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Geografia Agrária

Material Teórico
Algumas Concepções Teóricas sobre o Espaço Rural e Urbano

Responsável pelo Conteúdo:


Prof. Ms. Eduardo Augusto Wellendorf Sombini

Revisão Técnica:
Profa. Dra. Vivian Fiori

Revisão Textual:
Profa. Ms. Luciene Oliveira da Costa Santos
Algumas Concepções Teóricas sobre o
Espaço Rural e Urbano

• Introdução
• O Espaço Geográfico
• Conceitos Básicos do Espaço Rural e Urbano
• A Questão Agrícola e Agrária

OBJETIVO DE APRENDIZADO
· Tratar das concepções teóricas sobre o rural e o urbano;
· Discutir a concepção de espaço;
· Tratar das diferenças entre as questões agrária e agrícola.
Orientações de estudo
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aproveitado e haja uma maior aplicabilidade na sua
formação acadêmica e atuação profissional, siga
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Conserve seu
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Procure manter indicações
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colegas e tutores Complementar.
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da sua rotina. Por exemplo, você poderá determinar um dia e
horário fixos como o seu “momento do estudo”.

Procure se alimentar e se hidratar quando for estudar, lembre-se de que uma


alimentação saudável pode proporcionar melhor aproveitamento do estudo.

No material de cada Unidade, há leituras indicadas. Entre elas: artigos científicos, livros, vídeos e
sites para aprofundar os conhecimentos adquiridos ao longo da Unidade. Além disso, você também
encontrará sugestões de conteúdo extra no item Material Complementar, que ampliarão sua
interpretação e auxiliarão no pleno entendimento dos temas abordados.

Após o contato com o conteúdo proposto, participe dos debates mediados em fóruns de discussão,
pois irão auxiliar a verificar o quanto você absorveu de conhecimento, além de propiciar o contato
com seus colegas e tutores, o que se apresenta como rico espaço de troca de ideias e aprendizagem.
UNIDADE Algumas Concepções Teóricas sobre o Espaço Rural e Urbano

Introdução
Nesta unidade, vamos tratar sobre a categoria espaço geográfico e, principal-
mente, algumas concepções sobre os espaços urbano e rural.

O Espaço Geográfico
As diferentes disciplinas acadêmicas possuem sistemas de categorias e conceitos
que oferecem coerência e operacionalidade às pesquisas realizadas em cada área
do conhecimento.

As categorias podem ser entendidas como as construções abstratas fundadoras


das disciplinas, correspondendo aos termos que historicamente orientam a produção
de cada área do conhecimento. O espaço geográfico é o objeto da Geografia,
enquanto território, região, paisagem e lugar são comumente entendidos como as
categorias centrais da Geografia.

Como afirma Milton Santos (2008b, p. 12): “Falar sobre o espaço é muito
pouco se não buscamos defini-lo à luz da história concreta. Falar simplesmente do
espaço, sem oferecer categorias de análise, é também insuficiente”.

Os conceitos, por sua vez, possuem um conteúdo histórico, permitindo


estabelecer relações entre as categorias abstratas e a realidade concreta, que está
em processo permanente de transformação. O movimento da história altera os
conteúdos e as possibilidades de análise dos temas de interesse de determinada
disciplina, fazendo com que os conceitos precisem ser revisados e atualizados a
cada novo período, para que as interpretações correspondam à realidade do tempo
presente e não fiquem presas a realidades já superadas.

A Geografia é uma ciência social preocupada com as problemáticas territoriais


do tempo presente e, por isso, precisa renovar constantemente os instrumentos
teóricos e conceituais que utiliza. O espaço geográfico tem se transformado
radicalmente nas últimas décadas, em diversas escalas, o que é resultado da difusão
de novos sistemas técnicos e da reconfiguração das relações sociais. É preciso,
portanto, acompanhar as transformações do mundo e trabalhar com conceitos que
permitam a interpretação das situações geográficas emergentes.

Entre outras possibilidades de método, apresentaremos brevemente alguns


pontos da proposta formulada por Milton Santos, que realizou um amplo trabalho
de revisão das teorias e dos conceitos da Geografia, em diálogo com as demais
ciências humanas e sociais.

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Esse autor se inscreve no movimento de renovação da Geografia, iniciado
na década de 1970, que refuta as práticas científicas da Geografia Tradicional e
propõe uma teorização para a disciplina pautada nas teorias sociais críticas, como
o marxismo.

Desse movimento, surge a Geografia Crítica, preocupada em afastar o


empirismo que dominava o trabalho dos geógrafos, isto é, a preocupação excessiva
com a descrição das paisagens, regiões e lugares. Em seu lugar, as perspectivas
críticas da Geografia propõem considerar o espaço geográfico como o resultado do
emprego da técnica e do trabalho de uma determinada sociedade, com o objetivo
de transformar o meio existente.

Os agentes sociais – em conflito e em cooperação entre si – possuem concepções


de futuro e intencionalidades, que orientam a produção social do espaço. Desse
modo, o espaço geográfico aparece, nessa perspectiva, não mais como um quadro
inerte a ser descrito em um determinado momento, mas como uma construção
histórica correspondente a sistemas técnicos e projetos sociais.

Figura 1
Fonte: iStock/Getty Images

Milton Santos propõe que o espaço geográfico seja entendido como “[...] conjun-
to indissociável, solidário e também contraditório, de sistemas de objetos e sistemas
de ações” (2006, p. 63). Nessa concepção, o espaço geográfico é entendido como
um híbrido entre as formas espaciais e os conteúdos sociais que lhes dão sentido. As
formas espaciais correspondem à materialidade do espaço geográfico: edifícios, cida-
des, rodovias, ferrovias, redes de energia elétrica e telecomunicações, entre outros.

O conteúdo social, por sua vez, diz respeito aos fatores político-jurídicos,
econômicos e culturais que condicionam o uso das formas espaciais. Como
exemplo, é possível pensar em uma região especializada na produção de uma
commodity agrícola, como a soja.

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UNIDADE Algumas Concepções Teóricas sobre o Espaço Rural e Urbano

Para entender essa parcela do território nacional, é necessário levar em conta os


objetos técnicos que permitem a existência dessa produção agrícola: as plantações, o
maquinário agrícola, os sistemas de armazenamento, a infraestrutura de transporte
e comunicação, as agências bancárias, entre outros.

Ao mesmo tempo, as ações sociais que criaram e sustentam a continuidade


dessa produção são também fundamentais: as relações de trabalho, as leis e
demais normas que regulam o setor, as políticas agrícolas nacionais, o sistema de
financiamento à produção, o comportamento dos preços do produto nos mercados
nacional e internacional, entre outros.

Caso a análise fique restrita ao sistema de objetos, o resultado será uma descrição
da configuração territorial dessa região, isto é, um retrato estático da distribuição
espacial de objetos e pessoas. Sem levar em consideração os conteúdos sociais
dessa região, não é possível compreender os processos históricos e as dinâmicas
atuais que comandam a evolução regional.

Figura 2 – A configuração territorial mostra como estão distribuídas


determinadas ações e objetos num território
Fonte: Wikimedia Commons

Ao longo da história do pensamento geográfico, em vários momentos, foram


valorizados demasiadamente aspectos naturais como fundamentais para a explicação
do espaço geográfico: o relevo, o clima, o solo, a hidrografia, a vegetação, a
distribuição populacional, a produção agrícola, entre outros.

No entanto, se os sistemas de ações receberem atenção exclusiva, a interpretação


tenderá a tratar essa parcela do território nacional como o palco dos agentes sociais
que participam das dinâmicas regionais.

O espaço geográfico seria considerado, portanto, um depositário passivo das


ações sociais, isto é, a superfície material em que se instalariam os produtos espa-
ciais das dinâmicas sociais, sem qualquer forma de influência relevante do território.

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A valorização excessiva de um aspecto em detrimento de outro pode comprometer
a avaliação de como os aspectos específicos influenciam na peculiaridade de cada
lugar ou região.

Essa visão de que o espaço geográfico seria um mero receptáculo das ações
da sociedade levou a um questionamento sobre a importância da Geografia como
disciplina científica. Na década de 1990, costumava-se afirmar que a globalização
teria eliminado a importância do espaço geográfico, já que os fluxos financeiros
prescindiriam dos territórios nacionais, das regiões e dos lugares.

Contrariando tal afirmação, diversos intelectuais demonstraram que, no período


da globalização, o território adquire um caráter ainda mais estratégico. Dessa forma,
o entendimento do espaço geográfico como um híbrido entre materialidades e
ações, ou entre técnica e política, é extremamente promissor como princípio de
método geográfico. O que importa, portanto, não é o território visto simplesmente
como arranjo de objetos, mas os usos do território. O território usado, nessa
perspectiva, pode ser tratado como sinônimo de espaço geográfico.

Para dar um exemplo: um determinado Estado da Federação pode ter a intenção


de atrair empresas para seu território. Para isso, ele investe na construção de um
terminal portuário e uma rodovia de acesso ao terreno onde se instalará a empresa.
Ao mesmo tempo, dá incentivos fiscais, como redução de impostos, por meio de
uma legislação específica.

Nesse caso, a legislação e os incentivos fazem parte do sistema de ações do


Estado. A estrada, o porto e o terreno são agora parte do sistema de objetos. No
entanto, a empresa pode ser atraída também pela disponibilidade de algum recurso
natural, como água ou matérias-primas. A somatória desses atrativos é que vai
determinar a instalação da empresa ou não.

Como explica Milton Santos (2005, p. 155):


Vivemos com uma noção de território herdada da Modernidade incompleta
e do seu legado de conceitos puros, tantas vezes atravessando os séculos
praticamente intocados. É o uso do território, e não o território em si
mesmo, que faz dele objeto da análise social. Trata-se de uma forma
impura, um híbrido, uma noção que, por isso mesmo, carece de constante
revisão histórica. O que ele tem de permanente é ser nosso quadro de
vida. Seu entendimento é, pois, fundamental para afastar o risco de
alienação, o risco da perda do sentido da existência individual e coletiva,
o risco de renúncia ao futuro.

Essa proposta trata o espaço geográfico como uma instância social, isto é, como
uma dimensão que condiciona o futuro das sociedades. Como dissemos, o espaço
geográfico é produzido a partir de intencionalidades de projetos sociais e se realiza
por meio da técnica e do trabalho. Ao mesmo tempo, o espaço produzido participa
ativamente do movimento social do presente, influenciando a evolução histórica
das sociedades.

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UNIDADE Algumas Concepções Teóricas sobre o Espaço Rural e Urbano

Devem ser consideradas as heranças que as sociedades recebem dos períodos


passados e que condicionam a evolução presente. Essas heranças podem ser jurídicas
(leis aprovadas há décadas que continuam em vigor, por exemplo), econômicas
(dívidas públicas contraídas no passado que permanecem como compromissos
presentes, por exemplo) ou culturais (os sistemas de valores que remontam a
períodos anteriores, por exemplo).

Da mesma forma, existem também heranças espaciais, chamadas por Milton


Santos (2006) de rugosidades. Os centros históricos das cidades são o melhor exem-
plo dessa discussão, já que são compostos por uma morfologia construtiva que era
funcional àquele período da história e, muitas vezes, não respondem às exigências
do tempo presente. Se permanecerem na paisagem das cidades, essas construções
tendem a acolher novos usos sociais, passando por processos de refuncionalização.

Figura 3
Fonte: Wikimedia Commons

As formas podem persistir, mas o conteúdo social dessas rugosidades é transforma-


do a partir dos imperativos do sistema de ações do período histórico presente. Assim
como as áreas urbanas, as regiões agrícolas também podem ser refuncionalizadas.

A modernização da agricultura brasileira promoveu transformações profundas


nos conteúdos econômicos, políticos e sociais das regiões do território nacional.
Para sintetizar, é possível afirmar que o espaço geográfico pode ser compreendido
a partir de quatro dimensões (SANTOS, 1997, p. 50):
• A forma, a dimensão material do espaço geográfico, que coloca lado a lado,
na paisagem, objetos produzidos em diversos períodos históricos;
• A função, o conteúdo social que cada objeto geográfico assume em determinado
momento da história, associado às intencionalidades dos agentes sociais;
• A estrutura, a totalidade social composta por variáveis econômicas, políticas
e culturais;

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• E o processo, o movimento histórico que transforma continuamente todas as
dimensões do espaço geográfico.

Partindo dessa introdução, discutiremos em seguida alguns pares de conceitos


fundamentais para a Geografia Agrária: urbano e rural, cidade e campo, questão
agrícola e questão agrária.

Conceitos Básicos do Espaço Rural e Urbano


Há, na Geografia e em outras disciplinas, uma ampla discussão a respeito da
diferenciação entre campo e cidade. Esse debate é tributário da conceituação de
rural e urbano e das diferentes interpretações sobre os processos de urbanização e
o futuro das áreas rurais.

Figura 4
Fonte: iStock/Getty Images

De acordo com José Eli da Veiga (2006), há duas hipóteses centrais nessa
discussão. A primeira, formulada pelo filósofo Henri Lefebvre, defende que o par
industrialização-urbanização promove uma ruptura nas relações historicamente
constituídas entre campo e cidade, trazendo como consequência o avanço inexorável
das áreas urbanas sobre as áreas rurais.

Para esse autor, a principal tendência é que o campo seria submetido às cidades
pela difusão de sistemas técnicos e valores culturais eminentemente urbanos.

Além da expansão das cidades sobre o entorno rural, o campo teria suas
características originais esvaziadas, já que a rápida urbanização da sociedade e do
território disseminaria o modo de vida urbano. O campo perderia a possibilidade
de decidir sobre seu próprio futuro, já que as racionalidades que comandam seu
desenvolvimento estariam localizadas nas cidades.

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UNIDADE Algumas Concepções Teóricas sobre o Espaço Rural e Urbano

Já para Lefebvre (2008, p. 12):


Trazidas pelo tecido urbano, a sociedade e a vida urbana penetram nos
campos. Semelhante modo de viver comporta sistemas de objetos e
sistemas de valores. Os mais conhecidos dentre os elementos do sistema
urbano de objetos são a água, a eletricidade, o gás (butano nos campos)
que não deixam de se fazer acompanhar pelo carro, pela televisão,
pelos utensílios de plástico, pelo mobiliário ‘moderno’, o que comporta
novas exigências no que diz respeito aos ‘serviços’. Entre os elementos
do sistema de valores, indicamos os lazeres ao modo urbano (danças,
canções), os costumes, a rápida adoção das modas que vêm da cidade.

A segunda hipótese foi desenvolvida pelo geógrafo Bernard Kayser. Ao observar


a evolução demográfica das áreas rurais dos países industrializados, Kayser (1990)
percebe uma inflexão a partir dos anos 1970: depois de muitas décadas de declínio
populacional, em vários países começa a haver uma retomada do crescimento
demográfico das áreas rurais. O autor, portanto, defende que há um “renascimento
rural” e que, portanto, ao contrário do esvaziamento de seus sentidos, o campo se
recoloca como realidade geográfica em expansão.

No Brasil, essas hipóteses se desdobraram em um conjunto de interpretações,


sendo que há diversos autores que defendem que a urbanização da sociedade e do
território brasileiro tem um impulso fortíssimo e redefine os conteúdos dos espaços
rurais. Nessa interpretação, a modernização agrícola e a urbanização são processos
paralelos, correspondendo à perda de autonomia do campo.

Outros autores, por sua vez, defendem que há um “novo rural” em consolidação,
marcado por atividades não agrícolas, como é o caso do economista José Graziano
da Silva (1999). A divisão entre ‘urbano e rural’ e entre ‘cidade e campo’ é fundada
em divisões técnicas, sociais e territoriais do trabalho. Historicamente, o campo
deteve a centralidade do processo produtivo, enquanto a cidade abrigava as funções
religiosas, administrativas e militares.

No Brasil, o campo foi responsável pelo dinamismo econômico até o século XIX
aproximadamente. Nesse período, “tratava-se muito mais da geração de cidades, que
mesmo de um processo de urbanização” (SANTOS, 2008, p. 22), já que a economia
agroexportadora não permitia o desenvolvimento expressivo de áreas urbanas.

Esse quadro se altera somente em meados do século XIX, com o complexo


cafeeiro em São Paulo, e se acelera com a industrialização e a integração nacional
a partir da década de 1930.

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Figura 5 – Plataforma petrolífera P-51 da Petrobras, a primeira 100% brasileira
Fonte: Wikimedia Commons

Quais critérios podem ser utilizados para diferenciar urbano e rural, cidade e campo?
Explor

O urbano corresponde ao conjunto de objetos técnicos e de valores sociais engendrados com


a ascensão do capitalismo concorrencial e da burguesia industrial a partir do século XVIII,
na Europa Ocidental (LEFEBVRE, 2008). Trata-se, portanto, de um modo de vida próprio
do atual período histórico e que, desde a sua constituição, está em processo de expansão
planetária. O urbano diz respeito, dessa forma, ao processo de constituição de um novo meio
geográfico, que rompe com as lógicas naturais e incorpora progressivamente conteúdos
técnicos e científicos funcionais à expansão do capitalismo (SANTOS, 2006).
A cidade, apesar de existir muito antes da industrialização capitalista, passa a representar
a forma espacial da urbanização. O mesmo pode ser dito em relação ao campo e ao rural: o
campo corresponde às áreas onde o rural se manifesta.

Para Endlich (2006, p. 14), a teorização sobre cidade e campo dá destaque às


áreas urbanas: “o espaço rural nesse caso define-se por contraposição, de maneira
residual”. Isso significa que o campo e o rural são tratados, normalmente, pelo
critério da exclusão: as parcelas do território que não correspondem às cidades são
enquadradas como campo.

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UNIDADE Algumas Concepções Teóricas sobre o Espaço Rural e Urbano

Figura 6
Fonte: iStock/Getty Images

Esse é o caminho assumido pela legislação brasileira (Decreto-Lei 311, de 1938):


considera-se cidade toda sede de municípios, e área rural é oficialmente definida
como toda área que não esteja inserida no perímetro urbano. Essa definição é
extremamente genérica e não permite uma melhor categorização das cidades e das
áreas rurais no país.

Alguns autores questionam a real parcela das cidades que podem ser consideradas
urbanas, já que muitas das pequenas cidades do país ainda têm dinâmicas econômicas
essencialmente rurais.

José Eli da Veiga (2002), em um texto bastante conhecido, defende que as


estatísticas oficiais da urbanização brasileira são fantasiosas e que o “Brasil é menos
urbano do que se calcula”. Como explica o autor (VEIGA, 2002, p. 57-58):
Essa anômala divisão territorial surgiu em 2 de março de 1938, no ápice
do Estado Novo, quando o Decreto-Lei 311 determinou que “a sede do
município tem a categoria de cidade”. Após 63 anos de estragos surge
um bom Estatuto da Cidade que, lamentavelmente, é omisso sobre a ques-
tão. Urge, portanto, que outro diploma revogue esse entulho varguista e
estabeleça critérios mais adequados ao século 21. Afinal, o Brasil urbano
dificilmente será formado por mais do que 800 cidades que concentrarão,
talvez, uns 70% da população. Outros 30% ou mais continuarão distribu-
ídos por milhares de pequenos municípios do vasto Brasil rural.

Ângela Endlich (2006) coloca que há quatro critérios empregados para distinguir
áreas rurais de áreas urbanas:
• Leis e normas nacionais que definem cidade e campo, como citado anteriormente;
• Patamar demográfico, ou seja, a cidade é considerada de acordo com uma
aglomeração populacional, sendo o campo marcado pela dispersão de pessoas;

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• A concentração urbana ou a dispersão rural aparecem em relação à área
ocupada pelas cidades ou pelo campo;
• O campo concentra as atividades primárias, sobretudo a agricultura e a
pecuária, e na cidade há as atividades secundárias e terciárias.

No entanto, o campo acolhe cada vez mais atividades não agrícolas, como
serviços dos mais variados segmentos. Há, dessa forma, uma dificuldade cada vez
maior em conceituar o campo a partir dessa definição de atividades econômicas,
já que a modernização agrícola leva para o campo um conjunto de atividades
tipicamente industriais, além dos serviços que caracterizariam o “novo rural”.

Os limites entre urbano e rural, campo e cidade são cada vez mais tênues no
atual período. De acordo com Ariovaldo Oliveira (2008, p. 474-475), “o processo
de industrialização da agricultura tem eliminado gradativamente a separação entre
a cidade e o campo, entre o rural e o urbano, unificando-os dialeticamente”. É
preciso, portanto, compreender os usos do território a partir da ideia de totalidade,
isto é, perceber que os processos territoriais não se realizam apenas em áreas
urbanas ou áreas rurais.

As interpretações que pensam o funcionamento sistêmico de campo e cidade


– não separando um contexto que é unitário por definição – alcançam um
entendimento muito mais avançado das questões territoriais brasileiras. Como
coloca Maria Encarnação Sposito (2006, p. 112), a questão cidade-campo “requer
a compreensão das relações e complementariedades que se estabelecem entre
esses dois espaços”.

É fundamental considerar as relações entre campo e cidade a partir do


entendimento das dinâmicas territoriais que articulam as duas áreas, levando em
conta as lógicas de funcionamento que dão unidade ao urbano e ao rural a partir
da análise da rede urbana.

Toda cidade tem um entorno rural que é sua área de influência. Enquanto esse
entorno rural desempenha um conjunto de atividades – agrícolas e não agrícolas – é a
cidade que acolhe as funções de decisão, comando e cooperação com outras escalas.

O campo poderia ser visto, então, como a área polarizada por uma cidade,
que participa de redes urbanas com características mais ou menos hierárquicas, a
depender da situação geográfica em questão. Para exemplificar, podemos voltar
à região especializada na produção de soja: são as cidades dessa região que
oferecem os serviços necessários à realização dessa produção, como encomenda
de maquinário agrícola, recrutamento de trabalhadores especializados, acesso ao
crédito por meio de agências de instituições financeiras, bem como um conjunto
de atividades cotidianas que o campo não dispõe (residências, comércios,
supermercados, restaurantes, atividades de lazer e entretenimento, entre outros).

Essas cidades locais – denominadas dessa forma por responderem aos ritmos de
produção desse entorno mais restrito – estão em permanente contato com cidades
médias, que oferecem serviços com maior nível de sofisticação, e metrópoles, que

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UNIDADE Algumas Concepções Teóricas sobre o Espaço Rural e Urbano

polarizam vastas áreas do território nacional por oferecerem produtos e serviços


não encontrados em outros pontos da rede urbana.

Para avançar em relação ao debate sobre o que é urbano e o que é rural no


território brasileiro, Milton Santos (2008a) propõe uma regionalização que considera
dois tipos principais: os espaços agrícolas e os espaços urbanos, que permitiriam
superar as antigas dicotomias entre espaços urbanos e rurais.

Os espaços agrícolas seriam aqueles que têm a dinâmica regional centrada


nas atividades econômicas do campo. As cidades localizadas nessa região seriam,
portanto, “cidades do campo”, já que as funções que desempenham estão
essencialmente ligadas ao suporte necessário a essa produção.

Já os espaços urbanos seriam aqueles que teriam a indústria e os serviços como


as molas propulsoras de seu desenvolvimento. Nessas regiões, certamente se
encontrariam áreas rurais, mas não seria a produção do campo a responsável
pelos dinamismos locais e regionais. Como comenta Milton Santos (2008a, p. 76):
A região urbana tem sua unidade devido, sobretudo à inter-relação das
atividades de fabricação ou terciárias, encontradas em seu respectivo
território, às quais a atividade agrícola existente preferentemente se
relaciona. A região agrícola tem sua unidade devido à inter-relação entre
mundo rural e mundo urbano, representado este por cidades que abrigam
atividades diretamente ligadas às atividades agrícolas circundantes e que
dependem, segundo graus diversos, dessas atividades.

Desse modo, existem várias concepções sobre o espaço rural e urbano, ou


espaço agrícola e urbano, conforme terminologias usadas.

A Questão Agrícola e Agrária


Por fim, é necessário discutir a diferença entre questão agrícola e questão agrária.
José Graziano da Silva (1980) introduziu essa distinção na literatura sobre o tema,
alertando que essa diferenciação entre questão agrária e questão agrícola é mera-
mente analítica já que, na realidade concreta, as duas dimensões estão relacionadas.

Para o autor, a questão agrícola diz respeito às questões técnicas e econômicas


estritamente relacionadas à produção agropecuária: “o que se produz, onde se
produz e quanto se produz” (1980, p. 11). Uma crise agrícola, portanto, seria uma
situação de escassez de alimentos e matérias-primas agropecuárias, bloqueando o
desenvolvimento urbano e industrial do país.

A questão agrária, por sua vez, está relacionada às “relações de produção: como
se produz, de que forma se produz” (idem). Dessa forma, uma crise agrária estaria
relacionada a questões como disputas pelo acesso a terra, a concentração fundiária
por poucos latifundiários, o rendimento dos trabalhadores do campo, entre outras.

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A estrutura agrária – a distribuição social das terras – é um dos temas fundamentais
dessa questão. O autor chama a atenção para o fato de que, se as duas questões
não forem consideradas, as crises do campo podem se agravar, mesmo quando há
políticas para solucionar uma das questões.

Graziano Silva (1980, p. 11) explica:


A questão agrária está presente nas crises agrícolas, da mesma maneira que
a questão agrícola tem suas raízes na crise agrária. Portanto, é possível ve-
rificar que a crise agrícola e a crise agrária, além de internamente relaciona-
das, muitas vezes ocorrem simultaneamente. Mas o importante é que isso
não é sempre necessário. Pelo contrário, muitas vezes a maneira pela qual
se resolve a questão agrícola pode servir para agravar a questão agrária.

Em suma, o percurso das políticas brasileiras para o campo nas últimas décadas
primou pela resolução da chamada questão agrícola, mas aprofundou ainda mais
os problemas referentes à questão agrária.

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UNIDADE Algumas Concepções Teóricas sobre o Espaço Rural e Urbano

Material Complementar
Indicações para saber mais sobre os assuntos abordados nesta Unidade:

 Livros
Boletim Geográfico
GOMES, Ivair. O que é rural? Contribuições ao debate. Boletim Geográfico. Maringá,
v. 31, n. 3, p. 81-95, set.-dez., 2013.

 Leitura
Revista Mercator
HESPANHOL, Rosangela A. de Medeiros. Campo e cidade, rural e urbano no Brasil
contemporâneo. Revista Mercator. Fortaleza, v. 12, número especial (2), set. 2013,
p. 103-112.
https://goo.gl/3o9XwA
Revista de Pesquisa Fapesp
IZIQUE, Cláudia. O novo rural brasileiro. Revista de Pesquisa Fapesp. Humanidades,
Economia, 2000.
https://goo.gl/g6WgTE
São Paulo em Perspectiva
SILVA, Ligia Osório. As leis agrárias e o latifúndio improdutivo. São Paulo em
Perspectiva (online), 11(2) 1997.
https://goo.gl/PVUBCQ

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Referências
BERNARDELLI, Maria Lúcia Falconi da Hora. Contribuição ao debate sobre o
urbano e o rural. In: SPOSITO, Maria Encarnação Beltrão; WHITACKER, Artur
Magon (orgs.). Cidade e campo: relações e contradições entre urbano e rural. São
Paulo: Expresso Popular, 2006.

ENDLICH, Ângela. Perspectivas sobre o urbano e o rural. In: SPOSITO, Maria En-
carnação & KAYSER, Bernard. La renaissance rurale. Paris: Armand Colin, 1990.

LEFEBVRE, Henri. O direito à cidade. São Paulo: Centauro, 2008.

SANTOS, Milton. Espaço e método. São Paulo: Nobel, 1997.

______. A natureza do espaço: espaço e tempo, razão e emoção. São Paulo:


Edusp, 2006.

______. Metamorfoses do espaço habitado. São Paulo: Edusp, 2008b.

______. A urbanização brasileira. São Paulo: Edusp, 2008a.

SILVA, José Graziano da. O que é questão agrária. São Paulo: Brasiliense, 1980.

______. O novo rural brasileiro. Campinas: Editora do IE/UNICAMP, 1999.

SPOSITO, Maria Encarnação. A questão cidade-campo: perspectivas a partir da ci-


dade. In: SPOSITO, Maria Encarnação & WHITACKER, Arthur. Cidade e campo:
relações e contradições entre urbano e rural. São Paulo: Expressão Popular, 2006.

VEIGA, José Eli da. Cidades imaginárias. Campinas: Autores Associados, 2002.

______. Nascimento de outra ruralidade. Estudos Avançados, v. 20, n. 57, 2006.

WHITACKER, Arthur. Cidade e campo: relações e contradições entre urbano e


rural. São Paulo: Expressão Popular, 2006.

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