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BASES DA ESTRUTURA

SOCIAL CRISTÃ

Antes de continuar o tema da aula anterior sobre o


Sermão da Montanha, precisamos mostrar como o
assunto que estávamos tratando nos permite esboçar a
estrutura do tecido social cristão dentro de um
contexto histórico e do problema da reprimarização da
sociedade. Depois do que continuaremos a análise
iniciada do Sermão da Montanha. Neste comentário
paralelo eu gostaria de chamar a atenção para algumas
coisas muito importantes.
Estávamos vendo que o Evangelho de São Mateus
conta a história de Jesus, de seu nascimento, morte e
ressurreição, mas é muito evidente que o São Mateus
tinha alma de teólogo. Mateus vai contando os fatos e
narrando os ensinamentos de Jesus de uma maneira
onde se percebe claramente que ele vai aprofundando
o assunto como se estivesse desenvolvendo um tema e
não apenas contando fatos apenas pelos fatos. E, nesse
sentido, o Sermão da Montanha, já no começo do
Evangelho de São Mateus, é muito significativo
porque ele dá uma espécie de um resumo do miolo da
doutrina de Jesus que depois vai ser aprofundado ao
longo do restante do Evangelho.
Então, eu estava chamando a atenção que existem
três temas fundamentais no Sermão da Montanha e
que esses três temas fundamentais estão relacionados,
não apenas com a espiritualidade, mas também com a
construção de uma sociedade cristã. E isto é muito
importante porque no último milênio a sociedade está
sendo desconstruída para ser reconstruída com outros
fundamentos. Nesse último milênio estamos
desconstruindo a sociedade que Jesus veio trazer. Já
comentamos que a vinda de Jesus hacia sido
profetizada pelo profeta Daniel quando ele viu aquela
estátua do sonho de Nabucodonosor que tinha quatro
partes. A cabeça era de ouro, o peito era de prata, a
cintura era de bronze e os pés eram de barro. Daniel
explicou que estas partes eram quatro impérios
mundiais sucessivos: a Babilônia, os persas, os gregos
e os romanos, e que quando viesse o dos romanos,
seria atirada uma pedra que viria do céu e que se
chocaria contra a base da estátua que seria o império
romano. Então a estátua ruiria como se fosse pó e o
reino que teria inicio não teria mais fim. Era o
advento do Messias.
Mas neste ponto eu estava me perguntando como é
que podiria ser isto se, quando esta pedra se chocasse
contra a base da estátua, o sonho dizia que a estátua
inteira ruiria. Mas segundo a interpretação de Daniel,
quando isto acontecesse, praticamente a estátua inteira
já teria desaparecido. Só estaria presente a base da
estátua porque a cabeça da estátua era o Império
Babilônico, o peito era o Império Persa e a cintura era
o Império Grego, e na época do Império Romano estes
três primeiros impérios já não mais existiam e a
estátua, portanto, apenas teria os pés. Como é que a
estátua inteira iria ruir se ela praticamente já não
existia e só tinha os pés? Eu entendo como resposta
que na verdade a estátua inteira tinha uma só lógica,
que era a lógica do paganismo, a lógica da sociedade
pagã. A sociedade pagã era construída sobre o império
do mais forte, não tinha leis que governavam a todos,
não tinha constituições, a verdadeira lei era a vontade
do soberano e a vontade do soberano estava acima de
qualquer outra coisa. Estes faziam o que queriam e
impunham o que queriam e isto vinha pela força e
basicamente pela força militar, não se tratava sequer
em última análise da força econômica. Era, ademais,
uma sociedade de costumes extremamente bárbaros
que hoje, mesmo com toda a corrupção que ainda
temos, nós não estaríamos preparados para viver em
um mundo como aquele. Isso tudo foi substituído por
uma outra ordem, a ordem cristã.
A ordem cristã durou mais ou menos um milênio e
começou a ser desmontada por volta do ano de 1.300.
Embora no início fosse um processo lento, a partir do
ano de 1.300 começou um desmonte sucessivo. O
processo formalizou-se pela primeira vez em 1648
quando se fizeram os Tratados de Westfália. Os
Tratados de Westfália estabeleceram uma nova Ordem
Mundial, explícita e documentada, que não era mais a
cristã. A cristã não estava no papel, a cristã era
consequência da pregação do Evangelho e dos
próprios princípios que Jesus imprimiu à sociedade
que adotasse o cristianismo. É justamente desses
princípios que nós estávamos falando nas últimas
semanas.
Com os Tratados de Westfália instaurou-se
explicitamente uma nova ordem mundial. Tentou-se
manter esta ordem mais ou menos até o final da I
Guerra Mundial. No final da I Guerra Mundial, as
grandes fundações e outras organizações entenderam
que a ordem de Westfália não servia mais. Seria
necessário construir um governo único mundial, e
substituir a ordem de Westfália por uma outra ordem
na qual está-se trabalhando até hoje.
Isto daí é impulsionado em grande parte, o grande
motor desta nova ordem, tanto a westfaliana como
esta nova, é o sistema financeiro. O sistema financeiro
está substituindo como célula do tecido social, a
estrutura famíliar, tomada em um sentido amplo, pela
empresa. Ou dito em outras palavras, está-se
substituindo uma sociedade primária por uma
sociedade secundária. Examinadas as coisas sob esse
ponto de vista, aí está a causa estrutural do grande
problema da cultura da morte. A cultura da morte é
necessária para você acelerar e aperfeiçoar esta nova
ordem que está sendo construída. Não é possível
construir completamente o que se pretende sem a
Cultura da Morte.
Visto sob esta ótica, o grande problema da Igreja e
da sociedade é que nós estamos indo na direção de um
novo tipo de escravidão que irá resultar dessa nova
ordem, muito mais terrível do que as que já vieram, e
isto está acontecendo basicamente porque nós
abandonamos a ordem cristã que foi a única capaz de
dissolver o velho paganismo com todas as suas
consequências sociais. Assim, será importante
examinarmos claramente como a mensagem do
Sermão da Montanha pode repercutir sobre a estrutura
social e como podemos usar disso para aprender a
reprimarizar a sociedade, que é o assunto que temos
tratado. Uma consequencia disto é que se realizarmos
um trabalho a favor da vida, o que certamente é
necessário e maravilhoso, isto entretanto não irá deter
o movimento social em direção à cultura da morte,
apenas irá retardar o seu desenvolvimento. Somente
seria possível obter resultados que revertessem o
processo se nós entendermos como funcionava e o
que faz funcionar a estrutura de uma sociedade cristã.
Era disto que estávamos falando e eu lhes chamava
a atenção de que existem três grandes aspectos no
Sermão da Montanha que são chaves para a
mensagem cristã. Eu quero falar daqui a pouco como
estas coisas repercutem na estrutura social se forem
vividas do modo correto.
Neste sentido, a primeira coisa que se observa no
Sermão da Montanha e no Evangelho de São Mateus é
o mandamento de ensinar. Assim que Jesus desce do
monte das tentações, antes de pregar praticamente
qualquer coisa, ele chama os pescadores e os convida
a serem pescadores de homens. Eles aceitam e isto
ocorre praticamente antes de haver sido ensinado
qualquer doutrina. Depois, ao longo do Evangelho
Jesus se refere várias vezes ao mandamento de
ensinar. Ele diz no Sermão da Montanha que o maior
no Reino dos céus é aquele que ensinar a muitos, não
apenas aquele que cumprir os mandamentos, mas
também que os ensinar a muitos. E, ao encerrar o
próprio Evangelho, Jesus diz, como o seu último
desejo, que vamos e ensinemos a todas as pessoas.
Então, este mandamento, esta vontade de ensinar a
todos, esta compulsão de ensinar a todos numa
sociedade cristã é mais ou menos o equivalente em
uma sociedade sociedade moderna do impulso de
montar uma empresa para ter lucro.
A sociedade moderna, a sociedade que está
baseada na revolução industrial, está baseada no
desejo de lucro. Os bancos emprestam dinheiro para
as pessoas que são empresários em potencial e ao
fazerem isto os sistema financeirto está explorando o
desejo deles ganhar dinheiro e lhes estão dando os
recursos para ganhar dinheiro. Com estes recursos
montam uma empresa, expandem a empresa, cresce a
empresa, abrem-se as filiais, alcança-se o monopólio,
tornam-se megaempresários, milionários, bilionários e
quanto mais eles tem, mais querem ganhar. É assim
que se expande a estrutura empresarial que é o tecido
básico da sociedade moderna.
Numa sociedade cristã, a força que a conduz para
adiante não é o desejo de lucro, mas é o desejo de
ensinar e isso é bem característico do cristianismo. As
religiões antigas, como o hinduísmo e o budismo e
outras religiões orientais não havia este desejo de
ensinar a todos. Este mandamento de ensinar é típico
do cristianismo. Veio com o cristianismo e nós nos
acostumamos tanto com esta idéia, apesar de não
estarmos mais acostumados com a prática, que
achamos que trata-se de algo normal e óbvio, mas a
história mostra que não se trata de algo normal nem
óbvia, trata-se de uma grande novidade que mudou o
mundo. Então, esse é o primeiro elemento.
O segundo elemento que já está no Sermão da
Montanha é uma moral elevada. Jesus fala dela
quando diz que se a nossa vida moral, a nossa justiça,
não for maior do que a dos fariseus e dos escribas, que
eram as pessoas religiosas da época, nós não
conseguiremos entrar no reino dos céus. O primeiro
capítulo do Sermão da Montanha é todo dedicado a
preceitos morais levados a um grau de pureza e
sublimidade muito maiores que os correntes, e
existem outros que não estão no Sermão da Montanha,
como por exemplo, a sublimidade com que São Paulo,
na Epístola aos Efésios, fala do casamento, do modo
como o marido deve tratar a esposa e a esposa deve
tratar o marido. São coisas de uma sublimidade que o
mundo antigo não conhecia e fazem parte da moral
cristã.
Esta moral que Jesus exige é um pré-requisito para
que nós possamos entrar no reino dos céus, do que ele
chama de reino dos céus, e esta entrada no reino dos
céus é o terceiro elemento que está no Sermão da
Montanha. No Sermão Jesus fala constantemente de
entrar no reino dos céus e disso tamém se fala em todo
o Evangelho. No capítulo 18 de Mateus, bem mais
adiante, quando temos uma discussão em que os
apóstolos começam a discutir quem será o maior no
reino dos céus, Jesus chama uma criança, e antes de
responder quem é maior no reino dos céus ele diz: “Se
vocês não se converterem e se tornarem como uma
criança, vocês não entrarão no reino dos céus”. Em
vez de ele responder quem é o maior, ele primeiro
coloca o problema: “Podemos dicutir quem é o maior
no Reino dos Céus, mas antes é necessário entrar
nele. Vocês não estão compreendendo o tamanho da
pergunta que estão fazendo. Antes de discutirem
quem é o maior, é preciso entrar primeiro. Se estamos
fora não adianta discutir quem é o maior, nem dentro
estamos”. Trata-se de um tema que, com esta
linguagem ou equivalente, está em todo o Evangelho.
Notem que quando Jesus diz para ‘procurarmos
entrar pela porta estreita’, ele não se utiliza da
palavra passar, mas entrar. Ele nos está dizendo que
essa entrada é uma porta estreita e são poucos os que
entram. Quando porém nos damos ao trabalho de
investigar onde Jesus nos ensina como entrar em
alguma coisa, veremos que ele está dizendo que há um
lugar onde se entra pela oração. O sexto capítulo do
Evangelho de Mateus, que é o segundo do Sermão da
Montanha, é o lugar onde ele começa explicar como
se entra em algum lugar, e esse lugar é aí chamado de
'nosso quarto': ‘Quando forem rezar, entrem no
quarto, fechem a porta, vão para o lugar escondido
onde o Pai lhes vê e lhes recompensa’. É aí que em
seguida Jesus ensina o Pai Nosso.
Esta passagem é o miolo da terceira parte. Jesus
nos quer dizer que a vida moral, a simplicidade de
criança, que é ao que uma vida moral bem conduzida
acaba levando, é o requisito para se poder rezar e é
através da oração que nós entramos no reino dos céus.
Então é através da oração que se alcança aquela
espiritualidade que acaba nos dando a autoridade de
nos tornarmos filhos de Deus. Temos, portanto, estes
três elementos básicos no Sermão da Montanha: o
primeiro é o desejo de ensinar, e este vem antes
porque só aprende quem deseja ensinar. Por isto este
primeiro elemento deveria ser caracteristico das
pessoas da sociedade cristã. Assim como não existe
sociedade capitalista sem empresários querendo
ganhar dinheiro, não pode existir sociedade cristã se
não houver pessoas desejando ensinar. Em segundo
lugar exige-se uma moral elevada, uma conversão
para uma moral elevada que nos conduza a uma
simplicidade de criança, e isto será o requisito para a
vida espiritual. Sem que sejamos como uma criança
nós não conseguiremos rezar. E a oração é
indubitavelmente a terceira e a mais profunda das três
partes. Pode-se constatar o mesmo ensinamento nos
textos textos de Santa Tereza quando ela afirma que
temos dentro de nós sete moradas, mas a partir da
segunda só é possível entrar pela oração. Sem uma
prática profunda de oração, na melhor das hipóteses,
ficamos presos na primeira. Pela conversão, à qual
Jesus também se refere no Sermão, pode-se alcançar o
estado de graça e entrar pelo menos na primeira das
moradas, mas dali para frente o caminho é
basicamente pela profundidade da oração.
Esta caminhada está resumida, nas suas etapas, nas
bem-aventuranças. Antes destas coisas que estou
mencionando estarem no Sermão da Montanha, há
nele uma parte introdutória que são as bem-
aventuranças. Nas bem-aventuranças, que são o
pórtico de entrada do Sermão da Montanha, Jesus
descreve as etapas que a pessoa percorre para poder
realizar o que ele quer. Se examinarmos as bem-
aventuranças sob esse ponto de vista, vamos encontrar
o seguinte: a primeira bem-aventurança é “bem-
aventurados os pobres pelo Espírito porque deles é o
reino dos céus”. Aqui eu chamo a atenção que no
original não está escrito ‘pobres de espírito’, mas
‘pobres pelo Espírito’. Este ‘Espírito’ é o Espírito
Santo, e não uma daquelas três partes que compõe o
ser humano de que que São Paulo fala na Epístola aos
Tessalonicenses, o corpo, a alma e espírito (soma,
psiquê e pneuma). O espírito da primeira bem
aventurança não é o espírito do homem. O espírito da
primeira bem-aventurança é o Espírito Santo. Quando
traduzimos o texto como ‘pobres de espírito’ não
percebemos este fato. Em vez disto, achamos que a
primeira bem aventurança se refere a uma pessoa que
tem um espírito de pobre, mas na verdade o sentido se
refere àquelas pessoas que de alguma maneira foram
alcançadas pela luz do Espírito Santo e elas
perceberam a sua pobreza. São aquelas pessoas que
perceberam que tudo o que elas fizeram na vida não
vale quase nada diante de Deus e nas coisas
verdadeiramente importantes ela é pobre. São pessoas
que sabem que lhes está faltando a coisa mais
importante, e quem as está fazendo perceber isto é o
Espírito Santo que a está iluminando. Portanto estas
pessoas estão procurando aprender. Se elas encontram
alguém que sabe ensinar, elas irão ouvir com avidez.
Estas pessoas são as que Jesus privilegia, são essas
pessoas que vão acabar alcançando o reino de Deus,
são estas aquelas pessoas que por uma graça sabem,
sentem, percebem a sua pobreza.
A segunda bem-aventurança no texto original
original é a dos que choram. Nas versões que temos
em portugues a segunda bem aventurança é a dos
mansos, mas no original grego lemos a dos que
choram. “Bem-aventurados os que choram porque
serão consolados”. Isto querr nos dizer que este
chorar, aparentemente, é uma consequência da
pobreza pelo Espírito. À medida que a luz se
aprofunda, começamos não só a perceber o quanto
somos pobres, mas também passamos a chorar:
‘Quanto tempo eu perdi em minha vida. Somente
agora compreendo o que deveria ter feito. Por que eu
não o fiz antes?’ Maravilha. Estas pessoas é que serão
consoladas. Elas encontrarão alguma coisa.
E então vem a terceira bem aventurança: “Bem-
aventurados os mansos porque possuirão a terra”. No
texto original os mansos não são os dotados apenas de
mansidão, são pessoas gentis. O texto grego diz
“bem-aventurados os praéis”. Os praéis, isto é,
aqueles que têm praítes, são pessoas de uma gentileza
que entendemos aqui tratar-se de uma gentileza
sobrenatural. Trata-se daquela calma, daquela
paciência, daquela educação, daquela alegria, daquele
fino trato que vemos naqueles que já começaram a
caminhar na vida cristã. Isto é algo nitidamente
perceptível nestas pessoas.
Prosseguindo as bem-aventuranças perceberemos
que elas estão seguindo a lógica do resto do Sermão
da Montanha. “Bem-aventurados os que têm fome e
sede de justiça porque eles serão alimentados
fartamente”. Eles serão saciados, ou melhor
interpretando, eles serão alimentados com fartura. São
aquelas pessoas que realmente depois de ter passado
pelas três primeiras, estão em busca de uma
verdadeira conversão de costumes. Têm fome e sede
de justiça. Elas admiram nas pessoas santas, nas
pessoas que são os exemplos do cristianismo, o
heroísmo das virtudes, a bondade, a paciência, a
candura, a castidade, a simplicidade, etc., e elas têm
fome de praticar estas mesmas virtudes. Não estão
ainda imitando a vida espiritual, porque para isto elas
têm que primeiro adquirir aquela justiça sem a qual
não conseguimos mergulhar na oração. Portanto,
começam a ter esta fome e sede de justiça.
Como consequência, elas começam a trabalhar
para fazer o bem. Temos então a bem-aventurança
seguinte: “Bem-aventurados os misericordiosos
porque alcançarão misericórdia”. Se alguém está
realmente procurando uma conversão moral, irá
acabar fazendo amplamente o bem aos outros, irá
viver para servir, e é isto o que se espera destas
pessoas. Um exemplo delas foi Madre Teresa de
Calcutá e vemos que inclusive entre nós existem
pessoas assim, que estão vivendo para fazer o bem
sem pretender nada em troca, apenas porque tornou-se
cristã. Antes de podermos ensinar o próprio
Evangelho, antes de podermos testemunhar a vida
sobrenatural que Cristo colocou em nós, normalmente
vem este desejo de fazer o bem, e este é consequência
da fome e sede de justiça, é a bem-aventurança da
misericórdia.
A prática da misericórdia costuma purificar o
coração e essa purificação do coração é o que
precisamos para que possamos começar a ter uma vida
de oração profunda, para poder entrar naquele
quartinho a que Jesus se refere. Notem como no
Sermão da Montanha Jesus só fala do quarto onde
entramos para rezar depois de ter falado longamente
sobre a moral, com muita ênfase no amor ao próximo
e no amor ao inimigo. Ele diz para fazer o bem aos
que nos odeiam. O que é fazer o bem àqueles que nos
odeiam? Se levarmos estes ensinamentos a sério, é a
bem-aventurança da misericórdia. Isto significa que
aquelas pessoas que adotaram a moral cristã, que não
apenas não matam o próximo mas também não os
insultam, que não apenas não cometem adultério mas
se abstém até de um pensamento impuro, aqueles que
são justos, acabam promovendo o bem inclusive
daqueles que os odeiam. Isso é passar da justiça para a
misericórdia.
O passo seguinte está mais estreitamente
relacionado com a oração. Ela corresponde mais
plenamente nas bem-aventuranças aos ‘bem-
aventurados os puros de coração porque verão a
Deus’. Por que, como é que nós vemos a Deus?
Vemos a Deus através da fé, através da prática da fé.
São Paulo diz que quando nós estivermos no céu, a fé
será substituída pela visão beatífica. Esta afirmação,
examinada na ordem inversa, significa que enquanto
nós não estamos no céu, o que faz as vezes da visão
beatífica é a fé. Ora, a fé é aquilo pelo qual nós
começamos aprender a rezar. Na aula anterior eu
havia dito que entrar no quarto significa nos
recolhermos, e fechar a porta é crer, principalmente
crer em Cristo, crer que quando nos recolhemos e
cremos, o próprio Cristo, em sua humanidade, por esta
estar hipostaticamente unida à divindade, nos toca
espiritualmente, real e intimamente. Isto ocorre
porque Deus, em sua divindade, sustenta todas as
coisas no ser e nada se esconde à sua presença. Ora, se
a humanidade de Cristo está hipostaticamente unida à
sua divindade, ela pode tomar conhecimento de
qualquer coisa onde Deus esteja, e é o que acontece
quando nós cremos. Quando cremos nós permitimos
que o Verbo encarnado viva em nós. São Paulo diz
que não é ele que vive, mas é Cristo que vive nele, e
isto, segundo suas palavras dirigidas aos Gálatas,
apenas porque ele crê no Filho de Deus.
Então, quando nos recolhemos para rezar e cremos,
estará acontecendo uma coisa semelhante ao que
ocorre quando vamos à missa, comungamos e
recebemos o corpo e sangue de Cristo. Nós não
estamos recebendo um pãozinho, estamos recebendo o
corpo do Senhor, é ele mesmo quem está ali em sua
humanidade. Por isto, ao recebermos a Eucaristia nós
nos recolhemos para amar esta sua presença. De um
modo não idêntico mas semalhante, quando estamos
rezando, recolhidos e crendo, podemos ter a certeza
que naquele momento estamos permitindo que o
Verbo encarnado nos visite e lhe damos a
oportunidade para construir em nós a sua morada. Por
isso as pessoas que conseguem fazer isso pela fé, já
têm uma pureza de coração tal que de uma certa
maneira eles já veem a Deus. Por este motivo o “bem-
aventurados os puros de coração porque verão a
Deus” se refere àquelas pessoas que já vivem uma
vida de oração profunda.
E a consequência disto é a bem-aventurança
seguinte: “Bem-aventurados os que fazem a paz, os
que constroem a paz, porque serão chamados filhos
de Deus”. Em algumas traduções encontramos escrito
"bem-aventurados os pacíficos", como se se tratassem
de pessoas calmas, mas não é exatamente isto o que
está escrito no original. Ali lemos bem-aventurados os
que fazem a paz, os que criam a paz. São aquelas
pessoas que, por terem já experimentado, por terem
sido testemunhas da habitação do Verbo encarnado e
da própria Trindade em sua própria alma, por terem o
testemunho de que na oração acontece alguma coisa
sobrenatural, por terem provado o amor de Deus em
seus corações, elas também podem testemunhar e
ensinar isso para os outros em primeira mão, não
porque o leram, mas porque o viveram. E quando elas
leem como foi que isto aconteceu em outros, sabem
interpretá-lo como quem também o viveu. Então
tornam-se capazes de construir a paz.
Admirem então que coisa surpreendente. As bem-
aventuranças terminam no lugar onde havia começado
o Sermão da Montanha, no desejo de ensinar. Porque
é isto o construir a paz. É neste momento que Jesus
diz que estas pessoas provavelmente serão
perseguidas injustamente, e que é isto o que podem
esperar. Do modo como haviam feito com João
Batista, diz Jesus, irão fazer comigo, er do modo
como farão comigo, farão também com vocês. Mas
quando fizerem isto, se for por esta causa, porque
vocês estão promovendo a paz, expludam de alegria
porque deu certo o que era para dar certo, o reino do
maligno está desabando. Não se preocupem com
vocês, porque não lhes irá acontecer nada, o pior que
poderão fazer-lhes será matá-los, mas vocês já estarão
na posse da vida eterna.
Mas em seguida, seja que aconteça a perseguição
ou não, Jesus nos diz: “Vocês são o sal da terra e
vocês são a luz do mundo”. "Não se pode esconder
isto dos demais. Quando alguém acende uma
lâmpada, ela ficará em cima da mesa. Uma cidade em
cima de uma montanha não pode permanecer oculta".
Esta é a conclusão das bem-aventuranças. Em outras
palavras, Jesus nos mostrou como ele veio construir o
seu reino, aquele reino da pedra que veio rolando
desde as alturas e derrubou a estátua de
Nabucodonosor através das pessoas que percorreram
as sete ou oito bem-aventuranças, conforme se realizar
ou não a oitava dfa perseguição. Serão sete se
pararmos na construção da paz, serão oito se estes
bem aventurados forem perseguidos. Estas pessoas
que percorreram estas bem aventuranças e tiverem
chegado aqui são a luz e o sal que Jesus quer acender
e usar para construir o seu reino.
Como sabemos disso? Sabemos disso inclusive
pelo próprio Evangelho de São Mateus. Se lermos o
restante do Evangelho, encontramos no capítulo 13
um conjunto de sete parábolas sobre o reino de Deus.
Duas destas parábolas são muito interessantes, e
foram interpretadas pelo próprio Jesus. Uma delas é a
parábola do semeador: o semeador saiu a semear, uma
semente caiu no caminho, outra no solo pedregoso,
outra no espinheiro, outra em terreno fértil. Trata-se
de uma parábola que começa falando de alguém que
está semeando. A segunda é também de alguém que
está semeando, é a parábola do joio e do trigo. A
parábola do joio e do trigo diz que alguém foi semear
um campo e semeou trigo, logo em seguida, à noite,
veio o seu inimigo e semeou o joio. Em ambos os
casos os apóstolos pedem para que Jesus lhes explique
o sentido das parábolas e então Jesus diz: o semeador
sou eu, a boa semente são os filhos do reino e o joio
são os filhos do demônio. Notem que coisa curiosa:
ele não diz que a boa semente é a sua palavra. Em vez
disso ele diz que a boa semente são os filhos do reino,
ou seja, ele está dizendo que existe um campo que ele
veio semear e que ele está semeando este campo com
pessoas, não com a palavra. Isto tem tudo a ver com o
que ele fala quando diz que os que percorreram as
bem aventuranças são o sal da terra e são a luz do
mundo. Ele quer dizer que veio construir o reino dos
céus exatamente com essas pessoas que percorreram
as bem-aventuranças.
No caso da parábola do semeador vemos também a
mesma coisa. Quando Jesus interpreta quem é a
semente que caiu no caminho, nas pedras, na rocha e
na terra fértil, esta semente não é a palavra. A
interpretação autêntica de Jesus diz que a semente que
caiu no caminho é o homem que ouviu a palavra e não
a entendeu. A semente é o homem, não é a palavra. A
semente que caiu no caminho é o homem que não
entendeu a palavra, não é a palavra que não foi
entendida. A semente que caiu na terra pedregosa é o
homem que entendeu a palavra, mas não tem
perseverança; não é um tipo diferente de palavra, é o
próprio homem que, apesar de tê-la entendido, não
persevera. E a semente que caiu no espinheiro é
também o homem que a ouviu, a entendeu e
perseverou, mas não tem alma de criança; sua vida é
um espinheiro, este homem não tem aquela
simplicidade de criança, sua vida é um monte de
aflições, sua vida é a vida de Marta, é vida da cozinha.
Uma criança não se importa com a cozinha, uma
criança faz tudo brincando, sua alma é leve. O que
vemos então? Jesus diz que é ele quem está semeando,
o reino de Deus é como alguém que está semeando,
mas quem semeia é o próprio Jesus. E as sementes
que ele está semeando são as pessoas. Quem são essas
pessoas? São aquelas das quais ele pode dizer: vocês
são a luz do mundo e o sal da terra. É com estas
pessoas que ele vai semeando o reino dos céus.
Mas agora a pergunta: o que essas pessoas têm
para serem a luz do mundo e o sal da terra? Tanto
quanto podemos entender, essas pessoas que são a luz
do mundo e o sal da terra têm para que sejam isto é o
que os próprios judeus percebiam que Jesus tinha e os
escribas não tinham, é a autoridade. Mas por várias
razões a ideia de autoridade adulterou-se. Hoje
autoridade significa um cargo ou alguém que exerce
um cargo. É nisto que hoje pensamos quando
pensamos em autoridade, seria isto o que
encontraríamos se procurássemos seu significado em
um dicionário. Mas quando examinamos a palavra no
Novo Testamento grego, temos uma surpresa. A
palavra autoridade em grego é composta de duas
outras palavras. Em grego autoridade é dita exousía.
Ousía significa essência e ex significa proveniência,
então, exousía é alguma coisa que sai da essência da
pessoa, e isso é o que significa autoridade.
Então, quando os judeus percebiam que Jesus tinha
autoridade e os fariseus não a tinham, os doutores da
lei não a tinham, o que eles queriam dizer é o
seguinte: os doutores da lei estudaram, receberam seus
diplomas, ganharam o cargo, foram eleitos para o
sumo sacerdócio, mas da essência deles não procede
nada, eles falam de coisas que eles leram, e
suaautoridade é um atributo que os outros lhe deram, é
um título, é um diploma. Jesus, porém, nada estudou,
pelo menos nunca foi visto estudando, não possuía
diploma, não foi eleito, não foi escolhido, não fez
campanha eleitoral, não é nada, é um ninguém, é o
filho do carpinteiro, nós nem sabemos se ele mesmo
era carpinteiro, o que se diz é ter sido filho de
carpinteiro. Mas este homem tem algo que sai de sua
essência, ele tem autoridade. Quando ele fala nós
sabemos que é verdade o que ele diz e não há como
negar que não seja.
Mas o que é interessantíssimo notar é que esta
autoridade, esta exousía, é aplicada em outros lugares
em que consultando as traduções não imaginaríamos
que estivesse ali, e eu cito duas passagens especiais
nesse sentido. A primeira é do Evangelho de São
João, quando o ele diz assim: “A luz veio ao mundo e
as trevas não o receberam. Mas aqueles que o
receberam e creram no seu nome, Deus deu-lhes o
poder de se tornarem filhos de Deus", ou Jesus "deu-
lhes o poder de se tornarem filhos de Deus”. Este
termo ‘poder’ não está bem traduzido, mas é o melhor
que se pode fazer em português, porque outra
tradução supostamente melhor não faria sentido. Mas
o fato é que no texto original não se lê poder, mas
exousía, está escrito 'exousía', autoridade. Mas como
hoje autoridade não é mais exousía, não se pode
traduzir a passagem usando as palavras corretas. Não
existe mais na nossa linguagem a palavra correta.
Perdemos o sentido da autoridade. Isto significa que
quando o Evangelho de São João diz que aqueles que
creram no seu nome ele deu-lhes o poder de se
tornarem filhos de Deus, João está dizendo que ele
deu-lhes autoridade de se tornarem filhos de Deus, e
essa autoridade não é um diploma, mas é algo que
jorra da essência. Esta autoridade é como se fosse um
pedacinho da autoridade que tinha Jesus. É como se
Jesus, através da fé, estivesse tomando toda a
autoridade que ele tinha por ser o filho de Deus e a
estivesse transplantando pouco a pouco para nós e
com isto nós estivéssemos ganhando a autoridade de
nos transformarmos em filhos de Deus. E isto acaba se
tornando evidente aos olhos dos homens na sétima
bem-aventurança quando se diz: “Bem-aventurados
os que fazem a paz, porque serão chamados filhos de
Deus”, isto é, a autoridade destas pessoas já é tanta
que as próprias pessoas dizem: este homem é um filho
de Deus.
Isto significa, portanto, que o crescimento nas
bem-aventuranças é um crescimento de autoridade no
sentido grego da palavra, não no sentido da lingua
portuguesa. Não se trata de uma autoridade para
mandar sobre os outros. Trata-se de algo que jorra da
essência. E aquelas pessoas que elas se tornam o sal
da terra e a luz do mundo, são aquelas pessoas que
estão no auge da autoridade, são pessoas que têm,
tanto quanto é possível para uma criatura, uma parte
daquela autoridade que tinha Jesus.
Um outro lugar onde também se fala de autoridade
e nós não o percebemos pelas traduções é a Epístola
aos Hebreus, capítulo 13, verso 10, lugar em que São
Paulo diz o seguinte: “Nós temos dentro de nós um
altar, e neste altar os judeus que servem no
tabernáculo ou no templo, que fazem sacrifícios de
bois, de carneiros, de passarinhos, de farinha e etc.,
não têm autoridade para comer". "Nós temos em nós
um altar onde os judeus que servem no templo não
têm autoridade para comer", "não tem exousía para
comer". Está escrito exatamente assim: "comer".
Que altar é esse? Um altar é um lugar onde se faz
um sacrifício. Este altar que está dentro de nós, onde
os judeus não têm autoridade para comer, é aquele
mesmo quartinho de que Jesus fala no Pai Nosso.
Quando Jesus fala no Pai Nosso “entra no teu quarto,
fecha a porta e vai para um lugar escondido”, este
quartinho é o altar da Epístola aos Hebreus.
Por que São Paulo o chama de altar? O motivo é
que, assim como para entrar no quartinho temos que
nos recolher, assim também temos que morrer para o
mundo para subir no altar. Para poder comer do
sacrifício, havia que primeiro sacrificar-se a vítima.
Era necessário tomar a vítima, matá-la, queimá-la, e
quando ela já estiversse bem morta o sacerdote
comeria o que tivesse restado. Então ter um altar é
equivalente a entrar no quarto, é equivalente ao
recolhimento, é necessário imolar-nos a nós mesmos
para poder subir neste altar e poder oferecer um
sacrifício.
E o que iremos comer ali? Nada mais nada menos
do que a humanidade de Nosso Senhor Jesus Cristo.
Ele mesmo diz: "Quem come a minha carne e bebe o
meu sangue, este tem a vida eterna". "Eu sou o pão
da vida, quem me come não morrerá jamais. Não é
como o maná do deserto". Ele próprio é a árvore da
vida, "quem come dela viverá eternamente".
São Paulo, portanto, está dizendo que nós temos
um altar dentro de nós, onde temos que sacrificar a
nós mesmos, temos que morrer para o mundo e, pela
fé, pela fé em Cristo, poder comer o que está lá
dentro, alimentar-se do próprio Cristo, que é o que
fazemos na Eucaristia e na oração.
Para aqueles que estão servindo no altar dos
judeus, aquele altar era apenas um símbolo do
verdadeiro sacrifício e da verdadeira comida, eles não
tinham exousía, não tinham autoridade para entrar no
nosso.
Mas agora regressemos ao Evangelho de São João.
Perguntamos para quem Deus deu a exousía para se
tornarem filhos de Deus? João diz que é para os que
creem em seu nome, que não nasceram nem do sangue
e nem da carne, mas nasceram de Deus, aqueles que
creram em seu nome. A comida do altar é, portato,
para aqueles que se recolheram e fechando a porta
pela fé vão se alimentar do próprio Verbo encarnado.
Para isto é necessária uma exousía, e à medida em que
vai-se comendo, a exousía vai aumentando, e acaba
aumentando de tal maneira até que nos tornemos o sal
da terra e a luz do mundo, e é com essas sementes que
Jesus quer construir o seu reino, aquele reino que
rolou desde o alto, derrubou a estátua de
Nabucodonosor e não terá jamais fim.
Este então é o segredo, o segundo segredo, o
segundo elemento da estrutura da sociedade cristã. O
primeiro elemento é o desejo de ensinar e o segundo
elemento é autoridade, a autoridade espiritual, a
exousía, aquela que vem através de uma consciência
pura, nas palavras de São Paulo a Timóteo, que é a
mesma justiça de que fala Jesus, é a vida moral
íntegra e elevada de que temos que ter fome e sede e
que se aprimora pela vida espiritual de oração, por
aquele altar que existe dentro de nós, onde nós temos
que entrar e fazer este sacrifício de nós mesmos,
livrar-nos do amor do mundo para que o amor do Pai
possa viver em nós, para que nós possamos nos unir a
Cristo. Então, dessa vida espiritual irá surgir aquela
exousía que será a luz do mundo e o sal da terra com o
qual Jesus pode construir o seu reino. Ele está
semeando o campo onde os filhos do maligno estão
semeando o joio.
A consequência disto tudo são aquelas que vemos
quando consideramos a sociologia do tema. Os dois
grandes elementos que constituem a sociedade cristã
são o desejo de ensinar e a bipartição do poder de
governar entre o poder espiritual e o poder temporal.
A característica da sociedade cristã é ser o governo da
sociedade dividido entre o poder temporal e o poder
espiritual. Os dois poderes governam a mesma
sociedade humana simultaneamente e
independentemente um do outro. Então a Igreja não
constitui apenas um poder independente do poder civil
que governa com independência a si mesma, enquanto
apenas o poder civil governa a sociedade. Em uma
sociedade cristã tal como estabelecida por Cristo a
sociedade é governada tanto pelo poder espiritual
como pelo poder temporal. E o poder temporal para
governar a sociedade precisa da força física, do
exército, da polícia e da economia. O poder espiritual
não usa nenhuma destas coisas, usa em vez disso pura
e simplesmente a exousía, o fato de ser o sal da terra e
a luz do mundo, que cresce pela vida espiritual
conduida através de todas as bem-aventuranças. Com
isto as pessoas tornam-se capazes de governar. Este
poder espiritual não é apenas aquele que está no Papa
ou nos bispos. Este poder espiritual, para poder ser
efetivo, tem que estar em todos, tem que existir na
sociedade inteira, inclusive porque, se não existir na
sociedade inteira, os bispos e o Papa não irão possuí-
lo senão por atribuição. Papas, bispos e sacerdotes,
antes de eles serem Papas, bispos e sacerdotes,
nasceram leigos. Não se nasce padre e bispo, nasce-se
leigo. Então, se o leigo já não tem exousía, quando ele
se tornar sacerdote também não a terá. Pode acontecer
que ao preparar-se para o sacerdócio este homem se
converta, mas isto será uma contingência, jamais seria
a regra. Então, na verdade, para que possa haver um
poder espiritual que efetivamente governe, a exousía
tem que estar amplamente distribuída em toda a
sociedade inteira e isso só irá acontecer se houver
simultaneamente o desejo de ensinar. As duas coisas,
portanto, estão extremamente entrelaçadas. Se não
houver o desejo de ensinar e não houver uma exousía
amplamente distribuída, o que irá acontecer é que não
haverá exercício efetivo do poder espiritual, só
comandará a sociedade o poder temporal baseado na
força e este poder temporal irá acabar se
corrompendo. O poder temporal, abandonado a si
mesmo se corrompe e torna-se o poder pagão ou o
poder da nova ordem que é, em última análise, o
poder do sistema financeiro que está causando todo o
estrago que estamos vendo.
Portanto, enquanto não conseguirmos compreender
estes elementos e trabalharmos no sentido de que
possamos refazer a estrutura da sociedade nestes
moldes, enquanto não entendermos que estas coisas
não se fazem por decreto, que estas coisas se fazem
através de um trabalho muito profundo do tipo que
vemos que os apóstolos faziam, a cultura da morte irá
continuar a se desenvolver.
Mas há uma outra coisa, não propriamente um
terceiro elemento, mas um elo tremendamente
importante entre estes elementos, sem o qual estes
dois elementos não bastariam. Do ponto de vista dos
princípios bastariam estes dois elementos, mas do
ponto de vista prático está faltando um elo entre
ambos. Isto porque o que acontece é o seguinte: como
é que progride a cultura da morte? A cultura da morte
progride na medida em que a sociedade se
secundariza, e ela é consequência deste
secundarização. A Cultura da Morte é consequência
de que a estrutura básica da sociedade, que eram as
famílias, entendendo famílias principalmente no
sentido de famílias espirituais, não necessariamente
biológicas, são substituídas como estrutura básica do
tecido social por instituições secundárias, por
empresas. Então, na medida em que o número de
empresas vai aumentando, em que vai se destruindo a
estrutura familiar e substituindo na estrutura social
umas pelas outras, estamos criando os alicerces para
promover a cultura da morte.
Esse crescimento desordenado da estrutura
empresarial às custas da estrutura familiar é a
consequência do trabalho desordenado do sistema
financeiro. O sistema financeiro não é
necessariamente algo ruim mas, do modo como está
operando é exatamente isto o que ele está provocando.
Provocou uma revolução industrial que desordenou a
estrutura social de modo a substituir o tecido social
constituído pela a família e colocando em seu lugar a
empresa. A base da empresa não é a exousía, a
autoridade na empresa é em grande parte extrínseca,
podendo haver aí algumas virtudes de administrativas
e de liderança, mas definitivamente não são a exousía
do Evangelho. Vamos porém ao ponto. Para ter
surgido a sociedade contemporânea e a cultura da
morte não foram suficientes apenas o simples dinheiro
e o desejo do lucro. A cultura da morte precisou criar
essas células básicas num número cada vez mais
crescente e exponencial. A mesma coisa ocorre em
um processo de cristianização da sociedade. Não basta
apenas o desejo de ensinar e o desenvolvimento da
exousía que vem através da espiritualidade e da
intimidade com Cristo. A exousía deve ser usada para
construir uma família. Assim como não basta o
dinheiro para construir uma sociedade secundarizada,
mas ele teve que ser utilizado de uma certa maneira,
teve que ser emprestado por entidades que sabiam
emprestá-lo para promover o financiamento de
indivíduos que o receberiam para construir empresas.
A mesma coisa, em outro plano, ocorre em uma
sociedade cristã. As pessoas que, por causa de terem
sido atingidas pelo mandamento de ensinar, vão
adquirindo essa exousía, precisariam ter consciência
que elas precisam montar o rquivalente das empresas.
O que estamos chamando de equivalentes das
empresas, no nosso caso, não são empresas, são
famílias no sentido cristão da palavra.
É justamente isso o que temos tentado mostrar aqui
entre nós. É por isto que estamos pedindo que nós
possamos separar um tempo para rezar, um tempo
para formar as pessoas, juntar um grupo e fazer com
que, através dessa exousía que recebemos através da
fé e da oração, possamos aprender a montar uma
instituição primária, uma família espiritual cuja
finalidade não é ganhar dinheiro, mas uma outra vida
muito melhor, a verdadeira vida, aquilo que Jesus
chamava se simplesmente a Vida. É a ilusão dos que
buscam construir uma empresa. Estão também
buscando uma outra vida, mas perto daquela a que
Jesus se refere, esta não passa de simples ilusão. Para
conseguir esta suposta vida, a finalidade que uma
empresa busca é ganhar lucro, dinheiro, muito
dinheiro, bastante dinheiro. É visível isto nas
conversas entre empresários. Um diz ao outro:
“Colega, descobri um novo negócio, dá para ganhar
dinheiro, muito dinheiro, é muito dinheiro mesmo”.
Este é o motor deles.
Exatamente em um sentido semelhante, é
importante notar que uma família espiritual não é um
lugar onde podemos passar um fim de semana,
encontramos amizades não fingidas, satisfazemos
carências afetivas e podemos encontrar um ouvido
que escute nossas tristezas. Assim como uma empresa
está em busca de lucro, em uma família espiritual
estamos em busca de Deus, compartilhar sua
intimidade e sua própria vida. A família espiritual
pretende fazer com que as pessoas tenham sede de
Deus e consigam alcançá-lo como os grandes
empresários sabem alcançar o lucro.
Quando São Bento escreveu a sua regra monástica,
ele também explicou como deviam ser convidados os
monges que fariam parte da casa beneditina. Ele diz:
"Vamos montar uma escola do serviço divino e o
Abade tome cuidado de chamar as pessoas certas",
assim como o empresário tem que chamar para a
empresa os empregados que saibam trabalhar e que
sejam competentes.
O critério que São Bento dá para encontrar a
pessoa competente para fazer parte do mosteiro
beneditino é, em primeiro lugar, verificar se ele
realmente está procurando a Deus. Na empresa deve-
se chamar aquele que está procurando ganhar
dinheiro. O empregado que que quer ganhar dinheiro
é o empregado certo, porque ele irá ganhar dinheiro
para ele e para o patrão também. No mosteiro de São
Bento não se busca dinheiro, busca-se Deus. Busca-se
aquela intimidade divina de que Jesus diz que é o
reino de Deus, aquele encontro com a Santíssima
Trindade que se dá através do Verbo Encarnado. As
pessoas que estão procurando Deus que São Bento
está buscando são aqueles que têm fome e sede da
experiência de Deus, que têm fome e sede de chegar
àquela perfeita unidade com Cristo do qual se fala no
Evangelho. E São Bento diz que este é o primeiro e
fundamental critério. Se a pessoa não está procurando
a Deus, se nem sequer entendeu o que seja isto, se ela
está apenas querendo um bom lugar onde a vida seja
mansa, onde não haja corrupção, que tenha os horários
regrados, onde haja bosques, passarinhos e sinos
tocando, onde as pessoas rezam na hora certa ao som
de músicas sagradas, onde a vida seja muito honesta,
onde ninguém fale mal de ninguém e todos vivam em
paz, mas ele não está procurando a Deus, ou pensa
que é isto que seja buscar a Deus, este homem não é o
homem que São Bento procura. Assim como em uma
empresa os que estão procurando apenas um lugar
para passar seu tempo, onde se façam alguma coisa
interessantes e se possa receber um salário garantido
no fim do mês não prestam para a empresa. É
necessário produir dinheiro e querer ganhar dinheiro.
Em seguida São Bento coloca mais três condições:
se ele ama a oração, se está disposto a se corrigir de
seus defeitos, e se tem paciência na adversidade, ou
seja, se tem hypomoné. O texto original não menciona
corrigir defeitos. Em vez disso São Bento escreve se
ele é capaz de obedecer ao Abade. Mas no mosteiro
beneditino a obediência não é principalmente
administrativa, nem para fazer um trabalho externo
como se exigiria de uma corporação militar. A
obediência beneditina é principalmente para que o
Abade possa corrigir os defeitos do monge que os
próprios monges não conseguem perceber. Então, na
verdade, São Bento está se referindo à pronta
humildade para ser corrigido. Esses três requisitos, a
oração, a disposição para ser corrigido e a paciência
diante da adversidade não são finalidades. São três
requisitos ou qualidades que o monge precisa ter para
não ser incoerente com a verdadeira e única qualidade
pretendida que é o procurar a Deus. Se alguém afirma
querer procurar a Deus mas não gosta de rezar, está na
verdade querendo comer o bolo sem cortá-lo. Se
alguém afirma querer procurar a Deus, mas não aceita
corrigir-se, está também querendo comer o bolo sem
cortá-lo. E alguém não tem paciência na adversidade
ou, de modo geral, não tem paciência e perseverança
em nada, também ocorre o mesmo. Mas o verdadeiro
e essencial requisito é o primeiro.
Então, se existe este motor, se aceitamos o
mandamento de ensinar e estamos procurando a Deus
pela vida do espírito que nos une ao Verbo encarnado
para formar Cristo em nós, se permitimos que Cristo
viva em nós para que ele nos aproxime da Santíssima
Trindade, então, à medida em que percorremos este
caminho e chegamos ao ponto de possuirmos aquela
autoridade, aquela exousía, que nos transforma no sal
da terra e na luz do mundo, neste ponto o que temos
que pensar em fazer não é querer imediatamente
consertar o mundo, mas para isto formar uma família,
porque o tecido social, os grandes tecidos sociais que
existiram eram as famílias espirituais no primeiro
milênio e no segundo milênio passaram a ser as
empresas. Foi através dessas células que elas se
construíram e reconstruiram os tecidos sociais.
Temos aí os elementos básicos para aprender a
fazer isto. É um aprendizado que deve ser alcançado
pela prática. Trata-se de uma experiência profunda,
delicadíssima, sofisticada, riquíssima, mas é isto que
irá fazer a sociedade voltar a ter uma estrutura
primária. Significa entendermos o mandamento de
ensinar. Quando dizemos para que todas as semanas
vocês façam uma formação com seus grupos isto é o
mandamento de ensinar, embora ainda não seja aquele
mandamento de ensinar que os puros de coração que
já vêem a Deus são capazes de realizar. Pelo menos,
porém, vai-se começando a colocar essa disposição
dentro de nós. Não é possível pretender construir uma
sociedade cristã sem ter essa vontade extraordinária
de ensinar, assim como não é possível construir um
mundo capitalista sem ter uma vontade extraordinária
de construir empreendimentos, empresas, tudo que
produza dinheiro aos montes, sem pedir mais dinheiro
emprestado para os bancos. Há que se trabalhar para
ganhar dinheiro. Na sociedade cristã temos que
trabalhar para ensinar, não a troco de dinheiro, mas
em busca da verdadeira vida, que alcança-sepela
intimidade divina que nos chega através de Cristo
Jesus. Essa intimidade deve ser buscada pela pureza
da consciência e pela vida de oração, a que está
ensinada no Evangelho. Ao fazer isto, se seguirmos o
passo-a-passo das bem-aventuranças, acabamos
alcançando aquela autoridade que nos permite não
mudar imediatamente o mundo inteiro, não nos
tornamos o Papa para reformar a Igreja, mas a
autoridade necessária para poder formar uma família.
E à medida em que mais e mais pessoas adquiram este
gosto, ocorre algo que é análogo à necessidade de se
ter criado um empresariado e um sistema bancário
para que fosse construida a sociedade moderna. Assim
como estas coisas foram necessárias, assim também é
necessário, na sociedade cristã, que desabrochem
multidões que vibrem com a ideia de formar uma
família.
Quando eu estou falando em família pode ser
também a família biológica, mas a verdadeira família
biológica sacramental não é apenas aquela que deseja
ter muitos filhos, mas aquela que os deseja para poder
ensiná-los profundamente no caminho da santidade. O
que é o mesmo que deve acontecer em todas as
famílias espirituais. Promove-se a construção de uma
família espiritual não para que possamos chorar as
mágoas quando as coisas estiverem tristes, não para
termos um lugar onde para passar o fim-de-semana
com pessoas com as quais possamos conversar,
mesmo que se tratem dos assuntos mais elevados, a
família espiritual é o lugar onde se possa fazer o
equivalente do ganhar dinheiro na sociedade
capitalista, é o lugar onde se pode aprender a buscar e
encontrar a Deus, aquela proximidade com Deus de
que Jesus é o exemplo máximo.
Eu creio que falando as coisas deste modo fica
mais claro a todos alguma coisa de qual foi a intenção
de Deus quando determinou a Encarnação do Verbo.
Se atentarmos ao que diz a Escritura, tudo isto de que
estou falando é apenas uma pequena fagulha do que é
um grandioso plano de seu amor. Ainda não subiu ao
coração do homem o que Deus prepara para aqueles
que o amam.
Mas eu quero terminar chamando a atenção para o
que está acontecendo agora. Estamos assistindo uma
nova versão da parábola do joio e do trigo, um enredo
da velha psicologia de quem Jesus chamava de seu
inimigo.
Pode-se perceber historicamente que a partir dos
anos 1300 começou a ser questionado o poder
espiritual. Assim como no campo em que deveria
florescer o trigo surgiu uma outra semente que parecia
trigo, mas não dava flor, começou então a ser
cultivada uma nova forma de autoridade que parecia
autoridade, mas não tinha exousía. Começou-se a
tentar desconstruir por dentro a estrutura da sociedade
cristã. A partir dos anos 1300 começaram a surgir
autores, filósofos e pensadores, que começaram a
escrever obras que questionavam a autoridade
espiritual. Passou-se a propor uma sociedade laica
onde o verdadeiro poder se concentrasse no poder
temporal sem moderação do espiritual.
O fato disto somente ter começado a acontecer
seriamente depois de 1300 e que todo este movimento
tivesse provindo do meio universitário não é para
causar espanto. Na verdade, é bem sintomático. Com
o advento da universidade começou a ser possível dar
uma autoridade, que parecia autoridade, a pessoas e
instituições que não tinham autoridade.
Vamos entender bem. Nada impede que na
universidade se entregue um título a quem realmente
tenha algum tipo de conhecimento, mas não foi
apenas isto que aconteceu. Passou-se a atribuir
também autoridade a quem não tinha exousía. Na
verdade, tratou-se ademais de algo muito além disso,
começou a ser construído um novo tipo de autoridade
que não tinha exousía, começou-se a separar a exousía
da autoridade e a criar um poder temporal que não era
pela força, mas também não era um poder espiritual,
mas um poder que se assemelhava ao espiritual. O
processo se tornou mais virulento à medida em que
ele começou a atrair a atenção de outros personagens
que tinham grande interesse em criar este novo tipo de
autoridade que seria apenas por atribuição. No mundo
antigo existia apenas autoridade da força que podia ser
exercida sem nenhuma moderação. Este tipo de
autoridade conduziu o mundo a uma barbárie hoje
dificilmente imaginável. Com o advento do
cristianismo esse tipo de autoridade pela força
continuou a existir. É o tipo de autoridade que era
exercido pelo poder temporal, mas moderado pela
autoridade espiritual. A delicadeza dessa moderação
estendeu-se até mesmo ao nível do consórcio conjugal
onde o marido passou a amar a esposa como o Cristo
amou a Igreja e vice-versa e onde toda paternidade
passou a derivar daquela paternidade que é a exercida
na Santíssima Trindade por aquele que é o Pai de
todas as luzes. É interessante notar que ambas essas
ideias sobre o consórcio conjugal e a paternidade
humana estão simultaeamente contidas em um mesmo
livro, a Epístola de São Paulo aos Efésios, um escrito
onde o Apóstolo onde não sem razão está claramente
empenhado em tentar apresentar a profundidade do
mistério do Evangelho. Estes detalhes mostram o
quanto na sociedade cristã a exousía não está
concentrada em uma só instância, mas se distribuí
capilarmente em toda estrutura social e modera, e
inclusive frequentemente sublima, a própria
autoridade pela força.
Mas com o advento da universidade foi possível,
inicialmente parasitando a autoridade espiritual,
iniciar-se a construção de um novo tipo de autoridade
que não era baseada nem na força, nem a exousía, mas
na atribuição. Este tipo de autoridade pôde crescer,
pôde multiplicar-se e até mesmo pôde utilizar-se do
poder temporal pela força como se fosse um seu
instrumento para crescer ainda mais e até pretender
uma concentração de poder muito acima daquela que
teria o próprio poder espiritual.
Em 1648, depois da guerra dos 30 anos, por meio
do Tratado de Westfália foi formalmente reconhecido
e instituído este novo estado de coisas. Foi criado um
novo conceito de nação soberana ou de soberania da
nação que é, na verdade, uma forma concentrada de
autoridade por atribuição sem moderação externa, ao
mesmo tempo em que se bania, ou se criavam os
mecanismos e as instituições para vir a banir qualquer
desenvolvimento do poder espiritual enquanto parte
do tecido social.
Antes do período entre 1300 e 1648, não havia
poder propriamente soberano no conceito moderno do
termo. A autoridade era harmoniosamente distribuída
na sociedade e não havia nenhuma instância que se
atribuía uma soberania que não pudesse ser partilhada
e moderada por muitos de modo real e não apenas
artificialmente atribuída por um poder central e
soberano também atribuído. É importante notar, sem
que possamos desenvolver aqui este tema, que um
poder artificialmente atribuído pode também muito
facilmente ser artificialmente roubado.
A criação da autoridade por atribuição conduziu à
facilidade com que foi criado e aceito o sistema
bancário moderno onde o papel e o cheque puderam
passar a ter um valor sem correspondência real. A
princípio esta era somente uma exceção possível, mas
à medida em que crescia essa nova forma de poder, o
que era exceção passou a se tornar a regra
predominante. Mas sem o desenvolvimento prévio do
sistema universitário dificilmente teria sido possível
criar o sistema financeiro moderno.
Hoje, a verdadeira autoridade que comanda a
sociedade é uma autoridade meramente atribuída. Esta
autoridade atribuída se desenvolveu a tal ponto que
tomou para si, como simples instrumento, a própria
autoridade da força.
Por outro lado, a autoridade espiritual, que apesar
de tudo ainda existe, acabou se desenvolvendo na
Igreja, imersa em uma sociedade pós-westfaliana,
principalmente no âmbito clerical a nível institucional,
e não como parte estrutural do tecido social.
Apesar de que o clero, se possui uma autêntica
vida espiritual, ser capaz de exercer uma autoridade
espiritual efetiva, esta autoridade não consegue
transformar-se em parte da estrutura da sociedade.
Este fato dá liberdade a uma forma de crescimento
descontrolada da autoridade por atribuição que nem
sequer o próprio poder da força é capaz de moderar ou
de deter. O crescimento descontrolado da autoridade
por atribuição desembocou no desenvolvimento da
cultura da morte que é produto de ideologias gestadas
e concebidas dentro do sistema universitário. A
cultura da morte cumpre o papel social de anestesiar
as pessoas e as possíveis sementes de um poder
espiritual que poderia moderar o poder descontrolado
da autoridade por atribuição.
Neste sentido, a cultura da morte não somente é
produto do crescimento desordenado da autoridade
atribuída, mas é também um poderoso combustível
desse mesmo crescimento desordenado. Isto irá levar
a uma concentração ainda maior desta nova forma de
poder. Esta nova forma de poder não só pode, como
está sendo conduzida, em última análise, para se
tornar um instrumento de poder tirânico mais terrível
do que foi o próprio paganismo pré-cristão. Entramos
em um esquema onde se pretende que não seja mais
possível caminhar em direção à construção de uma
sociedade cristã fundamentada no mistério da
Encarnação.
Observem então que coisa extraordinária. Sem
estar analisando exatamente as coisas neste prisma
como estou aqui fazendo, quando foi convocado o
Concílio Vaticano II, isto foi feito, em primeiro lugar,
para discutir a crise do mundo moderno. O motivo de
ter sido convocado o Concílio Vaticano II não estava
em um problema interno da Igreja, mas era a crise do
mundo moderno. E uma das consequências disto foi
que o Concílio Vaticano II estabeleceu que, a partir
dele, foi definitivamente reconhecido que o
apostolado é direito de todos os cristãos. E que
quando o clero não for suficiente ou não for capaz
para realizar o apostolado, passa a ser também uma
obrigação de todos os cristãos.
Esta determinação era um dos pontos fundamentais
que eram necessários para que pudéssemos aprender
aos poucos a voltar ao esquema do primeiro milênio
onde realmente o cristianismo conseguiu primarizar a
sociedade e derrotar o paganismo porque por mais que
o clero trabalhe e tenha vida espiritual, o clero não
poderá conseguir multiplicar as estruturas primárias a
ponto delas recomporem o tecido social básico.
Enquanto os leigos não fizerem isso, enquanto os
cristãos comuns não começarem a realmente receber
esta autoridade que vem através do exercício das
virtudes teologais e do desejo de ensinar, enquanto
estas pessoas não começarem a criar as estruturas
primárias, se depender apenas do clero, isso não irá
acontecer nunca.
Então vejam que nesse sentido, quando ouvimos
falar que o Concílio Vaticano II foi uma peste, estas
pessoas que dizem isto não estão entendendo o que
dizem. Na verdade, ele foi uma benção, mas o
Maligno o compreendeu e despejou de uma só vez
todo o estoque de joio que havia no inferno para não
deixar o trigo crescer.

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