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FACULDADE TÉCNICO-EDUCACIONAL SOUZA MARQUES

ANDRÉ MARON VIEIRA DE NORONHA

RELATO DE CASO: DERRAME PERICÁRDICO

Trabalho de Conclusão da Monitoria de


Semiologia, da Faculdade Técnico-
Educacional Souza Marques.

Orientador: Prof. José Anthonio

RIO DE JANEIRO
2019
RESUMO:

O seguinte trabalho visa relatar um caso de derrame pericárdico em uma


paciente de 61 anos, cujo diagnóstico etiológico não foi feito e o tratamento
tornou-se empírico para tuberculose. A tuberculose deve ser sempre pensada
em países ditos do terceiro mundo, como no caso do Brasil, onde a incidência
da doença é muito alta. A discussão e revisão sobre pericardite tuberculosa e
como ela deve ser pesquisada é de extrema importância para que a investigação
e tratamento sejam feitos de forma correta e no tempo adequado, minimizando
desfechos negativos e complicações decorrentes da doença.

1 RELATO DE CASO

Identificação: M.J.B. 61 anos, feminino, negra, solteira, aposentada,


evangélica, natural do Rio de Janeiro, reside em Nova Iguaçu. Internada no
HMSA em 23 de agosto de 2019. História colhida no dia 26/06/2019.

Queixa Principal: "Dor no Peito e desmaiando"

História da Doença Atual: Há 3 meses, paciente relatou início de dor


precordial de maneira abrupta e de intensidade moderada, surgida em repouso
e de caráter progressivo. Refere que não haviam fatores atenuantes e nem
agravantes para dor. Fez uso de Dipirona para alívio da mesma, sem melhora.
No início do quadro foi na UPA, onde foi administrada "injeção para dor e soro"
(sic), sem melhoras. Havia dispneia associada, cansaço, edema de membros
inferiores e edema bipalpebral.
Uma semana antes do quadro de dor precordial, relatou iniciou de
quadro de constipação, evacuando apenas uma vez na semana, fez uso de
laxante (Lacto purga) durante as primeiras semanas com relativa melhora dos
sintomas. Refere episódios de vômito pós-prandial, perdendo peso (não sabe
relatar quanto).
No mesmo período do início da constipação, relatou que começou a apresentar
disúria, ardência e urinava pouco.
Paciente também relata dificuldade e dor ao engolir alimentos sólidos. Negou
febre durante todo o período. A dor precordial progrediu com aumento da
intensidade até o momento da internação (dia 23/08/19), quando relata que a
dor era tão forte que chegou a desmaiar (sic) duas vezes e a nota para dor era
10 em uma escala de 0 a 10. Paciente estava com quadro de constipação no
momento da internação, dando entrada sem evacuar já por 7 dias, abdome
distendido, dor abdominal difusa, pior na região epigástrica, náuseas e vômitos.
Quadro de disúria e disfagia/odinofagia ainda existiam no momento da
internação.

História Patológica Pregressa: Diabética há 25 anos. Toma


regularmente insulina NPH (1 vez ao dia) e sulfolinureia. Hipertensa há 20 anos.
Toma regularmente captopril e não soube dizer o outro remédio. Apresentou as
doenças comuns da infância (varicela, caxumba). Chicungunha há 3 anos, sem
sequelas de dor articular nos dias atuais. Vacinas em dia. Relata alergia a
Diclofenaco. Realizou cirurgia de catarata a aproximadamente 10 anos e
apresenta perda total da visão esquerda e 5% da visão direita, e uma cirurgia de
osteossíntese após fratura da perna esquerda também há 10 anos. Nega
hemotransfusão. Nega IST’s e outras doenças infecciosas.

História Familiar: Mãe falecida de CA de esôfago. Pai era diabético. Irmã


também falecida de CA de esôfago e cerebral (sic). Possui dois filhos saudáveis
e um filho morto por causa violenta.

História Social: Fumante durante 42 anos (42 maços/ano), sem fumar


há 8 anos. Alcoolista diária de aproximadamente 6 garrafas de cerveja durante
35 anos, sem beber também há 8 anos. Nega drogas ilícitas. Dieta
quantitativamente adequada e qualitativamente inadequada antes do quadro.
Sedentária. Vive em casa de 4 cômodos com o namorado. Casa é arejada, não
possui água tratada, compra água de galão para beber, e possui esgoto
encanado. Ensino fundamental incompleto. Parou de trabalhar após a perda da
visão causada pela catarata. Trabalhava em oficina mecânica.

Exame Físico:
Ectoscopia: Paciente vigil e orientada no tempo e espaço em regular estado
geral. Obesa, marcha atípica, normolínea. Atitude atípica. Pele seca (faz uso de
hidratantes). Hipocorada 2+/4+, hidratada, acianótica, anictérica, eupneica em
ar ambiente. Circulação capilar satisfatória.

Sinais Vitais: FC: 70 bpm; Sat: 99%; Temp.: Não aferida (afebril ao
toque).; FR: 19 irpm. PA: 130/70.
Ao momento da internação apresentava FC 113 e PA 150x60.

Cabeça e Pescoço: Fácies renal, com edema na região peripalbebral


bilateral. Implantação, distribuição, quantidade e textura capilar normal. Perda
de visão importante em ambos os olhos. Linfoadenomegalia indolor, mole, não
aderida a planos profundos na região amigdaliana esquerda. Glândula tireóide
sem alterações.
Tórax: Abaulamento em região posterior direita compatível com
cifoescoliose. Cicatriz de janela pericárdica (realizada durante a internação).
Aparelho Respiratório: Expansibilidade e elasticidade mais predominantes do
lado esquerdo. Frêmito tóraco vocal uniformemente palpável bilateralmente.
Som claro atimpânico à percussão. Múrmurio vesicular levemente diminuido em
ambas bases pulmonares e sem ruídos adventicios.
Aparelho Cardiovascular: Ictus cordis invisível e impalpável. Ritmo cardiaco
regular em 2 tempos com bulhas normofonéticas. Ausência de sopros ou
extrassístoles. Ausência de turgênia jungular patológica.

Abdome: Globoso, moderadamente distendido. Ausências de lesões de


pele e de circulação colateral. Peristalse presente nos 4 quadrantes. Palpação
superficial e profunda indolor. Fígado não palpável de 8 cm, espaço de traube
livre, sem ascite. Percussão global timpânica.

Membros inferiores: Edema 4+/4. Panturrilhas livres. Pulso poplíteo,


tibial posterior e pedioso palpáveis de mesma amplitude.

Osteoarticular: Mobilidade ativa e passiva das articulações preservadas


sem dor. Ausência de sinais flogísticos ou deformidades articulares.

2 EVOLUÇÃO

23/08/2019: Deu entrada na emergência. Vigil, orientada, hipocorada,


hidratada, deambulando com dificuldade, eupneica, estável
hemodinamicamente, glasgow 15. Sem alterações no ACV, AR. Abdome
tenso, doloroso difusamente, pior na região epigástrica. Sem edema,
panturrilhas livres, pulsos ok.
Inicialmente, foram realizados exames laboratoriais que demonstraram
leucocitose (14100/mm3); HTC 24,4%; Hb 7,5; Plaquetas 225000; Bastões 6%.
Ureia 87 e Creatinina 2,6. EAS 10 a 15 leucócitos por campo; 4 a 6 hemácias
por campo; Nitrito positivo. HGT 310 mg.
Foi realizado TC de tórax, evidenciando moderado derrame pericárdico,
sem indicação de drenagem de urgência e derrame pleural bilateral (figura 1).
Foi solicitada vaga na sala de reanimação.
Paciente foi diagnosticada pela clínica médica como Cetoacidose
Diabética + Infecção do trato urinário e foi instaurado o protocolo de tratamento
do hospital.
29/08/2019: Paciente ainda hipocorada ++/4, com dor abdominal e vômitos. PA
150x90 mmHg de difícil controle. Foi solicitado marcadores tumorais, rastreio
para LES, vasculites e AR. Cujos resultados foram todos negativos.

SOROLOGIAS:
• CA 125 14,7 (normal)
• CA 15-3 15,3 (normal)
• CA 19,9 10,12 (normal)
• CEA 2,46 (normal)
• Alfafetoproteina 1,96 (normal)
• Anticopros anti neutrofilo (ANCA) P-anca não reagente. C-anca não
reagente
• Anti-DNA não reagente
• Anticopro Anti-RNP < 5 U/ml (não reagente)
• Anticorpo anti-SM < 7 Elia U/ml (não reagente)
• Anticopro Anti-SSA <7 Elia U/ml (não reagente)
• Anticorpo Anti-SSB < 7 Elia U/ml (não reagnete)
• Fator reumatóide < 9,5 UI/ml (normal)
• Anticardiolipina IgM e IgG normais (Igm < 1,2 mpl -U/ml ; IgG 1,1 GPL
U/ml)
• VDRL não reativo
• Fator anti nucleo não reagentes

Nova TC de tórax e abdome mostrando derrame pericárdico moderado


a grave e abdome normal. Após o parecer da cirurgia geral foi indicada
abordagem cirúrgica (janela pericárdica) eletiva para o dia 02/09/2019 porém foi
realizada apenas no dia 05/09/2019.
Feito também Ecocardiograma transtorácico com os seguintes
resultados: Derrame pericárdico moderado sem sinais de restrição diastólica e
veia cava inferior com calibre reduzido caracterizando hipovolemia. FE 81%,
diâmetros cavitários normais, função sistólica global e segmentar do VE
preservada, VD normocontrátil. Disfunção diastólica do VE grau 1. Válvulas
normais. Regurgitação mitral e tricúspide leves.
Devido a queixa de disfagia foi realizado EDA que demonstrou esofagite
de refluxo grau B de Los Angeles e Hérnia de hiato por deslizamento.

05/09/2019: Realizada Cirurgia. Foram aspirados aproximadamente 500


ml de líquido seroso e enviado para citologia, bioquímica e culturas. Feita biópsia
pericárdica subxifoide. Intubação orotraqueal sem intercorrências. Recebeu
1100 ml de cristalóides e não recebeu hemoderivado.
Os resultados da biópsia e do laboratório não evidenciaram nenhuma
etiologia. Não foi solicitado a Adenosina Deaminase (ADA) do líquido aspirado,
que é capaz de auxiliar no diagnóstico da Tuberculose já que a confirmação pela
baciloscopia e pela cultura são baixas em Tuberculose extrapulmonares e no
caso em questão também vieram negativas.
Paciente se recuperou bem da cirurgia e teve alta para enfermaria de
clínica médica no dia 17/09/2019.

27/09/2019: Paciente volta a apresentar episódios de dor retroesternal e


vômitos. Foi realizada nova TC e radiografia de tórax (figura 2) que
demonstraram recorrência do derrame pericárdico, sem indicação de abordagem
cirúrgica. Otimizada analgesia e iniciado anti-inflamatório.

31/09/2019: Iniciado Ibuprofeno, Colchicina e Paco (Paracetamol +


fosfato de codeína).
Paciente mantida estável hemodinamicamente e em vigilância clínica.

05/09/2019: Episódio de vômito intenso. Aparelho cardiovascular sem


alterações no exame físico. MV audível diminuído em ambas as bases.
Foi iniciado esquema RIPE (Rifampicina, isoniazida, pirazinamida e
etambutol) para tratamento de Tuberculose. Feito de forma empírica pois não
houve a confirmação etiológica. Prescrito dexametasona.

09/09/2019: Desde o dia 27/09, vem apresentando piora da dor


retroesternal e vômitos. Paciente se encontra no leito em posição genopeitoral
(figura 3).

16/09/2019: Paciente apresenta melhora com o tratamento empírico


para tuberculose. Solicitada nova TC.

22/09/2019: Realizada nova TC que mostrou reabsorção do derrame


pericárdico e pleural. Apresenta melhora clínica progressiva.

Resumo do Caso: Paciente de 61 anos, hipertensa, diabética, renal


crônica sem hemodiálise, com retinopatia diabética, hérnia de hiato e esofagite
de refluxo. Deu entrada com intensa dor torácica e abdominal, com náuseas e
vômitos, quadro de constipação e suspeita de infeção urinária. Paciente estava
com hiperglicemia, anêmica, hipocorada e com a pressão não controlada. Foi
feita a estabilização clínica e hemodinâmica. Ao exame de imagem foi
diagnosticado moderado derrame pericárdico e foi feita cirurgia eletiva de janela
pericárdica para análise do líquido e biópsia do pericárdio. Após algumas
semanas da cirurgia o derrame pericárdico voltou a se instalar e a paciente
continuou sentindo muita dor retroesternal e vômitos. Os resultados da análise e
biópsia foram todos negativos, inclusive a baciloscopia e cultura para
Mycobacterium tuberculosis. As sorologias para doenças auto-imunes,
reumatológicas e metabólicas também foram todas negativas. Não foi pedido a
Adenosina Deaminase (ADA), não sendo possível afastar diagnóstico de
Tuberculose. Iniciou tratamento empírico para Tuberculose com esquema RIPE
(rifampicina, isoniazida, pirazinamida e etambutol). Paciente apresentou melhora
progressiva após o tratamento com reabsorção do derrame pericárdico e pleural,
sendo confirmado o caso de Pericardite tuberculosa.

Figura 1 - TC de tórax demonstrando moderado derrame pericárdico e leve derrame pleural bilateral.

Figura 2. Radiografia de Tórax evidênciando aumento de área cardíaca e apagamento do seio


costofrênico direito.
Figura 3. (Foto autorizada pela paciente). Paciente em posição genopeitoral

3. DISCUSSÃO

O pericárdio é constituído de duas membranas que envolvem o coração. A


inflamação do pericárdio é chamada de pericardite e pode ser causada por
agressões primárias ao coração ou de forma secundária a doenças sistêmicas.
Pode ser aguda, caracterizando o primeiro episódio da doença, recorrente
quando ocorre o reaparecimento após remissão inicial ou crônica quando o a
duração é superior a três meses, como no caso descrito.

As causas de pericardite são diversas e por muitas vezes não identificadas, no


geral, podemos dividi-las em infecciosas e não infecciosas.
Dentre as infecciosas, são incluídos os vírus, bactérias, fungos e parasitas. A
incidência dos diferentes agentes infeciosos varia significativamente de acordo
com a população estudada e tem prevalência em imunodeprimidos. A pericardite
idiopática é a forma mais comum de apresentação. As causas não infecciosas
incluem etiologias autoimunes, neoplásicas, distúrbios metabólicos e endócrinos
e trauma.

Eventualmente a pericardite cursa com acumulação de líquido na cavidade


pericárdica, entre as duas membranas, chamado de derrame pericárdico. De
acordo com a forma de instalação e com o volume de líquido pode-se gerar um
quadro de Tamponamento Cardíaco, que leva ao choque obstrutivo e se não
tratado pode levar ao óbito.
A partir do quadro clínico e de exames complementares não invasivos é possível
o diagnóstico de derrames e constrições do pericárdio, porém assim como no
caso relatado há dificuldade em definir o agente etiológico e o tratamento pode
se tornar empírico.

Uma das etiologias aonde diagnóstico pode ser difícil é a pericardite causada
pelo Mycobacterium tuberculosis (MT). Dentre as bactérias, o MT é o agente
etiológico mais comum (4-5%) e nos pacientes com

a pericardite por MT é a etiologia mais comum. A pericardite tuberculosa (PT) é


considerada uma apresentação rara de tuberculose extrapulmonar, porém,
continua sendo um problema importante em países em desenvolvimento e em
imunocomprometidos e está associada com uma alta mortalidade e morbidade,
especialmente quando não diagnosticada e tratada corretamente. No caso a ser
relatado, após a exclusão dos demais diagnósticos diferenciais foi iniciado
empiricamente o tratamento para tuberculose.

Pode ser feito o teste tuberculínico (PPD) porém não é tão útil em populações
onde a incidência de tuberculose é alta, como no Rio de Janeiro.

É de suma importância a contagem da atividade da Adenosina deaminase


(ADA). ADA é uma enzima envolvida no metabolismo das purinas. É encontrada
principalmente nos linfócitos T. A contagem da ADA foi o primeiro teste moderno
a melhorar significativamente a precisão e a velocidade do diagnóstico da
pericardite tuberculosa, o seu valor acima de 40 unidades/litro tem uma
sensibilidade de 88% e uma especificidade de 83%. Outros marcadores podem
ser pedidos para aumentar ainda mais a suspeita diagnóstica, como o interferon
gama (INF) e a lisozima pericárdica, porém a ADA continua sendo a mais
acessível e barata.

3. CONCLUSÃO

Em países como o Brasil, onde a incidência de tuberculose é muito alta, a


pericardite tuberculosa deve ser sempre um diagnóstico diferencial nos casos de
pericardite aguda. A associação do quadro clínico de pericardite aguda com um
valor de ADA maior do que 40 unidades/litro e a melhora clínica após a
prescrição do tratamento direcionado pode fechar o diagnóstico. Portanto,
sempre na análise do líquido aspirado após o procedimento da janela
pericárdica, deve ser solicitado também os valores de ADA para ajudar no
diagnóstico ou afasta-lo. Além disso, o tratamento empírico com a rifampicina,
isoniazida, pirazinamida e etambutol pode ser empregado para teste terapêutico
após afastada as outras etiologias.
REFERÊNCIAS

ROBERT O. BONOW et.al - 9th ed. - braunwald's heart disease

Tratado de Cardiologia SOCESP/editores Carlos Costa Magalhães... [et al.]. –


3. ed. – Barueri, SP: Manole, 2015

Canelas C, Carvas JM, Fontoura I, Lemos J. Nem todas as pericardites são


idiopáticas. Galicia Clin 2017; 78 (1): XX-XX

Barbara W. Trautner, Rabih O. Darouiche, Tuberculous Pericarditis: Optimal


Diagnosis and Management, Clinical Infectious Diseases, Volume 33, Issue 7, 1
October 2001, Pages 954–961,

KASPER, Dennis L. et al. Medicina interna de Harrison. 19. ed.

TUON, Felipe Francisco et al. The usefulness of adenosine deaminase in the


diagnosis of tuberculous pericarditis. Rev. Inst. Med. trop. S. Paulo [online].
2007, vol.49, n.3 [cited 2019-10-12], pp.165-170

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