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Νεκροµαντεῖον

quarta-feira, 7 de julho de 2021

Comentário curto ao "Górgias" de Platão - parte 5 (final)

"Cálicles lembrou a Sócrates repetidamente do destino que o aguardava nas mãos da


corte ateniense. Em uma resposta final, Sócrates diz que preferia antes morrer com a
alma justa do que ir para o além com uma alma cheia de injustiça. Pois este seria o
último e o pior de todos os males."

ERIC VOEGELIN, Order and History: Plato and Aristotle, p. 39

Nessa altura do diálogo, Sócrates pergunta a Cálicles para qual serviço do Estado ele o
convidava. Seria o de um médico da cidade, buscando melhorar os cidadãos, ou o de
servo ou lisonjeador do Estado? Cálicles responde que seria o segundo caso, e repete a
advertência de que o tirano poderia matar o filósofo e tomar os seus bens, ou ainda,
Sócrates poderia ser chamado injustamente à corte de justiça.

Sócrates conhece esse perigo, mas adverte Cálicles de que é o único que pratica a real
arte da política em Atenas. Somente ele tem em vista o bem dos cidadãos e não a mera
satisfação dos desejos da cidade. O filósofo seria julgado em uma corte de justiça como
seria julgado um médico que receita medidas e remédios desagradáveis aos seus
pacientes tendo em vista somente a saúde destes. Ele não poderá apresentar uma série
de agrados feitos às vontades dos cidadãos da cidade como fazem os lisonjeadores do
:
povo.

E de nada adiantaria, na corte, defender-se dizendo que tudo o que fez foi por amor à
justiça, se o acusassem de corromper a juventude e falar mal dos antigos. Sócrates
morreria (como, de fato, morrerá) por não possuir os talentos da lisonja e da retórica.
Porém, a morte Sócrates não teme, só o agir errado. Pois o pior dos destinos é descer ao
Hades cheio de injustiças cometidas em vida.

Para provar o último ponto, Sócrates propõe uma história que acredita ser ver verdadeira.
Nos dias de Cronos, havia uma lei, segundo a qual aqueles que viveram esta vida em
justiça seriam enviados à Ilha dos Bem-Aventurados, e, ao contrário, aqueles que
viveram esta vida injustamente seriam enviados ao Tártaro. O julgamento se dava no
próprio dia da morte dos homens, estando estes e os juízes vivos. A consequência era
que os julgamentos não eram bem feitos.

Os corpos e as vestes agiam como véus que escondiam dos juízes as almas manchadas
pela injustiça. Zeus, então, determinou primeiramente que os homens não mais
soubessem o dia de sua morte, e que o julgamento acontecesse somente com os
homens e os juízes igualmente nus, isto é, mortos. Minos e Radamante julgariam os
asiáticos e Aecus julgaria os europeus.

Sendo a morte a separação do corpo e da alma, esta traria em si as marcas da vida


pregressa, bem como as afecções naturais e as adquiridas no transcurso da vida. as
almas manchadas e marcadas pela injustiça, pela falsidade, pela impostura, pela
licenciosidade, pela luxúria e pela insolência seriam enviadas por Radamante ao Tártaro
para sofrerem o castigo merecido. E quem é castigado corretamente deve se tornar
melhor ou servir de exemplo aos outros homens por suas penas e seus sofrimentos.

Alguns homens melhoram com os castigos, e são considerados curáveis, mas outros, os
culpados de grandes e de graves crimes, não se tornam melhores com o castigo, pois
são incuráves. Eles se tornam exemplos para os outros por sua pena eterna, e Sócrates
diz ter certeza que entre estes encontram-se Arquelaus, admirado por Polos, e tiranos,
reis, potentados e homens públicos. Pois Homero confirma isso ao não colocar Tersites
no Tártaro, mas sim os reis Tântalo e Sísifo. O homem comum não comete grandes
crimes. Os piores homens vêm da classe daqueles que detêm o poder.

Então, Sócrates diz, o desejo da verdade é seu único desejo, além de viver uma vida boa
moralmente. E o filósofo exorta Cálicles (e a todos os homens) a fazer o mesmo,
entrando no combate da vida, que é maior do que qualquer conflito terreno.
Posteriormente, Sócrates reafirma as verdades de que cometer injustiça é pior do que
sofrer injustiça e de que a virtude deve ser buscada sobre todas as coisas, na vida
pública ou na vida privada.

Simbolicamente, o mito final do Górgias significa, cremos, o desvelamento profundo da


consciência diante do juiz final. Estar morto é como estar nu porque sem as vestes e sem
o corpo, nenhuma das vantagens e das desvantagens puramente terrenas contam mais.
:
O que há é a alma no seu mais profundo estrato desprovida das ilusões do mundo,
trazendo em si mesma as marcas de suas ações morais. Na morte não há mais
possibilidades de mudança, tudo está eternizado.

Sócrates, com o mito, solicita que Cálicles reveja a sua decisão fundamental diante da
vida. Ele deve imaginar-se morto e diante de um juiz supremo para avaliar o transcurso
de sua vida e perceber o sentido que ela desvela. Memento mori. Lembrar da morte é
lembrar o caráter eterno das decisões tomadas. Nada mais pode ser feito, tudo está dado
definitivamente. No fundo, a questão socrática é saber qual é a vida boa, a vida que
merece ser vivida.

Górgias pretende ensinar a persuasão sem ter em conta a justiça, Polus só enxerga o
poder discricionário e arbitrário que o orador e o homem de Estado possuem, e Cálicles
almeja viver irrefreadamente de acordo com todos os seus desejos. Influência, poder e
desejo são os valores determinantes nesses personagens. Mas em Sócrates a busca da
virtude é o centro da vida filosófica.

A intenção de Sócrates é penetrar na consciência mais profunda de seus interlocutores,


passando pela crosta criada pelos apegos do corpo, do sucesso e do poder. Ele é o
psicopompo que guia a alma de seu oponente ao seu destino final no Hades,
antecipando em vida o juízo que dar-se-á na morte. A esperança é que o interlocutor
perceba, diante da morte ainda imaginada, o erro de sua opção de vida fundamental.

(fim do comentário)

...

Leia também:

Νεκροµαντεῖον: Comentário curto ao "Górgias" de Platão - parte 1 (oleniski.blogspot.com)

Νεκροµαντεῖον: Comentário curto ao "Górgias" de Platão - parte 2 (oleniski.blogspot.com)

Νεκροµαντεῖον: Comentário curto ao "Górgias" de Platão - parte 3 (oleniski.blogspot.com)

Νεκροµαντεῖον: Comentário curto ao "Górgias" de Platão - parte 4 (oleniski.blogspot.com)

Immanuel Rosenkreuz às 19:08

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