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Superior Tribunal de Justiça

RECURSO ESPECIAL Nº 910.802 - RJ (2006/0273327-0)

RECORRENTE : PANFLOR EMPREENDIMENTOS LTDA


ADVOGADO : RICARDO XAVIER ARAÚJO FEIO E OUTRO(S)
RECORRIDO : MUNICÍPIO DO RIO DE JANEIRO
PROCURADOR : JÚLIO REBELLO HORTA E OUTRO(S)

RELATÓRIO

A EXMA. SRA. MINISTRA ELIANA CALMON: - Trata-se de recurso


especial interposto, com base nas alíneas "a" e "c" do permissivo constitucional, contra acórdão
do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. A decisão colegiada, proferida em agravo de
instrumento, confirmou liminar concedida pelo juiz de primeiro grau, em ação civil pública movida
pelo Município do Rio de Janeiro, determinando a continuidade do fornecimento de alimentação
aos pacientes, acompanhantes e servidores de hospitais da cidade, independentemente de
pagamento, atrasado há quase oito meses. A decisão recorrida ficou assim resumida (fl. 688):

ADMINISTRATIVO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA PROPOSTA PELO


MUNICÍPIO DO RIO DE JANEIRO. Proibição de suspensão do fornecimento de
alimentação aos pacientes, acompanhantes e servidores de hospitais da cidade, a despeito
da alegada inadimplência da Administração Pública. O princípio da continuidade do
serviço público impede a cessão sumária da execução do contrato.
Decisão hostilizada que expressamente condiciona a obrigatoriedade de
prestação de serviço ao depósito dos valores devidos, revelando correta ponderação dos
valores envolvidos.
Desprovimento do recurso.

Aponta a recorrente negativa de vigência aos arts. 66 e 78, XV, da Lei 8.666/93 e
ao art. 5º, II, III, LIV e LV da CF/88.
Sustenta que a lei não chancela conduta ilícita da Administração; acima dos
princípios da supremacia do interesse público sobre o particular e da indisponibilidade do interesse
público estão os princípios constitucionais da legalidade e da reserva legal; inexistindo qualquer
disposição legal que obriga uma empresa a trabalhar gratuitamente, não cabe o juiz, a pretexto do
atingimento de um ideal subjetivo de justiça, criar regra descabida.
Alega, em síntese, que:
a) não se trata de cessação sumária dos serviços de fornecimento de
alimentação, mas do exercício legítimo de um direito previsto em lei, posto que, desde
outubro/2004 as empresas vêm alertando o Município sobre os riscos de um desabastecimento de
alimentação nos hospitais municipais em virtude da própria impossibilidade material da prestação,
por não mais disporem de recursos financeiros para a aquisição de gêneros alimentícios caros e
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imprescindíveis ao preparo das refeições especiais;
b) os recorrentes não precisam pedir "autorização judicial" para suspendem o
cumprimento de seus serviços; e
c) a via judicial presta-se apenas na hipótese do particular desejar rescindir o
contrato com a Administração Pública, não para suspender o fornecimento, sendo bastante que o
atraso no pagamento das faturas ultrapasse o prazo legal de 90 (noventa) dias, como autorizado
pelo art. 78, XV, 2ª parte, da Lei 8.666/93 e art. 6º, § 3º, II, da Lei 8.987/95.
Aponta, ainda, negativa de vigência aos arts. 126, 131, 165, 458, II e 535, todos do
CPC, afirmando que o acórdão recorrido carece de fundamentação.
Para configurar o dissídio, invoca precedentes desta Corte no REsp 337.965/MG
e de próprio Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro.
Sem contra-razões, subiram os autos por força de agravo de instrumento.
Relatei.

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Superior Tribunal de Justiça
RECURSO ESPECIAL Nº 910.802 - RJ (2006/0273327-0)

RELATORA : MINISTRA ELIANA CALMON


RECORRENTE : PANFLOR EMPREENDIMENTOS LTDA
ADVOGADO : RICARDO XAVIER ARAÚJO FEIO E OUTRO(S)
RECORRIDO : MUNICÍPIO DO RIO DE JANEIRO
PROCURADOR : JÚLIO REBELLO HORTA E OUTRO(S)

VOTO

A EXMA. SRA. MINISTRA ELIANA CALMON (RELATORA): -


Advirto, preliminarmente, que descabe a esta Corte, em sede de recurso especial, apreciar
ofensa a dispositivo constitucional.
Verifico que, no tocante à alegada infringência do art. 535 do CPC, não
apresentou a recorrente, com clareza e objetividade, quais os fatos que amparam a suposta
violação. Limitou-se a fazer alegações genéricas sobre a existência de defeito na prestação
jurisdicional, sem, contudo, indicar precisamente em que consiste a omissão, contradição ou
obscuridade. Dessa forma, concluindo pela deficiência na fundamentação nesse ponto, aplico o
teor da Súmula 284/STF.
Não vislumbro, outrossim, ofensa aos arts. 126, 131, 165, 458, II, do CPC, porque
suficientemente fundamentado o decisum .
O Tribunal entendeu que (fls. 693):

O princípio maior, da continuidade do serviço público, impede que o


particular paralise a execução do contrato diante da omissão ou atraso da Administração
no cumprimento das obrigações a seu cargo. Em tais contratos essa exceção é substituída
pela subseqüente indenização dos prejuízos suportados pelo particular, ou mesmo pela
rescisão por culpa da administração. O que não se permite é a cessação sumária da
execução do contrato, sob a invocação da falta da administração.

Sobre o art. 78, XV, da Lei 8.666/93, reconheceu o TJ/RJ que o dispositivo não
tem o alcance pretendido pelas então agravantes, pois a suspensão no cumprimento das
obrigações do contratante pode ser, uma vez preenchidos os requisitos legais, deferida, desde
pleiteada judicialmente - o que inocorreu no caso em tela.
E acrescentou o relator:

Ressalte-se que, a par das lúcidas ponderações do Ministério Público,


que fulminam a pretensão recursal, ocorreram alterações fáticas com relevância para o
desfecho deste recurso. No dia 27 de janeiro foi proferida nova decisão, determinando o
pagamento em data exata e autorizando que fosse realizado de forma administrativa
diretamente aos agravados (fls. 590).
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Assim, não se apresente o quadro delineado pelas agravantes, que
retrataram completa inadimplência do ente público e a conseqüente impossibilidade de
prosseguimento no fornecimento do serviço contratado. É o que deflui, igualmente, dos
documentos de fls. 592/594 e fls. 652/677, que indicam que a decisão agravada não impôs o
fornecimento do serviço independentemente de qualquer contraprestação.
(fls. 693/694)

Os arts. 66 e 78, XV, da Lei 8.666/93, dispõem, respectivamente:

Art. 66. O contrato deverá ser executado fielmente pelas partes, de acordo
com as cláusulas avençadas e as normas desta Lei, respondendo cada uma pelas
conseqüências de sua inexecução total ou parcial.

Art. 78. Constituem motivo para rescisão do contrato:


(...)
XV - o atraso superior a 90 (noventa) dias dos pagamentos devidos pela
Administração decorrentes de obras, serviços ou fornecimento, ou parcelas destes, já
recebidos ou executados, salvo em caso de calamidade pública, grave perturbação da
ordem interna ou guerra, assegurado ao contratado o direito de optar pela suspensão do
cumprimento de suas obrigações até que seja normalizada a situação;

Sobre o tema, encontrei na jurisprudência desta Corte o seguinte precedente:

ADMINISTRATIVO E CONSTITUCIONAL – CORREÇÃO MONETÁRIA


– LEI N. 8.030/90 – QUESTÕES CONSTITUCIONAIS TRADUZIDAS NA DISCUSSÃO
SOBRE ATO JURÍDICO PERFEITO E RETROAÇÃO MÁXIMA OU MÍNIMA DA LEI
NÃO PODEM SER DIRIMIDAS EM RECURSO ESPECIAL POR ESTAREM AFETAS AO
STF – LICITAÇÃO – CONTRATO – MODERAÇÃO DA EXCEÇÃO DO CONTRATO
NÃO CUMPRIDO – POSSIBILIDADE – ART. 78, XV, DA LEI DE LICITAÇÕES E
CONTRATOS ADMINISTRATIVOS.
1. Questões afetas ao ato jurídico perfeito traduzem matéria
constitucional, impossível de serem visitadas em sede de recurso especial. Precedentes.
2. Como reconhecido na doutrina e na jurisprudência, a regra de
não-aplicação da exceptio non adimplenti contractus não é absoluta, permitindo o art. 78,
XV, da Lei n. 8.666/93 sua aplicação moderada após atraso de pagamento superior a 90
dias.
Agravo regimental improvido.
(AgRg no REsp 326.871/PR, Rel. Ministro HUMBERTO MARTINS, SEGUNDA TURMA,
julgado em 07.02.2008, DJ 20.02.2008 p. 124)

Com o advento da Lei 8.666/93, não mais tem sentido a discussão sobre o
cabimento ou não da inoponibilidade da exceptio non adimpleti contractus contra a
Administração, ante o teor do art. 78, XV, do referido diploma legal. Por isso, despicienda a
análise da questão sob o prisma do princípio da continuidade do serviço público.
O que se questiona, nessa demanda, é se o contratado, tendo a Administração
permanecido inadimplente por mais de 90 (noventa) dias, pode, sponte propria , deixar de
cumprir suas obrigações contratuais ou se seria indispensável, para valer-se do direito à
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suspensão, de provimento judicial.
A Profª Maria Sylvia Zanella di Pietro trata do tema, sem, entretanto, condicionar
o exercício desse direito a um provimento judicial. Vejamos:

Grande parte dos doutrinadores entende que essa exceção não pode ser
aplicada no direito administrativo, principalmente pelo fato de que, neste, o contratado
assume o papel de colaborador da Administração Pública e, como tal, age no interesse
público, que não pode ficar prejudicado pela paralisação na execução do contrato.
Essa doutrina sofre hoje algum abrandamento, pois já se aceita que a
exceptio non adimpleti contractus seja invocada pelo particular contra a Administração,
embora sem a mesma amplitude que se apresente no direito privado. Neste, os interesses
das partes são equivalentes e se colocam no mesmo pé de igualdade; no contrato
administrativo, os interesses das partes são diversos, devendo, em determinadas
circunstâncias, prevalecer o interesse público que incumbe, em princípio, à Administração
proteger. Por isso, o particular deve, como regra, dar continuidade ao contrato, evitando
de, sponte sua, paralisar a execução do contrato, já que a rescisão unilateral é prerrogativa
da Administração; o que o particular pode e deve fazer, até mesmo para acautelar seus
interesses, é pleitear a rescisão, administrativa ou judicialmente, aguardando que ela seja
deferida.
Essa regra admite exceção pela aplicação da teoria do fato da
Administração, quando sua conduta tornar impossível a execução do contrato ou causar
ao contratado um desequilíbrio econômico extraordinário, que não seria razoável exigir que
suportasse, pela desproporção entre esse sacrifício e o interesse público a atingir pela
execução do contrato.
A Lei nº 8.666/93 previu uma hipótese em que é possível, com critério
objetivo, saber se é dado ou não ao particular suspender a execução do contrato. Trata-se
da norma do artigo 78, inciso XV, segundo a qual constitui motivo para a rescisão do
contrato "o atraso superior a 90 dias dos pagamentos devidos pela Administração
decorrentes de obras, serviços ou fornecimento, ou parcelas destes, já recebidos ou
executados, salvo em caso de calamidade pública, grave perturbação da ordem interna ou
guerra, assegurado ao contratado o direito de optar pela suspensão do cumprimento de
suas obrigações até que seja normalizada a situação".
Isto significa que, ultrapassados os 90 dias sem que a Administração
efetue os pagamentos em atraso, é dado ao contratado, licitamente, suspender a execução
do contrato.
O dispositivo prevê exceção para os casos de calamidade pública, grave
perturbação da ordem interna ou guerra, hipóteses em que não se aplica a regra dos 90
dias, se as ocorrências previstas no dispositivo impuserem a paralisação antes desse prazo
limite.
(in Direito Administrativo, 20ª ed, Atlas, São Paulo, 2007, p. 261/262)

Segundo Odete Medauar, a "Lei 8.666/93 contempla casos em que o particular


pode invocar a exceção do contrato não cumprido. Possibilita que o particular solicite a rescisão
do contrato ou suspenda seu cumprimento até a normalização da situação nos casos de: a)
suspensão da execução, por ordem escrita da Administração, por mais de 120 dias, salvo
calamidade, guerra, grave perturbação da ordem, ou por repetidas suspensões que totalizem esse
prazo; b) atraso dos pagamentos, superior a 90 dias, salvo calamidade, guerra, grave perturbação
da ordem. O particular também poderá pleitear a rescisão se a Administração não liberar área,
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local ou objeto necessário à execução do contrato (art. 78, incs. XIV, XV e XVI)" (in Direito
Administrativo Moderno, 11ª ed., RT, São Paulo, 2007, p. 215).
Com a devida vênia, discordo da posição adotada pelo Tribunal por entender que,
condicionar a suspensão da execução do contrato ao provimento judicial, é fazer da lei letra
morta.
Reforçando essa posição, trago doutrina do Prof. José dos Santos Carvalho Filho
segundo o qual, reportando-se ao art. 78, XV, da Lei 8.666/93, é possível, inclusive, a suspensão
antes dos 90 (noventa) dias, mas, nessa específica hipótese, necessária a tutela jurisdicional.
Vejamos:

O dispositivo, como se vê, parece considerar que, antes de 90 dias, não


possa o particular reclamar do atraso nos pagamentos. Entendemos, entretanto, que, em
situações especiais, se o prejudicado, mesmo antes desse prazo, ficar impedido de dar
continuidade ao contrato por força da falta de pagamento, tem ele direito à rescisão do
contrato por culpa da Administração. Fora daí, é admitir-se a ruína do contratado por falta
contratual imputada à outra parte, o que parece ser inteiramente iníquo e injurídico.
Ocorrendo tal situação excepcional, o interessado pode recorrer à via
judicial e, por meio de ação cautelar, formular pretensão no sentido de lhe ser conferida
tutela preventiva imediata, com o deferimento de medida liminar para o fim de ser o
contratado autorizado a suspender o objeto do contrato, evitando-se que futuramente
possa a Administração inadimplente imputar-lhe conduta culposa recíproca. Segundo nos
parece, esse é o único caminho a ser seguido para impedir que a Administração, que está
descumprindo obrigação contratual, se locuplete de sua própria torpeza.
(in Manual de Direito Administrativo, 14ª ed., Lumen Juris, Rio de Janeiro, 2005, p. 164).

Por fim, enriqueço o entendimento com precedente do Tribunal de Justiça do Rio


de Janeiro, exarado no Processo Administrativo 13.705/96, decidido no âmbito da administração
da Corte, transcrito em "Comentários à Lei das Licitações e Contratações da Administração
Pública", do Desembargador Jessé Torres Pereira Júnior.
A questão ali enfrentada é em tudo semelhante à hipótese dos autos, senão
vejamos:
1) a empresa E.D.A. Ltda. suspendeu o fornecimento de gêneros alimentícios a
que estava obrigada por contrato oriundo de certame licitatório;
2) aplicou-lhe a Administração, por força do contato não cumprido, as penalidades
administrativas previstas no artigo 87 da Lei de Licitações;
3) declarou-se, administrativamente, justificada a suspensão das obrigações e
rescindido o contrato, com a exclusão das penalidades.

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Com essas considerações, conheço em parte do recurso e, nessa parte, dou-lhe
provimento.
É o voto.

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