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Patógenos.

Infecção por
Agentes Oportunistas
Carlos Alberto Basílio-de-Oliveira
Rodrigo Panno Basílio-de-Oliveira
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Lacaz, em magnífica versão sobre o tema1, tenção da vida, relacionando esses sinais de
foi um dos primeiros entre nós a abordar, de modo idêntico ao que se passa no organismo so-
forma didática, o assunto. As condições patoló- cial. Notável diferença entre o organismo social
gicas relacionadas com a Aids apresentam um e o biológico é a certeza de morte no segundo.
espectro amplo, capaz de caminhar das desor- O organismo é capaz de se adaptar a novas si-
dens oportunistas às neoplasias associadas. Os tuações, corrigindo, de modo automático, tudo
agentes etiológicos são, muitas vezes, microrga- o que prejudica seu funcionamento habitual.
nismos ubíquos, mas há ocasiões de apareci- O patógeno é qualquer agente capaz de ga-
mento de formas erráticas, constituindo nhar acesso a um nicho privilegiado no hospe-
verdadeira patologia exótica. Quando da facili- deiro5. Para isto, freqüentemente causa dano
tação imunológica, o organismo torna-se vulne- celular direto ou indireto, e muitos desenvol-
rável a fatores os mais diversos, através de vem tropismo por este ou aquele tecido. Embo-
agentes exógenos e endógenos, rompendo o ra os comensais e os agentes oportunistas
equilíbrio do meio interior. também possam, em circunstâncias especiais,
Jules Bordet (1870-1961), eminente imuno- invadir e danificar tecidos, apenas os patógenos
logista, definiu a vida como sendo a manutenção dispõem de uma inerente capacidade de sobre-
de um estado de equilíbrio incessantemente por-se às defesas do hospedeiro.
ameaçado2. O organismo do homem, para so- Nas desordens causadas por agentes intra-
breviver aos numerosos agravos que o atingem celulares, as linfocinas produzidas por linfóci-
(injúrias psíquicas, emocionais, físicas ou orgâ- tos Th1 associam-se à resistência à infecção,
nicas), apóia-se em suas defesas naturais e em enquanto as oriundas das células Th2 geram
mecanismos imunológicos (homeostase) que susceptibilidade. Para tentar explicar a respos-
lhe permitem a auto-regulação dos processos ta imune descrita para um padrão Th1 ou Th2,
fisiológicos. vários fatores têm sido propostos, como as
Claude Bernard (1813-1878), extraordiná- propriedades e doses dos antígenos, o local de
rio fisiologista francês, discípulo de Magendi, exposição antigênica e o perfil das linfocinas
referia-se à importância do meio interno como produzido pela resposta imune natural. A ati-
condição fundamental para a manutenção do vação de linfócitos Th1 está associada à secre-
equilíbrio necessário à vida3. ção de linfocinas que ativam os macrófagos,
Bradford Cannon (1871-1945), fisiologista enquanto a resposta Th2 parece estar associa-
de Harvard, falava-nos da homeostase fisiológica, da à produção de linfocinas que inibem a
para manter a economia interna uniforme e está- imunidade celular, favorecendo a síntese de an-
vel4. Criou a expressão política corpórea do orga- ticorpos.
nismo, sugerindo que existem sinais precoces As reações parasito × hospedeiro são extre-
de distúrbios do equilíbrio necessário à manu- mamente complexas, e múltiplos fatores inter-
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ferem nos processos de escape (do parasito) e contra-esca- deos bacterianos); c. da candidíase cutaneomucosa crô-
pe (do hospedeiro), para que a infecção se manifeste de um nica (quase sempre de ocorrência familiar e associada,
modo ou de outro. muitas vezes, à ausência dos paratireóides, da tireóide, do
Antigamente, para considerar um agente microbiano ovário e, mais raramente, do timo).
patogênico ao homem, era necessário preencher os pos- No caso dos linfócitos B, as células precursoras, nas
tulados estabelecidos por Koch, a saber demonstração aves, estão localizadas na bolsa de Fabricius e, nos mamí-
microscópica no material das lesões, cultivo, identifica- feros, provavelmente na medula óssea. São eles encontra-
ção e reprodução experimental da infecção. Hoje em dia, dos, também, no sangue periférico, através da
levamos em consideração os postulados de Falkow6, tais imunofluorescência. Possuem, ainda, a propriedade de ter
como: o fenótipo em investigação deve associar-se com um local de reação, para que atue o terceiro componente
membros patogênicos de um genoma ou cepas patogêni- do sistema complemento. Uma vez ativados os linfócitos
cas de determinada espécie; a inativação específica de B e transformados em plasmócitos, as imunoglobulinas
genes associada à virulência deve ocasionar perda men- são, então, secretadas (IgG, IgM, IgA, IgD e IgE). Sabe-se
surável na patogenicidade ou virulência; a remoção ou que, pelo menos, dois processos estão ligados a alterações
substituição aleatória do gene mutante deve restabelecer nos tecidos linfóides produtores de células B no homem:
a patogenicidade. a. hipogamaglobulinemia congênita primária (tipo
Tantos são os fatores comprometidos na virulência de Bruton); b. disgamaglobulinemias.
um agente parasitário bem como na defesa imunitária do Com relação à produção das imunoglobulinas, temos
hospedeiro, que se torna difícil resumir os processos resul- a considerar: a. hipogamaglobulinemias idiopáticas tardias;
tantes da interação parasito-hospedeiro, para explicar o b. hipogamaglobulinemias secundárias.
aparecimento de uma infecção oportunista. Essa dicoto- As deficiências em imunoglobulinas causam infecções
mia do sistema imune é, hoje em dia, bem-estabelecida respiratórias agudas e crônicas, e na hipogamaglobuline-
para compreender o modus operandi das imunodeficiências mia idiopática tardia ocorrem distúrbios gastrintestinais,
em geral. Cada caso deve ser estudado cuidadosa e isola- incluindo acloridria, anemia perniciosa, diarréia, hiperpla-
damente, procurando-se relacioná-lo aos fatores. sia linfóide nodular do intestino delgado e litíase biliar. A
Hermans et al.7 apontam, por exemplo, as imunodefi- giardíase é freqüente bem como a artrite reumatóide e o
ciências primárias e secundárias que podem conduzir ao lúpus eritematoso sistêmico. Em 5% dos casos, pode ocor-
aparecimento de uma infecção. Os linfócitos T (timode- rer timoma.
pendentes) são responsáveis pela hipersensibilidade do As hipogamaglobulinemias secundárias podem apare-
tipo tardio, e os linfócitos B garantem a imunidade humo- cer no decurso da leucemia linfocítica crônica, do
ral. Podemos contar no sangue periférico tais linfócitos. mieloma múltiplo ou do linfoma não-Hodgkin.
Assim, os linfócitos T humanos possuem a propriedade
de formar rosetas com eritrócitos de carneiro, e sua fun- A deficiência seletiva das imunoglobulinas individuali-
ção pode ser avaliada pela atividade dos mitógenos, tais za as disgamaglobulinemias. Assim, a deficiência de IgG
como a fitoemaglutinina e a concavalina, que neles pro- e IgA, com elevação sérica de IgM, é referida como disga-
duzem in vitro alterações morfológicas e metabólicas di- maglobulinemia tipo I (síndrome de Burtin), e a dis-
versas (transformação blástica). Os linfócitos T ativados gamaglobulinemia tipo II (síndrome de Giedion-
liberam certo número de substâncias biologicamente dis- Scheidegger) é definida como deficiência de IgM e IgA, e
tintas, conhecidas como linfocinas, representadas por: a. concentrações séricas normais de IgG. Em ambos os casos,
fator quimiotático para os macrófagos; b. fator inibidor são freqüentes as infecções piogênicas bacterianas.
da migração dos macrófagos (MIF); c. fator de transferên- A deficiência combinada de células T e B pode ocorrer
cia; d. linfotoxina. como moléstia autossômica recessiva. Ela é referida como
O fator quimiotático para os macrófagos promove a agamaglobulinemia tipo suíço, na qual o timo é hipoplá-
migração dos monócitos para o local onde os linfócitos sico e os centros germinativos estão ausentes nos tecidos
T reagem com o antígeno. O fator denominado MIF pos- linfóides; as células B e T mostram-se gravemente compro-
sui a dupla propriedade de manter os monócitos na sede metidas em seu número. O complemento total está redu-
ou no local da hipersensibilidade do tipo tardio, ativan- zido, havendo perda principalmente de C1q, um constituinte
do também as propriedades fagocíticas dos macrófagos. de C1.
O timo é o principal órgão responsável pela produção O sistema complemento consiste em nove componen-
dos linfócitos T. Duas síndromes estão ligadas a altera- tes e diversos inibidores. As reações antígeno-anticorpo,
ções tímicas, a saber: a. síndrome de Di George: ausên- nas quais as imunoglobulinas IgG ou IgM participam, ati-
cia congênita do timo, com deficiência no número e vam a clássica via de ação do sistema. Assim, esta reação
função dos linfócitos T, hipoplasia das paratireóides, com caminha com C1, que ativa C4 e C2. O ponto central do
tetania devida à hipocalcemia; b. síndrome de Nezelof: sistema complemento é o terceiro componente, o qual
Allibone (linfopenia recessiva autossônica), forma de pode ser ativado por C4,2. Uma vez ativado C3, a reação
aplasia tímica, permanecendo intactos os mecanismos continua até C9. Fragmentos biologicamente ativos são li-
humorais. O transplante de timo conduz à reconstituição berados a partir de C3, C5 possuindo influência quimio-
imunológica completa. Levando em consideração as lin- tática sobre os polimorfonucleares bem como
focinas, deficiências na sua produção podem concorrer propriedades vasodilatadoras, liberando a histamina dos
para o aparecimento, por exemplo: a. da moléstia de mastócitos. A ligação dos anticorpos a determinantes an-
Hodgkin; b. da síndrome de Wiskott-Aldrich (plaqueto- tigênicos existentes à superfície de certos micróbios faci-
penia e eczema, com ausência de resposta a polissacarí- lita a fagocitose, posteriormente favorecida pelo sistema
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complemento, especialmente por C3. Os macrófagos pos- à distância. Todos estes componentes se destinam a articu-
suem também a propriedade de “processar os antígenos” lar estratégias para bloquear ou destruir agentes infeccio-
ou “prepará-los”, transferindo-os aos linfócitos, para que sos ou células tumorais, sempre com o objetivo de manter
se produzam os anticorpos específicos a muitos antígenos; a homeostase.
a cooperação entre macrófagos e linfócitos é necessária. A resposta imune é mediada por leucócitos, oriundos
A organização do sistema imune e a resposta imunoló- de precursores da medula óssea. Tais precursores dão ori-
gica distribuem-se em quatro situações básicas: proteção, gem aos polimorfonucleares e macrófagos, que compõem
destruição, reconstrução e modelação. Todas dirigidas à o sistema imune inato, e os linfócitos, representantes do
homeostase do sistema imune. A princípio, estas funções sistema imune adquirido. Os macrófagos estabelecem uma
estão em equilíbrio e associadas à ação de agente infeccio- linha de defesa inicial para vasta gama de agentes e são es-
so invasor ou com a transformação de uma célula. senciais para o controle das infecções bacterianas. Entre-
O sistema imune é composto por um arsenal de célu- tanto, muitas vezes dependem da cooperação entre células
las, anticorpos e citocinas que estão em estreita comuni- e anticorpos oriundos do sistema imune adquirido. Os lin-
cação entre si, seja por contato direto, seja por estimulação fócitos, como se fossem células providas de cognição, têm

Tabela 3.1
Sistema de Classificação do Estágio Clínico da Infecção pelo HIV (CDC, 1992)
Categoria Clínica
Faixa de CD4/mm3 A B C

= 500 A1 B1 C1
200 a 499 A2 B2 C2
< 200 A3 B3 C3

Categoria clínica A
Infecção pelo HIV assintomática
Linfadenopatia generalizada persistente
Infecção primária pelo HIV

Categoria clínica B
Infecção pelo HIV sintomática, excluindo as categorias A e C. Exemplos:
angiomatose bacilar
candidíase vulvovaginal persistente ou que responde mal ao tratamento
candidíase orofaríngea
displasia cervical moderada ou grave
carcinoma cervical in situ
sintomatologia constitucional (exemplos: febre = 38,5°C, diarréia persistente)
herpes-zoster comprometendo > um dermátomo ou > um episódio
listeriose
doença inflamatória pélvica, especialmente a que cursa com abscesso tuboovariano
neuropatia periférica

Categoria clínica C
Candidíase comprometendo o esôfago, a traquéia e/ou os brônquios
Coccidioidomicose extrapulmonar
Criptococose extrapulmonar
Câncer cervical invasivo
Criptosporidiose intestinal crônica (> um mês)
Retinite pelo citomegalovírus
Encefalopatia pelo HIV
Herpes simplex com ulceração mucocutânea (> um mês), bronquite ou pneumonia
Histoplasmose extrapulmonar disseminada
Isosporíase crônica (> um mês)
Sarcoma de Kaposi
Linfoma não-Hodgkin de células B
Infecção pelo Mycobacterium avium disseminada
Nocardiose
Pneumonia pelo Pneumocystis carinii
Pneumonia bacteriana recorrente (> dois episódios em 12 meses)
Leucoencefalopatia multifocal progressiva
Septicemia por Salmonella não-tifóide recorrente
Estrongiloidíase extra-intestinal
Toxoplasmose do sistema nervoso central ou outros órgãos internos
Síndrome de emagrecimento involuntário (> 10% do peso inicial) associada ao HIV

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a propriedade de reter informações recebidas ao longo da SISTEMA DE CLASSIFICAÇÃO DO ESTÁGIO CLÍNICO DA
sua vida. Esta capacitação de memória habilita-os a reagir INFECÇÃO PELO HIV (CDC, 1992)
rapidamente, quando do segundo contato com determina-
do patógeno. Este sistema enfatiza a importância da linfocitometria
As bactérias, os vírus, os protozoários e os helmintos CD4 na classificação do estágio clínico da infecção pelo
carreiam grande variedade de determinantes antigêni- HIV. Há três categorias clínicas (A, B e C) e três categorias
cos. A estratégia do sistema imune, adquirido para reco- de faixa de linfocitometria CD4, resultando em uma ma-
nhecer os mosaicos antigênicos expressos pelos agentes triz de nove categorias. As categorias em vermelho indicam
infecciosos e eliminá-los, baseia-se no vasto repertório casos de Aids (Tabela 3.1).
de especificidades que os receptores dos linfócitos T e
B dispõem. Esta diversidade chega a comportar aproxi- REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
madamente 1011 moléculas de anticorpos diferentes,
cada qual com sua determinada especificidade. Com o 1. Lacaz CS. Agentes microbianos e neoplasias emergentes e a
reconhecimento antigênico, uma série de eventos celu- medicina de nossos dias. In: Lacaz CS, Machado CM. Opor-
lares é desencadeada, culminando na diferenciação e tunismo microbiano e de neoplasias na medicina contempo-
rânea. São Paulo: Fundo Editorial Byk, 2000.
proliferação de células efetoras antígeno-específicas,
capazes de gerar anticorpos e outras intervenções apro- 2. Bordet J. Traité de l´immunité dans le maladies infectiouses.
priadas. Por sua vez, os agentes infecciosos, sejam intra Paris: Masson e Cie. Editeurs, 1920.
ou extracelulares, também dispõem de mecanismos de 3. Bernard C. Introduction a l´étude de la medicine expé-
escape à abordagem do sistema imune. As interações rimentale. Paris: Librairie Ch. Delegrace, 1992.
das imunidades inata e adquirida com outros sistemas, 4. Cannon WB. The wisdom of the body. Cambridge: Harvard
como o neuroendócrino, ampliam a diversidade dos University Press, 1932.
mecanismos efetores que buscam a manutenção do equi- 5. Falkow S. Perspectives series: host/pathogen interactions.
líbrio interno. Dessa forma, a resolução de uma infec- Invasion and intracellular sorting of bacteria: searching for
ção é um processo dinâmico e complexo que depende bacterial genes expressed during host/pathogen interactions.
de fatores relacionados com o invasor e o hospedeiro. J Clin Invest 100:239-43, 1997.
Apenas quando surgem desarranjos do sistema imune, 6. Falkow S. Molecular Koch’s postulates applied to microbial
como o induzido pela infecção pelo HIV, com sua pathogenicity. Rev Infect Dis, Supl 2:S274-6, 1998.
multiplicidade de variantes e apresentações clínicas, é 7. Hermans PE, Ritts RE Jr, Gleich GJ. Immune deficiency
que temos mais clara noção da importância do correto diseases. Postgrad Med, 54(5):66-75, Nov 1973.
funcionamento das células e tecidos do nosso sistema de 8. CDC. Centers for Disease Control and Prevention. 1993
defesa. Segue-se o sistema de estadiamento da infecção Revised classification system for HIV infection and expanded
pelo HIV da forma como proposto pelo Centers for Di- surveillance case definition for Aids among adolescents and
sease Control and Prevention8. adults. MMWR 41:RR17, 1992.

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