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Geografia Agrária

Material Teórico
A Formação Socioespacial e a Estrutura Fundiária do Brasil

Responsável pelo Conteúdo:


Profa. Dra. Vivian Fiori

Revisão Textual:
Profa. Ms. Luciene Oliveira da Costa Santos
A Formação Socioespacial e a Estrutura
Fundiária do Brasil

• A Formação Socioespacial e a Estrutura Fundiária do Brasil


• A Formação Socioespacial do Brasil
• A Estrutura Fundiária no Século XX

OBJETIVO DE APRENDIZADO
· Relacionar o padrão atual da Geografia Agrária brasileira com o
contexto da formação socioespacial do Brasil, evidenciando as
contradições presentes no território.
· Evidenciar a estrutura fundiária do Brasil.
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UNIDADE A Formação Socioespacial e a Estrutura Fundiária do Brasil

A Formação Socioespacial
e a Estrutura Fundiária do Brasil
Nesta unidade, iremos associar o padrão produtivo agrícola brasileiro à formação
da estrutura fundiária do país. Por que o Brasil possui uma das estruturas fundiárias
mais concentradas do mundo? Quais fatores da formação socioespacial brasileira
explicam a tendência à formação de latifúndios – parte deles improdutivos – ao
mesmo tempo em que pequenos agricultores têm dificuldade em manter sua
sobrevivência? Por que a discussão sobre a reforma agrária é tão importante e
presente na história nacional? Para responder a essas perguntas, é necessário
recompor alguns traços do passado colonial brasileiro e as formas como essas
heranças foram tratadas historicamente.

Apresentaremos a formação da estrutura fundiária no Brasil e sua relação com


o padrão agrícola que se estabeleceu no país. O nosso objetivo é contextualizar a
concentração histórica da propriedade da terra no país e discutir as implicações
desse padrão para o desenvolvimento nacional.

A Formação Socioespacial do Brasil


Desde o começo da colonização bra-
sileira, houve concentração de terras. A
criação das capitanias hereditárias, ini-
ciada em 1534-1549, revelou-se uma
estratégia falha na forma inicial do go-
verno português, à medida que o comér-
cio com as Índias ainda era muito mais
lucrativo, o que provocou um desinteres-
se por conta dos donatários.

E, ao mesmo tempo, o governo por-


tuguês queria centralizar um pouco a
administração da colônia, por isso, em
1549, criou o Governo Geral e escolheu
Salvador como sua capital, criando a
divisão política denominada Capitanias
(não mais hereditárias).
Figura 1 – Mapa das Capitanias Hereditárias
Fonte: Wikimedia Commons

Sobre essa estrutura fundiária (estrutura da divisão de terras), Ariovaldo Oliveira


(2008, p. 481) destaca:

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Quando se estuda historicamente a estrutura fundiária no Brasil, ou
seja, a forma de distribuição e acesso à terra, verifica-se que desde os
primórdios do período colonial essa distribuição foi desigual. Primeiro
foram as capitanias hereditárias e seus donatários, depois foram as
sesmarias. Estas estão na origem de grande parte dos latifúndios do país.
São frutos da herança colonial quando a terra era doada pela Coroa aos
membros da corte.

A primeira observação a fazer sobre essa questão diz respeito ao caráter da


colonização brasileira. Caio Prado Júnior (1963), um dos autores clássicos do
pensamento social brasileiro, distinguiu dois tipos fundamentais de colonização:
1. Colônias de povoamento, nas quais os colonizadores buscavam transplantar
para as áreas em ocupação o mesmo sistema econômico, político e social
existente nos países de origem. Houve, desde o início do processo de
colonização, uma preocupação em desenvolver técnica e economicamente
as áreas em que os europeus se instalavam. Esse é o caso, por exemplo, de
Estados Unidos e Canadá.
2. Colônias de exploração, que foram tratadas como áreas a serem exploradas
ao máximo, com o mínimo de investimentos e com a constante preocupação
de barrar iniciativas que pudessem criar autonomia política e econômica
desses territórios. Seja por meio da mineração ou das atividades agrícolas,
a intencionalidade dos colonizadores era explorar os recursos existentes sem
um compromisso com o desenvolvimento dos territórios coloniais.

Esses territórios eram vistos como extensões econômicas, pensados para gerar
lucros para os países metropolitanos, e não como áreas a serem viabilizadas
economicamente. Esse é o modelo a que todos os atuais países latino-americanos
foram submetidos, incluindo o Brasil.

Szmrecsányi (1998, p. 12), explica:


Nessa modalidade de colonização, o objetivo de nossos povoadores não
era, de modo algum, produzir por conta própria (e menos ainda por meio
de seu próprio trabalho), mas primordialmente enriquecer o mais depressa
possível pela exploração dos recursos naturais disponíveis e do trabalho
alheio em bases servis – mediante a escravização, primeiro dos povos
indígenas da região e depois de africanos especialmente importados.

Esse padrão de colonização, presente no território brasileiro, iniciou-se com a


mera retirada de recursos florestais recursos que poderiam ser facilmente extraídos,
como a madeira (o pau-brasil no nosso caso). Utilizava-se nesse processo a mão de
obra indígena, sendo que a madeira explorada era exportada por meio de feitorias.

A agricultura que começou a ser praticada nos primórdios da colonização era


incipiente, realizada com técnicas extremamente rudimentares e sem preocupação
com a perenidade e a ampliação da produção. Por conta das práticas de cultivo,
os solos eram rapidamente exauridos, a produtividade diminuía bruscamente e os
estabelecimentos eram abandonados. Nos três primeiros séculos de colonização,

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UNIDADE A Formação Socioespacial e a Estrutura Fundiária do Brasil

existia uma “agricultura extrativista” (SZMRECSÁNYI, 1998) no Brasil.

Você Sabia? Importante!

Os ciclos econômicos e a formação do território brasileiro


Os ciclos econômicos são os períodos da história do Brasil em que a produção do território
brasileiro teve a predominância de algum bem, agrícola ou mineral, essencialmente
voltado para exportação. Ao longo dos séculos, a estrutura produtiva deixada por estes
ciclos influenciou na configuração territorial do Brasil, tanto nos aspectos técnicos como
na legislação e na disposição dos elementos no território.
O primeiro ciclo implantado, no século XVI, foi o da cana-de-açúcar, na região Nordeste,
especialmente na Zona da Mata. Sua produção visava abastecer o mercado europeu,
e influenciou a organização da produção de outros itens agrícolas destinados ao
suprimento da indústria do açúcar, como a pecuária no Sertão e a agricultura de
subsistência no Agreste nordestino.
No Sudeste do Brasil, tivemos o ciclo da mineração, iniciado com a descoberta das
jazidas das Minas Gerais (século XVIII) que impulsionou a urbanização na região. Este
ciclo gerou a primeira onda de urbanização em maior proporção no território bra-
sileiro. Já no século XIX, a cultura do café iniciou-se no Estado do Rio de Janeiro.
Com o passar do tempo, foram sendo incorporadas as áreas do interior do território
paulista, antes inexploradas.

A produção agrícola brasileira, neste período, tinha grandes dificuldades em


alcançar o patamar de seus concorrentes internacionais, sendo marcada pela insta-
bilidade e pelo improviso, com diversos momentos em que essa produção foi quase
dizimada por fatores internos e externos.

Para garantir a ocupação efetiva do território colonial brasileiro, o governo por-


tuguês criou as capitanias hereditárias e começou a doar amplas parcelas de terras,
com a condição de que aí se desenvolvessem atividades agrícolas. Essas porções de
terra eram conhecidas como sesmarias.

A pessoa que recebia a doação de uma porção de terra necessitava comprovar


ao governo da Coroa Portuguesa que a estava explorando adequadamente. Como
o governo tinha dificuldade em fiscalizar, e também como vários donatários não
obtiveram sucesso na tentativa de se estabelecer no Brasil, várias terras foram sen-
do devolvidas ao longo do tempo, de onde se origina o termo “terras devolutas”.

Com o passar do tempo, esse termo passou a englobar todas as terras ainda
não demarcadas como propriedade privada e que, portanto, pertenciam ao Estado
brasileiro. Parte dessas sesmarias abrigou o sistema de plantation, que caracterizou
o padrão produtivo agrícola no período colonial das Américas. Esse sistema combi-
nava grandes latifúndios, monocultura de exportação e trabalho escravo.

No caso brasileiro, as grandes propriedades eram incentivadas pela doação de


terras por Portugal e se desenvolviam monoculturas de produtos tropicais voltadas
ao mercado internacional com a exploração intensa da mão de obra escrava de
origem africana. O melhor exemplo desse sistema produtivo são os engenhos de

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cana-de-açúcar no Nordeste. No sul dos EUA, a plantation de algodão seguiu os
mesmos moldes.

Figura 2 – Um engenho de cana-de-açúcar em Pernambuco colonial,


pelo pintor neerlandês Frans Post (século XVII)
Fonte: Wikimedia Commons

Uma parcela bastante considerável dessas sesmarias, porém, nunca foi pro-
dutivamente utilizada. A criação de grandes latifúndios improdutivos, raramente
combatidos por Portugal, deu origem a um vínculo profundo entre posse da terra
e poder político no Brasil.

Os latifundiários se tornaram agentes influentes na política brasileira, ficaram


livres para aumentar suas propriedades (frequentemente ocupando terras públicas
ou áreas indígenas), explorar sem nenhum tipo de limite seus trabalhadores e, de
forma mais geral, ignorar as leis ou outras normas elaboradas pelo Estado.

A conexão entre terra e poder levou à falta de limites entre a esfera privada e
pública, o que está na base do patrimonialismo e do coronelismo, discutidos por
vários intérpretes da formação social brasileira, como Sérgio Buarque de Holanda
(1969) e Raymundo Faoro (1977).

Como as sesmarias eram concessões dadas pelo governo, e muitas foram aban-
donadas, havia também aqueles que não possuíam concessões mas necessitavam
trabalhar na terra. Surge, assim, a figura do posseiro e da “posse” de terras, “[...]
que era mais adaptada à agricultura móvel, predatória e rudimentar praticada, tor-
nando-se o meio principal de apropriação territorial” (SILVA, 1997, p. 16).

As terras devolutas começaram a ser ocupadas em todo o território brasileiro


por agricultores que não possuíam os recursos para solicitar uma sesmaria. Como
o registro dessas terras era extremamente precário e não havia controle público, as
posses também começaram a dar origem a latifúndios improdutivos.

Com a Independência do Brasil em 1822, o Estado imperial passou a desenvolver


uma preocupação com a estrutura agrária brasileira. Nesse sentido, foi elaborada
a Lei de Terras em 1850, que tinha o objetivo de regular o acesso a terra no país.

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UNIDADE A Formação Socioespacial e a Estrutura Fundiária do Brasil

Como explica Silva (1997, p. 16):


Esta lei pretendeu impor os princípios da política de intervenção gover-
namental no processo de apropriação territorial, representando uma ten-
tativa dos poderes públicos (o Estado imperial) de retomarem o domínio
sobre as terras chamadas devolutas, que estavam perdendo em função da
vertiginosa ocupação que se processava então sob a iniciativa privada.

A elaboração da Lei de Terras visava garantir a progressiva substituição do


trabalho escravo por trabalho assalariado imigrante. Para garantir a permanência
do padrão produtivo e da estrutura fundiária existente, era preciso impossibilitar que
os escravos, em processo de libertação, e os trabalhadores imigrantes pudessem se
tornar proprietários de terras agrícolas.

Se os mecanismos de reconhecimento da posse existentes fossem mantidos, os


escravos libertos e os trabalhadores estrangeiros poderiam ocupar terras devolutas e
desenvolver atividades agrícolas por conta própria. Esse processo colocaria em risco
a lógica de funcionamento da produção agrícola nacional, pautada no grande latifún-
dio e na mão de obra barata, obviamente alterando a estrutura de poder existente.

Figura 3 – Imigrantes italianos numa fábrica de São Paulo


Fonte: Wikimedia Commons

Nesse sentido, a Lei de Terras “proibia a aquisição de terras devolutas por ou-
tro título que não fosse o de compra” e “impedia o acesso à terra dos produtores
agropecuários economicamente mais fracos, fossem eles livres ou libertos, e be-
neficiava a classe dos grandes proprietários” (SZMRECSÁNYI, 1998, p. 94). Os
latifundiários foram, portanto, beneficiados com a garantia de contingentes de tra-
balhadores que não tinham outra opção que não fosse vender sua força de trabalho
aos fazendeiros.

Por outro lado, a manutenção dos mecanismos de monopolização da terra rural


permitiu que as grandes propriedades já estabelecidas se beneficiassem da valoriza-
ção fundiária criada pela proibição de posse de terras ainda não ocupadas.

A partir de então, a compra se tornou o único instrumento para se adquirir


a propriedade de terras agrícolas no Brasil. Por outro lado, brechas dessa lei

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permitiriam que o apossamento de terras devolutas e a criação de latifúndios
improdutivos permanecessem. A lei buscava separar juridicamente as terras
públicas das terras particulares, mas esse objetivo não foi alcançado.

Até o hoje, o registro fundiário no Brasil é um nó a ser resolvido: grande parte


dos títulos de propriedade no país não tem legitimidade jurídica e muitos deles são
deliberadamente falsificados ou forjados, como no caso da grilagem.

Esse termo designa a falsificação de escrituras de propriedade, em que documentos


atuais são colocados em caixas com grilos, com o intuito de deixá-los amarelados e
danificados, dando uma aparência antiga, com o intuito de comprovar que se trata
de um registro datado de décadas passadas.

Lígia Silva (1997, p. 18) comenta:


Como a Lei de 1850 foi servindo ao longo dos anos para regularizar a
situação dos grandes posseiros latifundiários, transformando-os, portanto,
em proprietários de pleno direito, uma vez expedido um título de pro-
priedade, o Estado só poderia recuperar as terras improdutivas e dar-lhes
outro destino através da desapropriação.

A Constituição de 1891 repassou aos estados a titularidade das terras devolutas


e manteve o regime de propriedade privada da terra (SZMRECSÁNYI, 1998), com
a exceção d os casos de utilidade pública, em que áreas privadas poderiam ser desa-
propriadas, com pagamento em dinheiro e a preços de mercado aos proprietários.

Isto reforçou o domínio dos latifundiários e não trouxe avanços na formulação


de uma política fundiária, já que os governos estaduais não tinham interesse em
contrariar os interesses dos grandes proprietários rurais.

Além disso, o pagamento das desapropriações em dinheiro inviabilizava que o


Estado destinasse áreas para projetos de colonização e assentamentos.

A Estrutura Fundiária no Século XX


Esse quadro de paralisia da política fundiária foi a tônica nas primeiras décadas
do século XX. Ao mesmo tempo em que o Estado se esforçava pouco para tratar
da questão, a concentração fundiária nacional se mantinha e, com o avanço das
fronteiras agrícolas patrocinadas pelo governo federal, se ampliava.

Esse contexto começa a se alterar durante a década de 1950. A industrialização


pesada brasileira colocou as questões agrícola e agrária no centro do debate
nacional: ressaltava-se que o desenvolvimento industrial do país dependia da
modernização do campo, que forneceria os insumos necessários à indústria,
liberaria mão de obra barata para a produção industrial e consumiria parte das
mercadorias industrializadas.

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UNIDADE A Formação Socioespacial e a Estrutura Fundiária do Brasil

A industrialização brasileira promoveu um intenso fluxo de urbanização a partir


da década de 1950, levando milhões de pessoas a abandonarem o campo e tentar
melhores condições de vida na cidade. Ao mesmo tempo, grandes porções do
território brasileiro foram incorporados a processos agrícolas mais modernos.

Como sintetiza José Graziano da Silva (1980, p. 29), na década de 1950 a


estrutura fundiária brasileira, altamente concentrada, era vista como um fator
limitante da industrialização brasileira. Essa concentração agrária significaria o
“estrangulamento na oferta de alimentos aos setores urbanos”: se temia que, com
a rápida urbanização pela qual o país passava, a produção agrícola não aumentasse
na intensidade necessária para garantir o abastecimento das cidades e os baixos
preços dos gêneros alimentícios, que manteriam o custo da mão de obra urbana
também baixa.

Além disso, se defendia que a estrutura fundiária concentrada significava “a não


ampliação do mercado interno para a indústria nascente”: era preciso modernizar
a agricultura ou, em outras palavras, industrializar a produção agrícola.

O capitalismo industrial brasileiro necessitava, nessa visão, do consumo produtivo


das atividades do campo, isto é, a criação de demandas os insumos produzidos
nas cidades (tratores e outros equipamentos, fertilizantes químicos, rações animais
etc.) pelas atividades agrícolas. Em resumo, o debate desse período associava a
questão agrícola e a questão agrária no marco do processo de industrialização e
urbanização do país.

Além desse diagnóstico econômico, pesavam para essa discussão as lutas sociais
em curso no país durante os anos 1950 e início dos anos 1960. De forma resumida,
essa década marca um momento de agitações populares intensas, que tinham
como bandeira um conjunto de mudanças estruturais que ficaram conhecidas como
“reformas de base”.

No contexto de polarização ideológica da Guerra Fria, essas reformas se


filiavam aos ideais de esquerda que buscavam romper com os mecanismos do
subdesenvolvimento e criar um projeto nacional capaz de reduzir as desigualdades
sociais e garantir direitos cidadãos aos trabalhadores brasileiros.

Discutiam-se, nesse contexto, as reformas fiscal, urbana e agrária, entre outras.

O presidente João Goulart, eleito democraticamente em 1961 e deposto pelo


golpe militar de 1964, foi o grande porta-voz desse programa de reformas. A
reforma agrária recebeu grande atenção por João Goulart.

O governo Jango aprovou o Estatuto do Trabalhador Rural, em 1963, garantin-


do aos trabalhadores rurais os mesmos direitos existentes nas atividades urbanas.
Além disso, criou a Superintendência de Política Agrária (Supra), órgão pensado
para formular a reforma agrária brasileira.

Pouco antes de ser derrubado pelo golpe militar, Jango havia proposto uma
alteração constitucional que permitiria que as desapropriações de latifúndios
improdutivos fossem realizadas com títulos da dívida pública, e não mais em

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dinheiro, o que resolveria um importante nó da reforma agrária no país. Além
disso, anunciou a desapropriação de lotes às margens de rodovias e ferroviais para
assentamentos rurais.

Os trabalhadores rurais brasileiros eram – e continuam sendo – aqueles que


mais sofrem com a exploração exacerbada do trabalho e o desrespeito aos direi-
tos trabalhistas básicos. Impulsionados pela insatisfação com as condições de vida
existentes, esses trabalhadores começaram a se organizar em movimentos sociais
que deram origem às Ligas Camponesas, muito atuantes no Nordeste brasileiro nas
décadas de 1950 e início de 1960.

Figura 4 – Ligas Camponesas dos Anos 1950-60


Fonte: cpdoc.fgv.br

Com o golpe militar de 1964, as ligas camponesas e os demais movimentos


de resistência social do campo foram sistematicamente eliminados pela violência
do regime autoritário, que “instaurou a perseguição e o ‘desaparecimento’ das
lideranças do movimento das Ligas Camponesas, e sua desarticulação foi inevitável.
Deu-se, aí, o início de um grande número de assassinatos no campo brasileiro”
(OLIVEIRA, 2005, p. 14).

Após 1964, o governo militar criou uma agenda própria de política fundiária
– a sua maneira, obviamente. Para Lígia Silva (1997, p. 20), tratou-se de uma
“contrarreforma agrária”.

O regime autoritário incorporou o discurso sobre o tema da Aliança para o


Progresso, um programa estadunidense que buscava, por meio de empréstimos e
cooperação internacional, difundir a ideologia liberal e conter o avanço das práticas
de esquerda na América Latina, assegurando o poder imperialista do país na região.

Além dos programas de “ajuda” internacional, os EUA foram financiadores


e apoiadores dos diversos golpes de Estado que colocaram governos militares
no comando de boa parte dos países latino-americanos na década de 1960. De
forma resumida, a Aliança para o Progresso criticava a concentração fundiária e as
desigualdades sociais relacionadas a essa estrutura nos países da América Latina,

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UNIDADE A Formação Socioespacial e a Estrutura Fundiária do Brasil

que eram vistas como entraves ao desenvolvimento econômico e social desses


países. A carta de Punta del Este de 1961, que sintetiza a posição da Aliança,
defendia que “a terra seja de quem a trabalha” (SILVA, 1997, p. 20).

Para uma contextualização crítica da “ajuda internacional” e da Aliança para o Progresso,


Explor

consulte o capítulo “A revolução das esperanças crescentes”, no livro “Comunicação-mundo:


história das teorias e das estratégias”, de Armand Mattelart.

Buscando responder aos movimentos sociais que defendiam a reforma agrária,


por um lado, e a pressão internacional realizada pelos Estados Unidos, por outro, o
regime militar tratou de colocar em prática mecanismos que atenuassem as tensões
agrárias brasileiras.

Em 1964, primeiro ano do regime, foi aprovada a Emenda Constitucional n.


10, que permitiu finalmente a desapropriação de imóveis rurais por meio de títulos
da dívida pública, e o Estatuto da Terra. Essa lei determinou as definições e os
instrumentos que o Estado brasileiro poderia colocar em prática para regular a
propriedade fundiária rural e realizar a reforma agrária.

O Estatuto definiu, em cada região brasileira, as medidas do minifúndio e do


latifúndio, e previu a desapropriação dos latifúndios improdutivos, que deveriam ser
destinados a projetos de reforma agrária. As concepções que sustentavam o regime
e a correlação de forças do período, em que os movimentos sociais do campo
foram praticamente aniquilados pela repressão estatal, fez com que o Estatuto não
fosse concretizado.

A estratégia fundamental da reforma agrária (a desapropriação dos latifúndios


improdutivos) nunca amplamente empregada, dando lugar a assentamentos de pe-
quenas propriedades em terras devolutas das fronteiras agrícolas, sobretudo na Ama-
zônia Legal, e outras ações de assistência técnica e financeira aos produtores rurais.

Essas ações em nenhum momento ameaçaram os interesses dos latifundiários,


que continuaram livres para manter suas propriedades retidas para fins especu-
lativos. Os latifúndios improdutivos, aliás, ampliaram-se durante o período, e as
políticas formuladas durante os governos militares patrocinaram a concentração
fundiária no país.

Duas dessas políticas merecem destaque: a primeira delas diz respeito aos
incentivos para a ocupação da Amazônia Legal e a segunda ao esforço de
modernizar e industrializar a agricultura brasileira.

É importante ter em mente que a concentração fundiária não foi enfrentada


em ambos os casos. Como resultado, é possível afirmar que, nas últimas décadas,
o Brasil resolveu satisfatoriamente sua crise agrícola, mas agravou ainda mais sua
crise agrária.

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Tabela 1 – Estrutura fundiária, Brasil (2012)
Imóveis Área
Estrato de área
Número % Número %
Menos de 10 ha 1.874.969,00 34,10 8.834.571,15 1,46
10 a 100 ha 2.863.773,00 52,08 95.186.129,26 15,72
100 a 1000 ha 678.462,00 12,34 181.757.801,33 30,02
Acima de 1000 ha 81.331,00 1,48 319.609.244,32 52,79
Total 5.498.535,00 100,00 605.387.746,06 100,00
Fonte: IBGE

Para exemplificar essa discussão, vejamos a distribuição dos estabelecimentos


e da área ocupada, por tamanho da propriedade, em 2012. Há, atualmente, no
país, mais de 80 mil estabelecimentos rurais com mais de 1000 ha, correspon-
dendo a 1,48% do total. Em comparação, esses latifúndios concentram 52,79%
da área ocupada pela agropecuária no país. Os pequenos estabelecimentos, com
menos de 10 ha, são mais de 34,10% do total, mas possuem apenas 1,46% da
área ocupada no país.

Por meio desses dados, é possível verificar o alto grau de concentração fundiária
do país. Cabe ressaltar que a maior parte da produção agropecuária e do pessoal
ocupado em atividades rurais está concentrada nos minifúndios (menos de 10 ha)
e nos estabelecimentos médios (entre 10 a 1000 ha).

Os latifúndios (mais de 1000 ha) historicamente correspondem a proporções


mais baixas de produção e emprego, já que há, entre essas propriedades, muitas
que são retidas para fins especulativos e são improdutivas ou aproveitadas
economicamente de forma pouco intensa, como é o caso das pastagens naturais.
Há muita divergência, na literatura especializada, a respeito das possibilidades e
dos impasses da reforma agrária brasileira.

As características da produção agrícola de um determinado país (tipos de


produtos agrícolas, quantidades produzidas, regiões produtoras) são fortemente
influenciadas pelas variáveis agrárias, como a estrutura fundiária e as relações de
trabalho no campo.

A estrutura fundiária, isto é, a forma como as propriedades rurais estão


socialmente distribuídas é sem dúvida um fator decisivo para essa discussão. Imagine
uma região agrícola ocupada por grandes latifúndios, com acesso a crédito farto e
tecnologias modernas de produção.

Pense, agora, na mesma região, dessa vez com uma estrutura fundiária de
pequenas propriedades, muitas vezes familiares, com técnicas de cultivo mais
rudimentares e baixo nível de capitalização. A produção agrícola tende a ser a
mesma nessas duas situações?

No caso dos grandes estabelecimentos agrícolas capitalizados, há uma forte


tendência de produção de commodities agrícolas rentáveis nos mercados nacional
e internacional, como a soja ou o café. Nesse caso, geralmente se empregam

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UNIDADE A Formação Socioespacial e a Estrutura Fundiária do Brasil

“pacotes tecnológicos”, que incluem a correção prévia dos solos, o plantio de


sementes produzidas por grandes corporações, a irrigação mecanizada, o uso
intensivo de pesticidas, tratores, colheitadeiras e outros maquinários agrícolas.

Esse padrão produtivo aumenta a produtividade do capital e do trabalho


empregado nessa propriedade e corresponde às dinâmicas de expansão do sistema
capitalista. Por outro lado, tem altos custos, e isso pressupõe que o produto final
tenha preços de mercado que justifiquem esse alto montante de investimentos.

Muitas vezes, porém, os grandes estabelecimentos (aqueles com mais de


1000 hectares) não são cultivados ou neles se desenvolvem atividades de baixa
produtividade, como é o caso das pastagens de pecuária extensiva. Há, portanto,
uma lógica rentista muito presente na formação socioespacial brasileira de tratar a
terra como reserva de valor e não como meio de produção, sobretudo no caso dos
grandes latifúndios.

Ariovaldo Umbelino de Oliveira (2008, p. 506) comenta:


Na realidade, quando se analisa sua estrutura produtiva, verifica-se que o
caráter da terra como reserva de valor se manifesta na terra improdutiva,
em parte na terra ainda coberta por mata natural contida nos latifúndios
e, sobretudo, na terra ocupada pelas pastagens. Exatamente o contrário
ocorre com o uso da terra nos estabelecimentos com menos de 100 ha:
ela está ocupada produtivamente pelas lavouras.

Já os pequenos agricultores, proprietários ou arrendatários de terras rurais, não


têm condições de produzir da mesma forma que os latifúndios. Esses camponeses
trabalham em uma escala menor, porque o tamanho da propriedade é limita. Esse
fato inviabiliza a adoção dos pacotes tecnológicos e dificilmente têm acesso ao
crédito, como os grandes estabelecimentos, e tampouco têm poder de negociação
com os fornecedores de insumos e com os compradores dos produtos finais.

Ariovaldo Oliveira (2008) mostra que, em 1985, apenas 12,6% dos


estabelecimentos tinham algum tipo de financiamento à produção agrícola, e essa
porcentagem caiu para 5,3% em 1995/6. O financiamento agrícola também
estava concentrado nas médias e grandes propriedades.

Trata-se de um padrão produtivo geralmente marcado por baixos níveis de


capitalização e uso restrito de tecnologias, mas que concentra a maior parte do
pessoal ocupado nas atividades agrícolas e as mais altas produtividades no campo
brasileiro. Isso quer dizer que, embora tenham áreas para a produção restritas,
dificuldades de acesso ao crédito e às tecnologias agrícolas, são os minifúndios e
os estabelecimentos médios que empregam a maior parte dos trabalhadores rurais.

Uma parte considerável desses produtores se dedica à produção de gêneros


alimentícios que garantem o abastecimento das cidades, em formas de cultivo que
combinam mais de um produto agrícola.

Fica claro, com esse exemplo, que a estrutura fundiária traz um conjunto de
implicações para a produção agrícola.

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Material Complementar
Indicações para saber mais sobre os assuntos abordados nesta Unidade:

Sites
Evolução da divisão territorial do Brasil, 1872-2010
INSTITUTO BRASILEIRO GEOGRÁFICO E ESTATÍSTICO (IBGE). Evolução da
divisão territorial do Brasil, 1872-2010. Rio de Janeiro, IBGE, 2011
https://goo.gl/kEKZMs

Livros
Formação econômica do Brasil
FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil. São Paulo: Companhia Editora
Nacional: Publifolha, 2000.
O Brasil: território e sociedade no século XXI
SANTOS, Milton; SILVEIRA, Maria L. O Brasil: território e sociedade no século XXI.
3. ed. Rio de Janeiro: Record, 2001.

Leitura
As leis agrárias e o latifúndio improdutivo.
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Perspectiva, 11(2) 1997
https://goo.gl/PVUBCQ

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UNIDADE A Formação Socioespacial e a Estrutura Fundiária do Brasil

Referências
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