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JOÃO BATISTA NETO

Caso 8 – Icterícia
Icterícia é a coloração amarelo-alaranjada que pode ser observada nas mucosas
conjuntival e sublingual e na pele, em decorrência da elevação das concentrações
séricas de bilirrubina. Detectável a partir de 2,5 a 3,0 mg/dL, pode ser sutil ou bastante
evidente, a depender da coloração da pele, das condições de iluminação, da
sensibilidade do observador e da fração de bilirrubina que se encontra elevada.
Icterícia pode ocorrer tanto em situações de agressão direta ao fígado como em
condições sistêmicas, por exemplo, insuficiência cardíaca direita descompensada,
septicemia e tireoidopatias ou, ainda, nas alterações do metabolismo da bilirrubina em
níveis pré e pós-hepático.
METABOLISMO DA BILIRRUBINA
Existem três etapas principais do metabolismo das bilirrubinas: pré-hepática, intra-
hepática e pós-hepática.
1. Fase pré-hepática
A bilirrubina provém do heme liberado com a degradação da hemoglobina, proteína que
atua no transporte e no metabolismo do oxigênio das hemácias. A produção diária de
bilirrubina no adulto é de aproximadamente 4 mg/kg de massa corpórea, 70 a 90%
provenientes da reciclagem de hemácias senescentes degradadas em baço e fígado. O
restante provém de outras fontes, como mioglobina, citocromo P450, catalase e
peroxidase.
O produto final dessa destruição de hemácias idosas é a liberação de hemoglobina. A
hemoglobina, então, não é desperdiçada. Constantemente, o corpo produz novas
hemácias e, por isso, precisa-se reaproveitar o ferro que ela contém. Então, a
hemoglobina é quebrada em duas partes: globina e heme.
O pigmento heme, por sua vez, pode ser quebrado em duas partes: ferro e
protoporfirina. Agora que o corpo conseguiu reaproveitar o ferro, sobra a protoporfirina.
Ela será inicialmente transformada em biliverdina, que rapidamente é reduzida à
bilirrubina.
Essa bilirrubina se liberta no interior dos macrófagos e chega ao plasma. Por ser
insolúvel, liga-se à albumina (que é uma proteína solúvel). Essa bilirrubina que se não
se encontra diretamente no plasma por estar ligada à albumina, a chamamos de
bilirrubina indireta.
2. Fase intra-hepática
A bilirrubina indireta ainda passa por um longo caminho. Ela segue em direção ao
fígado, onde sofre três processos: captação, conjugação e excreção.
Em um primeiro momento, os hepatócitos irão captar a BI disponível no sangue. Em
seguida, já dentro do hepatócito, ela sofre a transformação em um composto solúvel
através da enzima glicuronil-transferase (UGT1A1), em um processo que chamamos de
conjugação.
Mas por que a bilirrubina precisa ser transformada de indireta em direta? No sangue, a
bilirrubina indireta (que é insolúvel) ganha solubilidade. Mas, na bile, não será excretada
albumina para manter a bilirrubina solúvel. Essa proteína é muito preciosa. Então o
fígado se encarrega de transformar a BI em um composto solúvel chamado bilirrubina
direta (BD), para então ser excretado.
A excreção biliar depende de uma ATPase transportadora de bilirrubina, conjugada
através da membrana do polo biliar do hepatócito, denominada MRP2 (proteína
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associada à resistência a múltiplas drogas 2) ou cMOAT (transportador canalicular


multiespecífico de ânions orgânicos).
3. Fase pós-hepática
Após se transformar em BD, o fígado tem que excretar a bilirrubina na bile. Ao ser
excretada no lúmen intestinal e atingir o íleo terminal e cólon, uma parte é metabolizada
por bactérias. Nesse caso, forma-se um novo composto, o urobilinogênio. Uma parte
deste urobilinogênio é absorvida e retorna à circulação para ser excretado na urina. E
como não poderia deixar de ser, quando está na urina, ele se chama urobilina. O
restante que não foi capturado pelas bactérias da flora sai nas fezes e passa a se
chamar estercobilina, sendo o responsável pela coloração fecal.

ETIOLOGIA
1. Causas pré-hepáticas
A. Aumento da produção do heme
A hiperbilirrubinemia indireta resulta de um desbalanço entre a massa de bilirrubina
produzida a partir do heme e seu ritmo de conjugação em nível hepático.
Em situações de estresse, a eritropoiese (e, por conseguinte, a produção de bilirrubina
indireta) pode aumentar em até 10 vezes, mas a excreção de bilirrubina encontra
limitações na capacidade hepática de conjugação.
A icterícia é considerada pré-hepática quando o distúrbio antecede a entrada da
bilirrubina indireta no hepatócito, como nos pacientes com aumento da produção do
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heme, hemólise, reabsorção de grandes hematomas ou transfusões sanguíneas


rápidas.
Anemias megaloblásticas por deficiência de ácido fólico ou de vitamina B12,
sideroblástica e ferropriva grave, porfiria eritropoiética congênita, eritroleucemia, shunt
primário, envenenamento por chumbo, doenças mieloproliferativas ou mielodisplásicas
são exemplos de condições em que a eritropoiese defeituosa promove maior
disponibilidade de heme e, consequentemente, hiperbilirrubinemia indireta.
As anemias hemolíticas costumam apresentar hiperbilirrubinemias discretas, de cerca
de 5 mg/dL, muitas vezes sem manifestação clínica de icterícia. Isso ocorre quando há
defeitos genéticos na hemácia (p. ex., esferocitose hereditária, deficiência de glicose-6-
fosfato-desidrogenase), nas hemólises de etiologia autoimune, toxicidade por drogas e
defeitos estruturais da hemoglobina (p. ex., talassemias e anemia falciforme). No Brasil,
malária e calazar também devem ser lembrados como causas prevalentes de icterícia
associadas a anemia e hemólise.
B. Diminuição da captação de bilirrubina pelo hepatócito
O fígado pode ter sua capacidade de captar bilirrubina inibida pelo efeito competitivo de
medicamentos como rifampicina e contrastes colecistográficos. Esse efeito desaparece
em até 48 horas após a interrupção da medicação.
2. Causas Intra-hepáticas
A. Diminuição da capacidade de conjugação
A icterícia neonatal é comum, sendo considerada fisiológica quando ocorre entre o 2o e
5o dia após o nascimento. Geralmente, os níveis séricos de bilirrubina total não excedem
10 mg/dL, e normalizam-se dentro de duas semanas. Decorre dos baixos níveis de
UGT1A1, em virtude da imaturidade hepática do neonato, mais acentuada nos bebês
prematuros e com hemólise. Outras condições neonatais em que há inibição da
UGT1A1 são a icterícia do leite materno, secundária ao esteroide gestacional e ácidos
graxos do leite materno, e a hiperbilirrubinemia neonatal familiar transitória (ou síndrome
de Lucey-Driscoll), causada por um inibidor presente no soro materno.
A icterícia neonatal ganha importância clínica quando os níveis de bilirrubinemia indireta
elevam-se significativamente. A partir de 20 mg/dL, a impregnação da bilirrubina
lipossolúvel no cérebro pode ocasionar alterações neurológicas; em seu estágio mais
grave, a encefalopatia bilirrubínica (kernicterus), os danos são irreversíveis ou letais.
Também se consideram os fatores de risco de base, como deficiência de G6PD, sepse,
incompatibilidade materno-fetal ABO Rh e a exposição a mentol.
As síndromes de Gilbert e de Crigler-Najjar tipos 1 e 2 são formas hereditárias de
icterícia por bilirrubina indireta, que resultam de diferentes mutações no gene
UGT1A1. Os portadores da síndrome de Gilbert preservam de 10 a 33% de atividade
da enzima; na síndrome de Crigler-Najjar do tipo 2, o funcionamento está limitado a
10%; já na tipo 1, a enzima é nula.
A síndrome de Gilbert apresenta prevalência de 7 a 12% em populações de origem
europeia. Caracteristicamente, os níveis de hiperbilirrubinemia são reduzidos, não
ultrapassam 3 a 4 mg/dL, mas se elevam em situações de estresse como jejum
prolongado, infecções intercorrentes e uso de drogas de metabolização hepática. Não
há alteração das demais provas hepáticas, e a administração de fenobarbital pode
normalizar os níveis de bilirrubina. Embora seja condição benigna, que não requer
tratamento, os clínicos devem ser prudentes na prescrição de medicações cuja
metabolização depende de glicuronidação.
Na síndrome de Crigler-Najjar do tipo 1, a icterícia à custa de hiperbilirrubinemia
indireta já surge no período neonatal, situa-se em níveis entre 18 e 45 mg/ dL e não é
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responsiva ao fenobarbital. No passado, era condição de elevada letalidade por


kernicterus ainda na infância. No tipo 2, a icterícia é mais branda, com bilirrubinemias
entre 6 e 25 mg/dL, que se reduzem em até 75% com a administração de
fenobarbital. Entretanto, em situações de jejum prolongado ou doença intercorrente, o
clínico deve estar atento ao risco de kernicterus, independentemente da idade do
paciente.
Das causas secundárias, destacam-se a inibição parcial da UGT1A1 por medicamentos,
como pregnanediol, novobiocina, cloranfenicol, gentamicina, inibidores da protease do
HIV, benzoato de estradiol e rifampicina. Na prescrição de tais drogas, os médicos
devem atentar aos portadores de síndrome de Gilbert, que estão mais suscetíveis à
hiperbilirrubinemia acentuada nessas condições.
B. Diminuição da capacidade de excreção da bile conjugada
As síndromes de Dubin-Johnson e de Rotor caracterizam-se pela icterícia com
predomínio de bilirrubina conjugada ou mista. São condições benignas, cursam sem
alterações das provas de função hepática, sem colestase, e não requerem tratamento
específico.
A síndrome de Dubin-Johnson decorre de mutações no gene MPR2. Os portadores
dessa síndrome podem eventualmente apresentar hepatoesplenomegalia. Os níveis de
hiperbilirrubinemia mantêm-se de 2 a 5 mg/dL, mas podem atingir até 25 mg/dL; há
particular sensibilidade ao estímulo com estrógenos, que, portanto, devem ser evitados.
A síndrome de Rotor também se caracteriza por hiperbilirrubinemia
predominantemente conjugada ou mista. Geralmente, as bilirrubinas totais séricas
estão em torno de 3 a 7 mg/dL, mas níveis de até 20 mg/dL são compatíveis. O defeito
molecular da síndrome de Rotor continua desconhecido. Não há alterações das demais
provas de função hepática, tampouco do padrão obtido no colecistograma oral ou na
dosagem de coproporfirinas urinárias.
C. Doenças Hepatocelulares
As hepatopatias por vírus (hepatites), álcool, medicamentos e autoimunidade podem
causar icterícia. A inflamação lobular lesa o sistema de transporte das bilirrubinas
conjugadas, bem como libera as bilirrubinas armazenadas no interior do hepatócito.
Paralelamente, ocorrem alterações das aminotransferases, das enzimas
canaliculares e das provas de função hepática. Diante do prejuízo da função
hepatocitária, há redução na capacidade de conjugação da bilirrubina indireta. A
icterícia, nesses casos, tende ao padrão misto.
D. Colestases intra-hepáticas
A colestase intra-hepática recorrente benigna é uma condição rara, benigna, de herança
autossômica, relacionada ao gene FIC1. As crises recorrentes de desconforto, prurido
e icterícia podem se iniciar na infância ou na vida adulta.
Duas condições de natureza autoimune que provocam intensa colestase e icterícia nos
estágios mais avançados de evolução, devendo ser lembradas, são a cirrose biliar
primária e a colangite esclerosante primária.
As medicações que classicamente provocam colestase são acetaminofeno, penicilinas,
anticoncepcionais orais, clorpromazina, estrógenos e esteroides anabolizantes.
Icterícia por obstrução das vias biliares intra-hepáticas também pode decorrer de
infiltração hepática por amiloidose, linfoma, sarcoidose e tuberculose.
3. Causas pós-hepáticas
Nas obstruções das vias biliares, a hiperbilirrubinemia é mista. As bilirrubinas podem
sofrer glicuronidação reversa e difusão ou transporte de volta para o plasma por meio
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de uma ATPase MRP. Elevados níveis de bilirrubina direta e fosfatase alcalina


sugerem (mas não definem) obstrução do fluxo biliar.
O diagnóstico diferencial das obstruções de vias biliares depende da idade do paciente.
Nos adultos, inclui colelitíase, tumores intrínsecos e extrínsecos, colangite esclerosante
primária, infecções parasitárias, linfoma, colangiopatia da aids, pancreatite aguda e
crônica e estenoses pós-cirúrgicas. Nas crianças, cistos coledocianos e colelitíases são
mais frequentes, e também podem ocorrer compressões extrínsecas por tumores.
Neoplasias de vesícula e de vias biliares causam icterícia e prurido intensos. O
adenocarcinoma de vesícula biliar ocorre associado à hepatomegalia e, ao sinal de
Courvoisier, verifica-se massa palpável em quadrante superior direito do abdome. O
colangiocarcinoma tipicamente se apresenta com emagrecimento e dor abdominal.
Ascaris lumbricoides podem migrar do intestino para os ductos biliares e obstruir o fluxo
biliar.
Na pancreatite aguda, ou na forma crônica exacerbada, a icterícia decorre de
compressão extrínseca da via biliar por edema e/ou pela formação de pseudocistos
volumosos. Neoplasias pancreáticas também podem comprimir a via biliar comum,
impedindo a drenagem da bile para os intestinos.

Em síntese, as icterícias por hiperbilirrubinemia indireta ocorrem quando essa fração


atinge níveis superiores a 1,2 mg/dL, e correspondente a mais de 80% das bilirrubinas
totais. As causas mais comuns de hiperbilirrubinemia indireta são aumento da produção
de bilirrubina, síndrome de Gilbert e icterícia neonatal.
Icterícias por hiperbilirrubinemia direta ou mista sinalizam a existência de disfunção
hepatobiliar, que pode ser aguda ou crônica. Mais raramente, podem decorrer de
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distúrbios isolados do metabolismo da bilirrubina, sem repercussão em outros aspectos


das funções do fígado.
As hepatopatias, associadas às hiperbilirrubinemias diretas ou mistas, podem ser
hepatocelulares (que resultam de inflamação e necrose lobular) ou colestases (cujas
características centrais são a inibição do fluxo biliar e a retenção de ácidos biliares
tóxicos). A análise das bilirrubinas, isoladamente, não permite distinguir entre etiologias
hepatocelulares e colestáticas.
A presença de bilirrubina na urina é marcador sensível para a detecção de doença
hepatobiliar subjacente, devendo sempre ser valorizada pelo clínico. A bilirrubina
conjugada pode ser detectada precocemente na urina, mesmo quando os níveis séricos
ainda estão normais, porque a capacidade renal de reabsorção é reduzida.
Da mesma maneira, a diminuição dos níveis de bilirrubinúria também é um indicador
favorável de regressão da doença hepatobiliar, mesmo quando os níveis séricos de
bilirrubina permanecem elevados, o que pode ser atribuído à bilirrubina delta.
Os níveis de hiperbilirrubinemia geralmente se correlacionam com a intensidade
da icterícia; essa regra, porém, não é linear.
Os níveis de hiperbilirrubinemia também podem guiar o raciocínio clínico. Hepatopatias
parenquimatosas ou coledocolitíase com obstrução parcial extra-hepática manifestam
elevações mais amenas que obstruções malignas do ducto biliar comum. Nas hepatites
virais, níveis mais elevados de bilirrubinas correspondem a agressão hepatocelular mais
intensa e curso mais prolongado da doença. Maiores níveis de bilirrubinemia também
estão associados a pior prognóstico na hepatite alcoólica e na cirrose biliar primária.
Porém, existem casos de insuficiência hepática fulminante com icterícia discreta que
evoluem para óbito. Ocasionalmente, a intensidade da icterícia pode induzir o clínico a
superestimar a disfunção hepática existente.
HIPERBILIRRUBINEMIA DIRETA
Considere agora que a bilirrubina já passou pelas fases de captação e conjugação e se
encontra em sua forma solúvel (bilirrubina direta). Então, ou os hepatócitos estão
lesados e não conseguem excretar bilirrubina para os canalículos biliares ou há alguma
obstrução que não permite que a bile chegue ao intestino. Então, as duas grandes
causas são a síndrome colestática ou a síndrome de lesão hepatocelular.
Acabamos de ver que o metabolismo das bilirrubinas inclui três fases principais:
captação da BI, conjugação da BI em BD e excreção da BD para o canalículo biliar. Mas
existe um "porém" nessa tríade. A etapa "limitante" do metabolismo da bilirrubina – ou
seja, aquela que é mais sensível, mais facilmente abalável – é a terceira (excreção da
BD formada para o canalículo biliar). Isto porque se trata de uma fase que ocorre por
um processo ativo dependente de ATP. E quando há lesão hepática, esse é o primeiro
processo a limitar o metabolismo da bilirrubina. Ou seja, em condições adversas, os
hepatócitos conseguem captar, conjugar, mas têm dificuldade em excretar. E é por esse
motivo que, na lesão hepatocelular, o fígado acumula BD.
ASPECTOS CLÍNICOS
A icterícia pode ser um achado incidental em um indivíduo assintomático, sem
representar risco à saúde de seu portador, mas também pode sinalizar a coexistência
de uma condição grave. Embora os pacientes possam apresentar a queixa de “pele
amarelada ou alaranjada”, a confirmação da icterícia se dá mediante achado de
escleróticas e mucosas conjuntivas e sublingual com tonalidade amarelada,
examinadas à luz do dia ou em ambiente iluminado artificialmente com luz branca.
A anamnese precisa esclarecer se a instalação foi abrupta ou insidiosa, se é o primeiro
episódio ou recorrente. Os quadros agudos podem ser causados por infecções, sendo
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necessário avaliar se o paciente está febril, apresentando dor abdominal e sintomas


gripais.
O clínico precisa esclarecer se a icterícia é acompanhada de prurido (embora possa
surgir na lesão hepatocelular, ocorre de forma muito mais característica na síndrome
colestática e resulta do acúmulo de ácidos e sais biliares na pele), emagrecimento, dor
abdominal, colúria, anemia e ascite. Sinais de hipertensão portal, como esplenomegalia,
circulação colateral evidente em região umbilical da parede abdominal.
Evidências de insuficiência hepática, como telangiectasias do tipo “aranhas vasculares”,
ginecomastia, asterixe, rebaixamento do nível de consciência e equimoses, também
podem acompanhar a icterícia.
Hipocolia ou acolia fecal correspondem à obstrução de vias biliares extra-hepáticas.
Qualquer condição que reduza a presença de BD na bile, como é o caso da colestase,
pode originar fezes pálidas, esbranquiçadas.
O levantamento minucioso de medicações, drogas, fitoterápicos e compostos químicos
utilizados nos meses que antecederam a instalação da icterícia, com caracterização de
doses e frequências, pode ser elucidativo.
O paciente deve ser questionado a respeito de consumo de álcool e de tóxicos, bem
como contato profissional ou domiciliar com substâncias químicas potencialmente
hepatotóxicas. Como algumas doenças do fígado também podem ser acompanhadas
de manifestações extra-hepáticas, deve-se pesquisar a existência de sinais e sintomas,
como queixas em outros órgãos e aparelhos, por exemplo, pioderma gangrenoso,
poliartralgias, uveíte, derma- tite herpetiforme, aftas orais, glossite.
ASPECTOS LABORATORIAIS
Como a clínica por si só não é capaz de diferenciar as duas principais causas de icterícia
(hepatocelular x colestática), sobrou para os exames laboratoriais a responsabilidade
dessa distinção.
Vamos relembrar alguns conceitos: existem diversas enzimas no interior dos
hepatócitos, mas as principais são duas transaminases (TGO e TGP). Um pequeno
"escape" fisiológico dessas transaminases dos hepatócitos para a circulação explica
uma concentração sérica de até 45 U/L. Entretanto, as condições que promovem lesão
dos hepatócitos geralmente determinam um grande extravasamento dessas enzimas
para a corrente sanguínea. O TGP é mais específico do fígado e TGO pode ser
encontrado em vários tecidos.
A Fosfatase Alcalina (FA) é formada pelo hepatócito e pode ser encontrada tanto em
seu interior quanto nos canalículos biliares. Sua produção aumenta em duas situações:
quando a pressão no interior do sistema biliar é elevada, extravasando para a corrente
sanguínea durante o processo de colestase (retenção biliar); e nas doenças infiltrativas
hepáticas, como neoplasias e granulomas.
Na presença de metástases osteoblásticas, caracterizadas por neoformação óssea (ex.:
Ca de próstata), também pode haver aumento da FA.
REGRA PRÁTICA 1 – se o aumento das transaminases for maior que dez vezes o valor
de referência (alguns falam > 300 U/L), a síndrome é com certeza hepatocelular.
REGRA PRÁTICA 2 – se o aumento da fosfatase alcalina exceder 4x o valor de
referência, a síndrome é com certeza colestática.
REGRA PRÁTICA 3 – níveis de transaminases superiores a 1.000 U/L, com TGP > TGO
são bastante sugestivos de hepatite viral aguda. Outras causas são: intoxicação por
paracetamol, isquemia hepática grave.
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REGRA PRÁTICA 4 – nas hepatites em geral, os níveis de TGP costumam ser


superiores aos de TGO – a inversão deste padrão clássico, em especial quando TGO >
2x TGP, sugere bastante a hepatite alcoólica como responsável pelo quadro. Nestes
casos, a gama-GT costuma estar bem elevada (por um mecanismo diferente da
colestase).

SÍNDROME DE GILBERT
Caracteriza-se por hiperbilirrubinemia não conjugada leve, valores normais nos exames
bioquímicos padronizados da função hepática e histologia hepática normal.
O espectro clínico da hiperbilirrubinemia passa gradualmente para o da CN-II, com
níveis séricos de bilirrubina na faixa de 5 a 8mg/dL. Na outra extremidade da escala, a
distinção entre casos leves de SG e um estado normal é, com frequência, indefinida. As
concentrações de bilirrubina podem oscilar substancialmente em determinado indivíduo
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e ao menos 25% dos pacientes têm valores temporariamente normais durante um


acompanhamento prolongado.
Valores mais elevados estão associados a estresse, fadiga, uso de álcool, ingesta
calórica reduzida e enfermidade intercorrente, enquanto a ingesta calórica maior ou
administração de agentes indutores enzimáticos produzem níveis mais baixos de
bilirrubina.
A SG é diagnosticada com mais frequência durante ou logo após a puberdade, ou ainda
na vida adulta, em exames de rotina incluindo análises bioquímicas de múltiplos canais.
Nos casos típicos, a atividade da UGT1A1 está reduzida para 10 a 35% do normal e os
pigmentos biliares demonstram aumento característico dos monoglicuronídeos de
bilirrubina.
O diagnóstico é de exclusão. O exame físico é normal. No laboratório, não
encontraremos outras alterações hepáticas. Procurar sempre sinais de hemólise
(hemograma completo, esfregaço e contagem de reticulócitos), pois é o principal
diagnóstico diferencial. Testes específicos de função enzimática apesar de viáveis não
são realizados na prática. A biópsia não é necessária, porém quando feita apresenta
acúmulo não específico de lipofuscina nas zonas centrolobulares. Embora incomum
pode-se realizar o teste de restrição calórica e lipídica (400 kcal/dia) ou após uso de
ácido nicotínico que exibirá aumento dos níveis de BI.
O tratamento não é necessário. Apenas por razões estéticas pode-se usar o fenobarbital
em baixas doses. O fenobarbital atua como indutor da glicuronil-transferase,
aumentando a taxa de conjugação da bilirrubina, além de estimular a excreção de
bilirrubina direta.
SÍNDROME DE CRIGLER-NAJJAR
A síndrome de CN-I caracteriza-se por hiperbilirrubinemia não conjugada marcante
(cerca de 20-45 mg/dL), que se manifesta no período neonatal e persiste por toda a
vida. Outros testes bioquímicos hepáticos convencionais, como os níveis séricos de
aminotransferases e fosfatase alcalina, são normais e não há indícios de hemólise. A
histologia hepática também é essencialmente normal, com exceção da presença
ocasional de tampões biliares dentro dos canalículos.
Antes da disponibilização da fototerapia, a maioria dos pacientes com CN-I morria
devido à encefalopatia induzida por bilirrubina na lactância ou no início da infância.
Poucos viviam até alcançar o início da vida adulta sem qualquer dano neurológico
evidente, apesar de os testes mais sutis indicarem habitualmente disfunção cerebral
leve progressiva.
A CN-II difere da CN-I em vários aspectos específicos: (1) Embora exista sobreposição
considerável, as concentrações médias de bilirrubina são menores na CN-II; (2) por
essa razão, a CN-II está associada apenas raramente à icterícia nuclear; ; (3) a UGT1A1
hepática geralmente está presente em níveis reduzidos (nos casos típicos, ≤ 10% do
normal); e, (4) embora seja detectada classicamente na lactância, em alguns casos a
hiperbilirrubinemia somente foi detectada em anos subsequentes.
Como acontece com a CN-I, a maioria dos casos de CN-II apresenta anormalidades da
conjugação de outros compostos como salicilamida e mentol, porém em alguns casos
a falha parece limitar-se à bilirrubina.
A redução das concentrações séricas de bilirrubina em mais de 25% em resposta aos
indutores enzimáticos (p. ex., fenobarbital) permite diferenciar a CN-II da CN-I, apesar
da possibilidade de que essa resposta não seja induzida nos primeiros meses da
lactância e, com frequência, não seja acompanhada de indução mensurável da
UGT1A1. As concentrações de bilirrubina durante a administração de fenobarbital não
retornam aos níveis normais, mas permanecem entre 3-5 mg/dL.
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Embora a incidência de icterícia nuclear seja baixa na CN-II, já ocorreram casos não
apenas em lactentes como também em adolescentes e adultos, a maioria das vezes na
vigência de enfermidade intercorrente, jejum ou algum outro fator que eleve
transitoriamente a concentração de bilirrubina sérica acima do nível basal e reduza as
concentrações de albumina. Por essa razão, o tratamento com fenobarbital é
amplamente recomendado e, com frequência, é suficiente uma dose única ao deitar
para manter as concentrações séricas de bilirrubina clinicamente seguras.
O diagnóstico da tipo I é baseado nos níveis de bilirrubina indireta são maiores no tipo I
do que no tipo II, porém o diagnóstico diferencial pode ser difícil em casos em que há
sobreposição do tipo II com hemólise. Pacientes com tipo I possuem níveis de bilirrubina
direta no sangue em níveis indetectáveis, enquanto os níveis são detectáveis no tipo II.
O diagnóstico definitivo pode ser feito com a análise genética.
O diagnóstico da tipo II é feito em pessoas com níveis de BI menor que 20 mg/dl e
laboratório hepático normal. Mas cuidado, os níveis de bilirrubina podem chegar a 40
em casos de jejum ou infecções (por causa da menor afinidade com a bilirrubina só há
atividade enzimática em estados de hiperbilirrubinemia). Os níveis de BD são
detectáveis no sangue. Em caso de dúvida diagnóstica, pode-se realizar análise da bile
coletada por endoscopia ou então proceder a exames genéticos. A prova terapêutica
com fenobarbital também auxilia no diagnóstico, uma vez que há diminuição dos níveis
de bilirrubinas com o uso deste indutor enzimático.
O tratamento da tipo I é fototerapia e plasmaférese. Outras opções terapêuticas são
reposição de cálcio + fósforo associados ou não ao orlistate. O transplante é a única
opção curativa. O prognóstico é ruim.
O tratamento da tipo II não é necessário, mas pode ser feito com fenobarbital ou
clofibrato por motivos estéticos.

TABELA 331-1 ■ Características diferenciais principais das síndromes de Gilbert e Crigler-Najjar


Característica Síndrome de Crigler-Najjar Síndrome de Gilbert
Tipo I Tipo II
Bilirrubina sérica total, 310-755 (geralmente 100-430 (geralmente ≤ Em geral, ≤ 70 μmol/L (≤ 4 mg/dL)
μmol/dL (mg/dL) > 345) (18-45 345) (6-25 [geralmente ≤ na ausência de jejum ou hemólise
[geralmente > 20]) 20])
Provas de função hepática Normais Normais Normais
de rotina Ausente Reduz a bilirrubina em > A bilirrubina cai a nível normal
Resposta ao fenobarbital Comum 25% Não
Icterícia nuclear Normal Rara Em geral, normal; o pigmento
Histologia hepática Normal lipofucsina está aumentado em
alguns casos
Características da bile
Cor Clara ou incolor Pigmentada Coloração escura normal
Frações de bilirrubina > 90% não Maior fração (média: 57%) Principalmente biconjugados,
conjugada de monoconjugados porém monoconjugados
aumentados (média: 23%)
Atividade de bilirrubina-UDP- Ausente nos casos Acentuadamente reduzida: Reduzida: 10-33% do normal
glicuronosiltransferase típicos; traços em 0-10% do normal Mutação do promotor: recessiva
Herança (todas alguns pacientes Predominantemente Mutações missense: 7 de 8 são
autossômicas) Recessiva recessiva dominantes; 1 relatada como
recessiva

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