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Geografia Agrária

Material Teórico
Reforma Agrária e Lutas no Campo no Brasil

Responsável pelo Conteúdo:


Prof. Ms. Eduardo Augusto Wellendorf Sombini

Revisão Técnica:
Profa. Dra. Vivian Fiori

Revisão Textual:
Profa. Esp. Kelciane da Rocha Campos
Reforma Agrária e Lutas
no Campo no Brasil

• Introdução
• A Modernização Conservadora
• Reforma Agrária e Lutas no Campo

OBJETIVO DE APRENDIZADO
· Tratar da questão da reforma agrária e as lutas no campo no Brasil.
· Destacar a violência e os movimentos sociais no campo.
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No material de cada Unidade, há leituras indicadas. Entre elas: artigos científicos, livros, vídeos e
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encontrará sugestões de conteúdo extra no item Material Complementar, que ampliarão sua
interpretação e auxiliarão no pleno entendimento dos temas abordados.

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UNIDADE Reforma Agrária e Lutas no Campo no Brasil

Introdução
Nesta unidade, vamos tratar da questão das desigualdades e da modernização
conservadora existente no Brasil, pois apesar das transformações empreendidas na
agricultura as condições sociais no campo continuam com vários problemas, com
a expropriação de trabalhadores e concentração de terras nas mãos de poucos.

A Modernização Conservadora
Nas últimas décadas houve profundas transformações dos usos agrícolas do ter-
ritório brasileiro. Essas mudanças estão diretamente associadas ao amplo processo
de modernização do país, que se acelerou na segunda metade do século XX.

Esse processo é comumente chamado de “modernização conservadora” (PIRES


& RAMOS, 2009), já que combina a ampliação das densidades técnicas e o avanço
das relações capitalistas de produção no país, ao mesmo tempo em que não
promove reformas no sentido da redistribuição de renda e da justiça social. Não se
trata, portanto, de uma transformação linear, mas de um processo marcado por
contradições e conflitos generalizados.

Esse tipo específico de modernização pode ser visto em diversas situações


geográficas no país. É o caso, por exemplo, das metrópoles, que vêm se expandindo,
sobretudo por meio da constituição de periferias pobres, que abrigam de forma
precária os trabalhadores de baixa renda.

No campo, esse processo pode ser analisado pela força de permanência da


estrutura fundiária altamente concentrada, que pressiona os agricultores campone-
ses e todos os demais usos que não correspondam à racionalidade econômica de
maximização dos lucros.

É o caso, entre outros, dos indígenas e das comunidades quilombolas que, com a
modernização da agricultura e o avanço das fronteiras agrícolas nas últimas décadas,
vêm tendo seus direitos territoriais sistematicamente negados. É constante, na
história do território brasileiro, a expulsão desses grupos de suas terras, com o uso
de intensa violência, por latifundiários e grileiros, além dos contextos de realização
de grandes projetos de infraestrutura, como a construção de hidrelétricas.

Todos esses agentes sociais, porém, vêm se organizando com o intuito de resistir ao
avanço da modernização conservadora que vem ocorrendo no país. São os casos dos
posseiros, dos arrendatários, dos sem-terra, dos seringueiros da Floresta Amazônica,
dos atingidos por barragens, dos indígenas e dos quilombolas, entre outros.

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Como comenta Fernandes (2007, p. 141):
Essas resistências têm duas motivações principais: se contrapor à expulsão
das terras que esses grupos ocupam e buscar obter a posse de parcelas
de terra para a produção camponesa, como é o caso dos sem-terra.
As lutas camponesas para ficar na terra – principalmente a resistência dos
posseiros na Amazônia, através dos sindicatos de trabalhadores rurais – ou
entrar nela – especialmente as ocupações no Nordeste e no Centro-Sul –
compõem as diferentes formas de resistência do campesinato brasileiro.

Essas lutas, que vêm ocorrendo há décadas em todo o território brasileiro, estão
na origem de diversos movimentos sociais que se opõem ao modelo dominante de
expansão e modernização da agricultura do país, voltada para o aprofundamento
da lógica do agronegócio, e defendem a realização de uma verdadeira reforma
agrária no Brasil.

O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST) vem sendo, sem


dúvida, o principal articulador das lutas sociais no campo, mas há um conjunto
de outros movimentos sociais e organizações de importância, como a Comissão
Pastoral da Terra (CPT), a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura
(CONTAG), o Conselho Nacional das Populações Extrativistas e o Movimento dos
Atingidos por Barragens (MAB).

Conforme comenta a autora (MEDEIROS, 2003, p. 07):


Apesar de todas as profecias em torno da resolução da questão agrária
pela modernização tecnológica do campo, o século XXI iniciou-se mos-
trando uma extraordinária vitalidade da luta por terra e da demanda por
reforma agrária. Não obstante o fato de o Brasil se destacar mundialmen-
te como exportador de produtos agrícolas e de essas exportações serem
alardeadas como essenciais para garantir a estabilidade econômica, não é
menos verdade que a pobreza tem aumentado continuamente e o tecido
social tem dado mostras de graves esgarçamentos [...]. São esses elemen-
tos que fazem que o acesso à terra se constitua em uma das alternativas
possíveis de sobrevivência e, mais que isso, em perspectiva ou sonho de
uma vida digna.

As lutas pela reforma agrária, que remontam à década de 1950, vêm se


atualizando e tendo seus conteúdos renovados desde então. Buscaremos, nesta
unidade, apresentar o debate a respeito da reforma agrária no país e os percursos
dos movimentos sociais do campo.

Para tanto, é necessário considerar dois pressupostos. O primeiro diz respeito


ao caráter específico do desenvolvimento capitalista no Brasil, que não opõe
necessariamente os proprietários fundiários aos capitais que participam dos circuitos
espaciais de produtos agrícolas e, portanto, apresenta um traço fortemente rentista,
como discutimos anteriormente.

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UNIDADE Reforma Agrária e Lutas no Campo no Brasil

Isto significa que, ao contrário de diversos outros países em que a concentração


fundiária foi tratada como um entrave ao pleno desenvolvimento das forças produ-
tivas capitalistas, no Brasil a reforma agrária não tem sido seriamente discutida, já
que há formas específicas de desenvolvimento do capitalismo no campo que não são
ameaçadas pela estrutura fundiária concentrada e com altas taxas de ociosidade.

No Brasil, o desenvolvimento do modo capitalista de produção se faz


principalmente pela fusão, em uma mesma pessoa, do capitalista e do proprietário
de terra. Este processo, que teve sua origem na escravidão, vem sendo cada vez
mais consolidado, desde a passagem do trabalho escravo para o trabalho livre,
particularmente com a Lei da Terra e o final da escravidão. Mas, foi na segunda
metade do século XX que esta fusão se ampliou significativamente (OLIVEIRA,
2001, p. 186).

Veja o gráfico a seguir, elaborado por Eduardo Paulo Girardi (2008, p. 32),
evidenciando a questão de trabalhadores escravos no Brasil. Como explica o autor:
Outra forma de violência contra o trabalhador rural brasileiro é a
escravidão. Em sua forma contemporânea, a escravidão no campo
brasileiro usa como principal instrumento de controle a dívida impagável
e crescente, a coação física e psicológica, a apreensão de documentos e
o isolamento geográfico. Os trabalhadores escravizados são aliciados em
regiões distantes do local de trabalho. Não há caráter racial. A duração da
escravidão do trabalhador é indeterminada, mas geralmente temporária. Os
trabalhadores são submetidos a longas jornadas de trabalho e a condições
subumanas de alimentação, moradia e salubridade. O trabalho escravo é
empregado principalmente em tarefas pesadas como o desmatamento,
limpeza de pastos (arrancar tocos), produção de carvão e corte de cana.

Figura 1
Fonte: uff.br

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Como se evidencia no gráfico, no começo dos anos 1990 o número de
trabalhadores escravos denunciados pela Comissão de Pastoral da Terra (CPT) era
bastante alto. Como as normas governamentais passaram a coibir e fiscalizar mais
estes casos os números foram diminuindo, mas ainda são elevados nos dias atuais.

Reforma Agrária e Lutas no Campo


Nas décadas de 1950 e 1960, a discussão a respeito da reforma agrária estava
centrada na necessidade de combater a concentração fundiária e sua principal
expressão – o latifúndio –, para permitir a aceleração da industrialização brasileira
e, portanto, o aprofundamento do capitalismo no Brasil.

Os latifundiários eram associados a uma herança do passado colonial e, dessa


forma, ao atraso do país. Essa era a tese defendida pelo Partido Comunista
Brasileiro (PCB), que começou a mobilizar os diversos conflitos no campo brasileiro.
O PCB difundia no país as teses da Internacional Socialista, que pregavam que
os latifúndios representavam a permanência de relações feudais e deveriam ser
combatidos (MEDEIROS, 2003, p. 15). Para tanto, acreditava-se que era possível
estabelecer alianças com a burguesia nacional, pretensamente interessada em se
opor à concentração fundiária por esses motivos.

Essa concepção se mostrou, ao longo das décadas seguintes, equivocada e pou-


co operacional. O regime militar, ao promover a modernização acelerada da agri-
cultura brasileira, afastou a possibilidade de desconcentração da estrutura fundiária
brasileira e, ao mesmo tempo, produziu uma associação bastante peculiar entre
latifundiários e capitais industriais e financeiros, de origem nacional e internacional.

Com as medidas de estímulo ao avanço das fronteiras agrícolas, o Estado


incentivou esses capitalistas a se tornarem grandes proprietários de terra, sobretudo
nas áreas de cerrado e na Amazônia. Essas propriedades se constituíram a partir
de fortes incentivos fiscais e deram origem a latifúndios em boa parte das vezes
improdutivos, que eram utilizados para obter empréstimos bancários e permitir a
especulação financeira e investimentos em outras atividades não-agrícolas.

O geógrafo Ariovaldo Umbelino de Oliveira (2001, p.186) explica:


[...] a chamada modernização da agricultura não vai atuar no sentido da
transformação dos latifundiários em empresários capitalistas, mas, ao
contrário, transformou os capitalistas industriais e urbanos – sobretudo do
Centro-Sul do país – em proprietários de terra, em latifundiários. A política
de incentivos fiscais da Sudene e da Sudam foram os instrumentos de
política econômica que viabilizaram esta fusão. Dessa forma, os capitalistas
urbanos tornaram-se os maiores proprietários de terra no Brasil, possuindo
áreas com dimensões nunca registradas na história da humanidade.

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UNIDADE Reforma Agrária e Lutas no Campo no Brasil

A segunda premissa é o papel do Estado em relação às políticas fundiária e


agrícola e as possibilidades de realização da reforma agrária. De forma geral, a
estruturação do sistema político brasileiro e a consequente representação, no
Congresso Nacional, dos diversos grupos de interesse do país faz com que as vozes
dos movimentos sociais do campo sejam extremamente minoritárias.

Como consequência, as pautas da agenda política a respeito da agricultura


têm sido dominadas pelos interesses dos latifundiários e do agronegócio. A
chamada bancada ruralista do Congresso Nacional é, sem dúvida, o exemplo mais
emblemático da força política desses interesses.

Portanto, essas características fazem com que os debates a respeito da agricultura


camponesa e da concentração fundiária no país não sejam tratados como questões
fundamentais para o desenvolvimento nacional. As desapropriações de terras e o
assentamento de famílias sem-teto, por sua vez, estão muito mais relacionados à
pressão direta dos movimentos sociais.

Sobre isso comenta Fernandes (2007, p, 140):


O Estado tem tratado a questão agrária somente com políticas conjunturais,
conforme o poder de mobilização dos movimentos camponeses. A razão
dessa postura se deve ao controle político do Estado pelos ruralistas, o
que tem impedido o desenvolvimento da agricultura camponesa no Brasil.
Esse monopólio determinou as condições para que a modernização da
agricultura mantivesse a estrutura fundiária concentrada, impedindo o
acesso à terra aos camponeses.

Os movimentos sociais do campo ganharam força a partir do final da década de


1970, após um período de forte repressão durante a ditadura militar. A Comissão
Pastoral da Terra (CPT) foi fundada em 1975 e o Movimento dos Trabalhadores
Sem-Terra (MST) foi criado em 1984. O MST surgiu a partir da experiência de
posseiros e arrendatários do centro-sul do país que resistiam à expulsão das terras
que ocupavam e, ao longo dos anos subsequentes, ampliou sua organização interna
e sua escala de atuação.

Figura 2
Fonte: mst.org.br

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O movimento utiliza duas estratégias principais de atuação: os acampamentos,
normalmente às margens de rodovias, que concentram famílias sem-terra com o
intuito de evidenciar a precariedade das condições de vida desses trabalhadores e
pressionar o poder público a realizar desapropriações e assentamentos para essas
famílias; e as ocupações de latifúndios, com o objetivo de denunciar o desrespeito à
função social da propriedade e a concentração fundiária brasileira, além de buscar
reverter essas terras para as famílias do movimento.

Além dessas duas estratégias principais, o MST realiza também marchas


nacionais e manifestações, além de construir articulações internacionais com outros
movimentos sociais e promover um amplo trabalho de formação política de base.

A estrutura institucional do MST está organizada em três setores (FERNAN-


DES, 2007):
• As instâncias de representação, que correspondem à organização política e
as instâncias de decisão do movimento (núcleos, coordenações e direções,
submetidos aos encontros e ao congresso nacional);
• Os setores de atividades (como as secretarias administrativas e os setores
de educação e comunicação, entre outros), que desenvolvem os trabalhos
cotidianos do movimento, implementam projetos e mantêm interlocução com
os governos nos respectivos temas; e
• As organizações vinculadas (Associação Nacional de Cooperação Agrícola,
Confederação das Cooperativas de Reforma Agrária do Brasil, Instituto Técnico
de Capacitação e Pesquisa da Reforma Agrária, Escola Nacional Florestan
Fernandes), órgãos que realizam atividades específicas relacionadas ao MST.

A pressão dos movimentos sociais e os intensos conflitos no campo fez com


que o Estado brasileiro, com a redemocratização, buscasse criar uma política em
relação ao tema. Em 1985, durante a presidência de José Sarney, foi elaborado
o Plano Nacional de Reforma Agrária (PNRA), com a participação de diversas
organizações que articulavam as lutas sociais no campo.

O PNRA tinha como meta o assentamento de 1 milhão e 400 mil famílias e


previa que as terras necessárias seriam obtidas por meio da desapropriação por
interesse social, marcando uma ruptura com todas as propostas e medidas dos
governos militares, que tenderam a encará-la como último recurso e poucas vezes
a utilizaram.

A indenização das terras desapropriadas seria feita com base no valor


declarado para fins de cobrança do imposto territorial rural. Sendo este um preço
reconhecidamente abaixo do vigente no mercado, a proposta assumia, de forma
explícita, a concepção de desapropriação como uma penalização dos proprietários
fundiários por não darem à terra uma função social (MEDEIROS, 2003, p. 35).

O plano, portanto, era ambicioso em relação à quantidade de famílias


assentadas e à proposta de penalizar os latifundiários. Contrariando fortemente os
interesses dos ruralistas, o PNRA começou a ser fortemente combatido: os grandes

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UNIDADE Reforma Agrária e Lutas no Campo no Brasil

proprietários de terra, preocupados com a implementação do plano, se reuniram


em Brasília e fundaram a União Democrática Ruralista (UDR), com o objetivo de
barrar a proposta.

A UDR passou a incentivar o uso da violência contra as ocupações de terras e os


movimentos sociais do campo, acirrando ainda mais os conflitos agrários no país.
Por conta da força da UDR e das demais associações ruralistas, o PNRA nunca
se concretizou. Aproximadamente 85 mil famílias foram assentadas no governo
Sarney (FERNANDES, 2007), quantidade baixíssima em relação à meta do plano
e às demandas existentes no país.

Por outro lado, o caráter punitivo aos latifundiários foi abandonado nas
formulações posteriores ao PNRA. De acordo com Medeiros (2003), o debate
passou a se centrar na produtividade dos estabelecimentos, e não mais no tamanho
exacerbado das propriedades. As implicações sociais e territoriais perversas da
existência de latifúndios – e a consequente concentração da estrutura fundiária –
perderam espaço no debate sobre a questão agrária.

A função social da propriedade rural passou a ter como critério central os


índices de produtividade, que podem ser manipulados para justificar a legitimidade
social dos latifúndios e preservá-los da desapropriação por parte do Estado. Com
a derrocada da proposta do PNRA e a consequente ascensão das concepções dos
ruralistas, os movimentos sociais do campo e outras organizações defensoras da
reforma agrária se articularam para influenciar a Assembleia Nacional Constituinte,
apresentando uma emenda popular com mais de 1 milhão de assinaturas.

A influência dos ruralistas, por outro lado, se fez presente de forma ainda mais
incisiva, e a Constituição de 1988 tratou a reforma agrária de forma relativamente
tímida. Para Ariovaldo Oliveira (2001, p. 192), os latifundiários, representados
pela UDR, “ganharam, e fizeram do capítulo da Reforma Agrária um texto legal
de menor expressão que o próprio Estatuto da Terra”, lei aprovada no início da
ditadura militar. Várias medidas constantes na Constituição de 1988 se opõem
às concepções dos defensores da reforma agrária. Medeiros (2003) cita que as
desapropriações passaram a ser realizadas com indenizações a partir do valor de
mercado das propriedades e se incorporou a necessidade de uma regulamentação
posterior, que só ocorreu cinco anos mais tarde, para que pudessem ser realizadas.

A chamada Lei Agrária (8.629/1993) regulamentou o capítulo sobre a reforma


agrária, estabelecendo o marco jurídico desse tema no país. Na avaliação de diversos
pesquisadores, trata-se de uma lei extremamente favorável aos latifundiários e ao
agronegócio, já que não há uma tentativa explícita de reverter a concentração
fundiária brasileira. Diversas medidas introduzidas na lei dificultam a realização
de uma ampla reforma agrária no país, como a introdução da possibilidade de
contestação judicial das desapropriações.

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A Lei Agrária ainda manteve alguns pontos controversos, tornando as desapropriações
passíveis de discussões judiciais. O mais significativo deles diz respeito à tensão existente
entre os requisitos para o cumprimento da função social e a definição de que terras
produtivas não poderiam ser desapropriadas. Além disso, ao contrário das desapropriações
por utilidade pública, em que o proprietário só tinha condições de discutir na Justiça o valor
fixado para o ressarcimento, no caso das terras para fins de reforma agrária o proprietário
poderia levar aos tribunais o julgamento do mérito.
(Fonte: MEDEIROS, 2003, p. 42.)

Em 1994, com a eleição de Fernando Henrique Cardoso (PSDB) à Presidência


da República, começou a se aplicar no país um conjunto de medidas de caráter
neoliberal. A reforma agrária, mais uma vez, era preterida dos grandes temas da
agenda política nacional. Por outro lado, a forte mobilização dos movimentos
sociais no campo e o aprofundamento dos conflitos fundiários no país obrigou o
governo federal a criar medidas relacionadas à questão agrária. Em 1995, ocorreu
o massacre de Corumbiara, em Rondônia. Centenas de famílias sem-teto que
ocupavam a Fazenda Santa Elina, de quase 20 mil hectares, foram violentamente
reprimidos por policiais e jagunços contratados pelos latifundiários da região.

Oficialmente, nove pessoas foram mortas, mas há relatos de que houve dezenas
de execuções sumárias, além de torturas físicas e psicológicas. Em 1996, a violência
explodiu em Eldorado dos Carajás, no Pará. Mil e quinhentos trabalhadores do
MST estavam acampados na Fazenda Macaxeira, exigindo a desapropriação da
propriedade e sua destinação para a reforma agrária, quando policiais militares
cercaram o acampamento e começaram a atirar em direção aos sem-terra. Dezenove
trabalhadores foram assassinados e sessenta e nove ficaram gravemente feridos.

Figura 3
Fonte: anistia.org.br

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A ampla repercussão, nacional e internacional, dos massacres e de diversos


outros conflitos agrários no país obrigou o governo federal a dialogar com os
movimentos sociais do campo e acelerar a desapropriação e o assentamento de
famílias sem-terra.

O governo federal assentou aproximadamente 490 mil famílias entre 1995 e


2000 (OLIVEIRA, 2001, p. 201), realizando “a mais ampla política de implantação
de assentamentos rurais da história do país” (FERNANDES, 2007, p. 156), apesar
de o discurso oficial defender que não existiam mais latifúndios improdutivos no
país e que as famílias sem-terra eram pouco numerosas (idem).

Por outro lado, continuou a haver o favorecimento explícito aos latifundiários e ao


agronegócio, como mostra a renegociação das dívidas dos grandes produtores rurais,
entre outras medidas. A partir do segundo mandato, o governo Fernando Henrique
Cardoso buscou sufocar o MST e os demais movimentos sociais do campo.

Entre outras medidas, destaca-se a Portaria MDA nº. 62, de 2001, que exclui
dos possíveis beneficiários da reforma agrária todos aqueles que participem da
ocupação de imóveis rurais (OLIVEIRA, 2001, p. 202). O Banco da Terra foi
o programa agrário de maior destaque na gestão FHC e buscou concretizar, no
Brasil, uma “reforma agrária de mercado”.

Buscava-se, com o programa, reorientar a ação do Estado em relação à questão


agrária, adaptando-a ao receituário neoliberal: no lugar das desapropriações de lati-
fúndios improdutivos e criação de assentamentos para famílias sem-terra, o progra-
ma oferecia crédito e assistências técnicas para essas famílias, com o intuito de que
pudessem negociar com os grandes proprietários fundiários a compra de parcelas
de terras para sua instalação. Financiado com empréstimos internacionais do Banco
Mundial, o programa pretendia amenizar os conflitos fundiários no campo brasileiro
sem a necessidade de realizar uma reforma agrária nos moldes tradicionais.

Leonilde Medeiros (2002, p. 10) explica:


Na década de 90, num contexto de descentralização político-administrativa
e crescente privatização de funções antes exercidas pelo Estado, reforçou-
se uma tendência embrionária, mas já visível desde o debate sobre a
Proposta de Plano Nacional de Reforma Agrária, em meados da década
de 80: a defesa de uma mudança fundiária por meio da adesão voluntária
das partes a um contrato, de um programa gerido pelas regras do
mercado, em que o Estado estabelecesse alguma forma de regulação, mas
abrisse mão de sua força interventora, configurada nas desapropriações,
percebidas como instrumento de punição.

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Para Sérgio Sauer (2010), o discurso que buscava legitimar a “reforma agrária de
mercado” tinha três bases principais. A primeira era uma crítica às desapropriações
de imóveis rurais: os defensores do modelo afirmavam que essas desapropriações
eram extremamente caras e demoradas e, portanto, a negociação direta entre
proprietários fundiários e sem-terra seria mais eficiente.

O segundo argumento para realizar as transações por meio do mercado era a


alegação de que o Estado não dispunha dos recursos necessários para indenizar os
proprietários que sofreriam as desapropriações.

Por conta dessa suposta restrição orçamentária, seria mais vantajoso contrair
empréstimos internacionais do Banco Mundial para implantar a “reforma agrária
de mercado”.

Por fim, defendia-se que os movimentos sociais do campo sempre haviam ditado
as regras das políticas agrárias brasileiras: suas pressões definiriam as realizações de
assentamentos e, dessa forma, as ocupações de propriedades privadas ganhariam
força crescente.

O novo modelo, ao oferecer crédito para famílias em pequenas associações, sem


a mediação dos movimentos sociais do campo, permitiria que o Estado adquirisse
novamente o protagonismo da política agrária.

Sérgio Sauer e outros pesquisadores do tema demonstraram que esses


argumentos não condiziam à realidade concreta e que as soluções preconizadas
não permitiriam o equacionamento das questões agrárias brasileiras. A questão da
concentração fundiária no país permanecia invisível nessa proposta, ao mesmo
tempo em que se buscava de todas as formas o enfraquecimento dos movimentos
sociais do campo, compostos por centenas de milhares de trabalhadores sem-
terra. A proposta de “reforma agrária de mercado” teve início com uma pequena
experiência no Ceará, em 1996, que atendeu cerca de 800 famílias.

Em 1997, foi criado um projeto piloto, chamado Cédula da Terra, abrangendo


os estados de Maranhão, Pernambuco, Bahia, Minas Gerais e Ceará, “destinado a
obter terras, permitir aos beneficiários o acesso a financiamentos para a implantação
do projeto e contratação de assistência técnica adicional à oferecida pelo governo”
(MEDEIROS, 2002).

De acordo com Sauer (2010), o projeto recebeu financiamento de US$ 90


milhões do Banco Mundial, e custou cerca de US$ 150 milhões ao Estado brasileiro.
Antes mesmo de ser finalizado e avaliado, o governo federal enviou ao Congresso
um projeto de lei criando o Banco da Terra, que foi aprovado em 1998.

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UNIDADE Reforma Agrária e Lutas no Campo no Brasil

O Banco Mundial também anunciou a intenção de realizar empréstimos ainda


mais vultosos para operacionalizar o programa em todo o território nacional.
Acreditava-se que o acesso à terra por meio do mercado, e não mais pelas
desapropriações, permitiria a negociação pacífica entre os diversos agentes
econômicos, superando o modelo considerado “punitivo” e “interventor” que as
desapropriações representavam.

Figura 4
Fonte: socioambiental.org

O programa, portanto, estava alinhado à ideologia neoliberal que defende a


diminuição do alcance do Estado na condução das políticas de desenvolvimento
e a maior proeminência do mercado. Porém, por conta de fortes pressões dos
movimentos sociais e das dificuldades de operacionalização e equacionamento
financeiro do programa, o Banco da Terra perdeu força com o início da gestão de
Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

De qualquer forma, trata-se de uma experiência a ser levada em conta, por


sintetizar as disputas em torno da reforma agrária no país, que permanecem até
o período atual. Longe de ter resolvido sua questão agrária, o Brasil ainda convive
com todos os problemas relacionados à concentração fundiária e aos conflitos no
campo, que parecem ser de difícil resolução na conjuntura política contemporânea.

Para termos uma ideia do alcance dos problemas agrários brasileiros, podemos
citar o número de pessoas assassinadas em conflitos agrários no país: de acordo
com a Comissão Pastoral da Terra, foram 331 mortos entre 2004 e 2013, a
maioria trabalhadores sem-terra que lutavam pela reforma agrária.

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Mortes no campo no Brasil
Só em 2017, contando as últimas vítimas, foram mortas 36 pessoas, segundo cálculos da
CPT, um terço delas no Pará. Em abril, nove trabalhadores rurais foram assassinados por
pistoleiros encapuzados num acampamento em Mato Grosso, acendendo, mais uma vez,
o alerta de conflitos por terra no Brasil. A região, no meio da floresta Amazônica, estava
ocupada por cerca de 100 famílias desde os anos 2000 e é alvo de madeireiros e disputada
por fazendeiros, que buscam áreas para a criação de gado.
“Os latifundiários estão cada vez mais querendo ampliar essa concentração de propriedades
porque o agronegócio e as corporações multinacionais estão muito interessados em
arrendar essas terras, com o beneplácito do Governo. A fronteira amazônica que pega Mato
Grosso, Rondônia e Pará é a fronteira agrícola do Brasil, para onde os latifundiários querem
se expandir, e onde mais assassinatos de posseiros, camponeses e indígenas estamos vendo.
Se eles resistem são eliminados”, lamenta Mançano.
O relatório de violência de 2016 da CPT revelou uma média de cinco assassinatos por mês
com 61 mortes de quilombolas, indígenas, líderes e integrantes dos movimentos sem-terra.
É um aumento de 22% das mortes em comparação com 2015. O informe também denuncia
a criminalização dos movimentos do campo. Houve um aumento de 86% nas ameaças de
morte, de 68% nas tentativas de assassinato e de 185% das prisões. Entre 1985 e 2016
1.834 pessoas perderam a vida em conflitos no campo, mas, segundo a organização, apenas
31 mandantes desses assassinatos foram condenados.

Fonte: Texto literal extraído de MARTIN, Maria. Chacina no Pará escancara escalada da barbárie
em conflitos agrários no Brasil. Jornal El Pais (online), 27 de maio de 2017. https://goo.gl/MqEbXi

Conforme dados da CPT (2016), a maioria dos eventos de violência no campo


ocorrem na Amazônia (50%), seguidos do Nordeste (25%) e Centro-Sul (25%).
Importante lembrar que a Amazônia é onde predominam as populações tradicionais
de seringueiros, indígenas, ribeirinhos, entre outros.
Como explica o documento da CPT (2016, p. 94):
Na Amazônia, as categorias sociais que mais se destacam na violência
praticada contra as populações tradicionais (Gráfico 6) são, pela ordem,
fazendeiros (30%), empresários (26%) e grileiros (21%), considerando-
se todo o período 2000-2015. Todavia, essas proporções se alteram
significativamente nos dois períodos considerados. Há uma inversão entre
a categoria social mais violenta, que, do 1º para o 2º período, deixa de
ser a dos fazendeiros (cai de 43% para 23%), enquanto a de empresários
passa a encabeçar (passa de 18% para 30%). Os empresários junto com
as mineradoras (de 1% para 5%), as hidrelétricas (de 0% para 3%) e as
madeireiras (de 4% para 7%) são as categorias que aumentaram suas
ações violentas. Os grileiros mantiveram sua proporção de 21%.

Esses dados evidenciam o agronegócio chegando cada vez mais na Amazônia e


criando tensões com as comunidades já existentes na região.
Essas políticas, por sua vez, caminham de forma extremamente lenta e muito
aquém do necessário para desconcentrar a estrutura fundiária brasileira e permitir
o acesso à terra aos trabalhadores camponeses que dela necessitam.

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UNIDADE Reforma Agrária e Lutas no Campo no Brasil

Material Complementar
Indicações para saber mais sobre os assuntos abordados nesta Unidade:

  Sites
Brasil tem Recorde de Assassinatos em Conflitos por Terra nos Primeiros Meses de 2017
GLOBO. G1. Brasil tem recorde de assassinatos em conflitos por terra nos
primeiros meses de 2017, segundo a CPT. Política, Jornal Online, G1, 2017.
https://goo.gl/M6ytju

 Leitura
Conflitos no Campo
COMISSÃO PASTORAL DA TERRA (CPT). Conflitos no campo – 2015. Goiânia:
CPT, Centro de Documentação Dom Tomás Balduino, 2016.
https://goo.gl/jJEe6b
Atlas da Questão Agrária Brasileira: Uma Análise dos Problemas Agrários Através do Mapa
GIRARDI, Paulo. Atlas da questão agrária brasileira: uma análise dos problemas
agrários através do mapa. UFMT, 2008.
https://goo.gl/35T8VQ
Reforma Agrária e Lutas no Campo
MEDEIROS, Leonilde. Reforma agrária e lutas no campo. Carta Maior, Colunista,
07 de março de 2006.
https://goo.gl/Una7Ps

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Referências
FERNANDES, Bernardo Mançano. Formação e territorialização do MST no Brasil:
1979-2005. In: MARAFON, Glaucio; RUA, João; RIBEIRO, Miguel. Abordagens
teórico-metodológicas em Geografia Agrária. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2007.

MEDEIROS, Leonilde. Reforma agrária no Brasil: história e atualidade da luta


pela terra. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2003.

MEDEIROS, Leonilde. Reforma agrária de mercado e movimentos sociais: aspectos


da experiência brasileira. ComCiência, 2002.

OLIVEIRA, A. U. A longa marcha do campesinato brasileiro: movimentos sociais,


conflitos e reforma agrária. Estudos Avançados, v. 15, nº. 43, 2001.

PIRES, Murilo José Souza & RAMOS, Pedro. O termo modernização conservadora:
sua origem e utilização no Brasil. Revista Econômica do Nordeste, v. 40, nº. 3,
jul/set 2009.

SAUER, Sérgio. “Reforma agrária de mercado” no Brasil: um sonho que se tornou


dívida. Estudos Sociedade e Agricultura. Rio de Janeiro, v. 18, nº. 1, 2010.

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