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CASO Nº 29 – “EU PAREI DE MELHORAR”

A TONTEIRA QUE DEIXA O MÉDICO TONTO

Uma mulher branca, casada, de 34 anos, consulta por conta de tonteira (reveja o caso 23

desta série).

Eis aí uma situação comum e, ao mesmo tempo, desafiadora, uma vez que as causas

podem ir da prosaica rolha de cera até um processo expansivo impingindo sobre as vias

vestibulares. O médico já viu muitos casos de tonteira e sabe que pode iniciar com duas

abordagens básicas:

1. Priorização por freqüência (as 7 mais):

 Distúrbio vestibular periférico.

 Hiperventilação.

 Múltiplos déficits sensitivos.

 Distúrbio psiquiátrico.

 Insuficiência vértebro-basilar.

 Parkinsonismo/esclerose múltipla.

 Doença cardiovascular.

2. Classificação sintomática de acordo com as categorias de Drachman:

 Tipo 1: sensação rotatória verdadeira (vertigem), a exigir uma análise vestibular

tanto periférica quanto central.

 Tipo 2: sensação de quase-síncope (às vezes com síncope), a exigir uma análise

do ritmo cardíaco e do metabolismo.

 Tipo 3: sensação de desequilíbrio ao andar, a exigir uma análise detalhada do

sistema nervoso central e periférico.


 Tipo 4: sensação de “cabeça ruim”, a exigir uma análise detalhada do estado

mental.

Prepara-se então para a entrevista.

A MULHER CONTA SUA HISTÓRIA

O quadro começou há cerca de 1 ano, com episódios em que tudo rodava (vertigem,

portanto), mais vespertinos, com náusea e vômitos. Avaliação otorrinolaringológica,

então, redundou numa orientação para exercícios de reabilitação vestibular sem

prescrição de fármacos, uma vez que havia intenção de engravidar. Não iniciou os

exercícios e o quadro cedeu espontaneamente (e completamente), após cerca de duas

semanas. Iniciou então intensa pesquisa para esterilidade conjugal, que só se encerrou

quando foi definido o fator espermático como causa (e isto após a paciente ter sido

submetida a muitas e desconfortáveis investigações!). Houve uma tentativa de

fertilização in vitro, que foi frustrada.

O MÉDICO PENSA

O médico começa a tomar notas mentais: A história sugere o tipo 1 (vertigem). Entre as

7 mais, destacam-se (pelo sexo e idade): distúrbio vestibular periférico, distúrbio

psiquiátrico (vertigem fóbica), e esclerose múltipla. Qual distúrbio vestibular

periférico? O que escolher entre:

 Vertigem paroxística posicional benigna (VPPB): vertigem fugaz, mas intensa,

às mudanças de posição, geralmente presente ao se levantar pela manhã. Cada

episódio durando segundos.


 Enxaqueca: geralmente existe a cefaléia. Cada episódio dura horas até talvez 1

dia.

 Síndrome de Menière: acúfenos e hipoacusia acompanham. Cada episódio pode

durar dias.

 Neurite vestibular: vertigem mantida por semanas.

Distúrbio psiquiátrico não pode ser afastado, principalmente levando-se em conta o

impacto emocional de uma tentativa (frustrada) de gravidez. A propósito, o médico

simpatiza com a paciente e tudo o que teve que passar até a definição do fator

espermático (o espermograma não deveria ser uma das primeiras investigações de

esterilidade conjugal?).

Esclerose múltipla é possível (é uma mulher jovem), mas ainda é um pensamento

precoce. Afinal, o quadro cedeu completamente, e não há, até agora, evidência de outro

comprometimento neurológico afastado no tempo e na localização anatômica.

O médico fica com a hipótese de trabalho de neurite vestibular para o que ocorreu há 1

ano.

MAS EXISTE ALGO NOVO AGORA

Há cerca de 2 meses iniciou com forte vertigem matinal. Nova consulta

otorrinolaringológica levou à recomendação de exercícios de reabilitação vestibular, que

iniciou, com melhora limitada. Desde então vem com náusea matinal e sensação

rotatória que a impede de sair sozinha, a despeito de prescrição de piracetam, cinarizina,

e betaistina. Não há cefaléia, nem acúfenos, mas questionada, a mulher fala em “ouvido
entupido” à esquerda. O questionamento dirigido revela ainda: “parece que tomei

anestesia dentária do lado esquerdo”.

O médico está preocupado. Existe vertigem, e isto aponta para distúrbio das vias

vestibulares. Mas vias periféricas (muito mais comumente afetadas) ou centrais? A

lembrança das diferenças está clara:

 Vertigem periférica: latência, adaptação, fatigabilidade (ou seja, os episódios,

espontâneos ou provocados pela manobra de Dix-Hallpike, demoram um tempo

a aparecer, cessam espontaneamente após um tempo, e diminuem em

intensidade após provocações repetidas).

 Vertigem central: atenção para os acompanhantes (disartria, diplopia, ataxia,

alterações sensitivas na face, síndrome de Horner, deficit motor), que indicam

que estruturas centrais vizinhas também estão envolvidas.

E é por isso que o médico está preocupado. A mulher tem uma vertigem com o “ouvido

entupido” (hipoacusia?) e com possível hipoestesia na hemiface esquerda

(comprometimento do trigêmio?). Será um caso de vertigem central?

MAS A HISTÓRIA CONTINUA

Há 10 anos ela havia sido diagnosticada com linfoma de Hodgkin (estágio IA), para o

qual recebera radioterapia mediastinal como único tratamento, sendo considerada

curada. Há 1 ano, na investigação da tonteira, foi diagnosticada com hipotireoidismo

subclínico e começou a receber l-tiroxina que usa até agora. O médico se sobressalta:

não será uma descompensação do status tireoidiano? Mas logo muda a linha de

raciocínio quando a mulher mostra os exames que fez no último mês (investigação do

otorrino): radiografia de coluna cervical, TSH, T4 livre, hemograma, uréia, creatinina,

glicose, colesterol, TGO, TGP, bilirrubinas e prolactina, todos normais. Sorologias para
sífilis, HIV, HBV, toxoplasmose, CMV, e rubéola negativas. E a gota d`água:

audiometria e vectoeletronistagmografia normais! O médico se pergunta sobre o

“ouvido entupido” e quase perde o foco, mas se lembra de que o método clínico ainda

não acabou. E passa para o:

EXAME FÍSICO

As únicas alterações encontradas no exame físico de abordagem (durante o qual a

paciente se mostra muito tensa) são:

 Marcha com alguma látero-pulsão (para a direita).

 Aparente diminuição da sensibilidade corneana à esquerda.

 Manobra de Dix-Halpike equívoca.

O teste de sensibilidade tátil e dolorosa na face não revela alterações (mas e a sensação

de “anestesia dentária”?).

O médico sabe que precisa tomar uma decisão. Existe uma vertigem com desequilíbrio

de marcha (ataxia) e sensibilidade corneana diminuída de um lado (esta última

considerada o sinal mais precoce de comprometimento do ângulo ponto-cerebelar).

Embora o teste objetivo de sensibilidade tátil e dolorosa na face tenha sido normal, a

paciente confirma a sensação de “anestesia dentária”. O médico sabe que

comprometimentos sensitivos são geralmente notados pelos pacientes bem antes de

alterações objetivas aparecerem no exame físico (exatamente o contrário do que ocorre

com as alterações motoras, em que o paciente pode não perceber algo que já está

evidente no exame físico). E, a despeito da audiometria normal, a mulher confirma o

“ouvido entupido”.

A PROPOSTA (E O ERRO)
O médico está convicto de que, face aos achados a sugerir comprometimento anatômico

mais amplo, um exame de imagem é necessário. Explica o que achou no exame físico e

fala da necessidade de uma ressonância encefálica. A mulher chora. Diz que sofre de

claustrofobia e não vai conseguir fazer o exame. Pergunta se não há alternativa. O

médico respira fundo e se lembra de tudo o que esta pessoa já passou: a incerteza

diagnóstica e a angústia da certeza de Hodgkin; o tratamento radioterápico; a extensa e

dolorosa investigação de esterilidade conjugal; a frustrada tentativa de fertilização in

vitro. E simpatiza com sua dificuldade. Decide então telefonar para um colega

radiologista e expor a situação, explicando o caso clínico e perguntando sobre o papel

de uma TC para sua suspeita de um processo do ângulo ponto-cerebelar. O colega fala

na boa definição da TC espiral, e resolvem fazê-la (com foco no ângulo ponto-cerebelar

e o ouvido interno).

A mulher faz o exame no dia seguinte e o resultado é normal.

Médico e paciente ficam aliviados. O médico volta a se lembrar da hipótese inicial de

neurite vestibular e da grande tensão da mulher durante o exame físico. Conversam

ainda sobre o interesse dela em tentar novamente a fertilização in vitro “assim que isto

tudo acabar”. O médico ainda fica sabendo de um irmão da paciente, com deficit

mental, por cujo bem estar ela se sente responsável, e que é foco de desavença familiar.

Concordam em começar prednisona (neurite vestibular?) e clonazepam (vertigem

fóbica?), com contatos telefônicos freqüentes. Uma semana após, a paciente exulta no

telefone: “melhorei muito, e já estou saindo sozinha”. Combina-se um desmame dos

fármacos. O médico se sente feliz.

OS CAMINHOS NEM SEMPRE SÃO CLAROS


A paciente não dá mais notícias. 10 dias após, o médico telefona. A história que ouve é

aterradora: “eu parei de melhorar e procurei um neurologista por insistência da minha

família. Ele pediu uma ressonância e eu fiz. Deu alguma coisa e ele disse que eu vou ter

que operar”. O médico está sem chão. Então ela procurou outro colega! Então ela se

submeteu à ressonância! Então havia alguma alteração anatômica afinal! E ele havia se

disposto a um acompanhamento tão próximo. E ele havia procurado evitar o sofrimento

de uma ressonância. E ele havia suspeitado de uma causa central após seu exame físico

minucioso. Mas sabia que o erro havia sido seu. Havia sido vítima do viés da

afetividade (abriu-se tanto ao sofrimento prévio da paciente que não foi assertivo o

suficiente para obter a ressonância, coisa que o neurologista conseguiu). Havia sido

vítima também do viés da autoridade, quando aceitou como final o resultado da

tomografia. O que fazer? Insistir no método clínico é claro e continuar sendo médico.

O paciente solicita vistas à ressonância e o resultado é dramático: lesão expansiva sólida

na porção inferior do IV ventrículo, com efeito compressivo sobre bulbo e ponte e

moderada hidrocefalia supratentorial. Aspecto heterogêneo e microcístico. Realce

periférico e irregularidade com necrose central ao contraste. Daí a resposta inicial ao

corticóide (a redução do edema e a melhora sintomática fugaz)!

EPÍLOGO

A paciente é operada e não entra mais em contato com o médico que, entretanto,

telefona para saber notícias. A histopatologia é muito preocupante: ganglioma

anaplásico. O médico se coloca à disposição, mas não é mais procurado.

2 meses após, numa noite chuvosa, um telefonema. É o marido da paciente (que a havia

acompanhado a todas as consultas). Ela está em casa, com dificuldade respiratória que

começou hoje. O médico poderia ir vê-la? Ele vai. O quadro é desesperador. A


mulher está deformada pelo hábito cushingóide das altas doses de corticóide que vem

tomando. Tem uma disfagia grave (e ainda há pouco, os parentes tentavam alimentá-la

pela boca!). Não anda. Está taquicárdica (120/min), taquipnéica (40/min), hipoxêmica

(SpO2=75%), e com crepitações até o terço médio do hemitórax direito. Está lúcida,

porém. O quadro tem poucas alternativas: pneumonia aspirativa ou TEP. O médico

providencia remoção para o hospital. Na saída, deitada na maca, ela diz: “muito

obrigada”. Falece no dia seguinte.

O médico entende que, desde a cirurgia, não havia um médico de referência, todo

contato sendo a renovação de um antineoplásico oral que vinha recebendo

(temozolamida). Acima de tudo, não havia orientação quanto a cuidados com as vias

aéreas ou mesmo quaisquer cuidados especiais. O médico se lembra dos planos para

uma gravidez e de toda a história passada. Sente o peso que a medicina pode exercer

em algumas ocasiões. Sente que ali acabou de aprender algo que vai muito além de um

diagnóstico diferencial. Sente-se mais velho de repente e muito, muito cansado. Mas

ainda tem uma última tarefa. Senta-se e começa a redigir uma carta de condolências.

Só então poderá descansar.

SUGESTÃO DE LEITURA:

 Drachman DA. A 69-year-old man with chronic dizziness. JAMA

1998;280:2111-21118 (neste artigo histórico, o Dr Drachman descreve

detalhadamente os 4 tipos básicos de tonteira)

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