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HISTÓRIA CLÍNICA 3 CIRURGIA

História Clínica colhida por Guilherme Afonso


Serviço de Cirurgia do CHPVC, dia 14/10/2019

Dados de Identificação
J.F.S.S.
64 anos
Sexo masculino
Caucasiano
Reformado (era distribuidor de mercearia)
Natural e Residente em Vila do Conde
Solteiro
Fonte de informação: o próprio, aparentemente confiável

Queixa Principal
Dor abdominal + Melenas

História da Doença Atual


Homem de 64 anos, com hipertensão arterial, dislipidemia, síndrome de polipose
intestinal, síndrome de apneia obstrutiva do sono e episódio de enfarte agudo do
miocárdio em 2010, recorre ao SU do CHPVC, no dia 11/10/2019, após resultados de
estudo analítico pedido pela médica de família. Apresentava a seguinte sintomatologia:

Dor abdominal com início 10 dias antes do internamento e evolução insidiosa,


localizada no epigastro e com irradiação dorsal, intensidade 5/10, descrita pelo doente
como ‘moedeira’. Sem fatores aliviantes, agravantes ou desencadeantes. Sem relação
temporal com as refeições. Associada a anorexia, saciedade precoce e perda ponderal de
4kg no último mês.

3 episódios de melenas 5 dias antes do internamento. Dejeções com fezes moles, de cor
escura e odor intenso. Sem fatores aliviantes, agravantes ou desencadeantes. Nega
alterações do trânsito intestinal nos dias precedentes e posteriores a estes episódios.
Nega ingestão de Ferro oral, bismuto, carvão, amoras e beterraba.

O doente refere ainda astenia e palidez nas 2 últimas semanas.

O doente nega disfagia, náuseas, vómitos e outras queixas gastrointestinais. Nega


tonturas, palpitações e dor anginosa. Nega alterações da medicação habitual,
nomeadamente AINEs, laxantes ou antibióticos. Nega febre, mialgias, arrepios ou
hipersudorese. Nega alterações urinárias.

Durante o internamento, o doente refere ter sido submetido a suporte transfusional e ter
realizado uma endoscopia digestiva alta no Hospital São João, dia 12/10/2019. No D4,
encontra-se assintomático.
História Médica Passada
Sem histórias relevantes na Infância
PNV atualizado
Nega acidentes ou cirurgias prévias
Internamento de 4 dias, em 2010, no Hospital São João, por EAM.

Caracterização do estado de saúde


Cardiopatia isquémica. Enfarte agudo do miocárdio em 2010. Internamento no
Hospital São João durante 4 dias. Realizou cateterismo no D2. Seguido em consulta de
Cardiologia. Desconhece grau da doença coronária ou repercussão na função cardíaca.

Hipertensão arterial, diagnosticada aquando do EAM. Medicado. Efetua medições em


casa, valores habituais 130/65 mmHg.

Dislipidemia, diagnosticada aquando do EAM. Medicado. Desconhece valores


habituais.

Síndrome de apneia obstrutiva do sono, diagnosticado há 3 anos, após queixas de


roncopatia. Faz CPAP.

Síndrome de polipose intestinal. Refere colonoscopias anuais nos últimos 13 anos


para remoção de pólipos. Última colonoscopia com polipectomia em fevereiro/2019.
Desconhece história familiar da patologia, mas refere que pai faleceu aos 72 anos por
neoplasia intestinal.

Medicação habitual:
Clandesartan + Hidroclorotiazida 16mg+12,5mg
5-mononitrato de isossorbida 50mg
Amlodipina 10 mg
Feno-fibrato + Sinvastatina 40mg
Nebivolol 5mg
Rilmenidina 1mg

Nega alergias medicamentosas ou alimentares.


Realiza cerca de 4 refeições por dia, sem restrição no sal.
Sono reparador, dormindo cerca de 8h por noite.
Não fumador. Consumo de 1 copo vinho tinto maduro à refeição.

História Psico-Social
Solteiro. Vive com o irmão.

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Ambiente familiar agradável, com todas as condições de habitabilidade.
Reforma antecipada devido ao EAM. Previamente encontrava-se desempregado há ano
e meio.
História Familiar
Pai: Faleceu aos 73 anos por neoplasia intestinal
Mãe: Faleceu aos 82 anos (desconhece a causa)
Irmão: 53 anos, aparentemente saudável.

Revisão Sistemática por Aparelhos e Sistemas


Nada a acrescentar

Exame Físico
Aspeto Geral
Doente consciente, colaborante e orientado
Sem sinais de desconforto respiratório, cardíaco ou postural
Sem deformidades evidentes
Presença de cateter no membro superior esquerdo.

ECOG performance status: 0

P. Antropométricos
Peso 69 Kg
Altura 1,63 m
IMC 26 Kg/m2
Perímetro abdominal não medido.

Sinais vitais
Tensão Arterial: 126/74 mmHg, medida no braço direito, com o doente sentado
Frequência Cardíaca: 77 bpm. Pulso Radial Simétrico, Regular, Rítmico e amplo.
Frequência Respiratória: 17 cpm
SatO2= 94 % ; FiO2=0,21, em repouso
Temperatura timpânica: 37,1ºC

Pele e Faneras
Pele descorada, mas hidratada
Temperatura normal e simétrica
Distribuição pilosa de acordo com o sexo e a idade
Nevos melânicos dispersos. Sem lesões cutâneas.
Unhas sem baqueteamento e ausência de cianose.

Cabeça e Pescoço
Cabeça sem tumefações, dismorfias ou outras anormalidades visíveis ou palpáveis.
Olhos: conjuntivas descoradas, escleróticas anictéricas.
Boca: língua e mucosa oral desidratada

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Pescoço com movimentação ativa normal, sem dismorfias.
Traqueia centrada na linha média.
Glândula tiroide simétrica, sem nódulos palpáveis.
Ausência de adenopatias occipitais, retro-auriculares, pré-auriculares, submandibulares,
submentonianas, cervicais e supraclaviculares.

Tórax e Aparelho Respiratório


Tórax simétrico, sem assimetrias estáticas ou dinâmicas.
Diâmetro anteroposterior normal
Ausência de dismorfias, cicatrizes ou tumefações visíveis.
Indolor à palpação. Expansibilidade torácica simétrica e preservada.
Frémito toracovocal normal bilateralmente e simétrico.
Campos Pulmonares Ressonantes simetricamente à percussão.
Auscultação pulmonar com MV presente, normal e simétrico em todo o campo pulmonar.
Ausência de Ruídos adventícios.

Aparelho Cardiovascular
Ausência de Turgescência Venosa Jugular a 45º
Pulsos carotídeos regulares, rítmicos, amplos. Sem frémitos ou sopros
PIM não visível nem palpável. Sem deteção de lift paraesternal
S1 e S2 audíveis e regulares. Sem galopes, sopros ou atrito
Tempo de preenchimento capilar < 2 segundos

Abdómen
Configuração normal. Simétrico, sem tumefações, dismorfias ou protusão umbilical. Sem
cicatrizes.
Sem pulsatilidades visíveis.
Ruídos hidroaéreos audíveis, de intensidade e frequência normais. Ausência de sopros
Timpanismo abdominal normal à percussão
Mole e depressível, sem massas ou organomegalias palpáveis, sem dor à palpação nem à
descompressão.

Membros Inferiores
Sem dismorfias, tumefações ou edemas
Sem atrofia muscular
Sem sinais de estase venosa
Pulso pedioso palpável, simétrico, regular, rítmico, amplo

Resumo
Homem de 64 anos, com fatores de risco CV (dislipidemia e HTA), cardiopatia
isquémica, SAOS e polipose intestinal, recorreu ao SU do CHPVC no dia 11/10/2019,
após alterações de estudo analítico pedido pela médica de família, com dor epigástrica
com 10 dias de evolução, intensidade 5/10, com irradiação dorsal e 3 episódios de
melenas 5 dias antes, associado a anorexia, saciedade precoce, perda ponderal, astenia e
palidez. No exame objetivo no D4, apresenta pele e conjuntivas descoradas e mucosa
oral desidratada.

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Lista de Problemas
#1. Dor abdominal + melenas
#1.1. Astenia, palidez, anorexia, saciedade precoce e perda ponderal
#1.2. Pele e conjuntivas descoradas e mucosa oral desidratada
#2. Síndrome de polipose intestinal
#2.1. História familiar de neoplasia intestinal
#3. Cardiopatia Isquémica
#3.1. EAM (2010)
#4. Fatores de Risco Cardiovascular
#4.1. HTA
#4.2. Dislipidemia
#5. SAOS

Cenário Fisiopatológico
O quadro clínico de dor abdominal associado aos episódios de melenas, apresentado
pelo doente, é sugestivo de hemorragia digestiva. Esta, por sua vez, pode ser a montante
do ângulo de Treitz (hemorragia digestiva alta) ou a jusante (hemorragia digestiva
baixa). A alteração analítica que motivou o internamento foi provavelmente uma
anemia, tendo em conta que o doente foi transfundido e apresentava astenia e palidez, o
que suporta o quadro clínico hemorrágico.

Tendo em conta a localização epigástrica da dor e a apresentação da hemorragia sob a


forma de melenas, o mais provável é tratar-se de uma hemorragia digestiva alta. No
entanto, tendo em conta os antecedentes de síndrome de polipose intestinal do doente e
história de familiar em 1º grau de neoplasia intestinal, a hipótese de uma hemorragia
digestiva baixa também é possível.

Dentro das hemorragias digestivas altas, seria, antes de mais, importante perceber se se
trata de HDA hipertensiva ou não-hipertensiva. A primeira hipótese parece menos
provável, uma vez que o doente não apresenta estigmas de doença hepática ou
hipertensão portal ao exame objetivo.

Atendendo às etiologias mais comuns de HDA não hipertensiva, mais de 50% são
devido a úlceras pépticas complicadas por hemorragia. Neste caso, a localização da dor
é compatível, apesar de não haver nenhuma relação temporal com as refeições. O
doente também não apresenta outros sintomas como náuseas e vómitos ou sensação de
distensão abdominal, nem toma AINEs.

Outra hipótese provável, tendo em conta os sintomas constitucionais do doente como a


astenia e perda ponderal, e a instalação insidiosa dos sintomas, é uma neoplasia gástrica,
sendo o adenocarcinoma gástrico a mais frequente. A hemorragia digestiva alta é uma
apresentação possível, mas incomum (5%). O facto de o doente não apresentar disfagia
torna menos provável o envolvimento do cárdia. A síndrome de polipose intestinal

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descrita pelo doente, de etiologia desconhecida, pode aumentar o risco de adenoma
gástrico.

Outras causas menos frequentes e menos prováveis neste doente são as erosões
gastroduodenais, esofagite erosiva e lesões de Dieulafoy. A ausência de história de
vómitos ou tosse e hematémese exclui a hipótese de síndrome de Mallory-Weiss.

Dentro das hemorragias digestivas baixas, a hipótese de neoplasia colorretal é algo a


considerar pela história de polipose, pelos sintomas constitucionais e pela história
familiar do doente, apesar da dor não ser característica, e das melenas apontarem a lesão
no colon direito, que é menos frequente. Importante referir que o doente não fez
polipectomia recentemente, pelo que não se deverá tratar de uma complicação do
tratamento.

Outras causas de hemorragia digestiva baixas menos prováveis são a doença


diverticular, pois normalmente não há dor associada, angiectasias ou colite ulcerosa ou
isquémica, esta última importante neste doente, pelos inúmeros fatores de risco
cardiovascular. Contudo estas hipóteses só deverão ser consideradas se o estudo de
hemorragia digestiva alta for inconclusivo.

Meios Complementares de Diagnóstico


 Hemograma completo - avaliar a presença de anemia
 Gasometria - Útil se surgir instabilidade hemodinâmica
 Tipagem sanguínea - para eventual transfusão
 Bioquímica
o Ionograma - avaliar se há desequilíbrio electrolítico e caracterizá-lo
o Transaminases, bilirrubina sérica, albumina e proteínas totais
o Ureia, creatinina
o Estudo da Coagulação
 Endoscopia digestiva alta (confirmar ou excluir HDA e caracterizá-la, se presente.
Biópsia)
 TC tórax, abdómen e pelve com contraste oral e IV (caso EDA revele neoplasia,
para estadiamento)
 Laparoscopia de estadiamento e citologia do lavado peritoneal (recomendado se
>T1b)
 Colonoscopia (caso não se confirme HD alta)

Terapêutica
IBP em perfusão, alterando para oral após 72h (para supressão ácida), dieta zero (pela
necessidade de realizar endoscopia) e vigilância nas primeiras 72h. Estas estratégias
são geralmente suficientes para a maioria dos doentes.

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Transfundir, geralmente, para níveis de hemoglobina menores que 7 g/dL, mas, neste
caso, por se tratar de um doente com cardiopatia isquémica, ponderar transfundir para
valores mais elevados.

Entre 5 a 35% dos pacientes necessitam de alguma forma de intervenção,


principalmente endoscópica, nomeadamente, terapêutica térmica (corrente bipolar),
mecânica (clips) ou injeção de agentes esclerosantes, com ou sem injeção de agentes
vasoconstritores.

O jejum restringe-se a pacientes hemodinamicamente instáveis e àqueles que necessitam


de intervenção endoscópica repetida.

A correção da hipovolemia é o objetivo prioritário da reanimação inicial: colocar dois


acessos venosos, administração de fluídos (1-2 litros de solução fisiológica é geralmente
suficiente) e monitorizar continuamente a TA e FC até paragem da hemorragia
(monitorização horária nas 12h seguintes e depois a cada 4h); diurese horária se choque;
Sat.O2.

Tis/T1a/T1b – resseção endoscópica submucosa ou cirúrgico radical, com


linfadenectomia D1

T2N0M0 a T4N3M0 – Gastrectomia radical com linfadenectomia D2 + QT


perioperatória

M1 – Quimioterapia paliativa

Aconselhamento nutricional. Cessação tabágica.

Prognóstico

Bom, no caso de uma causa não neoplásica. O sangramento geralmente para


espontaneamente em 80-90% dos pacientes. Com a terapia conservadora, a maioria das
lesões cicatriza sem intercorrências dentro de 48 a 72 horas.

Pelo contrário, se se tratar de uma lesão neoplásica gástrica, o prognóstico é reservado,


pois normalmente este tipo de sintomatologia surge na doença avançada localmente.

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