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Uma mulher branca, casada, de 34 anos, consulta por conta de tonteira (reveja o caso 23
desta série).
Eis aí uma situação comum e, ao mesmo tempo, desafiadora, uma vez que as causas
podem ir da prosaica rolha de cera até um processo expansivo impingindo sobre as vias
vestibulares. O médico já viu muitos casos de tonteira e sabe que pode iniciar com duas
abordagens básicas:
Hiperventilação.
Distúrbio psiquiátrico.
Insuficiência vértebro-basilar.
Parkinsonismo/esclerose múltipla.
Doença cardiovascular.
Tipo 2: sensação de quase-síncope (às vezes com síncope), a exigir uma análise
mental.
O quadro começou há cerca de 1 ano, com episódios em que tudo rodava (vertigem,
prescrição de fármacos, uma vez que havia intenção de engravidar. Não iniciou os
semanas. Iniciou então intensa pesquisa para esterilidade conjugal, que só se encerrou
quando foi definido o fator espermático como causa (e isto após a paciente ter sido
O MÉDICO PENSA
O médico começa a tomar notas mentais: A história sugere o tipo 1 (vertigem). Entre as
dia.
durar dias.
simpatiza com a paciente e tudo o que teve que passar até a definição do fator
esterilidade conjugal?).
precoce. Afinal, o quadro cedeu completamente, e não há, até agora, evidência de outro
O médico fica com a hipótese de trabalho de neurite vestibular para o que ocorreu há 1
ano.
iniciou, com melhora limitada. Desde então vem com náusea matinal e sensação
e betaistina. Não há cefaléia, nem acúfenos, mas questionada, a mulher fala em “ouvido
entupido” à esquerda. O questionamento dirigido revela ainda: “parece que tomei
O médico está preocupado. Existe vertigem, e isto aponta para distúrbio das vias
E é por isso que o médico está preocupado. A mulher tem uma vertigem com o “ouvido
Há 10 anos ela havia sido diagnosticada com linfoma de Hodgkin (estágio IA), para o
subclínico e começou a receber l-tiroxina que usa até agora. O médico se sobressalta:
não será uma descompensação do status tireoidiano? Mas logo muda a linha de
raciocínio quando a mulher mostra os exames que fez no último mês (investigação do
glicose, colesterol, TGO, TGP, bilirrubinas e prolactina, todos normais. Sorologias para
sífilis, HIV, HBV, toxoplasmose, CMV, e rubéola negativas. E a gota d`água:
“ouvido entupido” e quase perde o foco, mas se lembra de que o método clínico ainda
EXAME FÍSICO
O teste de sensibilidade tátil e dolorosa na face não revela alterações (mas e a sensação
de “anestesia dentária”?).
O médico sabe que precisa tomar uma decisão. Existe uma vertigem com desequilíbrio
Embora o teste objetivo de sensibilidade tátil e dolorosa na face tenha sido normal, a
com as alterações motoras, em que o paciente pode não perceber algo que já está
“ouvido entupido”.
A PROPOSTA (E O ERRO)
O médico está convicto de que, face aos achados a sugerir comprometimento anatômico
mais amplo, um exame de imagem é necessário. Explica o que achou no exame físico e
fala da necessidade de uma ressonância encefálica. A mulher chora. Diz que sofre de
médico respira fundo e se lembra de tudo o que esta pessoa já passou: a incerteza
vitro. E simpatiza com sua dificuldade. Decide então telefonar para um colega
e o ouvido interno).
ainda sobre o interesse dela em tentar novamente a fertilização in vitro “assim que isto
tudo acabar”. O médico ainda fica sabendo de um irmão da paciente, com deficit
mental, por cujo bem estar ela se sente responsável, e que é foco de desavença familiar.
fóbica?), com contatos telefônicos freqüentes. Uma semana após, a paciente exulta no
família. Ele pediu uma ressonância e eu fiz. Deu alguma coisa e ele disse que eu vou ter
que operar”. O médico está sem chão. Então ela procurou outro colega! Então ela se
submeteu à ressonância! Então havia alguma alteração anatômica afinal! E ele havia se
de uma ressonância. E ele havia suspeitado de uma causa central após seu exame físico
minucioso. Mas sabia que o erro havia sido seu. Havia sido vítima do viés da
afetividade (abriu-se tanto ao sofrimento prévio da paciente que não foi assertivo o
suficiente para obter a ressonância, coisa que o neurologista conseguiu). Havia sido
tomografia. O que fazer? Insistir no método clínico é claro e continuar sendo médico.
EPÍLOGO
A paciente é operada e não entra mais em contato com o médico que, entretanto,
2 meses após, numa noite chuvosa, um telefonema. É o marido da paciente (que a havia
acompanhado a todas as consultas). Ela está em casa, com dificuldade respiratória que
tomando. Tem uma disfagia grave (e ainda há pouco, os parentes tentavam alimentá-la
pela boca!). Não anda. Está taquicárdica (120/min), taquipnéica (40/min), hipoxêmica
(SpO2=75%), e com crepitações até o terço médio do hemitórax direito. Está lúcida,
providencia remoção para o hospital. Na saída, deitada na maca, ela diz: “muito
O médico entende que, desde a cirurgia, não havia um médico de referência, todo
(temozolamida). Acima de tudo, não havia orientação quanto a cuidados com as vias
aéreas ou mesmo quaisquer cuidados especiais. O médico se lembra dos planos para
uma gravidez e de toda a história passada. Sente o peso que a medicina pode exercer
em algumas ocasiões. Sente que ali acabou de aprender algo que vai muito além de um
diagnóstico diferencial. Sente-se mais velho de repente e muito, muito cansado. Mas
ainda tem uma última tarefa. Senta-se e começa a redigir uma carta de condolências.
SUGESTÃO DE LEITURA: