020.
Disparo de arma de fogo – policial militar de folga – ausência de dever previsto em lei – estrito
cumprimento de dever legal inexistente
"4. Estrito cumprimento de dever legal exige, no mínimo, existência de dever prescrito por lei.
Se isto não se verifica, não há que se falar em referida excludente."
Acórdão 1083569, 20080910237228APR, Relatora: MARIA IVATÔNIA, Segunda Turma
Criminal, data de julgamento: 15/3/2018, publicado no DJE: 21/3/2018.

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