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INVASÕES BÁRBARAS
“Les Invasions Barbares”
SALVADOR-BAHIA
2010
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INVASÕES BÁRBARAS
“Les Invasions Barbares”
SALVADOR-BAHIA
2010
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RESUMO - SOBRE O FILME - ANÁLISE FÍLMICA - A QUESTÃO DA EUTANÁSIA NO FILME “AS INVASÕES BÁRBARAS”
COMPARADO COM O FILME “MAR ADENTRO” - PESQUISA DE APROFUNDAMENTO: FICHAMENTO DA OPINIÃO DE
DIVERSOS AUTORES SOBRE O TEMA EUTANÁSIA, EM OBRAS DE PONTO DE VISTA DIVERSIFICADO –
REFERÊNCIA
RESUMO
SOBRE O FILME
complicações decorrentes de sua enfermidade. Adiante, O filho discute com o pai porque ele
o abandonara na juventude e decide ir embora, dizendo que não havia mais nada a fazer, pois
de qualquer forma a sua presença não fazia diferença diante do pai. Contudo, a mãe pede ao
filho que fique e o convence de que o pai sempre o ajudava quando ele precisava nos
momentos de infância, acalentando-o e zelando-o.
Então, Sebástien permanece e constata, através das palavras da enfermeira, que
no hospital muitas pessoas não têm a visita dos filhos. Esta enfermeira chega a contar isso a
Rémy. Ademais, o filho, para melhorar a situação do pai, que estava num quarto barulhento e
desorganizado, chama-o para se hospitalizar nos Estados Unidos da América, país vizinho e
com mais recursos. Contudo, o pai não aceita, dizendo que prefere ficar no hospital, perto de
seus amigos – mesmo que naquele momento não houvesse nenhum amigo dele. Então, sob
aconselhamento da mãe, Sebástien tem a idéia de efetuar melhorias numa sala do hospital
para que seu pai seja ali hospedado e possa receber visitas de amigos e parentes. Assim, às
espreitas, conversa com a administração e, de uma maneira sonegadora, tenta convencer os
funcionários a condizer com as suas vontades: restaurar um quarto desabilitado e torná-lo
confortável para o pai permanecer sendo medicado.
Sebástien deixa um laptop com o pai, para que ele assista a uma filmagem de
Sylvaine (Izabelle Blais), sua filha, amorosa, que enviou uma gravação de imagem a partir do
veleiro em que estava vivendo atualmente. Mas este é roubado no hospital de suas mãos
enquanto ele dormia, depois de ter assistido o vídeo, o que deixa Sebástien preocupado –
devido à perda de diversos e-mails provenientes do escritório. O filho vai buscar o laptop e
avisa às pessoas que ali trabalham. Elas dizem que furtos ali são comuns, então Sebástien
preenche um relatório e comunica às autoridades competentes. Mais adiante no filme ele
acaba recuperando o objeto perdido.
Já com o novo quarto arrumado e confortável, diversos amigos vêem visitá-lo,
entre eles Claude, Pierre, Alessandro, o que deixa Rémy muito feliz. Só que muitos desses
amigos só vieram porque foram pagos pelo filho – alguns ex-alunos, em especial. No entanto,
outros demonstraram sentimento verdadeiro ao não aceitar o pagamento, como uma ex-aluna,
que percebeu que tal atitude não seria ética.
Com o passar do tempo as dores de Rémy tornam-se mais fortes. O médico
recomenda a Sebástien que teste uma terapia à base de heroína para aliviar a dor que o pai
sente. Ele, visando fazer tudo certo, imaginando estar dentro da lei, vai à delegacia em busca
da droga para efeitos terapêuticos. Busca um policial ou detetive do departamento de
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narcóticos. Segue-se uma discussão. Os agentes imaginam que ele seja jornalista. Não cedem
a droga e ainda zombam dele. Ele, então, busca outros meios de conseguí-la.
O filho, então, comunica-se com Nathalie (Marie-Josée Croze), filha de uma
amiga do pai – Diane (Louise Portal) – para que essa compre a heroína. O trato seria que
Nathalie compraria a droga necessária com o dinheiro dado por Sebástien e ainda cuidaria de
Rémy. Em troca Sebástien forneceria drogas para ela. Ela, então, compra a heroína nas mãos
de um traficante por ela previamente conhecido.
A moça Nathalie dá a droga ao pai de Sebástien, Rémy. Ele se sente aliviado
imediatamente das dores, mas fica com terrível e avassaladora dependência da droga.
Chegando a ter terríveis convulsões quando Nathalie não comparece no momento certo para
aplicar a droga. Numa ocasião em que Nathalie estava muito abatida para aplicar o narcótico
nas veias de Rémy, a enfermeira entra no quarto e, ao ver naquele estado, questiona o que
havia acontecido e o filho pede a ele que aplique heroína no paciente. Ela reluta, mas, ao ver a
situação, acaba cedendo, mas afirma incisivamente que não faria aquilo novamente todas as
noites.
O filho de Rémy, Sebástien, pede o amigo do pai para ceder-lhe a casa de praia
para que o pai possa passar os últimos dias de vida entre os amigos. O amigo empresta,
mesmo que fosse contra a vontade da esposa.
Ao sair do hospital, uma enfermeira tenta convencê-lo a aceitar os
ensinamentos da religião dela para que seja salvo. Ele não responde, simplesmente manifesta
o seu respeito e ternura pelas convicções da moça – convicções estas que ele desrespeitou
anteriormente noutra ocasião, ao destratar o Papa e a Madre Teresa.
Rémy passa os últimos dias de sua vida na casa de praia de um amigo. Ele está
numa situação muito triste. Nem ao menos pode tomar vinho, que ele gostava muito. Isso o
deixa profundamente abalado. Logo ele decide que é um momento muito feliz para morrer e
recebe, com o seu consentimento e da família, através do soro, uma dose alta de remédios,
acarretando o seu óbito.
O filme termina com Sebástien proporcionando a filha da amiga de Rémy,
Nathalie (filha de Diana), a oportunidade de ter um apartamento para morar – aquele em que o
pai morava anteriormente. Posteriormente, Sebástien entra no avião que o levará de volta para
sua casa. No final, há, como trilha sonora, uma belíssima – e bem contextualizada – música,
L'amitié, de Françoise Hardy:
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L'amitié
(Paroles: Jean-Max Rivière. Musique: Gérard Bourgeois 1965 © 1965 - Disque vogue )
Amizade
ANÁLISE FÍLMICA
"Eu quando era igual a você, na sua idade, podia morrer a qualquer minuto.
Pouco me importava. É por isso que os jovens dão os melhores mártires. É
paradoxal, quando envelhecemos é que nos apegamos à vida. Quando
começamos a subtrair, me restam 20 anos, 15 anos, 10... Quando sabemos
que é a última vez que fazemos alguma coisa, é a última vez que compro um
carro, a última vez que eu vejo Gênova, Barcelona..."
era dependente do narcótico, e mesmo que Sebástien a pagasse com dinheiro pelos serviços
prestados, ela usá-lo-ia para comprar heroína.
Em um determinado momento Nathalie estava tão dopada que não pôde nem
cumprir a sua função e olvidou-se de ir aplicar a dose em Rémy, que quase morre em virtude
de uma crise de abstinência da heroína. Foi preciso Sebástien buscá-la e, como ela não
conseguiu aplicar a injeção na veia, Sebástien teve de implorar à enfermeira para fazê-lo.
Nesse momento, um conflito ético esteve na mente da enfermeira: como poderia aplicar
heroína em uma pessoa, isso é ilícito. Contudo, ao ver o padecimento de Rémy e a súplica do
filho vendo o pai desfalecer e se contorcer de agonia, ela se convenceu, solicitou que
fechassem a porta e aplicou o ―remédio‖ no paciente, que imediatamente teve o
restabelecimento do bem-estar. A enfermeira, depois, asseverou que não faria isso todas as
noites, imaginando escusar-se de responsabilidade tão tormentosa e provavelmente
incriminadora – mesmo com o consentimento dos familiares.
Acerca do conflito entre religião e ateísmo pode-se citar o diálogo entre Rémy
e a enfermeira, no qual ela, ao ouvir a menção de seu paciente de que teve diversas amantes,
indica que ele, depois de morrer, ―queimaria no mármore do inferno‖. Contudo, ele diz que a
enfermeira, por ser tão pacífica, teria um destino monótono quando morresse, dizendo: “Eu
não trocaria de lugar com a Senhora, irmã, condenada a tocar harpa eternamente sentada
entre João Paulo II, um polonês sinistro e Madre Teresa, uma albanesa viscosa”, diz o
personagem principal, Rémy.
Em outra ocasião Rémy conversa com a enfermeira sobre as matanças da
história da humanidade que passaram despercebidas pelos olhos da Igreja Católica e até de
outras em que a própria Igreja auxiliou, devido aos seus interesses. Ademais, demonstra-se
convicto em persistir acreditando em suas filosofias, mesmo com a insistência da enfermeira
em convertê-lo para o cristianismo, a fim de que ―sua alma pudesse ser salva‖.
Rémy age eticamente ao respeitar a escolha religiosa da enfermeira – mesmo
que tenha agido uma vez de forma desrespeitosa ao se referir a dois mártires da Igreja
Católica – e esta também age corretamente ao tentar convencê-lo, mas não forçá-lo, deixando
a alternativa de escolha, respeitando também as filosofias ateístas do paciente.
O mais importante para se analisar em questão ao filme é o assunto
―eutanásia‖. Teria agido Rémy com livre arbítrio ao escolher, naquele momento, que queria
morrer, não mais sofrer? E os seus parentes poderiam ter optado em deixá-lo continuar
sofrendo? A atitude de Nathalie ao aplicar a injeção no soro de Rémy, mesmo que tivesse sido
a pedido de Rémy e da família dele deve ser penalizada? Teria sido mais conveniente
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prolongar o sofrimento dele? Essas análises serão abordados no próximo tópico deste
trabalho.
Segundo José Renato Nalini em sua obra ―Ética Geral e Profissional‖, ―ao
homem não é dado dispor de sua vida. Precisa mantê-la em curso, com a higidez possível, até
que a ceifadeira venha a colhê-la. O que é inexorável. Por isso é que o suicídio não é aceitável
e só não se pune quem o pratica por absoluta impossibilidade. Ausente o fenômeno vida,
inviável qualquer espécie de punição para o morto. Ao menos no momento histórico em que
se vive‖ (NALINI, 2009, p. 209). Assim, do seu ponto de vista, a atitude de Rémy em
solicitar à sua família o momento de morrer demonstra-se inaceitável sob o ponto de vista de
Nalini, já que seria uma disposição sobre a própria vida, o que não é aceitável e só não é
punível por absoluta impossibilidade.
Nesse sentido, discorre Nalini: ―A ninguém é dado dispor da própria vida.
Menos ainda, da vida alheia‖. (NALINI, 2009, p.209). Na legislação penal brasileira, a
conduta de Nathalie, filha de Diane, amiga de Rémy, ao aplicar a injeção letal no soro de
Rémy é punível como homicídio. Isso está descrito no artigo 122 do Código Penal Brasileiro:
incrimina a tentativa de suicídio, tendo também por base motivo de índole político criminal.
Com efeito, sancionar aquele que já padece de dor moral insuperável, irresistível, cujo ápice o
conduz a tentar a ocisão da sua própria vida, serviria apenas, segundo Nélson Hungria, para
aumentar no indivíduo o seu desgosto do gestor de auto-destruição‖. (CAPEZ, 2007, p. 87)
Sobre a eutanásia, discorre Nalini: ―Auxílio à morte ou eutanásia, no contexto
médico, é ‗toda ação ou omissão que tenha por fim abreviar a vida de um paciente para evitar
o sofrimento‘. Ela pode ser voluntária – resultante da exigência ou desejo expresso da pessoa
capaz de decisão – e involuntária – aquela sem exigência, no caso de pessoas incapazes de
decidir, pessoas inconscientes ou que não estão em condições de entender a decisão entre a
vida e a morte‖. (NALINI, 2009, p. 210). Adiante, ainda cita: ―Vida é pressuposto a que uma
coisa possa ter valor. Nada tem valor para um sujeito sem a vida dele‖. (NALINI, 2009, p.
211).
Ademais, para José Renato Nalini, ―Pensar na morte deveria ser exercício
diário. Exatamente porque se morre é que se pode conferir intensidade a cada dia que se vive.
Cada dia vivido é um dia a menos na trajetória terrena. Ninguém deixará de morrer. É a mais
democrática das ocorrências para a humanidade. A inseparável, a inevitável, a indesejável está
aí, à espreita. Viver com ética e pensar sobre o que se acumula nesta breve trajetória terena é
dever ético que, bem exercido, faria com que as pessoas se relacionassem melhor. Deixassem
as insignificâncias e o supérfluo para pensar no fundamental‖. (NALINI, 2009, p. 212)
Mais adiante, em sua obra ―Ética Geral e Profissional‖, este mesmo autor
indica: ―Hoje, lê-se a respeito da morte suave, de morte digna, como se fora tema longíquo.
Amanhã, a cada qual poderá estar reservado vivenciar essa realidade por si mesmo ou em
relação a uma pessoa muito querida. Então haverá necessidade de definições e de adequada
compreensão daquilo ora exposto, para que não se acrescentem angústias à carga já
naturalmente cometida a cada qual‖. (NALINI, 2009, p. 212).
Retomando o pensamento de Capez, ele expressa a historicidade da pena que é
imposta aos suicidas: ―As legislações estrangeiras, na antiguidade, em sua maioria,
consideravam crime o suicídio. Assim era na Inglaterra, cuja common Law previa a aplicação
de penas contra o cadáver e seus familiares, tais como privação de honras fúnebres, exposição
do cadáver atravessado com um pau, sepultamento em estrada pública, confisco de bens. Na
Grécia, o suicida tinha a sua mão direita cortada, a fim de ser enterrada à parte. Sob a
influência do cristianismo o suicídio, além de passar a ser considerado crime, passou a ser
concomitantemente pecado contra Deus, sendo negada aos suicidas a celebração de missas. O
Direito Canônico equiparou o homicídio ao suicídio ao ponto de, sob as Ordenações de São
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Luís, ser instaurado processo contra o cadáver do suicida, sendo seus bens confiscados. Em
algumas cidades, o cadáver do suicida, segundo os estatutos, devia ser suspenso pelos pés e
arrastado pelas ruas, com o rosto voltado para o chão‖. (CAPEZ, 2007, p. 87).
Quanto ao crime de auxílio em suicídio, indica Heleno Fragoso: ―Exige-se,
para configurar o crime previsto no artigo 122 do Código Penal brasileiro, que a vítima seja
capaz de praticar o suicídio com vontade livre não viciada‖ (FRAGOSO, 1981, p. 99).
Capez abre os seguintes parênteses na avaliação desse crime: ―[...] quem induz
uma criança a tomar veneno não a está convencendo a se matar, mas praticando homicídio, no
qual o menor atua como simples instrumento, longa manus, do assassino. (CAPEZ, 2007, p.
91). Ainda mais, ele cita uma decisão judicial envolvendo caso de auxílio a suicídio: ―TJSP
―age com dolo eventual o neto que entrega bolsa contendo arma municiada ao avô, que se
encontrava internado e suspeitava ser portador de moléstia incurável; confirmada a pronúncia,
cabe ao júri a última palavra‖ (RT, 720/407)‖ (CAPEZ, 2007, p. 92).
Outro penalista de renome, César Roberto Bitencourt, expressa: ―Não sendo
criminalizada a ação de matar-se ou a sua tentativa, a participação nessa conduta atípica,
conseqüentemente, tampouco poderia ser penalmente punível, uma vez que, segundo a teoria
da acessoriedade limitada, adotada pelo ordenamento jurídico brasileiro, a punibilidade da
participação em sentido estrito, que é uma atividade secundária, ―exige que a conduta
principal seja típica e antijurídica‖. A despeito dessa correta orientação político-dogmática, as
legislações modernas, considerando a importância fundamental da vida humana, passaram a
prever uma figura sui generis de crime, quando alguém, de alguma forma, concorrer para a
realização do suicídio‖. (BITENCOURT, 2007, p. 94-95).
Bittencourt, mais adiante, em seu livro, expressa: ―O bem jurídico tutelado,
indiscutivelmente, é a vida humana. Ferri sustentava que o homem pode livremente renunciar
à vida, e, por isso, a lei penal não deveria intervir. Não existe o ―direito de morrer‖ de que
falava Ferri, na medida em que não há um direito sobre a própria vida, ou seja, um direito de
dispor, validamente, sobre a própria vida. Em outros termos, a vida é um bem jurídico
indisponível! Lembrava Heleno Fragoso que ―não há direitos e deveres jurídicos perante si
mesmo‖. O fundamento da participação em suicídio não é, como sustentava Carrara, ―a
inalienabilidade do direito à vida‖. A vida não é um bem que se aceite ou se recuse
simplesmente. Só se pode renunciar o que se possui, e não o que se é. ―O direito de viver —
pontificava Hungria — não é um direito sobre a vida, mas à vida, no sentido de correlativo da
obrigação de que os outros homens respeitem a nossa vida. E não podemos renunciar o direito
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à vida, porque a vida de cada homem diz com a própria existência da sociedade e representa
uma função social‖. (BITENCOURT, 2007, p. 95-96).
Para incrementar a diversidade de opiniões, cita-se a da professora de Direito
da Universidade Federal da Bahia, Roxana Cardoso Brasileiro Borges, em sua obra intitulada
―Direitos de Personalidade e Autonomia Privada‖: ―Etimologicamente, a palavra ‗eutanásia‘
significa boa morte ou morte sem dor, tranqüila, sem sofrimento. Deriva dos vocábulos
gregos eu, que pode significar bem, bom, e thanatos, morte. No sentido que tinha em sua
origem a palavra ‗eutanásia‘, ela significaria, então, morte doce, morte sem sofrimento. Morte
doce, sem sofrimento, não significa morte provocada‖. Adiante, continua discorrendo: ―O
primeiro sentido de euthanatos faz referência a facilitar o processo de morte, sem, entretanto,
interferência neste. Na verdade, conforme o sentido originário da expressão, seriam medidas
eutanásicas não a morte, mas os cuidados paliativos do sofrimento, como o acompanhamento
psicológico do doente ou outros meios de controle da dor. Também seria uma medida
eutanásica a interrupção de tratamentos inúteis ou que prolongassem a agonia. Ou seja: a
eutanásia não visaria à morte, mas a deixar que esta ocorra da forma menos dolorosa possível.
A intenção da eutanásia, em sua origem, não era causar a morte, mesmo que fosse para fazer
cessar os sofrimentos da pessoa doente‖. (BORGES, p. 234)
Adiante, Roxana Borges indica: ―Atualmente, porém, tem-se falado em
eutanásia como a morte provocada por sentimento de piedade à pessoa que sofre. Em vez de
deixar a morte acontecer, a eutanásia, no sentido atual, age sobre a morte, antecipando-a. O
conceito foi modificado e tem causado muita confusão. (BORGES, p. 234)‖. ―Quando se
busca simplesmente causar morte, sem a motivação humanística, não se pode falar em
eutanásia. A eutanásia é comumente provocada por parentes, amigos e médicos do paciente.
Assim, a eutanásia eugênica, utilizada pelo nazismo alemão contra judeus e doentes, não é
considerada eutanásia própria, mas homicídio simples e qualificado. Também a morte de
velhos, pessoas com deformação e doentes, mesmo incuráveis, mas que não se encontram em
estado terminal e submetidos a forte sofrimento, também não é eutanásia (que se encaixa em
hipótese de homicídio privilegiado)‖. (BORGES, p. 234-235).
Em sua obra Roxana Cardoso Brasileiro Borges cita Maria Helena Diniz:
―Maria Helena Diniz relata que os Códigos Penais da Alemanha, da Suíça e da Itália
encaixam a eutanásia no tipo de homicídio atenuado por motivo piedoso, não se admitindo
absolvição nem perdão judicial‖ (DINIZ, 2001 apud BORGES, p. 235).
Para Roxana, ―No Brasil o que se chama de eutanásia é considerado crime.
Encaixa-se na previsão do art. 121, homicídio. Se se trata mesmo da eutanásia verdadeira,
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cometida por motivo de piedade ou compaixão para com o doente, aplica-se a causa de
diminuição de pena do § 1º do art. 121, que prevê: ―Se o agente comete o crime impelido por
motivo de relevante valor social ou moral, ou sob o domínio de violenta emoção, logo em
seguida a injusta provocação da vítima, ou juiz pode reduzir a pena de um sexto a um terço‖.
(BORGES, p. 235). ―O suicídio assistido, ou o auxílio ao suicídio, é também crime. Ocorre
com a participação material, quando alguém ajuda a vítima a se matar oferecendo-lhe meios
idôneos para tanto. Assim, um médico, enfermeiro, amigo ou parente, ou qualquer outra
pessoa, ao deixar disponível e ao alcance do paciente certa droga em dose capaz de lhe causar
a morte, mesmo com a solicitação deste, incorre nas penas de auxílio ao suicídio. A vítima é
quem provoca, por atos seus, sua própria morte. Se o ato que visa à morte é realizado por
outrem, este responde por homicídio, não por auxílio ao suicídio. A solicitação não afasta a
ilicitude da conduta‖. (BORGES, p. 236)
Do ponto de vista médico, é interessante citar o conteúdo de uma obra voltada
aos estudantes de Medicina, o Tratado de medicina interna, editado por Lee Goldman e
Dennis Ausiello: ―É muito comum argumentar que os modernos avanços da tecnologia
médica, os antibióticos, a diálise, o transplante e as unidades de cuidados intensivos criaram
dilemas bioéticos com os quais se defrontam os médicos do século XXI. Entretanto, as
preocupações sobre aspectos éticos são tão antigas quanto a prática da própria medicina. O
juramento de Hipócrates, composto por volta de 400 a.C., atesta a necessidade dos médicos
gregos antigos disporem de orientação sobre como abordar os muitos dilemas bioéticos com
os quais se deparavam. O juramento aborda assuntos como confidencialidade, aborto,
eutanásia, relações sexuais entre o médico e o paciente, conflito de lealdades e, pelo menos
implicitamente, atendimento caritativo e execuções. Outros trabalhos de Hipócrates abordam
questões como a suspensão do tratamento em pacientes em estado terminal e a comunicação
da verdade. Quer concordemos com a orientação fornecida ou não, o ponto importante é que
muitas questões bioéticas não são criadas pela tecnologia, porém são intrínsecas à prática
médica. A tecnologia pode intensificar a freqüência dessas questões e modificar o contexto
em que surgem, mas existem aspectos bioéticos básicos atemporais.
Muitos médicos conhecem os quatro princípios principais a serem invocados
ao abordar dilemas bioéticos: autonomia, não-maleficiência, beneficiência e justiça. A
autonomia compreende a idéia de que as pessoas devem ter o direito e a liberdade de escolher,
perseguir e rever seus próprios planos de vida. A não-maleficiência é a idéia de que as pessoas
não devem ser lesionadas ou feridas conscientemente; este princípio está encerrado no dizer,
muito repetido, de que o médico tem, em primeiro lugar, a obrigação de ―não fazer o mal‖ –
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primum non nocere. Esse enunciado não está formulado no juramento de Hipócrates e nem
em outros trabalhos desse autor: a única frase parecida, porém não idêntica, de Hipócrates, é:
―na pior das hipóteses, não fazer mal‖. Embora a não-maleficiência tenha relação com evitar
danos, a beneficiência está relacionada com ações positivas que o médico deve empreender
para promover o bem-estar de seus pacientes. Na prática clínica, essa obrigação costuma
basear-se nos compromissos implícitos e explícitos das promessas que cercam a relação
médico-paciente. Finalmente, existe o princípio da justiça, que é a justa distribuição de
benefícios e ônus. (p. 5-6)
suporte à vida, que é reconhecida e eticamente justificada. Nos dois casos, o paciente consente
em morrer; nos dois casos, o médico tem a intenção de interromper a vida do paciente e adota
alguma atitude para fazê-lo; e, nos dois casos, o resultado final é idêntico: a morte do
paciente. Se não há diferença no consentimento do paciente, na intenção do médico ou no
resultado final, não pode haver diferença na justificativa ética. O quarto argumento é que é
improvável que se abra uma porta para deslizes como decorrência da permissão para eutanásia
e suicídio assistido por médico. A idéia de que a permissão de eutanásia e suicídio assistido
por médico poderiam comprometer a relação médico-paciente e induzir eutanásias forçadas é
pura especulação, não respaldada pelos dados disponíveis. (p. 9)
O que é uma ―boa morte‖? Não existe uma forma correta de morrer, exceto na
medida em que corresponda aos desejos de um paciente bem informado. O ponto de vista do
paciente sobre o que seja uma ―boa morte‖ é muito pessoal e, com freqüência, diferente da
perspectiva dos médicos. Objetivos psicossociais e espirituais freqüentemente têm prioridade
em relação aos biomédicos. Bons cuidados no final da vida exigem que o médico compreenda
valores e aspirações do paciente. Os médicos tendem a considerar que seu papel é prolongar a
vida a qualquer custo razoável, ao passo que os pacientes podem dar prioridade a permanecer
em casa, viver alguns momentos significativos com a família e evitar um prolongamento
desnecessário, caro e fisicamente desgastante da vida. Os membros da família, embora sempre
esperem a cura ou o prolongamento da vida, podem reconhecer que transmitir o seu amor e
usufruir do relacionamento com o paciente são atitudes mais importantes do que deixar o
paciente suportar mais alguns dias em desconforto. (p. 13)
Desde os primórdios da medicina, era considerado ético não administrar
tratamento médico a pacientes com doenças terminais, deixando-se ―que a natureza seguisse o
seu rumo‖. Hipócrates argumentava que os médicos deveriam ―recusar-se a tratar daqueles
[pacientes] que já estejam excessivamente subjugados por sua doença‖. No século XIX,
eminentes médicos americanos defendiam a não-administração de ―tratamento‖ cartático e
hermético a doentes terminais, usando-se, em vez disso, o éter para aliviar a dor do final da
vida. Em 1900, os editores de The Lancet argumentavam que os médicos deveriam intervir no
sentido de minorar a dor da morte, mas não tinham obrigação de prolongar uma vida
claramente terminal. O debate contemporâneo sobre a atenção a pacientes terminais iniciou-se
em 1976, com o caso Quinan, no qual a Suprema Corte de New Jersey concluiu que os
pacientes tinham o direito de recusar intervenções de suporte à vida, com base no direito à
privacidade, e que a família poderia exercer esse direito pelo paciente que estivesse em estado
vegetativo persistente. (p. 7)
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Cristianismo
Em 1980, o Vaticano divulgou uma Declaração Sobre a Eutanásia, na qual reitera
que "nada nem ninguém pode de qualquer forma permitir que um ser humano
inocente seja morto, seja ele um feto ou um embrião, uma criança ou um adulto, um
velho ou alguém sofrendo de uma doença incurável, ou uma pessoa que está
morrendo." Alguns cristãos defendem o sofrimento na hora da morte como uma
oportunidade para que os cristãos se identifiquem com a agonia de Jesus.
Judaísmo
O Velho Testamento fala na sacralidade da vida humana. A posição da maioria dos
religiosos é a de que a eutanásia e o suicídio assistido são uma ofensa a Deus.
Alguns líderes judeus, entretanto, acreditam que manter uma vida por aparelhos
pode impedir que a alma entre no paraíso.
Islamismo
O Alcorão diz: "Não tire a vida que Alá fez sagrada a não ser no exercício da
Justiça". Os muçulmanos vêem a morte piedosa como um crime e um pecado.
Hinduísmo
Os hindus têm a obrigação de respeitar os velhos e de cuidar deles até a morte. Não
se cogita tirar a vida de um moribundo.
Budismo
É a única das grandes religiões a aceitar a morte piedosa, quando o sofrimento de se
manter vivo é pior que a morte. A decisão deve ser tomada caso a caso.
19
REFERÊNCIA
CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal, volume 2: parte especial: dos crimes contra a
pessoa e dos crimes contra o sentimento religioso e contra o respeito aos mortos (arts. 121 a
212) / Fernando Capez. – 7 ed. rev. e ampl. – São Paulo : Saraiva, 2007.
CECIL, Tratado de medicina interna / editado por Lee Goldman, Dennis Ausiello;
[tradução de Ana Kemper... et al.] – Rio de Janeiro: Elsevier, 2005.
20
FRAGOSO, Heleno C. Lições de direito penal; parte especial, Rio de Janeiro, Forense,
1981, v. 1, p. 99.
NALINI, José Renato. Ética geral e profissional / José Renato Nalini. - 7. ed. rev., atual. e
ampl. - São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009.