Você está na página 1de 60

Direitos Fundamentais Leonor Branco Jaleco

Direitos Fundamentais – Aulas teóricas

Evolução dos direitos fundamentais na história:

Referimo-nos só ao período do constitucionalismo, ou seja, desde as revoluções liberais até aos dias
de hoje.

No Estado de Direito liberal, quando falamos em direitos fundamentais, não falamos em direitos
fundamentais de todas as pessoas, mas sim dos cidadãos. Só que os cidadãos da época são uma
minoria muito delimitada no conjunto da população. Desde logo, no que toca aos direitos de
participação política, só eram titulares destes direitos, por um lado, os homens e, por outro lado, as
pessoas que sabiam ler e escrever e os proprietários, o que significava que quando se falava em
cidadãos do Estado liberal, falava-se em cerca de 5% da população.

Assim, a conceção de direitos fundamentais da época era muito condicionada pela burguesia.

O direito fundamental mais importante era o direito de propriedade. Na verdade, só quem tinha
direito de propriedade é que acedia a todos os direitos, o que levava a que a conceção de todos os
direitos fosse uma conceção muito marcada pelo individualismo – eram os direitos fundamentais do
homem individualmente considerado – desconfiando-se de todos os direitos fundamentais coletivos,
como a liberdade de associação. Era por esta razão que o direito à greve, na altura, era considerado
uma atividade criminosa.

Tratavam-se de direitos com uma natureza negativa – quando falamos em direitos fundamentais,
estamos a falar de uma relação entre alguém que tem um direito e o Estado que tem um dever. Na
altura, o dever do Estado era o de não se intrometer; tinha uma obrigação negativa de não intervenção.

Pelo contrário, a pessoa tem um direito positivo quando aquele que está adstrito a um dever tem a
obrigação de fazer alguma coisa.

Podemos falar ainda em direitos sociais – saúde, habitação e trabalho – que, na realidade, não eram
vistos, dado que na altura não existia uma realidade social que devesse ser protegida por estes direitos
sociais. Tendo em conta os titulares dos direitos, não era precisa a intervenção do Estado para terem
direito à habitação, cuidados médicos, uma vez que os próprios titulares dos direitos sociais tinham
os seus meios próprios para aceder à satisfação dessas necessidades.

Considerava-se ainda que os impostos deveriam ser utilizados para proteger a propriedade de quem
a tinha, mas não para garantir o acesso aos direitos sociais para aqueles que não tinham forma de
aceder a eles.

No século XX começa a generalizar-se o direito de sufrágio a todos e, nessa altura, o corpo de cidadãos
passa a ser algo de completamente novo, com uma conflitualidade de natureza ideológica e
programática muito maior.

Há uma perda relativa do poder do direito de propriedade e passa a ser um direito como os outros.
Os direitos deixam de ser considerados apenas como direitos negativos, mas passam a ser vistos
também como direitos positivos, no sentido de que o Estado tem não apenas o dever de respeitar os
direitos fundamentais, mas também outros deveres neste domínio.

1
Direitos Fundamentais Leonor Branco Jaleco

Este dever de proteção é alargado a todos os direitos fundamentais, e não apenas ao direito de
propriedade. O Estado passa assim a ter o dever de promover o acesso por parte de todos os cidadãos
a todos os direitos fundamentais. Sem ajuda do Estado, a grande maioria dos cidadãos não teria
acesso aos direitos fundamentais; há assim uma ampliação dos deveres do Estado.

Há a ideia que esta evolução dos direitos fundamentais (traçada supra) foi uma evolução linear; mas
não foi assim, pelo menos na Europa. Depois da 2ª Guerra Mundial, existe na Europa uma verdadeira
revolução constitucional. Os tribunais na Europa não consideravam a Constituição como norma
jurídica; entendiam que era, quando muito, um documento político, aplicado no domínio da
separação de poderes. Toda a parte da Constituição dos direitos fundamentais não existia, pura e
simplesmente, na Europa, o que é estranho, dado que a Europa seria o berço dos direitos
fundamentais.

Os direitos fundamentais eram garantidos através da Lei, do legislador, e não através dos tribunais.
Ou seja, os direitos fundamentais estavam na Constituição, mas os tribunais europeus não os
aplicavam. Enquanto na América, desde os primeiros anos do século XIX, os tribunais e o Supremo
Tribunal começaram a aplicar a Constituição como norma jurídica para resolver casos, na Europa
recusava-se esta ideia: os tribunais aplicarem a Constituição era mal visto, como uma ameaça aos
direitos fundamentais dos cidadãos.

E o que leva a que haja esta diferença abismal entre a América e a Europa?

O lema “Governo dos Juízes” era como um fantasma que pairava no Direito Constitucional Europeu,
enquanto na América era o contrário: receava-se antes o poder dos parlamentos. Na Europa, por seu
lado, confiava-se quase cegamente nos parlamentos.

Na Europa, o juiz era apenas a boca que pronuncia as palavras da lei, e não mais do que isso. Era
inconcebível, assim, que o juiz se recusasse a aplicar a lei.

O que levou à mudança, na Europa, desta conceção?

Os europeus, que sempre tiveram receio do “Governo dos juízes”, experienciaram, tal como os
americanos, que os Parlamentos podem aprovar leis injustas e violadoras dos direitos fundamentais,
o que até aí achavam impossível. Assim, toda a revolução constitucional que se faz depois da 1ª
Guerra Mundial, que em muitos países se designa de Neo-constitucionalismo, faz-se em torno da
constatação da realidade de que os direitos fundamentais dos cidadãos precisam de ser protegidos
também contra a lei.

A Constituição passa então a ser a norma jurídica máxima e o padrão de todas as outras.

Qual o papel da Constituição num Estado de Direito? Existe Constituição para retirar à maioria política o
domínio sobre os direitos fundamentais. Parece estranho, mas com a Constituição a maioria política
perde o controlo sobre os direitos fundamentais e será o poder judicial a ter a última palavra em
domínio de direitos fundamentais.

2
Direitos Fundamentais Leonor Branco Jaleco

E isto não é fácil de aceitar porque existe a ideia de que em Democracia é a vontade da maioria que
decide, mas com direitos fundamentais na Constituição não é assim que sucede; os direitos
fundamentais adquirem esta natureza de direitos contra a maioria política. A maioria não precisa dos
direitos fundamentais porque tem o poder de decidir.

Os direitos fundamentais prevalecem, assim, contra a vontade da maioria. Contudo, nenhum


direito fundamental, visto como um todo, é um direito absoluto. Todos os direitos fundamentais são
limitáveis, desde logo quando entrem em conflito com outro direito fundamental.

A grande dificuldade é, então, resolver este paradoxo.

⭐ Conceitos e distinções

1) Direito fundamental

Dentro de uma OJ, são os direitos considerados essenciais, fundamentais, aos quais são atribuídos
importância máxima e, por esse facto, foram integrados na Constituição. A partir do momento em
que temos um direito na Constituição, esse é um direito fundamental em sentido formal.

No art. 16º/1 CRP encontramos uma cláusula aberta/de não tipicidade de direitos fundamentais.
Tal faz sentido, dado que, para além dos direitos previstos na CRP, podem surgir outros que devam
ser considerados também como direitos fundamentais em sentido material.

Quando falamos em direitos fundamentais, falamos então em direitos consagrados nas normas
constitucionais. Todas as normas de direitos fundamentais têm uma estrutura muito semelhante, que
envolve, de um lado, o titular do direito fundamental e, do outro lado, aquele que é obrigado na
relação, o destinatário do direito fundamental.

Em princípio, todas as pessoas são titulares dos direitos fundamentais, inclusive pessoas coletivas. E
quem são os destinatários dos direitos fundamentais?

i) Indiscutivelmente, os poderes públicos (Estado)


ii) De forma mais discutível, os outros particulares – é controverso saber se o cidadão A tem
um direito fundamental contra o cidadão B. A CRP só aparentemente resolve o problema:
no art. 18º/1 determina que as normas de direitos, liberdades e garantias se aplicam às
entidades privadas. Mas esta solução não é clara: a CRP é a única que afirma algo assim;
sendo assim, se só os portugueses é que se pautam por esta solução, serão os portugueses
que estão certos, ou o resto do mundo? À partida, o estranho será a CRP e, desde logo por
isso, devemos questionar esta aparente solução.

Para além dos titulares e dos destinatários, temos ainda o bem protegido, que é o bem cujo acesso se
procura garantir, através desta garantia que é o direito fundamental.

Por exemplo: art. 38º CRP, em que o Estado se obriga a assegurar a existência e o funcionamento de
um serviço público de rádio e de televisão.

 Haverá aqui um direito subjetivo dos cidadãos que lhes permita ir a tribunal exigir a criação de uma
rede de televisão pública? Em princípio não. E só podemos dizer que há violação de direitos

3
Direitos Fundamentais Leonor Branco Jaleco

fundamentais consoante o Estado cumpra ou não. Isto leva-nos a concluir que as normas de
direitos fundamentais têm duas dimensões:
a. Dimensão subjetiva – vantagens para os próprios interesses que resultam do
cumprimento da própria norma de direitos fundamentais para os particulares.
b. Dimensão objetiva – podem existir vantagens sem que haja subjacente um direito
subjetivo, o que obriga a que a norma seja de tal forma determinada que permita ao poder
judicial concluir se o Estado está ou não a cumprir o dever que lhe é imposto por essa
norma de direitos fundamentais.

2) Normas percetivas vs normas programáticas

Esta distinção surgiu numa época em que fazia sentido distinguir entre estes dois tipos de normas,
porque a CRP não era aplicada como norma jurídica. Dizia-se que os particulares não podiam invocar
diretamente em tribunal uma norma de direitos fundamentais, pelo que estas tinham a natureza de
normas programáticas, pois só seriam invocáveis e o tribunal só poderiam aplica-las quando o
legislador as realizasse, legislasse.

Esta distinção atualmente não tem qualquer relevância.

3) Norma vs enunciado normativo

Os vários artigos da CRP são enunciados normativos, conjuntos linguísticos. O nosso problema
enquanto juristas é saber que normas tiramos da interpretação daquele texto, daquele enunciado. O
que nos importa é a norma; partimos do enunciado, mas para chegar à norma.

É da interpretação da norma que resultam os comandos normativos.

Por exemplo: o art. 65º CRP, quando dispõe que “todos têm direito, para si e para a sua família, a uma
habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a
privacidade familiar” tende a ser interpretado, pelos leigos, como “letra morta”, uma vez que nem todas
as pessoas têm essa habitação.

Mas da interpretação deste enunciado não resulta a norma de que o Estado tem o dever de atribuir a
cada pessoa uma habitação. O que resulta da interpretação é que o Estado tem o dever de respeitar,
de proteger e de promover.

4) Normas-regra vs normas-princípio

Pegando nos seguintes artigos:

a. Art. 25º CRP: a integridade moral e física das pessoas é inviolável. Será isto compatível com a
imposição de uma vacinação obrigatória a título excecional? Poderemos concluir que sim. Ou
seja, admite-se que esta integridade física seja comprimida.
b. Art. 24º CRP: a vida humana é inviolável. Apesar de o enunciado consagrar o direito à vida em
termos absolutos, é possível pensar em situações em que o direito à vida é comprimido.

4
Direitos Fundamentais Leonor Branco Jaleco

O termo inviolável não mais exprime a importância máxima que é atribuída à vida e à integridade
física e moral. Mas não sendo compatíveis, numa situação concreta, algum tem de ceder; e
concebemos que um deles ceda sem que se considere haver violação de um direito fundamental.

Se quisermos, podemos dizer que todos os direitos fundamentais são invioláveis, sob pena de
inconstitucionalidade. A nossa dúvida é saber quando é que foram violados ou não, uma vez que se
concede que estes possam ser limitados em determinadas circunstâncias, ficando sujeitos a uma
ponderação do caso concreta.

Estas normas designam-se de normas-princípio: numa norma-princípio, a CRP não fez ainda todas
as ponderações que há a fazer. A CRP consagra o direito, mas deixa a norma suficientemente aberta
para os poderes públicos poderem fazer ponderações no caso concreto.

Já, por exemplo, o art. 24º/2 CRP, que dispõe que em caso algum haverá pena de morte, não parece que
possa haver qualquer tipo de limitação ou ponderação. Neste caso, a CRP já fez todas as ponderações
(“em caso algum”); estamos aqui perante uma norma-regra.

As normas-regra são aquelas cujo conteúdo normativo é facilmente determinável; as normas-


princípio são normas cujo comando normativo não é precisamente determinado, estando sujeito a
interpretações futuras e adaptação às diferentes circunstâncias.

Outro critério de distinção é o seguinte: as normas-regra têm um conteúdo de ação específico,


enquanto as normas-princípio têm um conteúdo de ação genérico.

Umas vezes a distinção é fácil de fazer, mas outras vezes não. Exemplo: art. 25º CRP.

Se tivéssemos este caso prático para resolver: o art. 27º diz-nos que todos têm direito à liberdade e
segurança e o n.º 2 diz-nos que ninguém pode ser privado da liberdade a não ser em caso de sentença
condenatória. O n.º 3 enumera algumas exceções a este princípio. Nestas exceções, vem na al. h) deste
n.º 3 o internamento de portador de anomalia psíquica em estabelecimento adequado.

O caso seria saber se, perante a difusão do coronavírus, o Estado pode ou não determinar um
internamento compulsivo das pessoas. Qual é a solução jurídica determinada pela CRP? Uma das
fundamentações possíveis é a de que, não sendo uma anomalia psíquica, não é possível o
internamento. No entanto, não podemos olhar para a ratio da própria norma – art. 27º/3, al. c) CRP –
e aplicá-la a novas condições?

5) O direito fundamental como um todo e cada uma das faculdades que o integra:

Por exemplo, o direito à vida e o direito à saúde são formulados de forma tão indeterminada e
genérica que comportam diversas faculdades. Retiramos daqui o direito de o Estado não condenar
ninguém à morte; retiramos o direito de a pessoa quando está numa situação de dificuldade de
sobrevivência, ser ajudada pelo Estado. É também uma distinção decisiva.

5
Direitos Fundamentais Leonor Branco Jaleco

⭐ Classificação de direitos fundamentais e sistematização de Direitos Fundamentais na


Constituição:

A nossa CRP adota uma classificação muito precisa de direitos fundamentais e a sua sistematização
é rigorosa, o que não se encontra noutras Constituições.

Que importância tem a sistematização? Torna fácil encontrar nas subdivisões os vários direitos
fundamentais.

No art. 17º CRP, o regime dos direitos, liberdade e garantias (DLG) aplica-se aos direitos do Título II
e aos direitos fundamentais de natureza análoga.

a. Regime dos direitos, liberdades e garantias: há um regime para estes DLG;


b. Este regime não se aplica apenas aos direitos enunciados no Título II, aplicando-se também aos
direitos de natureza análoga.
c. Há ainda direitos que estão noutros títulos e que não são nenhuns dos anteriores e, portanto,
implicitamente terão também um regime que será diferente.

A doutrina, em função daquilo que consta da CRP, dividiu o regime em três dimensões:

1. Regime material: está disperso em vários artigos da CRP. O art. 18º começa logo por dizer
que os preceitos constitucionais relativos a DLG são diretamente aplicáveis. O art. 19º
estabelece que os órgãos de soberania não podem suspender o exercício dos DLG.
2. Regime orgânico: na chamada reserva relativa da competência da AR (art. 165º, al. b) CRP)
vêm os DLG.
3. Regime de revisão constitucional: nos limites da revisão constitucional, temos os limites
materiais de revisão. A al. h) deste art. 288º estabelece que as revisões constitucionais têm de
respeitar os DLG.

Mas há uma outra dificuldade: quais são os direitos que, não estando enunciados no Título II, têm uma
natureza análoga aos que estão enunciados no Título II? A doutrina resolve este problema.

Há, em todo o caso, o enigma que ainda está por resolver. Isto é: nós sabemos qual o regime dos DLG
e o regime aplicável aos direitos análogos, mas falta-nos saber qual o regime da terceira classe dos
direitos fundamentais. A CRP não diz, nem a doutrina portuguesa.

Exemplo: art. 19º CRP. Podem os órgãos de soberania suspender o exercício dos direitos sociais? Não, na
medida em que se trata de um direito fundamental e de uma norma constitucional que supera as
normas ordinárias.

Art. 18º/3 CRP: podemos admitir a possibilidade de um direito fundamental ser comprimido, mas
nunca podemos admitir que um direito possa ser afetado no seu conteúdo essencial.

6
Direitos Fundamentais Leonor Branco Jaleco

Como é que se aplica aos direitos sociais?

Outros autores dizem: aplicamos o regime material aos de natureza análoga mas já não aplicamos o
regime orgânico.

É ainda mais estranho porque não há outro no mundo como o regime português de direitos
fundamentais. Porque é que a CRP portuguesa é a única que adotou este sistema? Assiste-se na CRP
a uma gradação de direitos fundamentais, o que à primeira vista é estranho, na medida em que todos os
direitos fundamentais se fundamentam na dignidade da vida da pessoa humana e, por isso, não se
deveria assistir a uma tal gradação: a vida humana é a vida humana.

Doutrina Tradicional:

O sistema português de direitos fundamentais é construído na base de uma doutrina tradicional


portuguesa, que tem sido seguida há muitos anos. O que caracteriza este sistema é o facto de se partir
de uma distinção fundamental entre os direitos consagrados no Título II (direitos, liberdades e
garantias) e os restantes direitos: aos primeiros atribui-se uma proteção especial, que tem uma
dimensão material (princípios que permitem resolver a maior parte dos casos de direitos
fundamentais), um regime orgânico e um regime de revisão constitucional (as leis de revisão
constitucional têm de respeitar os direitos, liberdades e garantias).

Daqui resulta que a CRP marca uma divisão entre categorias de direitos fundamentais – de um lado,
os direitos, liberdades e garantias e, do outro, os direitos sociais, que assumem menor relevância.

Portugal é o único país que introduziu uma terceira categoria de direitos (art. 17º CRP), que são
aqueles que têm uma natureza análoga aos DLG. Daqui resultou, para a maioria da doutrina e
aplicadores do direito, que surgindo um problema de direitos fundamentais, a primeira coisa que o
decisor tem de fazer é ver se está ou não em causa um direito, liberdade ou garantia:

- Se sim, aplica-se o regime de proteção que lhe está previsto.


- Se não, temos de ver se tem natureza análoga aos direitos enunciados no Título II: se sim,
aplica-se então esse mesmo regime.

Por último fica a situação em que o direito não está enunciado no Título II, nem tem uma natureza
análoga; que regime aplicamos a esses direitos? Não sabemos, e por isso são vistos como direitos
residuais: a CRP diz que são direitos fundamentais, mas como não beneficiam do regime de proteção
privilegiada, seriam automaticamente desqualificados.

JORGE REIS NOVAIS (JRN) entende, contudo, que este regime é errado, irracional, inaplicável.

E porquê?

Pensemos no caso atual do coronavírus e a possibilidade ou não de quarentena obrigatória. Temos


um problema jurídico grave de direitos fundamentais para resolver: de um lado, temos o direito
fundamental à liberdade (de circulação), enunciado no Título II, sendo-lhe aplicado o regime dos
direitos, liberdades e garantias, pelo que se lhe aplica o art. 18º/2 CRP, que dispõe que “A lei só pode
restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição (…)”. Ora, a
CRP não prevê a possibilidade de quarentena em situações de perigo para a saúde pública. A doutrina

7
Direitos Fundamentais Leonor Branco Jaleco

tradicional diria que, tratando-se de um direito enunciado no Título II, sendo-lhe aplicado o art. 18º/2,
não seria possível fazer nada em relação à proteção da saúde pública. E do outro lado o que temos?
O direito à saúde, que também é um direito fundamental; ou seja, ambos os direitos têm igual peso e
relevo. O Estado tem uma obrigação de respeitar o direito à liberdade, mas também tem o dever de
proteger a saúde pública.

Na opinião de JRN, só seria possível fazer distinções dentro de direitos fundamentais se pudéssemos
concluir que os direitos enunciados no Título II valem mais que os enunciados no Título III, o que não é
possível.

Assim, para JRN, a doutrina tradicional portuguesa parte de uma base errada, a de que os direitos
fundamentais enunciados no Título II têm uma proteção privilegiada, o que pressuporia que esses
direitos fossem mais importantes que os outros. Mas para JRN o facto de uns direitos fundamentais
estarem previstos no Título II e outros no Título III não altera a sua natureza, que é igual.

⇒ Direitos de natureza análoga – art. 17º CRP

Como sabemos que um direito enunciado no Título III tem natureza análoga aos direitos enunciados no Título
II? Precisamos de uma nota distintiva, nos direitos enunciados no Título II, que nos permitisse dizer
que existe natureza análoga. Mas esses direitos enunciados no Título II são tão diversos e distintos,
que torna impossível extrair deles uma nota distintiva.

Houve várias tentativas de extrair essa nota distintiva:

o 1ª tentativa – direitos mais próximos da dignidade da vida humana (critério substantivo). Já


vimos que não resulta.
o 2ª tentativa – direitos que têm uma dimensão subjetiva. Também não resulta: dimensão
subjetiva e objetiva existem sempre.
o 3ª tentativa – critério formal: direitos enunciados no Título II são direitos negativos e direitos
enunciados no Título III são direitos positivos. Mas qualquer direito fundamental tem,
simultaneamente, uma dimensão positiva e uma dimensão negativa. Esta tentativa fracassa
também. A ideia de encontrar uma característica formal que permita fazer a distinção é muito
difícil.
o 4ª tentativa – os direitos enunciados no Título II têm um conteúdo mais determinado que
aqueles enunciados no Título III. Este seria o critério mais plausível. Mas também não
funciona: por exemplo, direito ao casamento (Título II), qual é o seu conteúdo? Permite ou não
casamento entre pessoas do mesmo sexo? Na altura em que a CRP foi feita não permitia, mas hoje
já permite porque a lei foi alterada; ou seja, só sabemos o conteúdo do direito fundamental
porque a lei o concretiza; é o legislador que determina o conteúdo do direito fundamental.

JRN conclui assim que não é possível distinguir categorias de direitos fundamentais, pelo que a
doutrina tradicional portuguesa nada mais é que irracional. Até porque não nos podemos esquecer
que, para defender um mesmo bem constitucional, podemos invocar mais do que um direito
fundamental: por exemplo, se recorrermos a uma intimação para proteção de direitos, liberdades e
garantias, à partida não nos podemos basear no direito à saúde, pois este não se encontra enunciado
no Título II; o que podemos fazer? Basear-nos, em vez disso, no direito à integridade física e psíquica,
que já se encontra no Título II. Assim, os dois direitos desempenham o mesmo papel.

8
Direitos Fundamentais Leonor Branco Jaleco

No fundo, todas estas confusões advêm do facto de não se fazer a distinção entre o direito como um
todo e as distintas faculdades que o compõem.

Porque é que este sistema surgiu? Porque é que só a Constituição portuguesa de 1976 é que tem este sistema?

O mistério adensa-se porque em nenhum dos projetos de Constituição apresentados pelos vários
partidos tinha alguma solução parecida com esta. Não havia sequer nenhum autor a defender esta
ideia, este sistema. Nem sequer nenhuma discussão na Assembleia Constituinte que tivesse sido
sobre este sistema.

E o que é mais estranho é que nunca se procurou saber a origem deste sistema, porque é que surgiu,
dado que não havia nada do género antes.

JRN finalmente decidiu indagar. A explicação é então a seguinte: em 1838, os direitos fundamentais
na CRP eram designados direitos e garantias dos portugueses. Em 1959 houve uma revisão
constitucional, que tinha como objetivo primeiro eliminar a eleição direta do PR e fez ainda outras
alterações, nomeadamente alterar direitos e garantias dos portugueses para direitos, liberdades e garantias
dos portugueses.

Assim, quando os vários partidos políticos apresentaram projetos para a CRP, todos eles continham
direitos, liberdades e garantias dos portugueses. Nestes incluíam direitos pessoais, políticos e sociais, todos
eles sob a designação direitos, liberdades e garantias. Mas PS criou uma outra categoria, designada
direitos económicos, sociais e culturais (DESC) e só chamava expressamente direitos fundamentais aos
direitos, liberdades e garantias.

Na discussão, a comissão de sistematização adotou a distinção do PS, que passou a ser a classificação
da CRP, com uma diferença para a proposta do PS: chamou a todos direitos fundamentais (Parte I),
ainda que em secções separadas (Títulos II e III). O Título I é o título sobre o regime dos direitos
fundamentais, que se baseou nas propostas do PSD e PCP.

Os arts. 18º e 19º, que têm o essencial do regime, foram retirados do projeto do PSD e PCP, mas nesse
projeto, em vez de os artigos referirem direitos fundamentais, referiam direitos, liberdades e
garantias. Mas no projeto fazia sentido, porque os DLGs eram os direitos fundamentais; assim, o que
queriam dizer era que os direitos fundamentais eram de aplicabilidade direta e não podiam ser
suspensos.

Contudo, quando se enxertou o texto do Projeto no texto da CRP, não se adaptou à distinção que foi
introduzida.

E é por esta razão que a CRP é a única Constituição com este regime.

JRN entende, porém, que não se pode concluir outra coisa que não a de que o art. 18º CRP, que
consagra o princípio da proibição do excesso ou princípio da proporcionalidade, se aplica aos
direitos fundamentais constantes do Título II e a todos os outros (nomeadamente os direitos
sociais).

Para a doutrina tradicional não é assim: os direitos, liberdades e garantias beneficiam de um regime
privilegiado, pelo que o art. 18º só se aplica a estes, assim como a regra de que só pode haver
suspensão em situações excecionais.

9
Direitos Fundamentais Leonor Branco Jaleco

Mesmo que, segundo a CRP, chegássemos à conclusão de que não existem diferenças materiais entre
os vários direitos fundamentais, há outra questão que deve ser esclarecida: há objeções que são
levantadas em vários países do mundo quanto à consideração dos direitos sociais como verdadeiros
direitos fundamentais.

Ou seja, dir-se-á que os direitos sociais apresentam certas características, por contraposição aos DLG,
que impossibilitariam que os considerássemos direitos fundamentais.

Essas objeções são:

1) Enquanto os DLG têm uma natureza universal – toda a gente é titular desses direitos
fundamentais –, nos direitos sociais não se passa assim: apenas serão titulares destes direitos
as pessoas com mais necessidades.

Assim, faltaria a característica da universalidade que é característica dos direitos fundamentais.

Este é o argumento mais débil. JRN entende que este argumento não tem sustentação: os direitos
sociais protegem bens e garantem uma proteção a quem necessita, mas qualquer pessoa pode estar
nessa situação de necessidade; não sabemos à partida quem vai precisar de invocar esses direitos.
Todas as pessoas são titulares desses direitos sociais, independentemente de, durante a sua vida, os
virem a invocar ou não.

2) Em grande medida, os direitos sociais têm uma natureza positiva, são direitos positivos no
sentido de que aquilo que se exige à contraparte – obrigado – é que o Estado aja, faça alguma
coisa. Outros direitos, na maior parte dos casos, surgem como direitos negativos, em que se
exige que o Estado se abstenha, não faça.

Pelo facto de os direitos sociais serem positivos, são, no mínimo, mais fracos: esta fraqueza chegaria
ao ponto de não os podermos considerar direitos fundamentais.

Ora, segundo JRN, é verdade que, em regra, os direitos positivos são mais fracos que os direitos
negativos: no direito negativo, o que se exige é que o Estado nada faça, o que significa que,
independentemente do número de reivindicações, o Estado, se quiser, pode respeitá-los a todos,
bastando que nada faça. Mas quanto aos direitos positivos, a margem do Estado não é tão ampla: por
mais boa vontade que tenha, é materialmente impossível dar satisfação a todos os direitos ao
mesmo tempo.

Isto significa que quando vamos avaliar se há ou não inconstitucionalidade quando o Estado não
respeita um direito, é mais fácil o juiz verificar se existe inconstitucionalidade quando estamos
perante um direito negativo do que perante um direito positivo: e isto porque quando estão em causa
direitos positivos, o Estado pode sempre dizer que ainda vai realizar, promover esse direito, está a
empreender esforços nesse sentido, simplesmente não consegue fazê-lo em relação a todos os direitos
ao mesmo tempo, tem de estabelecer prioridades. Aquilo que concentra os maiores esforços do
Estado, neste momento, é o direito à saúde.

Para um juiz contestar a prioridade que o Governo estabeleceu, tem de se embrenhar no meio da
discussão política e isso já cai fora do âmbito jurisdicional.

10
Direitos Fundamentais Leonor Branco Jaleco

Por outro lado, quando estamos perante direitos negativos, já não há esta dificuldade, uma vez que
o que se pede ao Estado é que não agrida o direito, não invada a área protegida pelo direito
fundamental, bastando, para isso, que nada faça.

Outro argumento no sentido de que os direitos positivos são mais fracos é o seguinte: se o juiz tiver
de apreciar a inconstitucionalidade de um ato, significa que vai existir um ato jurídico (lei, ato
administrativo, etc.) que o juiz conhece, que tem à sua frente, e sob o qual faz incidir a sua atenção.
No caso dos direitos positivos é mais difícil: aquilo que o juiz tem para apreciar é algo que não existe,
é uma omissão do Estado, que é muito mais difícil de apreciar do que um ato concreto.

JRN, concluindo, diz que esta objeção parte de uma base verdadeira (direito negativo é mais forte que
direito positivo), mas a outra parte da conclusão falha: será que isso significa que os direitos sociais são
mais fracos que os direitos, liberdades e garantias? JRN entende que não – num direito social, encontramos
uma dimensão positiva e uma dimensão negativa.

Assim, apesar de esta objeção ser mais complexa – não se limitar a repudiar –, devemos igualmente
concluir que não existe razão jurídica para negar a natureza jusfundamental dos direitos sociais.

3) Por natureza, os direitos sociais são direitos de conteúdo indeterminado ou indeterminável;


pelo contrário, os DLG são de conteúdo determinado ou determinável.

Assim, pegamos num DLG, como direito à liberdade de religião e, mesmo que a CRP apenas diga
“todos têm liberdade de religião”, conseguimos dizer, pelos meios da interpretação, qual o conteúdo
jurídico daquele direito fundamental, o que é que ele nos permite exigir ou não do Estado.

Já quanto aos direitos sociais, a CRP diz, por exemplo “todos têm direito à saúde” – o que é que podemos
exigir do Estado? Se a CRP nada mais diz, não conseguimos apurar o conteúdo do direito, pelo que ele
terá de ser fixado pelo legislador, pela lei ordinária.

Em que é que isso afeta a natureza jusfundamental dos direitos sociais? Segundo os autores desta objeção,
afeta os direitos sociais no seu âmago, impedindo que os mesmos possam ser considerados direitos
fundamentais, na medida em que os direitos sociais não serão resistentes à lei: o seu conteúdo é uma
criação do legislador ordinário. Ora, se é o legislador que criou o conteúdo do direito, isso quer dizer
que uma futura lei pode alterar o conteúdo desse direito – uma vez que lei posterior revoga lei
anterior.

Por definição, um direito ser fundamental significa que a maioria política perde, através da elevação
do direito ao nível constitucional, o domínio sobre este direito. Ora, não é isso que sucede com os
direitos sociais.

JRN entende que, de certa forma, durante uma fase, é assim que sucede: quando a CRP é criada em
1976, a maior parte dos direitos sociais não tinham conteúdo, tendo sido necessário que o legislador
o concretizasse; assim, de certa forma, podíamos dizer que, quanto aos DLG, o operador jurídico
apurava o conteúdo do direito, já quanto aos direitos sociais era necessário aguardar que o legislador
o criasse.

11
Direitos Fundamentais Leonor Branco Jaleco

O problema é: e depois de o legislador o ter criado? Sendo aquele direito um direito constitucional, depois
da intervenção do legislador, conseguimos de forma clara saber qual o conteúdo que foi atribuído ao
direito social; assim, a norma ordinária preenche o quadro que estava na CRP e que o legislador
estava obrigado a fazer, ou seja, não é uma liberalidade do legislador. É verdade que o legislador
futuro pode alterar o conteúdo do direito, mas quando o faz está a atuar no domínio de um direito
fundamental/constitucional, estando sujeito ao controlo judicial.

Por exemplo, a CRP consagra o direito ao casamento como um direito fundamental. Se uma lei vier
alterar as normas do CC, proibindo pessoas do mesmo sexo de se casarem, está a alterar o conteúdo
do direito fundamental ao casamento.

Assim, JRN conclui que qualquer direito, mais ou menos determinado na CRP, necessita sempre de
uma densificação legal, que compõe o conjunto do direito fundamental. O conteúdo do direito
fundamental é o que decorre do enunciado constitucional e do enunciado legal que o regula.

4) Existência de uma “reserva do possível/reserva do financeiramente possível” que afeta os


direitos sociais, motivo pelo qual não é possível o seu reconhecimento como direitos
fundamentais.

Baseia-se no facto de, no seu essencial, os direitos sociais se traduzirem numa prestação material, de
natureza financeira, a cargo do Estado. Esta prestação pode traduzir-se numa ajuda financeira direta
(ex: rendimento mínimo garantido, atribuição de subsídios), na criação de um serviço público.

Então, decorreria daqui consequências inultrapassáveis: havendo a necessidade destas prestações


financeiras, haverá que decidir previamente quais são as receitas do Estado que serão alocadas a este
ou àquele direito social.

Ora, numa democracia, quem assume esse tipo de definições é o legislador que aprova a Lei do
Orçamento. Ou seja, será o Parlamento, sob proposta do Governo, a fazer essa definição.

Questão que se coloca é a de saber se o juiz poderá contestar essa definição orçamentária feita pelo
legislador, em nome de um direito social.

Uma vez que em Estado democrático essa última palavra cabe ao Parlamento, significa que, ao
contrário do que acontece com os direitos fundamentais, a maioria parlamentar não terá perdido esta
última palavra, privando o poder judicial de fazer um controlo efetivo. Assim, não poderão os direitos
sociais ser direitos fundamentais.

Esta é a objeção mais importante.

Contra esta ideia, normalmente é invocado que é verdade que estas prestações fáticas têm custos
financeiros, mas que estes custos são próprios de qualquer direito fundamental. Em qualquer
Estado de direito, a prática dos direitos fundamentais redunda em custos importantes.

Os autores que ficaram mais conhecidos por adiantarem estas objeções foram STEPHEN HOLMES e
CASS R. SUNSTEIN. Sustentam estes que, em democracia, todos os direitos têm custos, não havendo

12
Direitos Fundamentais Leonor Branco Jaleco

diferenças essenciais. Quando comparamos o que se gasta com os direitos fundamentais, não há
diferença significativa em relação àquilo que se gasta com os direitos sociais.

É verdadeiramente assim? JRN afirma que, de certa forma, sim. Não há diferenças entre DLG e direitos
sociais: ambos envolvem custos. Assim, do ponto de vista político, esta resposta que foi dada faz
sentido. No entanto, JRN tem outra perspetiva: o problema, em direitos fundamentais, é saber
quando é que podemos determinar a existência de inconstitucionalidade por eventual violação de
um direito fundamental e não a realização social dos direitos fundamentais.

E aí já teremos de reconhecer que, ao contrário do que diz o contra-argumento, há diferenças entre os


direitos fundamentais: em alguns, o argumento financeiro é importante para o apuramento da
inconstitucionalidade, em relação a outros já não.

 Por exemplo: a CRP diz que as provas obtidas mediante tortura são nulas; assim, se a polícia
tortura o arguido e isso se prova, de acordo com a CRP podemos perfeitamente apurar se
houve ou não violação do direito fundamental à integridade física. Se o Estado disser que o
recurso à tortura foi uma forma de poupar dinheiro ao Estado, este argumento financeiro não
é relevante para apurar a inconstitucionalidade.
 Outro exemplo: imaginemos que o Estado quer expropriar um determinado cidadão e, como
está com dificuldades financeiras, decide não o indemnizar como a CRP impõe em situações
como estas (art. 62º). Para o juiz, para apurar se está em causa uma inconstitucionalidade, este
argumento financeiro é novamente irrelevante: se o Estado não tinha dinheiro para
indemnizar, não podia expropriar. É verdade que a realização do direito de propriedade tem
custos, mas o argumento financeiro para o juiz é absolutamente irrelevante.

Noutros direitos não é assim, relevando o argumento financeiro: por exemplo, no domínio do acesso
à habitação, se o Estado invocar perante alguém que suscita a inconstitucionalidade por não
realização do direito à habitação que a definição de prioridades levou a não dar provimento a essa
ajuda, este argumento não é irrelevante para o juiz.

Isto é, há direitos em que o argumento financeiro invade o próprio conteúdo do direito. E tal decorre
de uma inevitabilidade: o Estado só pode realizar estas prestações financeiras na medida em que
tenha recursos para tal.

De certa forma, vivemos numa escassez moderada: não há dinheiro para tudo, mas há dinheiro. O
problema é quem deve definir as prioridades: como vimos, em última análise há uma definição que
cabe ao legislador.

Também quanto a este argumento podemos reconhecer que de facto há especificidades dos direitos
sociais que dificultam o seu reconhecimento como direitos fundamentais, nesta medida da
dependência das disponibilidades financeiras; mas também podemos dizer que tanto encontramos
esta dificuldade nos direitos sociais, como nos DLG.

 Por exemplo, quando consideramos o direito à saúde, em certas situações o argumento


financeiro releva, noutras situações já não. Por exemplo, no caso presente, o Estado determinar
ou não o encerramento das fronteiras ou impor a quarentena, é fazer uma lei. O custo
financeiro envolvido na feitura desta lei não é significativo.
 Da mesma forma, podemos ter um direito de liberdade em que o argumento financeiro é
relevante: por exemplo, envolvida nesta crise está a liberdade de circulação. Impor uma
restrição aos movimentos fronteiriços pode ter impactos económicos significativos no país.

13
Direitos Fundamentais Leonor Branco Jaleco

Ou seja, a reserva do financeiramente possível é repartida pelos dois tipos de direitos; não é um
problema exclusivo dos direitos sociais.

Aliás, em termos históricos, a reserva do financeiramente possível surgiu a propósito de um direito


de liberdade, na Alemanha (concretamente, liberdade de escolha de profissão).

No entanto, é verdade que se pode dizer que esta questão se levanta mais vezes a propósito dos
direitos sociais. Mas será isso suficiente para se poder negar a natureza jusfundamental aos direitos sociais?

Na opinião de JRN, esse argumento só colheria se todo o controlo de constitucionalidade se esgotasse


aqui; i.e., se o juiz, ao aferir da relevância do aspeto financeiro, concluísse que sim e depois acabasse
o controlo de constitucionalidade. Mas não é assim.

No período de jurisprudência da crise, o argumento para o Estado fazer os cortes era um argumento
financeiro. Ou seja, quando se tratava de saber se aquelas normas constantes do orçamento eram
inconstitucionais ou não, o argumento financeiro era relevante, mas no sentido de o juiz poder
concluir que, de facto, as decisões da austeridade que o Estado estava a tomar eram fundamentadas
naquelas razões financeiras.

Mas o controlo de constitucionalidade não termina aqui, pelo contrário, só agora começa: o problema em
direitos fundamentais surge quando há uma restrição de um direito fundamental. Tem então de se
partir da razão/fundamento que leva a essa restrição. Ou seja, este é o princípio do controlo, o
problema jurídico não termina aqui.

Admitindo que o Estado pode limitar um direito, é depois necessário verificar se respeitou ou não
os princípios constitucionais aplicáveis. Se não respeitou, o juiz pode determinar a violação do
direito fundamental, a inconstitucionalidade daquela lei/medida, o que significa que a maioria
política não dispõe daquele direito fundamental, o que significa que ele mantém a natureza de direito
fundamental. A última palavra cabe ao juiz.

E esta lógica e este controlo aplica-se tanto a direitos de liberdade como a direitos sociais.

Tudo isto permite-nos concluir que não há objeções significativas para duvidar da natureza
jusfundamental dos direitos sociais e, por outro lado, não havendo diferenças entre DLG e direitos
sociais, optando por uma dogmática unitária no tratamento dos direitos fundamentais, entraremos
agora no núcleo da disciplina: saber quando há ou não inconstitucionalidade na limitação dos
direitos ou na não realização dos direitos, quaisquer deles.

Aqui chegados, cabe fazer um alerta:

Optar por uma dogmática unitária dos direitos fundamentais não significa que não haja diferenças
no mundo dos direitos fundamentais e que o operador jurídico não deva fazer diferenciações.

De facto, os casos jurídicos que envolvem direitos fundamentais não são todos resolvidos da mesma
maneira; há fatores relevantes que o operador jurídico deve considerar.

14
Direitos Fundamentais Leonor Branco Jaleco

Que fatores são esses? São, pelo menos, três:

1) Natureza da norma jurídica/constitucional que consagra o direito fundamental em causa:

Prende-se, desde logo, com a distinção entre regras e princípios.

Quando temos um enunciado constitucional e o interpretamos, dele resulta um comando normativo,


que pode ter um diferente caráter:

i. Pode ser uma regra – quando esse comando normativo é inequívoco, e nos dá uma
orientação precisa. Por exemplo, em caso algum haverá pena de morte.
ii. Pode ser um princípio (generalidade das normas) – não têm aquele caráter definitivo,
absoluto, mas antes remetem-nos para futuras ponderações do caso concreto. Por
exemplo, a integridade física é inviolável. O legislador constituinte não tomou logo todas as
decisões que há a tomar sobre aquele problema, apenas consagrou o princípio, mas
implicitamente remete a decisão do caso concreto para futuras ponderações que venham
a ser realizadas pelo legislador ordinário, pela Administração ou, em última análise, pelo
poder judicial.

Dando um exemplo bastante atual: o art. 27º consagra o direito fundamental à liberdade pessoal. No
seu n.º 3, enumera taxativamente (para JRN) as exceções a este princípio.

Assim, para JRN, o que está aqui em causa é uma regra; enuncia-se o comando, diz-se taxativamente
quais são as exceções a esse comando, o que significa que apuramos o sentido normativo destas
disposições com caráter definitivo.

Mas pode haver quem interprete este enunciado no sentido de que pode haver outras exceções,
determinadas pelas características do caso concreto – ou seja, interpreta-se este enunciado como
constituindo um princípio.

Qual a melhor solução?

Para JRN, se se quiser levar a CRP a sério (pois caso contrário tudo fica fluido, podendo o juiz decidir
da forma que lhe aprouver), o que devemos retirar do art. 27º é que o legislador constituinte quis
fazer logo todas as ponderações.

Assim, interpretando como sendo uma regra, deparamo-nos com uma dificuldade: na situação
presente, toda a gente percebe que, na realidade, se justificam outras situações (como esta) em que se
possa determinar que as pessoas fiquem confinadas a um espaço fixo e que se lhes diga que, durante
um período, não podem sair desse lugar.

A dúvida que se levanta é saber se a CRP permite isso: segundo JRN, se interpretamos o art. 27º como
constituindo uma regra, concluímos que a CRP não permite. E isso significa que o Governo só poderia
determinar a quarentena obrigatória se, entretanto, se suspender parcialmente este direito
fundamental à liberdade pessoal (através do decretamento do estado de emergência). De outra
forma haverá inconstitucionalidade.

Nesta interpretação, seria necessário, no futuro, fazer uma revisão constitucional.

Já na outra interpretação jurídica, segundo a qual esta norma não é uma regra mas sim um princípio,
do art. 27º não resultaria que não pudesse haver outras exceções, como a da situação atual. Nesse

15
Direitos Fundamentais Leonor Branco Jaleco

sentido, já não seria necessário decretar previamente o estado de emergência, na medida em que seria
possível introduzir outras restrições a este direito, para além daquelas que estão previstas no n.º 3 do
art. 27º.

Outras distinções do mesmo tipo são as que nos remetem para uma interpretação precisa daquilo que
vem no texto constitucional, independentemente de saber se se trata de uma regra ou princípio:

Muitas vezes, o enunciado constitucional dá-nos indicações decisivas para a resolução de um caso
concreto. E isto nos casos em que a CRP, quando consagra um direito, enumera logo situações em
que é possível restringir aquele direito. Nessa altura, temos uma restrição que foi expressamente
autorizada pela CRP.

 Por exemplo, se atentarmos no art. 270º CRP, percebemos que houve a consagração de direitos
fundamentais atrás, na parte dos direitos fundamentais, mas para aquelas pessoas previstas
no artigo pode haver restrições desses mesmos.

Mas isto não resolve todo o problema: verificada a possibilidade de restrição do direito fundamental,
é depois necessário verificarmos se foram respeitados os restantes princípios constitucionais
estruturantes.

2) Deveres estatais envolvidos no caso concreto:

É talvez o fator mais importante, que se prende com a natureza do dever estatal que vem envolvido
na situação concreta.

Reportando à situação presente, esta é uma situação em que os deveres do Estado nos aparecem de
uma forma muito nítida. Quando falamos de deveres do Estado, no domínio dos direitos
fundamentais:

i. Temos um primeiro dever dos poderes públicos, que é o de respeitar os direitos


fundamentais consagrados na CRP.
ii. A partir do final do séc. XX, torna-se também fundamental proteger os direitos
fundamentais dos cidadãos. E contra quê ou contra quem? Desde logo, contra agressões de
outros particulares; o Estado não pode abstrair-se do que se passa nas relações entre
particulares. Se a CRP dá aos cidadãos direitos fundamentais e obriga os poderes públicos
a cumprir a CRP, então estes têm não apenas de respeitar os direitos fundamentais, mas
têm também de se preocupar com saber se o titular dos direitos fundamentais está
protegido de eventuais agressões de outros particulares. E tem também de os proteger
contra riscos naturais: por exemplo, contra incêndios, que põem em causa o direito de
propriedade e o direito à saúde e integridade física.
iii. Um último dever de promover o acesso aos direitos fundamentais, aos bens protegidos
pelos direitos fundamentais. Por exemplo, se um cidadão não tem os meios, por si só, de
pagar os cuidados médicos de que necessita, o Estado tem aqui uma obrigação de ajudar,
de promover.

16
Direitos Fundamentais Leonor Branco Jaleco

Porque é que é importante a distinção entre estes três deveres?

Porque a cada um destes deveres vem associada uma reserva própria:

i. Dever de respeitar

Por exemplo, o Estado tem o dever de respeitar a liberdade de imprensa; mas se no exercício desta
liberdade se viola ou se desrespeita a honra ou privacidade de uma pessoa, então, ponderando os
deveres que o Estado tem neste domínio, vamos eventualmente dar prevalência a outro bem,
obrigando a restringir o direito fundamental. E isto passa-se assim em relação a todos os direitos
fundamentais: existe uma reserva imanente de ponderação. Ponderação com quê? Com outros valores,
bens, direitos, que, no caso concreto favoreçam a compressão do direito fundamental em causa.

Assim, o dever de respeitar que o Estado tem é um dever sob reserva de ponderação.

E quem decide, em última análise, qual o bem que deva prevalecer? A última palavra caberá ao poder
judicial, e não ao legislador.

ii. Dever de proteger

Para além da reserva de ponderação, há outras reservas que vêm envolvidas.

Qual a melhor forma de proteção? Na situação presente, o que é que os poderes públicos estão obrigados a
fazer para proteger o direito à saúde?

Para o nosso Governo, a estratégia que está delineada é recorrer aos meios de compressão dos direitos
e liberdades das pessoas de forma proporcional, não recorrendo já aos meios mais gravosos. Ou seja,
o Governo tem uma certa estratégia.

Mas muitos de nós discordamos dessa estratégia delineada pelo Governo, assim como os juízes têm
a sua opinião sobre a melhor forma de proteger.

Ou seja, cada poder público tem opiniões diferenciadas.

É tarefa do poder judicial decidir qual a melhor forma de proteger a saúde? Ou o juiz não tem os dados de que
dispõe, por exemplo, o Ministério da Saúde? Para JRN, não parece. Assim, este dever de proteção está
sujeito a uma reserva do politicamente adequado ou oportuno. E este é um juízo de natureza
essencialmente política.

O poder judicial não deve, aqui, ter uma margem tão significativa como tem em relação ao dever de
respeitar. Aqui, tudo aquilo que respeite à forma mais adequada de obter um resultado, a um juízo
de oportunidade, deve estar nas mãos do poder político.

iii. Dever de promover

Este dever, para além da reserva de ponderação e da reserva do politicamente adequado, é ainda
sujeito à reserva do financeiramente possível. Obriga aqui, mais uma vez, a uma retração da
intervenção do poder judicial, na medida em que o que o juiz tem aqui a decidir não é se há ou não
dinheiro, mas antes saber quem deve ter a decisão sobre as opções orçamentais.

17
Direitos Fundamentais Leonor Branco Jaleco

Assim, saber qual o dever estatal que vem envolvido numa situação concreta produz diferenciações
na forma como determinamos as margens relativas que cabem ao legislador, à Administração e,
principalmente, ao poder judicial.

3) Estrutura do direito fundamental em causa – consoante seja um direito fundamental


positivo ou negativo:

Verificámos que há diferença ao nível da vinculatividade, consoante se trate de um direito


fundamental positivo ou negativo. As possibilidades dos poderes públicos na gestão destes direitos
será diferente.

Quando o direito é positivo, entra uma questão preliminar de definição de prioridades: quaisquer
poderes políticos são incapazes de realizar todos os direitos positivos, o que diminui a margem de controlo
judicial, até porque nestes casos temos um não-ato.

Por vezes, direitos positivos e negativos vêm confundidos com dever de respeito e dever de proteção
ou promoção. Mas não é assim. É verdade que muitas vezes os direitos negativos são violados quando
os poderes públicos não respeitam o direito. Mas um direito negativo ou um direito positivo pode ser
indiferentemente afetado quer estejamos a tratar de um dever estatal de respeito, de proteção ou de
promoção.

Imaginemos que alguém considera que o Estado não está a proteger suficientemente a o direito à
vida, violando-o. Esta alegação tanto pode ser colocada no ponto de vista da dimensão positiva do
direito à vida como no ponto de vista da sua dimensão negativa. Se o Estado não dá a proteção que
se considera suficiente, não está a realizar suficientemente o dever de proteção (dimensão positiva);
mas se pelo facto de o Estado aprovar uma lei que permite a eutanásia se conclui que há violação do
direito à vida porque a aprovação desta lei diminui o nível de proteção que o Estado estava a garantir,
fala-se no mesmo dever de proteção, mas agora na sua dimensão negativa.

Assim, um direito negativo ou positivo não equivale necessariamente a dever de respeitar, dever
de proteger ou dever de promover.

RESTRIÇÕES A DIREITOS FUNDAMENTAIS

Esta é uma figura chave, porque um problema de direitos fundamentais, em termos jurídicos, só surge
quando alguém diz que existe uma restrição a um direito fundamental e que essa restrição é
inconstitucional.

Assim, para que tenhamos um problema de direitos fundamentais, é necessário:

1. Que exista uma restrição a um direito fundamental;


2. Que essa restrição não seja constitucionalmente legítima.

O art. 18º CRP é muito importante nesta sede: lendo este artigo, particularmente os n.º 2 e 3,
percebemos que na lógica da CRP há leis restritivas de direitos fundamentais; e umas vezes essas
normas restritivas são legítimas, à luz da CRP, outras vezes não.

18
Direitos Fundamentais Leonor Branco Jaleco

E o que é uma restrição a um direito fundamental?

i) Conceito lato – em sentido lato, restrição será toda a afetação negativa desvantajosa, do
ponto de vista do titular do direito fundamental, do conteúdo protegido de um direito
fundamental. Há uma afetação desvantajosa quando:
a. Se reduzem ou prejudicam as condições de acesso do titular ao bem protegido pelo
direito fundamental;
b. Não se garantem suficientemente as condições de acesso ao bem protegido pelo direito
fundamental;
c. Do ponto de vista dos destinatários do direito, se atenuam os deveres e obrigações que
estes têm em relação àquele direito fundamental.

Por vezes, há uma tentação de resolver problemas de direitos fundamentais num plano meramente
concetual. E quando se fala em restrições e figuras afins, por vezes distingue-se restrição de:

- Conformação – na restrição temos uma afetação desvantajosa; a conformação do conteúdo de


um direito fundamental (nomeadamente por parte do legislador) não tem de ser
necessariamente desvantajosa.
- Condicionamento do exercício – aqui já entramos no domínio mais fluido. Uma restrição a um
direito fundamental seria problemática (cariz negativo); o condicionamento já seria alguma
limitação da possibilidade de exercer o direito, mas sem afetar o conteúdo.

O problema quando fazemos distinções de caráter concetual é que não conseguimos traçar fronteiras
estritas, determinar onde termina a conformação e começa a restrição.

 Por exemplo, pensemos no direito de manifestação:

Este direito está consagrado na CRP, mas não está determinado em tais termos que fiquem
esclarecidas todas as dúvidas que se possam suscitar. Por exemplo, pode fazer-se uma
manifestação de um momento para o outro, sem dar conhecimento? A CRP não responde; assim, será
benéfico que haja uma lei que regulamente este direito. Aqui não há problemas.

Os problemas surgem quando na regulamentação, o legislador diz, por exemplo, que os


manifestantes que queiram organizar uma manifestação têm de avisar as autoridades com
uma antecedência de 15 dias. É legítimo este tipo de regulamentação? Há aqui alguma restrição? No
plano concetual, o plano do legislador não foi afetar o direito de manifestação, mas apenas
regular um exercício adequado deste direito, pelo que não haverá restrição.

Se chegássemos à conclusão de que 15 dias é um mero condicionamento, quando é que esse


condicionamento passa a restrição? Seria impossível determinarmos uma fronteira a partir da
qual já não estaríamos perante um condicionamento, mas antes uma efetiva restrição.

Assim, o critério deve ser o seguinte: se alguém considera que a imposição de certo prazo afeta o
exercício do seu direito fundamental, estamos perante uma restrição ao direito fundamental. Ou
seja, se alguém se considera desvantajosamente afetado, há uma restrição.

19
Direitos Fundamentais Leonor Branco Jaleco

- Outra figura afim é a suspensão dos direitos fundamentais (art. 19º CRP). No plano
concetual, é relativamente simples distinguir uma restrição de uma suspensão. Enquanto a
restrição afeta o conteúdo protegido pelo direito fundamental, a suspensão tem uma natureza
diferente, no sentido de que no seu conteúdo o direito não fica afetado, simplesmente a
possibilidade do seu exercício é suspensa durante um período limitado. No período em que
o direito fundamental está suspenso, é como se não existisse, embora saibamos que, no final
desse período, o direito fundamental retoma todas as suas virtualidades.

Assim, ao contrário do que sucede com uma restrição, em que, quando legítima, leva a uma afetação
permanente do conteúdo do direito fundamental, no caso de uma suspensão não é assim: findo
aquele período, tornam a vigorar todas as possibilidades do seu exercício.

A possibilidade de suspensão dos direitos fundamentais é o que se verifica em Estado de Emergência,


como aquele que atualmente vivemos.

A situação que vivemos permite-nos ver com clareza a distinção entre suspensão e restrição e, ao
mesmo tempo, a proximidade dos dois conceitos: a suspensão ao exercício de direitos fundamentais,
no fundo, é uma restrição aos direitos fundamentais; é uma modalidade de restrição dos direitos
fundamentais, com a particularidade de só vigorar durante um tempo limitado.

Que forma deveria revestir o ato do governo restritivo de direitos fundamentais (Estado de Emergência)? Na
opinião de JRN, deveria ser um Decreto-lei, pois trata-se de um ato gravemente restritivo de direitos
fundamentais e de uma regulação primária desta restrição, pois o PR não o fez. Ora, o Governo
aprovou um decreto simples; não faz sentido. A única justificação que se pode encontrar é a seguinte:
o Governo sabe que se aprova um DL, a AR pode chamar esse DL à apreciação, podendo fazer
alterações, fazer cessar a sua vigência, etc.. Assim, de certa forma, um DL permitiria que a última
palavra passasse para a AR, em vez de caber ao Governo. Mas era precisamente isso que devia
acontecer.

O problema seguinte é saber se essa restrição é constitucionalmente legítima ou não.

ii) Conceito stricto sensu – estrutura tripartida:

1. Normas restritivas (restrições) – através das quais o Governo (normalmente, com autorização
legislativa) ou a AR restringem o acesso a bens protegidos por direitos fundamentais, fazendo-
o de forma geral e abstrata com um sentido normativo. Nestes casos, a norma de direitos
fundamentais que estava em vigor é alterada em sentido desfavorável, do ponto de vista do
titular do direito.

Por exemplo, a CRP consagra o direito à manifestação; e depois temos uma lei que regula em sentido
restritivo o exercício desse direito. Podemos dizer que a norma que vigorava foi alterada. Desde que
a lei não seja inconstitucional, o regime do exercício do direito de manifestação é mais desvantajoso
do ponto de vista do titular do direito à manifestação.

2. Intervenções restritivas – afetação desvantajosa de um direito fundamental, do ponto de vista


do titular, mas com caráter pontual/concreto/individual.

20
Direitos Fundamentais Leonor Branco Jaleco

Por exemplo, há uma norma que diz em que condições se podem fazer manifestações: estas têm de
ser comunicadas com 48h de antecedência. Se entretanto as autoridades policiais verificam que está
a ocorrer uma manifestação sem aviso, podem dissolver esta manifestação, impedindo aquelas
pessoas de se manifestarem. Ora, parece claro que estão a intervir em sentido restritivo sobre aquelas
determinadas pessoas que se estão a manifestar, mas não estão a mexer na norma, que permanece
inalterada.

Outro exemplo: os maus tratos a animais domésticos agora podem dar lugar a uma pena; antes não
era assim. Assim, quando o legislador aprovou aquela lei restringiu o direito fundamental à
liberdade pessoal de cada pessoa. Se a lei não for considerada inconstitucional, ela passa a estar em
vigor e aquele direito fundamental passa a ter aquele conteúdo. Mas a norma de direito fundamental
permanece a mesma. Então, enquanto numa restrição há uma alteração da norma de direito
fundamental, na intervenção restritiva a norma fundamental permanece a mesma, antes sendo o
direito fundamental do próprio que é afetado. Se essa intervenção estiver sustentada em lei anterior,
for constitucional, fundamentando-se em princípios estruturantes, podemos dizer que o direito
fundamental daquela pessoa foi afetado de forma legal/lícita.

A intervenção restritiva tem um sentido individual e concreto. Por exemplo, uma sentença judicial
ou um ato administrativo podem constituir intervenções restritivas em direitos fundamentais; as leis
também podem constituir intervenções restritivas se forem individuais e concretas, mas, regra geral,
as leis restritivas são restrições em sentido restrito.

3. Afetações com caráter omissivo – situações em que um direito fundamental foi restringido
em sentido lato, no sentido em que foram afetadas as possibilidades de acesso dos particulares
a bens protegidos pelos direitos fundamentais. Mas foram afetadas porque não foram
suficientemente garantidas as possibilidades de acesso àquele bem, porque há uma
omissão que passa pela falta de uma lei, ato administrativo, ato material ou sentença judicial.

Estas distinções servem-nos para apurarmos:

a) Quais são os limites, os requisitos a que cada um deste tipo de restrições está sujeito;
b) Quais os instrumentos que utilizamos para controlar a constitucionalidade de cada tipo de
restrições;
c) Que princípios aplicamos a cada uma destas restrições.

Com efeito, por vezes há diferenças: por exemplo, numa intervenção restritiva – pontual e concreta
–, não se exige que ela seja feita mediante lei; mas já se exige que uma restrição em sentido restrito se
submeta ao princípio da reserva de lei.

Como controlamos uma intervenção restritiva?

Durante este Estado de Emergência é um pouco diferente, porque a norma que regula a suspensão
do exercício de direitos fundamentais deveria ter sido feita por lei e, na realidade, não foi.

21
Direitos Fundamentais Leonor Branco Jaleco

Mas imagine-se que foi feita por lei e que essa norma estabelece as condições gerais através das quais
os particulares podem sair de casa. Se há uma pessoa que desobedece as normas, pode ser obrigada
a ir para casa. Esta imposição é uma intervenção restritiva. Podemos avaliar esta conduta (ordem
policial), no sentido de saber se observa ou não o princípio da proporcionalidade; mas já não faz
sentido verificar se foi obedecido o princípio da reserva de lei. Outro exemplo: se o Governo está a
faltar à proteção da saúde, trata-se de uma afetação omissiva e, quando avaliamos se esta falta é
inconstitucional ou não, não atendemos ao princípio da proporcionalidade, mas antes à proibição do
défice.

Um outro tipo de distinções que já não tem a ver com esta distinção tripartida enunciada supra, é a
seguinte:

1. Restrições expressamente autorizadas pela CRP – quando a própria CRP prevê essa
possibilidade.

2. Restrições não expressamente autorizadas pela CRP.

Isto pode parecer contraditório com o art. 18º/2 CRP: a lei só pode restringir direitos, liberdades e
garantias nos casos expressamente previstos na CRP. Aparentemente, decorre da primeira parte deste
artigo que restrições a direitos fundamentais só podem ser as expressamente previstas. Vamos ver
que não é assim. Percorrendo os vários artigos da CRP verificamos que, na maior parte dos casos, a
própria CRP não prevê a possibilidade de restrição.

 Por exemplo, é possível restringir o direito de deslocação (art. 44º)? O art. 44º não prevê essa
possibilidade. Mas claro que pode e deve, como sucede na situação que atravessamos. Mesmo
que não tivesse sido decretado o estado de emergência, era possível fazê-lo para proteger o
direito à saúde.

 Mas o art. 270º CRP fala em restrições ao exercício de direitos: “a lei pode estabelecer restrições
ao exercício (…)” quando estão em causa militares e agentes de segurança.

 Outro exemplo: a CRP estabelece, no art. 45º, o direito de reunião e manifestação, mas
estabelece que essa reunião tem de ser pacífica e sem recurso a armas. Isto significa que a
própria CRP restringe diretamente este direito fundamental. Mas se virmos o n.º 2 do mesmo
artigo, ele diz que a todos os cidadãos é constituído o direito à manifestação. Se futura lei
disser que as manifestações não podem ser armadas isso é inconstitucional? Obviamente que
não.

Umas vezes a CRP prevê a possibilidade de restrição de direitos fundamentais (art. 270º); outras vezes
ela mesma estabelece essa restrição (art. 45º/1); e outras vezes consagra apenas o direito, mas isso não
significa que não possa haver futuras restrições (constitucionais) a um determinado direito
fundamental. E, portanto, não é este o fator determinante para saber se uma restrição é ou não
constitucional.

Vamos ver que há diferenças no tratamento destes dois tipos, porque num dos casos há logo um
problema que é resolvido. Desde logo, no caso do art. 270º não temos de nos focar tanto na justificação
da restrição, porque a CRP já o permitiu. É mais complicado quando não diz nada.

22
Direitos Fundamentais Leonor Branco Jaleco

Podemos fazer aqui um paralelo com o que se passa na atualidade, com a declaração do estado de
emergência: nuns casos, o PR restringiu logo alguns direitos antes da declaração (direito à greve nos
setores sensíveis); noutros, autorizou o Governo a fazê-lo. E quando o Governo restringe esses
direitos, essa restrição é expressamente autorizada por aquela declaração do estado de emergência
que o PR tinha feito. Mas isso não implica que não sejam permitidas outras restrições que não constem
da declaração, mas se revelem necessárias a cada momento – tem é de ocorrer com observância dos
princípios constitucionais e de acordo com as regras de competências.

⇒ Fundamentação das restrições:

Os direitos fundamentais estão consagrados em normas fundamentais; mas as restrições a estes


direitos fundamentais são feitas, na sua grande maioria, por leis ordinárias. No primeiro caso, temos
o poder constituinte; no segundo, o poder constituído. Ora, compreende-se a restrição quando a mesma
é permitida pelo poder constituinte. Mas como é que se admite que normas ordinárias restrinjam normas de
valor superior? É que a norma da CRP tem valor superior à norma ordinária.

Há várias teorias que explicam e fundamentam esta possibilidade de ocorrência de restrições a


direitos fundamentais, e cada uma destas teorias parte de princípios diferentes, condicionando ou,
pelo menos, influenciando a forma como se resolvem os problemas de direitos fundamentais. A
diferente forma como fundamentamos a existência de uma restrição a direitos fundamentais reflete-
se na forma como resolvemos os problemas jurídicos de direitos fundamentais.

Temos então:

o Teoria externa;

o Teoria interna;

o Teoria dos direitos fundamentais como princípios;

o Teoria dos direitos fundamentais como trunfos dotados de uma reserva geral imanente de
ponderação.

1) Teoria Externa

Faz uma distinção essencial entre o conteúdo do direito fundamental e os limites do direito
fundamental.

Temos, de um lado, um direito fundamental com um certo conteúdo que apuramos


interpretativamente; e sobre esse direito, que tem um certo âmbito de proteção, vão incidir limites,
intervenções, restrições vindas de fora.

A lógica desta teoria é a separação entre o âmbito de proteção que um direito fundamental tem e os
limites que incidem sobre esses limites. O papel do jurista é o de verificar se estas limitações que vêm
do “exterior” são legítimas ou ilegítimas, i.e., inconstitucionais. E para verificar isso importa saber
qual a fundamentação desses limites que afetam o conteúdo do direito fundamental.

De acordo com esta teoria, isto aceita-se, porque a própria CRP por vezes autoriza antecipadamente.
Ou seja, têm cobertura constitucional.

23
Direitos Fundamentais Leonor Branco Jaleco

Mas e nos casos em que as restrições não são expressamente autorizadas? Esta teoria fala nas chamadas
restrições implicitamente autorizadas. Segundo esta teoria, estas são necessárias quando há
princípios e direitos constitucionais que estão em colisão e que justificam a ocorrência destes limites
sobre direitos fundamentais. Por exemplo, atualmente o direito à deslocação choca com o direito à
saúde. Esta é uma autorização implicitamente autorizada. Ou seja, de acordo com esta teoria,
excecionalmente, um direito fundamental pode ser limitado para proteger outros bens
constitucionais.

Se estas restrições não forem inconstitucionais, então o direito fundamental foi legitimamente
afetado. Então esta teoria distingue entre o primeiro âmbito de proteção que o direito tinha e o âmbito
de garantia efetivo que é o que resta depois da intervenção da ocorrência das restrições legítimas.

2) Teoria Interna

Critica a distinção entre conteúdo do direito fundamental e limites do direito fundamental, na medida
em que esta não pode existir pois o conteúdo de um direito tem os seus próprios limites. Não há
conteúdos que não estejam num continente objetivamente delimitado. E, portanto, um direito
fundamental já tem os seus limites:

i. Limites expressamente referidos.


ii. Limites imanentes do conteúdo do direito fundamental. Pense-se na frase: “a minha
liberdade acaba onde começa a do outro”. Se na minha liberdade pessoal já está imanente
esta necessidade de respeitar o direito à saúde, quando esta é afetada para proteger o
direito à saúde, não se pode dizer verdadeiramente que não existiu uma restrição ao
direito fundamental; o que existiu foi uma concretização de um limite imanente. O limite
“estava lá”, o legislador não criou nada de novo, mas apenas o tornou claro, apenas o
declarou.

Ou seja, todo o conteúdo do direito fundamental tem os seus limites imanentes, pelo que não faz
sentido fazer uma diferenciação/separação dos dois conceitos.

Estas eram as duas teorias tradicionais.

3) Teoria dos Direitos Fundamentais como Princípios

Surgiu na Alemanha, nos anos 80 do séc. XX., com ALEXY. Mas este autor não apresentava a sua
posição como fundamentalmente nova: apresentou-a como crítica radical à Teoria Interna, como se
da Teoria Externa se tratasse, o que, como vamos ver, não era o caso.

Esta teoria parte da ideia já referida de que as normas de direitos fundamentais não são normalmente
regras, mas antes normas-princípio; mas a inovação desta teoria é precisamente a forma como
entende os direitos fundamentais enquanto princípios.

Aquilo que caracteriza as normas de direitos fundamentais é o facto de constituírem comandos de


otimização: necessidade de realizar aquele direito fundamental de forma otimizada, de forma que
estas garantias são natural e intrinsecamente expansivas.

24
Direitos Fundamentais Leonor Branco Jaleco

Esta conceção expansiva das posições de direitos fundamentais manifesta-se a vários níveis.

Quando se parte desta ideia, significa que, na prática, a sua realização material irá naturalmente
chocar com a realização também expansiva/otimizada dos outros direitos fundamentais.

Temos então de ter em conta:

1. Condições fáticas – condições contextuais.


2. Condições normativas – quando um direito é expansivo e o outro direito também, naturalmente
vão colidir; há aqui uma limitação tanto fática como jurídica à expansão dos direitos
fundamentais.

De que forma se resolvem os problemas de colisão de realização de direitos fundamentais?

Note-se que aqui não nos preocupamos em ver se temos um conteúdo e restrições a esse conteúdo
(Teoria Externa) ou se temos um conteúdo intrinsecamente limitado (Teoria Interna); pelo contrário,
colocamo-nos numa posição teórica radicalmente distinta, nos termos da qual o que importa perceber
é que os direitos fundamentais têm esta natureza expansiva e, assim sendo, vamos abordar os
problemas de direitos fundamentais da única forma logicamente possível: se um direito fundamental
se expande naturalmente e colide com outro direito fundamental que também se expande, a única
forma de resolver a colisão será através da ponderação dos dois direitos e bens fundamentais em
causa.

Esta figura da ponderação não existia nem na Teoria Externa nem na Teoria Interna.

Nesta nova teoria, tudo se reduzirá, então, à necessidade de uma ponderação pelo julgador.

Ora, não conseguimos colher da CRP os critérios para proceder a esta ponderação de bens, o que
nos remete para uma análise crítica das vantagens e inconvenientes destas três teorias:

o Uma pessoa que favoreça uma postura de teoria interna, segundo a qual um direito
fundamental é intrinsecamente limitado (desde logo, pelos direitos dos outros), quando se
confronte com uma situação de colisão entre direitos fundamentais (que não existirá nesta
teoria, na medida em que a sua lógica é a de harmonização), tenderá a resolver da seguinte
maneira: por exemplo, quando o direito de deslocação tem de ser limitado, não temos
verdadeiramente uma restrição a esse direito fundamental; o que temos é a necessidade de
evidenciar a limitação a esse direito fundamental. Assim, o papel do operador jurídico não
é fazer ponderações, mas evidenciar o que existe: a limitação imanente.

Assim, vemos que esta construção, estando em termos lógicos muito bem construída, no sentido em
que resolve aquela dificuldade originária de saber como é que uma norma constitucional pode ser
restringida por normas ordinárias – o que acontece quando o poder constituinte acolhe os direitos
fundamentais é que os acolhe com um conteúdo jurídico, que é limitado; logo, não há uma afetação
da norma constitucional por parte do legislador, havendo apenas uma revelação por parte deste do
que existe –, tem, contudo, uma atitude que favorece sistematicamente a atuação do legislador, não
desconfiando dele, desde logo porque não lhe chama lei restritiva.

Assim, quando olhamos para esta Teoria Interna, apesar da solidez da sua fundamentação, em termos
práticos, não faz um controlo do ato que afeta o direito fundamental, porque parte do princípio de
que aquele ato não é um potencial adversário do direito fundamental.

25
Direitos Fundamentais Leonor Branco Jaleco

o Já a teoria externa, partindo da separação estrita entre conteúdo e limites, orienta todo o
esforço posterior para o controlo da constitucionalidade dos limites – esta é uma vantagem
séria desta Teoria, na medida em que isto que nos importa a nós, juristas: o controlo dos atos
que potencialmente podem ou estão a afetar os direitos fundamentais.

Inconvenientes:

1. Própria construção lógica – a separação entre conteúdos e limites, de facto, não faz sentido: o
próprio conteúdo do direito fundamental só existe se tiver limites.
2. A ideia de que as restrições são possíveis quando a CRP as autorizar – o que é preciso é saber
interpretar o que diz a CRP: se autoriza expressamente, não há problemas, mas quando é que
autoriza implicitamente? Mas note-se que a teoria das autorizações implícitas da teoria interna
também não serve, na medida em que parte da ideia de que a CRP foi capaz de prever, na altura
em que foi feita (1976), que, por exemplo, em 2020 iria haver este tipo de epidemia, quando
obviamente não é assim; quando a CRP tem a ambição de permanecer no tempo, tem de se
admitir que haja bens que a certa altura não estão na CRP, mas a que damos hoje valor e que,
obviamente, podem justificar a limitação de direitos fundamentais mesmo quando não são
valores constitucionais.

o Quanto à teoria dos direitos fundamentais como princípios, podemos apontar como
vantagem a grande crítica que fez à teoria interna, na medida em que aquilo que a teoria
interna mantinha oculto – ideia de que um direito fundamental pode ser limitado pela
importância de realizar outros valores – negava a realidade dos conflitos que necessariamente
vigoram no domínio dos direitos fundamentais. O que esta nova teoria faz é partir do
princípio de que não faz sentido negar a existência de conflitos, não há vantagem nenhuma
nessa negação. A partir do momento em que assumimos a existência desses conflitos, o
segundo passo é resolvê-lo, através da ponderação. E como se faz essa ponderação? Das duas
uma:
a. Ou o legislador já disse como deve ser feita essa ponderação, caso em que a questão volta
para o plano da lei;
b. Ou a CRP não dá qualquer indicação de como deve ser feita essa ponderação – nestes
casos, e tendo em consideração que cada pessoa fará a ponderação de forma diferente, que
posição deve ser, em termos constitucionais, exigível? Temos um problema de separação de
poderes – a quem deve caber a última palavra?

Ora, esta Teoria parte da ideia, como vimos, da otimização: assim, há a necessidade de cada operador
jurídico procurar a otimização do direito fundamental através desta ponderação de bens; é uma
exigência que se coloca ao legislador, à Administração e ao juiz. Assim, de acordo com esta Teoria,
todos fazem o mesmo: procurar uma otimização.

E, a qualquer altura, por exemplo, o juiz pode chegar à conclusão de que a otimização que o legislador
fez não é a melhor. Deve o juiz dizer que essa ponderação não foi a mais adequada? Para esta Teoria, sim.

Esta teoria não distingue entre legislador, Administração e Juiz, na medida em que todos eles estão
vinculados a esta otimização.

26
Direitos Fundamentais Leonor Branco Jaleco

Inconveniente: esta ponderação não dispõe de critérios objetivos que nos permitam de uma forma
intersubjetivamente comprovável chegar a uma posição correta, adequada. Ou seja, há muito de
subjetivo, de decisão do próprio, das posições pessoais do próprio. Para esta Teoria, as distinções de
separação de poderes são de desprezar.

Para tentar remediar este inconveniente, tenta transformar esta metodologia da ponderação numa
ciência, num método científico. Mas os problemas jurídicos não funcionam assim, com base em
fórmulas.

A esta chamou-se fórmula do peso.

Aqui chegados, cumpre afirmar o seguinte: se conseguimos evidenciar vantagens e inconvenientes


em todas aquelas teorias, porventura a teoria mais adequada será aquela que conseguir garantir as
vantagens daquelas teorias, sem os seus inconvenientes.

E isso é possível: a teoria dos direitos fundamentais como trunfos dotados de uma reserva geral
imanente de ponderação baseia-se nesta ideia.

4) Teoria dos Direitos Fundamentais como Trunfos

Esta teoria assenta na ideia de que os direitos fundamentais são garantias fortes, constitucionais –
trunfos –, mas quando foram integrados na CRP, foram-no porque se pretendeu dota-los dessa força,
mas porque simultaneamente se reconhece que são limitáveis quando houver necessidade de
proteger outros direitos ou bens que no caso tenham tanta ou mais relevância que os direitos
fundamentais. Ou seja, os direitos fundamentais têm uma natureza de trunfos, de garantias fortes,
mas sujeitos a uma reserva geral imanente de ponderação, no sentido de que podem ceder perante
outros bens, valores ou direitos que apresentem um valor superior.

Assim, temos uma fundamentação que assenta na ideia da existência de uma limitação de um direito
fundamental quando é integrado na CRP, limitação essa que corresponde à natureza do direito
fundamental, mas reconhecendo-se o interesse em separar o limite que incide sobre o direito
fundamental.

E esta teoria assenta, a partir daqui, nos pressupostos e na metodologia da Teoria Externa, no sentido
de que o problema dos juristas é controlar a constitucionalidade das restrições aos direitos
fundamentais.

Esta teoria é semelhante, mas difere da teoria dos direitos fundamentais enquanto princípios, no
sentido em que quando os direitos fundamentais são consagrados na CRP, há um pressuposto
implícito de que eles estão sujeitos a limitações ao longo da sua vigência pela necessidade de proteção
de outros bens; todavia, a metodologia que se segue na Teoria de JRN é muito semelhante à
metodologia proposta pela teoria externa – conteúdo do direito fundamental vs limites que incidiam
sobre esse conteúdo; e consequente controlo desses limites.

É esta a teoria adequada para a fase em que vamos entrar – fase do controlo da constitucionalidade destes
limites –, porque evidencia o conflito subjacente aos problemas de direitos fundamentais entre a força

27
Direitos Fundamentais Leonor Branco Jaleco

de resistência entre o direito fundamental e a necessidade de proteção de outros bens (que levam os
poderes públicos a comprimir esse direito fundamental).

Por outro lado, a teoria proposta por JRN difere ainda da teoria dos direitos fundamentais enquanto
princípios, porquanto esta última resolve tudo através da ponderação, independentemente do que
dispõem os enunciados constitucionais. Pelo contrário, na teoria proposta por JRN há que ter em
consideração as diferenciações que são feitas na CRP: na CRP há direitos fundamentais que o
legislador constituinte quis consagrar com uma força de trunfos imbatíveis (direitos definitivos);
assim, há que olhar para a CRP e saber discernir quando quis o legislador fazer todas as ponderações
(fixando direitos definitivos) e quando quis deixar margem para desenvolvimento posterior.

Neste último caso, quando o direito não foi consagrado de forma absoluta, há uma fase de controlo
das restrições, na qual os esforços se concentram em saber:

1. A razão pela qual surgiu essa afetação (fundamento);


2. Em que medida é que a restrição respeitou os parâmetros constitucionais.

Note-se que há uma fase prévia pressuposta – saber se há de facto um problema de direitos
fundamentais. Uma vez que as normas da CRP que consagram direitos fundamentais têm uma
estrutura aberta, é necessário saber exatamente o que é que estas normas visam proteger – qual é o
conteúdo protegido pelo direito fundamental. Porque se aquilo que está a ser afetado, não merece
proteção constitucional, então nem sequer chegamos a ter um problema constitucional. É esta a fase
sobre a qual nos iremos debruçar agora.

⇒ Determinação do conteúdo protegido (fase prévia):

A dificuldade é o facto de os enunciados constitucionais serem relativamente indeterminados.

 Por exemplo, pensando no direito fundamental à liberdade de expressão, é claro que este
abrange o direito à opinião e manifestação política. Mas já será duvidoso saber se um escritor
pode, num artigo de opinião ou num livro, dizer que temos um “governo de corruptos”; ou
seja, saber se essa manifestação ainda está protegida pelo conteúdo do direito à liberdade de
expressão, na medida em que quando formula tal frase, pode ofender a honra e o bom nome
dos membros do governo.

A simples interpretação através dos cânones tradicionais pode ser insuficiente para chegarmos a uma
conclusão inequívoca.

A conclusão a que chegamos nesta fase depende muito da estratégia com que encaramos esta fase.

Nos casos de dúvida sobre se um direito está ou não protegido constitucionalmente, podem adotar-
se três posições:

(i) Entender-se que, nos casos em que há dúvida sobre se aquele exercício está ou não
protegido pelo direito fundamental, se deve considerar que não está – teoria restritiva do
conteúdo protegido do direito fundamental. A Teoria Interna segue esta visão (segundo
a qual o essencial é delimitar os contornos de um direito fundamental; definido isto o
direito é inatacável; o que está fora, não é sequer um problema de direitos fundamentais).

28
Direitos Fundamentais Leonor Branco Jaleco

(ii) Entender-se que, havendo dúvidas sobre se está ou não protegido, e tratando-se do
exercício de um direito fundamental, não se deve excluir logo à partida – teoria
ampliativa do conteúdo protegido do direito fundamental. JRN segue esta posição. O que
é que deve ficar de fora do conteúdo protegido do direito fundamental? Aquilo que é
indiscutivelmente rejeitado pela consciência jurídica de um Estado de Direito como sendo
suscetível de uma valoração positiva de direito fundamental. Há comportamentos que em
nada merecem a proteção dos direitos fundamentais. Por exemplo, produzir fake news com
a consciência de que são falsas, de que se está a enganar outras pessoas intencionalmente,
nunca pode ser um comportamento protegido.

(iii) De prima facie, tudo aquilo que de alguma forma se possa relacionar com o direito
fundamental, deve ser considerado direito fundamental – teoria radicalmente
ampliativa do conteúdo do direito fundamental. É a visão adotada pela Teoria dos
Direitos Fundamentais como Princípios. Por exemplo, para esta conceção, chamar
corruptos ao governo, está relacionado com uma opinião política e com a liberdade de
expressão, pelo que, em princípio (“prima facie”), tem proteção constitucional. JRN não
concorda com esta visão: quando a CRP adota direitos fundamentais, essa elevação tem
uma valoração positiva: exprime uma atitude positiva relativa àquilo que se pretende
proteger.

⇒ Segunda fase – fundamento da restrição ao direito fundamental:

Há situações em que este problema não se coloca, pois a própria CRP resolve a questão, enunciando
expressamente uma restrição.

 Por exemplo, o art. 45º dispõe que o direito de reunião e manifestação pode ser exercido, desde
que pacificamente.

A questão também não se coloca quando a própria Constituição autoriza a existência de restrições.

 Por exemplo, art. 270º permite que a lei pode estabelecer restrições ao exercício de
determinados fundamentais direitos dos militares (desde que no limite das exigências das
suas funções). Pode dizer-se que esta solução é inconveniente; mas a verdade é que a CRP
resolveu a questão.

Mas o facto de ter autorizado não significa que a norma não é necessariamente inconstitucional; está
resolvido o problema do fundamento/permissão, mas não está resolvida a questão da observância
dos restantes parâmetros constitucionais.

E no silêncio da Constituição? Esta fala em militares, mas não diz nada sobre juízes. Há quem pense que
os juízes não deveriam ter direito à greve.

Se lermos o art. 18º/2 CRP, este dispõe que a lei só pode restringir nos casos expressamente previstos
na CRP. Este artigo parece proibir restrições que não sejam expressamente previstas. Mas esta norma
não pode ter este sentido normativo que consta do enunciado (do sentido literal que se retira da
norma).

29
Direitos Fundamentais Leonor Branco Jaleco

Este é um enunciado que vem desde a CRP de 1911, depois passou para a CRP de 1933 e de 1976. Na
altura, quando entrou na CRP de 1911, restrições significava algo indiferenciado relativamente a
suspensão dos direitos; portanto, falava-se em restrições e suspensão exatamente no mesmo
contexto, que era o de exceção constitucional, de necessidade constitucional (Estado de sítio e Estado
de emergência). Então o que esse preceito dizia era que os casos de Estado de sítio/emergência só
podiam ser aqueles expressamente previstos.

Há várias razões que justificam que não devamos levar o art. 18º/2 no seu sentido literal:

1. Pressupõe em termos lógicos que o legislador constituinte tinha a capacidade (divina) de saber
que em 2020 havia um coronavírus e que ia ser necessário, em determinados casos, o
internamento compulsivo. Quando o legislador faz a CRP, quer durar no tempo, mas só lida
com os problemas da sua própria época, da sua realidade.

2. Esta norma é irrealizável, porque muitas vezes colidem dois direitos fundamentais que não
têm previsão de restrição na CRP.
Por exemplo, a colisão entre a vida e a liberdade de consciência e religião. Se chocam
(testemunha de Jeová, por exemplo) algum vai ter de ceder. Se nenhum pode ceder, então o
problema jurídico seria irresolúvel.
Outro exemplo, no art. 45º: no direito de manifestação, o legislador já não limita
expressamente este direito ao seu exercício “pacífico”, como faz no direito de reunião. Nos
termos do art. 18º/2 não se poderia limitar este direito de manifestação; este prevaleceria
sempre sobre o de reunião, em caso de confronto.
Também é absurdo que, quanto ao direito do art. 26º, não se admita a sua restrição, porque
este direito é muito amplo, abrange inúmeras situações.
Por outro lado, ficavam sem sentido, por exemplo, as normas do direito à vida e integridade
física, nomeadamente, os nº 2 dos arts. 24º e 25º, que proíbem a pena de morte e tortura, pois
o art. 18º/2 já nos dizia que o direito não poderia ser limitado.
Outra situação é o caso das cláusulas abertas; por exemplo, a do art. 16º, que diz que os direitos
fundamentais consagrados na CRP não excluem quaisquer outros previstos em leis. Significa
isto que não são só direitos fundamentais os previstos na CRP. Por esta lógica do art. 18º/2 1ª
parte, seria um direito mais forte do que os direitos constitucionais, porque estes, pelo menos
às vezes, podem ser limitados. E os direitos consagrados nas leis não têm previsão de poderem
ser restringidos.

Ora, perante o silêncio da CRP, algumas teorias (podem dizer-se até dominantes) sustentam uma
ideia de que as restrições são possíveis, quando a intenção do legislador foi restringir para proteger
outros bens constitucionais (a tal autorização implícita).

Esta teoria parece ser acolhida pela CRP, na segunda parte do art. 18º/2, quando dispõe que “devendo
as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente
protegidos”. Aparentemente, parece a CRP adotar esta doutrina, segundo a qual as restrições seriam
possíveis se isso se destinasse a proteger outros bens constitucionais.

Mas levanta-se a questão: só quando estamos na necessidade de proteger outros bens constitucionais é que os
direitos fundamentais podem ser restringidos? JRN entende que devemos continuar a procurar a resolver

30
Direitos Fundamentais Leonor Branco Jaleco

esta questão. Podemos assim perguntar se o bem em causa não estiver consagrado na CRP, pode ou não
servir para justificar a restrição a um direito fundamental? Segundo esta doutrina dominante, não pode.

Mas JRN diz que essa solução enfrenta um obstáculo inultrapassável: o tal pressuposto de que o
legislador constituinte, quando aprovou a CRP (em 1976), colocou no texto constitucional todos os
valores, bens, princípios, direitos que justificam as restrições fundamentais em 2020; ora, o legislador
não tinha como saber em 1976 quais são os bens aos quais, em 2020, atribuímos importância máxima.

 Vejamos um exemplo que nos permite aprofundar esta questão:

Praticamente, a generalidade da doutrina sustentou sempre esta doutrina; tal não foi nunca o caso
de JRN, que sempre sustentou que um direito fundamental, tendo uma imanente reserva de
ponderação, está sujeito a uma limitação que tenha como justificação a necessidade de proteger
um outro qualquer bem também digno de proteção, que tenha maior peso – lógica mais
substancial: o que importa é a relevância que um determinado valor tem em determinado
momento.

O exemplo de que vamos falar confrontou decisivamente a teoria dominante com as contradições
da sua posição: trata-se da lei que veio criminalizar os maus tratos aos animais de companhia.

Quando o legislador português, em 2014, vem criminalizar este tipo de comportamentos, está a
limitar direitos fundamentais (direito ao livre desenvolvimento da personalidade, direito à
liberdade, direito de propriedade) – e de forma bastante agressiva, na medida em que sujeita a
pena de prisão – para proteger um bem, um valor, a que as nossas sociedades no séc. XX dão a
maior importância: a proteção dos interesses dos animais, a proscrição deste tipo de
comportamentos que não são hoje admissíveis e que, no entender de muita gente, são suscetíveis
de recurso ao Direito penal.

Ora, em 1976, a sociedade não dava importância a isto: o problema da proteção dos animais
simplesmente não existia. Percebe-se assim que a nossa CRP de 1976, apesar de ser muito prolixa,
em que há um sem número de valores formalmente protegidos na CRP, não previa, nem prevê
atualmente a proteção deste valor de proteção dos animais. Assim, de acordo com a doutrina
dominante, esta lei seria inconstitucional, na medida em que está a restringir direitos
fundamentais com base na necessidade de proteção de um bem infraconstitucional (porque a
proteção dos animais é um valor infraconstitucional, apesar de lhe darmos hoje muita
importância).

Como é que a doutrina dominante procura então responder a esta dificuldade? Segundo JRN, de uma
forma que é dificilmente convincente: procurar nos vários artigos da CRP se há algo que, de uma
forma mesmo que remota, permita sustentar que a proteção dos animais é um interesse
constitucional. Contudo, por mais que se procure, não há.

Assim, o que esta teoria esquece é que o que está aqui em causa não é a questão formal – estar na
CRP –, mas sim o peso do bem.

Note-se que o facto de haver uma justificação que é admissível não resolve o problema; mas o que
não podemos fazer é partir de uma posição formalista, pois depois somos obrigados a encontrar
um qualquer apoio na CRP só para não reconhecermos que estávamos errados.

31
Direitos Fundamentais Leonor Branco Jaleco

De acordo com JRN, podemos assim concluir que hoje temos um sem número de bens e de
justificações possíveis para os poderes públicos atuarem restrições aos direitos fundamentais.

Mas qualquer justificação que seja invocável é possível? O legislador pode escolher uma qualquer justificação?

Não necessariamente. Mas é muito difícil identificar à partida todos os bens e todos os valores que
podem justificar a restrição.

Talvez o percurso inverso seja mais produtivo: talvez seja possível elencar algumas razões que são
inadmissíveis para justificar a restrição aos direitos fundamentais. Assim, podemos desde logo
recorrer a um documento do Direito Internacional dos Direitos Humanos – a DUDH. O art. 16º/2
CRP, apesar de, em termos práticos, não ter muita relevância, pode tê-la em termos de interpretação.
Este preceito determina que a DUDH nos pode ajudar a interpretar (e não passar por cima!) alguns
pontos menos claros nestas disposições constitucionais.

Assim, o art. 29º/2 DUDH pode ser relevante, na medida em que dispõe que no exercício dos direitos,
ninguém poderá estar sujeito senão às limitações estabelecidas pela lei (reserva de lei), com vista
exclusivamente a promover o devido reconhecimento e respeito dos direitos e liberdades de outrem
e de satisfazer as justas exigências da moral, da ordem pública e do bem-estar de uma sociedade
democrática.

No entender da DUDH, existem razões que são inadmissíveis (as que não estejam contidas naqueles
valores). Mas isto acaba por não nos ajudar demasiado, na medida em que lidamos com conceitos
indeterminados.

Quais são então as razões inadmissíveis para restringir direitos fundamentais?

Podemos, para delimitar estas restrições inadmissíveis, recorrer a um princípio vital em que assenta
o nosso Estado de Direito – princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º CRP). Dando um certo
conteúdo normativo a este princípio, podemos concluir que há algumas razões que não são
consideradas admissíveis.

Por exemplo:

o A ideia de que, em democracia, a vontade da maioria é que conta, cabendo à maioria a última
palavra – o problema aqui é que a própria CRP retirou da área de disponibilidade da maioria
política, reservando a si própria (CRP) a última palavra sobre algumas matérias,
nomeadamente sobre os direitos fundamentais. Assim, o facto de uma decisão ser maioritária,
por si e em si não é justificação admissível para restringir um direito fundamental. De facto,
esta é a lógica de um Estado de Direito democrático e é por isso que existe esta tensão latente
entre democracia e Estado de Direito. Será necessário que a maioria invoque um bem, um
direito que quer proteger e que justifica a restrição do direito fundamental; aí, o TC avalia se
essa justificação de facto e de direito tem peso para fazer ceder o direito fundamental.

o Quanto aos argumentos que podem ser utilizados pelos poderes públicos para justificar o
peso ou importância daquele bem que deve fazer ceder o direito fundamental, estes não podem
ser argumentos em que só eles próprios se reconheçam e que não sejam partilhados pela
generalidade das pessoas. I.e., os argumentos não podem ser aqueles que só uma ideologia

32
Direitos Fundamentais Leonor Branco Jaleco

política ou religiosa defenda, mas têm que ser argumentos de razão pública, em que todos
nos possamos rever e com que o TC possa lidar sem ter que aderir a uma ideologia em
particular. Não se pode dizer, por exemplo, “restrinjo este direito fundamental porque este
tipo de exercício vai contra as minhas convicções religiosas”; é óbvio que todos têm direito às
suas convicções, mas não se pode invocar uma convicção própria para restringir direitos das
outras pessoas que têm exatamente o mesmo direito a ter as suas convicções. Além disso, não
podemos esquecer que, por vezes, certas justificações servem para denegrir o outro,
desqualificar o outro, dizendo “esse plano de vida está errado”; acaba por ser negada uma
igual dignidade da pessoa humana.

o Há certos fatores e categorias suspeitas de servirem correntemente como violações sistemáticas


à dignidade da pessoa humana, que servem para diferenciar as pessoas em função de se ter
uma ou outra religião, cor de pele, orientação sexual, etc.. Neste sentido, diferenciar pessoas
no sentido de umas serem mais dignas que outros. Estas são razões, à partida, suspeitas – se
os poderes políticos não conseguirem invocar uma outra razão que justifique a restrição, essa
não é uma restrição admissível.

Há ainda categorias quase-suspeitas: pensemos por exemplo na questão de, quanto às restrições
que foram impostas agora no Estado de emergência de poder sair de casa, se estabelecerem
diferenças em função da idade. Será esta uma categoria quase suspeita? Uma discriminação em
função da idade é admissível? Ora, à luz do princípio da dignidade da pessoa humana, há uma
igual dignidade entre todas as pessoas, independentemente da idade. Assim, distinções em
razão da idade serão, à partida, suspeitas ou quase suspeitas. Em que é que isso se traduz? Não
numa totalidade impossibilidade de se fazerem diferenciações em função da idade, mas os
poderes públicos são obrigados a dar uma outra razão que não a idade para justificar a
restrição. Por exemplo, uma pessoa com mais idade está mais sujeita a ser infetada ou a morrer
que outra – aí, apesar de estarem relacionadas com a idade, não utilizam o critério da idade
para dizer que tem ou não direito, mas antes a suscetibilidade de ser infetado. Assim, vamos
depois ver se estas razões são ou não admissíveis para a restrição.

o Razões de conteúdo vs razões neutrais – uma razão de conteúdo é, por exemplo, dizer que
alguém não pode fazer uma manifestação pelo facto das posições políticas que defende; uma
razão neutral seria dizer que não pode fazer uma manifestação porque tal iria por em causa a
normal circulação das pessoas. À partida, razões de conteúdo são mais suspeitas que razões
neutrais. Note-se que o TC deve ter toda a possibilidade de fazer o controlo sobre qual é a
razão real, pois é essa que conta.
Por exemplo, há uns anos a CGTP quis fazer uma manifestação que passava pela Ponte 25 de
Abril. Esta manifestação não foi permitida porque tal iria pôr em causa a normal circulação
dos veículos na ponte. Os poderes públicos diziam ser esta uma razão neutral, na medida em
que se aplicaria a qualquer manifestação, e não por se tratar de uma manifestação da CGTP.
Ora, tudo estaria certo se esse mesmo Governo não permitisse e admitisse aquelas meias
maratonas que atravessam a Ponte 25 de Abril todos os anos, onde juntam mais pessoas do
que, porventura, a CGTP juntaria. Isto mostrou que a razão real não era uma razão neutral.

Se conseguirmos isolar justificações inaceitáveis, a seguir o TC deveria ter alguma condescendência


para as que não fossem admissíveis, dado que a seguir temos as outras fases de controlo da
constitucionalidade das restrições. Ou seja, o problema não ficaria completamente decidido nesta
segunda fase de justificação da restrição.

33
Direitos Fundamentais Leonor Branco Jaleco

⇒ Terceira fase – em que medida a restrição respeitou os limites aos limites dos direitos
fundamentais (os princípios estruturantes):

Esta, nos casos difíceis, é a fase decisiva.

Note-se, contudo, que não temos necessariamente que percorrer as três fases; pode acontecer que os
casos menos difíceis sejam resolvidos tanto na primeira como na segunda fase:

- Por exemplo, na primeira fase, se estivermos perante uma situação em que alguém está
consciente de que está infetado pelo Covid-19 e, mesmo assim, convive com outras pessoas
livremente, fazendo a vida normal, sabendo da alta probabilidade de contagiar os que estão à
sua volta, se sofrer uma intervenção restritiva, dificilmente poderá alegar que estava no
exercício de um direito fundamental, uma vez que aquela atuação específica era um ato
considerado crime (propagação de doença contagiosa), de forma que não seria necessário ir
verificar depois se havia justificação para aquela intervenção restritiva. Tratando-se de um
ilícito criminal, não era verdadeiramente um problema de direitos fundamentais.

- Também na segunda fase isto pode suceder: ainda que na maior parte dos casos difíceis esta
fase da justificação não seja suficiente para resolver, acabando estes por ser resolvidos apenas
na terceira fase, há situações em que o problema fica definitivamente resolvido na segunda
fase. Por exemplo, se estamos perante uma norma constitucional a que atribuímos uma
natureza de regra, e se não há dúvidas de que aquele ato está definitivamente proibido ou
permitido, é desnecessário ir verificar e fazer um controlo ulterior; o problema fica resolvido
ali. Por exemplo, no art. 62º/2, quando se exige que as expropriações sejam feitas apenas
mediante lei e com pagamento da justa indemnização, é óbvio que se estivermos perante uma
expropriação em que não haja lei que a admita ou há recusa de pagamento da justa
indemnização, não é preciso ir averiguar se há ali proporcionalidade. A lei é clara, não deixa
margem para dúvidas. Se não houver pagamento de justa indemnização, não é necessário
ulteriores controlos; aquela intervenção restritiva é imediatamente identificável como sendo
uma violação desta garantia prevista no art. 62º/2 CRP. Não há lugar a ponderações.

Na maior parte das situações, na fase da justificação conferimos ao poder judicial que exerce o
controlo uma margem não muito ampla de decisão. Em casos duvidosos, excluímos logo algumas
justificações (as mais evidentemente inadmissíveis), mas, havendo alguma dúvida, deixa-se a
resolução do caso para fase ulterior. Ou seja, nessa segunda fase o poder judicial teria de observar
uma certa contenção; só invalidaria as justificações claramente inadmissíveis.

É nesta terceira fase onde se vão resolver praticamente todos os problemas mais complexos de direitos
fundamentais. Aqui já não há lugar para exigir alguma contenção ao poder judicial. Apesar de a
última palavra caber sempre ao poder judicial, o que vimos foi que, nas duas primeiras fases, havia
alguma contenção: havendo dúvidas, não se elimina logo o problema como problema de direitos
fundamentais. Nesta terceira fase já não se pede mais contenção ao poder judicial do que aquela
que é inerente à própria natureza do princípio que vamos analisar.

Estamos agora na fase do controlo da verificação dos vários princípios constitucionais aplicáveis que
são, desde logo, os princípios estruturantes de um Estado de Direito: aqueles princípios que, em
toda a sua atividade, os poderes públicos têm de observar por exigência constitucional
(nomeadamente, princípio da igualdade, princípio da proporcionalidade).

34
Direitos Fundamentais Leonor Branco Jaleco

Para além desta observância genérica destes princípios estruturantes, podemos ainda identificar
noutras normas constitucionais aplicáveis certos limites a esta atuação restritiva que o poder público
exerce sobre os direitos fundamentais – limites aos limites dos direitos fundamentais.

Onde estão estes limites aos limites?

Os enunciados mais evidentes são os que constam do art. 18º, mas este não é o único que contém os
limites aos limites. A concretização dos limites aos limites que consta deste artigo pode ser, de alguma
forma, redundante, mas tem alguma utilidade: deixa claro que as leis restritivas de direitos
fundamentais têm de observar os princípios estruturantes.

A origem última destes princípios estruturantes deriva do facto de o relacionamento próprio de um


Estado de Direito entre o Estado e os cidadãos assentar no respeito e na observância da dignidade da
pessoa humana, ao contrário do que sucede nos Estados totalitários.

A dignidade da pessoa humana, como dispõe o art. 1º CRP, é o pilar fundamental do Estado de
Direito. E tem duas funções: (i) fundamento de todos os outros princípios estruturantes, que de uma
ou de outra forma derivam deste princípio (igualdade, confiança, proibição do défice) e (ii) limite aos
limites dos direitos fundamentais (i.e., desenvolve efeitos de limite próprios do seu conteúdo: o
Estado também tem de observar diretamente o princípio da dignidade da pessoa humana).

Assim, temos de saber primeiro, em termos jurídicos, o que significa dignidade da pessoa humana,
para depois darmos alguma compreensão ou sermos capazes de compreender de que forma este
princípio desenvolve estes efeitos jurídicos.

Em termos históricos, a dignidade da pessoa humana entrou primeiro através de um discurso de


natureza filosófica, moral. Só chegou às Constituições depois da 2ª Guerra Mundial, por causa
daquele período entre as duas Guerras onde se cometeram as maiores atrocidades em Estados
democráticos, e que levou à necessidade de deixar claro nos textos jurídicos, assim como atribuir a
esta ideia da dignidade da pessoa uma importância máxima.

O facto de este princípio ter uma origem filosófica leva à dificuldade de traduzir essa herança
filosófica/moral em discurso jurídico, em princípio jurídico, com conteúdo normativo. E isto porque
cada um de nós, avaliando um comportamento, um projeto de vida, tem a sua própria ideia sobre se
aquele comportamento ou projeto de vida é digno ou não. E esse juízo é muito variável de pessoa
para pessoa. Nem todos têm a mesma conceção de dignidade.

 Por exemplo, uma atividade que normalmente entra neste tipo de juízo: a prostituição,
relativamente à qual se discute se deve ou não ser considerada uma profissão, se deve ou não
ser legalizada. As dúvidas que se colocam têm, de certa forma, a ver com isto: algumas pessoas
questionam: vai ser uma profissão aquilo que é uma atividade indigna? Mas para os próprios, que
exercem essa atividade, já pode não ser uma atividade indigna.

Havendo estas divergências, temos um problema difícil de resolver: quando a CRP afirma que a
República Portuguesa assenta na dignidade da pessoa humana, o que é que isso significa? Significa que
uma atividade como a prostituição deve ou pode ser admitida? Qual o conteúdo normativo daquele
princípio?

35
Direitos Fundamentais Leonor Branco Jaleco

A partir do momento em que a dignidade chega à CRP, continua a ser um princípio de origem moral,
filosófica, mas passa a ser também um princípio jurídico-constitucional e, sendo assim, permite
invalidar uma lei em função de se concluir que essa lei contraria os comandos normativos que
retiramos do art. 1º.

Para sabermos se uma lei que legaliza a prostituição é ou não inconstitucional por violação do
princípio da dignidade da pessoa humana temos de saber qual é o conteúdo normativo desse
princípio. E isto porque para um juiz que vá analisar o caso, do ponto de vista dele, aquela atividade
pode ser indigna, caso em que diria que é inconstitucional. Mas para outro juiz pode tratar-se de uma
atividade como outra qualquer, pelo que não violaria a dignidade da pessoa humana.

Esta divergência deve ser admitida e reconhecida e deixada assim ou temos de resolver este problema do conteúdo
normativo da DPH? À partida, se quisermos reconhecer natureza jurídico-constitucional a este
problema, temos de resolver este problema.

A ideia é a de que se admite que cada pessoa tenha uma conceção sobre o que é uma vida digna, mas
já não é admissível que uma pessoa imponha a outra a sua conceção de vida digna. Isso não seria
admissível num Estado de Direito que reconhece a todas pessoas uma igual dignidade; se se admitisse
que uma pessoa pode impor a outra uma conceção de dignidade em que essa pessoa não reconhece,
é porque a aquela pessoa não reconhece a esta última uma igual dignidade.

Uma coisa é cada um ter a sua conceção de dignidade, outra coisa é qual a conceção de dignidade
que decorre da consagração deste princípio no art. 1º CRP.

 Conteúdo normativo da dignidade da pessoa humana:

Uma resposta fácil seria dizer que a dignidade da pessoa humana é o conjunto dos direitos
fundamentais. Se percorrermos todos os direitos fundamentais, temos a expressão deste princípio.

Podíamos assim resolver este problema pela atribuição de uma amplitude máxima ao princípio da
dignidade da pessoa humana.

No entanto, se fosse assim, o princípio ficaria sem conteúdo normativo próprio. Ou seja, em cada um
dos domínios da nossa vida, temos direitos fundamentais específicos; se as Constituições fazem isso,
então quando temos um problema específico para resolver, aplicamos o direito fundamental que foi
criado especificamente para o resolver. Para que é que serviria aí a dignidade da pessoa humana? É verdade
que aquele direito fundamental decorre da ideia da dignidade da pessoa humana, mas quando vamos
resolver um problema jurídico, se temos uma norma específica que foi criada para resolver esse
problema, não vamos recorrer a outra.

Portanto, nesta estratégia de identificação do conteúdo normativo, devemos ter uma conceção
contida/restritiva de dignidade, em dois sentidos:

o Se para resolver qualquer problema de direitos fundamentais invocamos permanentemente a


violação da dignidade da pessoa humana, é natural que o princípio vá perdendo importância.
Deve pugnar-se, assim, por uma aplicação excecional.
o A determinação do conteúdo normativo da dignidade da pessoa humana deve ser feita em
ordem a permitir que todos os cidadãos, independentemente das suas conceções, se possam
reconhecer naquele princípio.

36
Direitos Fundamentais Leonor Branco Jaleco

Assim, JRN propõe, para a determinação do conteúdo normativo deste princípio, que os critérios para
determinar a violação do princípio da dignidade da pessoa humana sejam consensuais, onde todos
nos reconhecemos. E se uma pessoa não se reconhecer nesse princípio? JRN afirma que quando se fala em
“todos” é dentro de uma ideia de razoabilidade; é um consenso entre pessoas que reconhecem no
outro uma igual dignidade.

Fala-se, então, num conteúdo determinado por tendencial consenso.

Mas atenção: isto não se confunde com o momento em que há um problema jurídico: aí haverá
divergência sobre se houve ou não violação da dignidade da pessoa humana; o consenso não é aqui,
aqui nunca existe ou raramente existe consenso. O consenso é no conteúdo normativo do princípio.

JRN afirma ainda que é mais fácil determinar o conteúdo da dignidade pela negativa (quais são os
comportamentos e princípios que violam a dignidade da pessoa humana) do que pela positiva
(enumeração de todo o conteúdo).

Voltando aos limites aos limites:

Encontramo-nos, então, na fase do controlo da constitucionalidade das restrições a direitos


fundamentais, onde se verifica se a intervenção restritiva respeita os limites aos limites de direitos
fundamentais

Há aqui uma equivalência entre princípios estruturantes de Estado de Direito e limites aos limites;
mesmo quando uma restrição é admissível, ela tem sempre de respeitar os outros princípios
constitucionais que se imponham e outros limites que a CRP imponha – os limites aos limites.

A nossa CRP, ao contrário de outras, fá-lo especificamente no art. 18º e também no art. 165º. No art.
18º, percorrendo os vários números, incidindo especialmente no n.º 3, encontramos a consideração de
alguns limites aos limites que não estão diretamente incluídos nos princípios constitucionais
estruturantes.

Neste n.º 3 do art. 18º há uma concentração de limites aos limites que vai para além do que resultava
da necessária observância dos princípios constitucionais estruturantes. Mas a associação entre os dois
mantém-se:

 Por exemplo, pegando no primeiro limite do art. 18º/3 – proibição de leis restritivas
individuais e concretas – a certa altura, a AR aprovou uma lei segundo a qual ficava proibida
a acumulação de mandatos de autarca com mandato de deputado ao Parlamento Europeu.
Esta lei é restritiva, na medida em que restringe o direito à participação política das pessoas
envolvidas, e é geral e abstrata? Quando olhamos para a formulação da lei, parece claramente
que sim: todas as pessoas que se encontrarem numa situação de cumulação não podem
exercer o mandato. No entanto, quando na altura olhávamos para o panorama de Portugal,
aquilo que se verificava era que, no país todo, só havia uma pessoa que preenchia aqueles
pressupostos (simultaneamente autarca e deputado ao Parlamento Europeu – o deputado
Fernando Gomes). Assim, uma lei que à partida era geral e abstrata, quando aplicada, afetava
apenas uma pessoa. Ora, a AR sabia, quando aprovou aquela lei, que só se aplicaria àquele
cidadão. Assim, foi uma lei fotografia, dirigida a uma pessoa. Simplesmente não foi difícil ao
legislador redigir a lei em termos segundo os quais, tecnicamente, era geral e abstrata, na

37
Direitos Fundamentais Leonor Branco Jaleco

medida em que não éramos capazes de enumerar, à partida, todas as pessoas a quem a lei
seria aplicada ao longo do seu tempo de vigência.

Assim, o TC considerou que não havia problemas de abstração e generalidade da lei. Contudo, ela
contundia com outros princípios – no caso, o princípio da proteção da confiança, porque aquela
pessoa se tinha candidatado àqueles cargos quando a lei o permitia e, a meio do mandato, rompia-se
a relação de confiança entre quem tinha elegido aquela pessoa e o desenvolvimento do seu mandato.
Assim, o TC entendeu que esta restrição só podia valer para futuros mandatos e não para o autarca
Fernando Gomes.

Na situação atual, este problema da generalidade e abstração das leis também se coloca; mas como
as leis restritivas atuais são feitas para um tempo muito determinado, para uma situação muito
concreta, não violam esta exigência de generalidade e abstração, pois somos incapazes de enumerar
exatamente a que pessoas vão ser aplicadas e em que situações vão ser aplicadas.

O princípio da proteção da confiança está por detrás do outro limite aos limites constante do art.
18º/3 – as leis não podem ter efeito retroativo. A proibição da retroatividade tem em vista a proteção
da confiança; se se está a penalizar alguém, isso só pode ser feito depois de a lei estar em vigor, na
medida em que, se no momento em que a pessoa praticou aqueles atos, estes eram legítimos e não
eram sancionáveis, a norma restritiva não deve ter efeitos retroativos.

A retroatividade tem vários níveis, várias dimensões: retroatividade autêntica (claramente proibida),
retroatividade inautêntica ou retrospetividade.

Se a retroatividade for autêntica (houver uma ficção da entrada em vigor da lei restritiva num
momento anterior àquele em que de facto, juridicamente, começou a produzir efeitos) e se a norma
for restritiva, é inconstitucional (art. 18º/3).

Assim, estes dois limites aos limites, desde logo, levantam uma suspeição; uma lei relativamente à
qual tenhamos dúvidas se é geral e abstrata e se é ou não retroativa, é uma lei que levanta suspeições.
E, por isso, o controlo que sobre elas incidirá será mais exigente; mas, em última linha, a
razão/motivo/princípio por detrás deste controlo são os da igualdade e proteção da confiança.

Porventura mais complexo é o terceiro limite aos limites, segundo o qual as leis restritivas não
podem diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais – garantia
do conteúdo essencial.

Esta garantia tem origem na Constituição alemã, no sentido de que, durante uma boa parte do tempo,
os direitos fundamentais eram à medida da lei, não tinham a vinculatividade que têm hoje, embora
se distinguisse o que era o conteúdo essencial do direito fundamental – que tinha aplicabilidade direta
–, e o que ficava situado fora desse conteúdo essencial – que ficaria dependente da existência de lei.

A ideia é a de que, podendo admitir-se restrições a todos os direitos fundamentais, pelo menos deve
haver uma garantia que não deve ser tocada, na medida em que falamos numa relação entre um
direito constitucional, apoiado numa norma constitucional, que é afetado por uma norma ordinária,
pelos poderes ordinários.

38
Direitos Fundamentais Leonor Branco Jaleco

Assim, se tivermos um âmbito amplo de proteção de um direito fundamental, haverá uma barreira
para além da qual não se pode passar – essa barreira é a garantia mínima do direito fundamental.

Esta ideia é de aceitação imediata; tão imediata que se vê depois refletida noutras disposições da lei
ordinária: por exemplo, em Direito administrativo, a ofensa ao conteúdo essencial dos direitos
fundamentais é sancionada, pelo CPA, com a nulidade.

As dificuldades começam a partir daqui, do momento em que vamos procurar determinar o que está
contido no conteúdo essencial de um direito. Esta dificuldade vai ser insuperável ou quase insuperável:

o Desde logo, porque a ideia que parece tão pacífica à primeira vista é, em si mesma,
contraditória – os direitos fundamentais, por natureza, já são os direitos essenciais.
Precisamente por serem essenciais é que foram para a Constituição. Como é possível num direito
que já é considerado essencial, ainda determinar um núcleo essencialíssimo? É muito difícil
determinar a essência da essência.
Por exemplo, qual é o conteúdo nuclear do direito de manifestação?

Esta dificuldade é tal que se desenvolveram, ao longo da História e, principalmente, na Alemanha,


teorias para ajudar na determinação do que seria esta garantia jurídico-constitucional do conteúdo
essencial:

1) Teoria Absoluta

Representando graficamente, teríamos um círculo composto pelo âmbito protegido do direito


fundamental e, dentro desse círculo, haveria uma zona central que seria o conteúdo essencial. Aí
teríamos delimitada a periferia, a auréola do direito e depois o seu núcleo.

A dificuldade é o traçar da fronteira.

A preocupação da teoria absoluta é estabelecer o que se inclui ou não dentro daquele núcleo. No
fundo, acaba por tentar resolver esta questão recorrendo ao princípio da dignidade da pessoa
humana.

A todos é reconhecida dignidade como pessoa humana, pelo que lhes é reconhecido o direito a ter
direitos. Há esta associação muito direta entre o princípio da dignidade da pessoa humana e os
direitos fundamentais.

Mas quando olhamos para os direitos fundamentais, e sobretudo se tivermos uma conceção restritiva
do conteúdo normativo da DPH, podemos concluir que a melhor solução é a que entende que o
princípio da dignidade da pessoa humana apenas será invocável nas situações mais graves, em que
pretendemos evidenciar a gravidade da lesão que aquele direito fundamental está a sofrer; lesão essa
tão grave que até afeta a dignidade da pessoa humana.

Dentro de cada direito fundamental seria assim possível fazer esta distinção:

(i) Há âmbitos protegidos, que decorrem remotamente da DPH, mas para cuja solução de
problemas com eles relacionados não recorremos àquele princípio;
(ii) Há âmbitos em que a lesão do direito fundamental é tal, que se pode afirmar que houve
também lesão do princípio da dignidade da pessoa humana.

39
Direitos Fundamentais Leonor Branco Jaleco

Esta ideia faz sentido, mas JRN afirma que levanta algumas dificuldades:

1. Para sabermos o conteúdo essencial de um direito fundamental temos previamente de saber


o que é a dignidade da pessoa humana. Se é a dignidade humana que permite fazer a
delimitação, primeiro remos de delimitar o seu conteúdo.
2. Se estamos numa zona de tal gravidade que não é apenas o direito fundamental que está a ser
violado, mas também a dignidade da pessoa humana, então acabamos por invocar a
dignidade da pessoa humana e não o conteúdo essencial daquele direito fundamental.

Assim, a lógica da teoria absoluta não é contestável, mas na prática perde o sentido, porque no fundo
o conteúdo essencial é a dignidade da pessoa humana, pelo que é a violação desta que é invocada.

2) Teoria Relativa

Já não importa a representação gráfica que diz que a restrição pode penetrar no direito mas não pode
chegar àquele âmbito nuclear. Já não lidamos com aquele âmbito como valor absoluto; tudo é relativo
na proteção conferida por um direito fundamental, em função da justificação que temos para o
limitar.

Sabermos se uma restrição é inadmissível por violação do conteúdo essencial desse direito
fundamental acaba por se identificar com o princípio da proporcionalidade/proibição do excesso.
Há violação da garantia do conteúdo essencial quando uma restrição não é suficientemente
justificada/necessária, quando é excessiva.

Assim, esta teoria não acrescentaria nada àquilo que já decorria do princípio da proibição do excesso.

Por outro lado, esta teoria, no caso português, apresenta outra dificuldade, facilmente visível quando,
no art. 18º/2, segunda parte, temos a consagração do princípio da proibição do excesso e no n.º 3 a
garantia do conteúdo essencial: se a garantia do conteúdo essencial tivesse este sentido que lhe
pretende dar a teoria relativa, nada se estaria acrescentar ao que já se dizia no n.º 2.

Assim, para a nossa Constituição, a teoria absoluta parece mais forte – se não tivermos em conta as
deficiências que lhe foram apontadas. Por isso, para não surgir como redundante, há outras pessoas
que procuram, mantendo na mesma a ideia de valor absoluto da garantia do conteúdo essencial, dar-
lhe um conteúdo normativo que não o identifique com a dignidade da pessoa humana: assim, estas pessoas
dizem que haverá violação autónoma da garantia do conteúdo essencial quando aquele direito
fundamental, após a intervenção restritiva, deixe de ter sentido útil.

No entanto, surge aqui uma dificuldade: perde o sentido útil para quem? Para a ordem jurídica no seu
conjunto ou para um titular concreto de um direito fundamental? Surgem aqui outras duas novas teorias:

i) Teoria Objetiva

O que conta, para a determinação de se há ou não sentido útil, é a Ordem Jurídica na sua totalidade.

E quando é que isto acontece? Quando é suprimido. Se um direito não é suprimido, mantendo-se em
vigor, produz sempre algum efeito: os poderes públicos têm sempre algum dever de respeitar,
proteger ou promover aquilo que ficou.

40
Direitos Fundamentais Leonor Branco Jaleco

Assim, vê-se a fragilidade desta teoria: um direito só perde verdadeiramente o sentido útil para toda
a ordem jurídica quando, pura e simplesmente, é eliminado. Porém, se uma lei suprimiu um direito,
a violação da Constituição é imediata – uma lei ordinária não o pode fazer. Logo, não é necessário
invocar a violação do conteúdo essencial.

ii) Teoria Subjetiva

Para esta, deixa de haver sentido útil quando para uma pessoa concreta o direito deixou de ter útil.

Será isto plausível? Segundo JRN não, porque muitas vezes, nas ordens jurídicas de Estado de Direito,
há direitos fundamentais que perdem o sentido útil para o seu titular sem que haja
inconstitucionalidade. Por exemplo, se uma pessoa com 90 anos for condenada a 20 anos de prisão,
podemos dizer que o seu direito à liberdade perdeu todo o sentido útil para ela; mas não é por isso
que podemos dizer que há inconstitucionalidade.

Sendo muito difícil sabermos o que é o conteúdo essencial ou, mesmo quando sabemos, fazer dele
uma garantia autónoma relativamente a outros princípios estruturantes (dignidade da pessoa
humana e proporcionalidade), podemos, contudo, perceber que esta garantia do conteúdo essencial
é muito utilizada pelos tribunais e pelo nosso Tribunal Constitucional. Quando? Quando o TC se
pronuncia pela não inconstitucionalidade, na lógica de dizer que efetivamente há uma restrição do
direito fundamental, mas que não afeta o conteúdo essencial. Mas note-se que nunca há uma
preocupação em determinar o que é o conteúdo essencial.

Desta falta de determinação de conteúdo, resulta aquilo que, no fundo, é o efeito perverso: o facto de,
sendo ela um limite aos limites, servindo para limitar as restrições aos direitos fundamentais, acaba
por ter efeitos complemente ou exatamente inversos.

Na maior parte dos casos em que o TC recorre à garantia mínima, a conclusão a que chega é a de que
não houve violação do conteúdo essencial, mas nunca refere porquê; para tal, seria necessário que se
identificasse o conteúdo essencial dos direitos fundamentais.

Assim, a conclusão a que chega é a de que existe uma restrição a um direito fundamental, mas essa
lei restritiva, se é verdade que afeta o direito fundamental em causa, não chega a violar o seu conteúdo
essencial. Logo, não há inconstitucionalidade.

Normalmente é isto que acontece: quando TC pretende, perante uma restrição a um DF, concluir que
não existe inconstitucionalidade, utiliza esta argumentação – a restrição não é tão grave que chegue
a tocar o conteúdo essencial do direito fundamental. Mas tudo isto sem determinar previamente o
que significa afetar ou não o conteúdo essencial de um direito fundamental.

Perante todas estas dificuldades, cabe ensaiar uma tentativa de conclusão sobre que conteúdo e
sentido de deve então atribuir a esta garantia. Ora, já chegámos à conclusão de que não há problema
em relacionar esta garantia com a dignidade da pessoa humana ou com a proporcionalidade.

No entanto, sabemos também que essa relação não nos conduz a lado nenhum, entende JRN,
porquanto a garantia do conteúdo essencial não teria grande utilidade, uma vez que estes princípios
– da dignidade e da proporcionalidade – já se encontram contemplados na CRP.

41
Direitos Fundamentais Leonor Branco Jaleco

Assim, conclui JRN que, na maior parte dos casos, podemos dizer que há violação do conteúdo
essencial do direito fundamental quando pudermos dizer que não há dúvidas nenhumas de que o
direito foi violado, e pudermos afirmá-lo sem necessidade de recorrer aos princípios estruturantes
ou a outros. Isto é: a lesão é tão evidente que podemos afirmar que o direito foi atingido no seu núcleo
essencial.

 Por exemplo, imaginemos que a AR aprovava uma lei que proibia uma certa religião, por se
considerar que essa religião seria errada. Obviamente, quando olhamos para o art. 41º CRP e
temos presente o que significa o Estado de Direito consagrar a liberdade religiosa, não temos
qualquer dúvida quanto ao facto de se tratar de uma ofensa ao conteúdo essencial do direito.
Isto porque aquele direito fundamental serve precisamente para proteger a liberdade
religiosa. No conteúdo do direito à liberdade de religião, se há alguma coisa de que não temos
dúvidas, é de que faz parte do seu núcleo essencial esta possibilidade de as pessoas poderem
optar pela religião que pretenderem, terem ou não terem religião.

Ou seja: conseguimos afirmar que há uma violação ou afetação do conteúdo essencial do direito,
quando conseguimos descortinar essa violação sem recorrer a outros princípios estruturantes do
Estado de Direito, mas apenas ao preceito em questão, como é o caso do art. 41º CRP.

⭐ Reserva de Lei

Há outros limites aos limites que não se encontram no art. 18º/3; é o caso do limite competencial:
quem tem competência para restringir direitos fundamentais?

Desde logo, nos termos do art. 165º/1, al. d), só pode legislar sobre matéria de DLG a AR, o que
significa que existe, em tudo o que respeita a restrição a direitos fundamentais, uma reserva de lei
parlamentar.

Aprofundemos então o que significa o princípio da reserva de lei ou o princípio da reserva de lei,
enquanto limite aos limites. Neste princípio podemos distinguir dois interesses:

i. Em primeiro lugar, o que deve ou não caber aos atos legislativos – o que está reservado à
Lei?

ii. O que deve caber à lei parlamentar? Isto porque, dentro da reserva de ato legislativo,
podemos distinguir entre aquilo que deve caber ao parlamento (lei em sentido formal)
que pode ser tratado como outros atos legislativos;

Ora, o princípio da reserva de lei é também ele um princípio estruturante do Estado de Direito. Há
uma grande preocupação da CRP em falar desta matéria sob a designação de leis restritivas de
direitos fundamentais, de DLG. E vamos verificar que destas referências constitucionais não
conseguimos retirar elementos suficientes para sabermos o que é ou não reserva de lei.

 Por exemplo, na situação que nos encontramos atualmente (Covid-19), com a pressão da
necessidade a todos a títulos excecional de combater o vírus, muito dificilmente conseguimos,
no plano material, encontrar uma inconstitucionalidade. Estes interesses são tão fortes e
prementes, que tudo o mais tende a ceder e, portanto, apurar uma existência de uma
constitucionalidade material é extremamente difícil.

42
Direitos Fundamentais Leonor Branco Jaleco

A situação já é diferente quando analisamos a forma dos atos que têm sido escolhidos para estas
medidas e os órgãos que as têm aprovado. Isto é: saber se Governo tinha competência para tomar
estas medidas e, segundo, quando o faz, deve fazê-lo com que tipo de atos – atos regulamentares, atos
legislativos?

E como não conseguimos apurar respostas claras, quanto a este princípio, importa-nos apurar qual
o conteúdo essencial da reserva de lei.

1) Contexto Histórico

Nos primórdios do Estado liberal, após as revoluções liberais do séc. XVIII, tanto na Europa como na
América, mas mais claramente na Europa, onde o princípio se desenvolveu e foi mais tratado
doutrinariamente, podemos dizer que ele surgiu, nestes inícios como um conceito de luta política: a
burguesia pelo controlo do estado, na luta contra o estado absoluto e contra as classes sociais ligadas
a esse tipo de Estado.

E portanto, nesta luta política que conduz às revoluções liberais e que é continuada a seguir, este
princípio da reserva de lei insere-se nessa luta política e ele próprio é um instrumento dessa luta
política porque esta reserva de lei tem muito que ver com a divisão de poderes, com separação de
poderes e no fundo, a divisão de poderes, a forma como ela se desenvolveu, tinha muito a ver com a
existência, mesmo já depois, das revoluções liberais, das chamadas monarquias dualistas.

Dualistas porque havia uma dualidade de poder nítida entre legislativo – parlamento – e função
executiva – governo – e tínhamos ao mesmo tempo parlamentos – órgãos eletivos – com alguma
legitimidade democrática e do lado do executivo, tínhamos um poder muito ligado aos monarcas.

E o princípio da reserva de lei tinha muito a ver com a divisão de poderes, na medida em que a
burguesia da altura sustentava que a atuação do executivo, sobretudo em tudo o que dissesse respeito
a intervenção na liberdade e propriedade dos cidadãos (classes proprietárias, que eram os cidadãos
da altura), se devia fazer através de lei ou com base na lei, no fundo, era a tradição deste objetivo
político, segundo o qual o executivo – a administração – deveria estar condicionado às decisões das
assembleias parlamentares, e porquê? Porque a burguesia fazia parte dessas assembleias
parlamentares.

Portanto, o princípio da reserva de lei, bem como o princípio da legalidade da administração, tinha
claramente este sentido de luta política que, na altura, era muito determinado e associado a esta
necessidade de proteger a liberdade individual e propriedade dos cidadãos; começou assim por
surgir no domínio tributário, ou seja, poderia haver interferência na propriedade dos cidadãos, desde
que essa interferência fosse aprovada pelos cidadãos, leia-se, por lei parlamentar, com observância
da reserva de lei. E também isto se passou no domínio penal.

Depois isso evoluiu para todos os outros domínios e à medida que esta luta política foi sendo
resolvida e todo o Estado começou a observar a legitimidade democrática, desapareceu o princípio
da reserva de lei como instrumento desta lei política.

E o princípio da reserva de lei passou a ser necessário pela racionalização das várias funções do
Estado e vai desenvolver-se ao longo do Estado social de Direito – ao longo do séc. XX – com uma
outra natureza, mais ambiciosa.

43
Direitos Fundamentais Leonor Branco Jaleco

Ou seja: se no séc. XIX, o princípio tinha um caráter mais defensivo, no sentido de que era invocado
para a defesa da liberdade individual e propriedade dos cidadãos, ao longo do Estado social de
Direito, com base nesta ideia de ser um princípio associado à racionalização das funções globais do
Estado, o princípio vem assumir funções diversas. Estas tinham que ver não só com o dever de
respeito pelos direitos fundamentais, mas também com os deveres de promoção e proteção dos
direitos fundamentais.

Assim, evoluiu este princípio para uma reserva total de lei, no sentido de que qualquer restrição aos
direitos fundamentais teria de ser operada com base em lei parlamentar. Já não era só a administração
que estava subordinada à reserva de lei/à autorização legal, mas era também a administração de
prestações: de promoção, proteção.

2) Teoria da Essencialidade

Portanto, evoluímos de uma reserva restritiva (clássica) de lei para uma reserva total de lei e há
como que um movimento pendular. Isto é: de um círculo muito restrito, evoluiu-se para uma reserva
total e depois disso, reparou-se que essa reserva total poderia conduzir à paralisação do Estado. Isto
é: se tudo o que administração fizesse, estivesse dependente de reserva de lei, era a própria
necessidade de responder aos riscos, aos perigos, à própria atividade normal de um Estado social, se
tudo isso ficasse sempre dependente da existência prévia de lei, era o próprio risco de paralisação, de
não cumprimento adequado das novas funções dos estados e desta antítese das duas formas de
conceber a reserva de lei – mais restritiva e menos restritiva, passou-se finalmente para uma ideia de
equilíbrio entre estas duas tendências: a ideia segundo a qual o que deve ser precedido de lei, é tudo
aquilo que deve respeitar às questões mais importantes da vida em sociedade e da vida do Estado.

Apenas aqui, só pode a administração atuar com base na lei.

Assim se desenvolveu a teoria da essencialidade: está reservado a ato legislativo tudo aquilo que
seja essencial.

Mas o que significa ser essencial? Por exemplo, aquilo que o Governo está a fazer agora, é essencial ou
não?

Esta dúvida leva a que algumas Constituições como é o caso da nossa, procurem definir nalguns
enunciados constitucionais esta ideia e, assim, existem alguns artigos na CRP que procuram traduzir
esta ideia:

o Art. 18º: as leis restritivas tratadas no art. 18º;

o Arts. 164º e 165º: quando a CRP faz uma enumeração das matérias reservadas ao parlamento,
i.e., à legislação aprovada pelo parlamento (reserva relativa e absoluta da AR);

o Art. 266º, que trata concretamente do princípio da legalidade;

o Art. 272º, que trata das medidas de polícia admissíveis;

Há esta tentativa de clarificação, mas quando perguntamos se as dúvidas ficam totalmente


esclarecidas, a doutrina geral tende a dizer que sim. JRN, contudo, considera que há ainda algumas

44
Direitos Fundamentais Leonor Branco Jaleco

dúvidas a levantar: nestes vários artigos, o que se diz é que legislar sobre DLG compete à AR ou
Governo, com autorização da AR.

No entanto, nada se diz, nestes artigos, quanto ao Governo poder regulamentar estes direitos
fundamentais (exemplo: decretos simples do Governo durante o Estado de Emergência, onde fazia
várias restrições a direitos fundamentais).

Ora, a CRP garante que a Administração tem de atuar nos termos da lei e que essa lei é aprovada pelo
parlamento e AR e, daqui, a doutrina retira a conclusão de que tudo o que respeita a DLG está sob
reserva de lei ou mesmo sob reserva de lei parlamentar.

Mas não encontramos na CRP a ideia de que o Governo está impedido de intervir em matéria de
direitos fundamentais.

É verdade que se houver lei, as intervenções restritivas e regulamentos aprovados pelo Governo têm
de estar subordinados à lei, mas o problema é outro: e se não houver lei? Pode o Governo intervir ou
tem de ficar à espera da lei?

A doutrina tradicional entende que a Administração só pode intervir com base em lei.

 Por exemplo, na situação atual, não temos nenhuma lei que regule a possibilidade de impor
às pessoas que estão infetadas que fiquem em casa. No entanto, sabemos que se essas pessoas
não ficarem em casa, há um risco enorme de infetarem outras pessoas. Tal significa que,
mesmo não havendo lei que determine que as pessoas tenham de ficar confinadas (antes
destas intervenções legislativas), há uma necessidade objetiva premente de o Estado proteger
aqueles direitos fundamentais das pessoas que iam ter contacto com as outras. Ou seja, não
tínhamos lei, mas havia uma necessidade e um dever de proteção daqueles direitos
fundamentais. Assim, da própria CRP decorre uma obrigação de atuarem nesse sentido. É
verdade que para atuarem nesse sentido vão ter de intervir restritivamente no direito à liberdade
das pessoas que estão afetadas, proibindo a sua liberdade no dia-a-dia, o que significa que vão
intervir nos direitos fundamentais daquelas pessoas e isto sem lei prévia.

Uma conceção tradicional de reserva de lei diria que não podiam, porque toda a intervenção restritiva
da administração, do governo, do executivo, em direitos fundamentais, só pode suceder através de
lei ou com base em lei. No entanto, se a administração se vê perante esta necessidade, vemos que se
estão a violar estes deveres de proteção, ou seja, para não se violar a reserva de lei, violava-se o direito
fundamental à saúde das outras pessoas, ou pelo menos, não se garantia um mínimo de proteção a
essas pessoas, havendo, portanto, uma inconstitucionalidade por esse facto.

Então, desde logo, em situações deste tipo, temos necessariamente de concluir que pode haver
necessidade de restrições restritivas, no domínio dos direitos fundamentais – em situações de
necessidade e emergência, - mesmo quando não há lei prévia.

Isto significa que fazemos a seguinte interpretação dos arts. 164.º e 165.º: é verdade que legislar é da
competência da AR, mas como a administração também está obrigada a proteger os direitos
fundamentais e, se não o fizer, está a violar os direitos fundamentais, então, estamos aqui a admitir

45
Direitos Fundamentais Leonor Branco Jaleco

intervenções restritivas em direito fundamentos, praticadas pela administração, sem precedência


de lei, pondo em causa uma violação tradicional do princípio da reserva de lei.

Se admitimos que isto seja feito pela ministra da saúde, também admitiríamos que houvesse um
regulamento do governo, na mesma lógica, a autorizar a polícia ou a ministra da saúde a tomar este
tipo de decisões, ou seja, admitimos regulamentos em domínio de restrição de direitos fundamentais,
mesmo não havendo lei prévia. Isto significa e o que o professor pretende concluir é que, à partida,
não é a preocupação da nossa CRP em estabelecer que, nos arts. 164º, 165º e 266º, apenas compete à
AR legislar, que o Governo apenas pode atuar nas restrições de direitos fundamentais, havendo lei
prévia e ainda que apenas são aquelas as atividades que podem ser desenvolvidas pela polícia, que
depois não somos confrontados na prática com problemas deste tipo.

Estes problemas vão ser respondidos através da questão de saber se há violação do princípio da
reserva de lei nestes casos e não são propriamente os enunciados normativos da CRP que nos vão
permitir resolver esta questão.

3) Solução proposta (JRN)

Será sim, a definição de uma ideia de reserva de lei adequada às circunstâncias e necessidades do
nosso Estado de Direito.

Assim, para JRN, deve partir-se da ideia básica da teoria da essencialidade, segundo a qual as
matérias essenciais devem ser tratadas por lei, sendo ajustada para sustentar o princípio da reserva
de lei, porque ela dá suficiente maleabilidade para, na situação concreta, apreciarmos se há ou não
violação deste princípio. Mas só a teoria da essencialidade não chega.

É necessário ainda responder-se a determinadas questões:

- O que é que justifica nos dias de hoje que se dê prevalência ao ato legislativo? Hoje não
podemos identificar pura e simplesmente Parlamento com legitimidade democrática e ver o
contrário no Governo. Porque também há legitimidade democrática no Governo, a vários
títulos: não apenas porque a sua legitimidade resulta de uma Constituição, ela própria
subordinada ao princípio democrático, mas também porque há institutos previstos que fazem
subordinar o Governo ao Parlamento, respondendo perante este e podendo ser por este
destituído. Aliás, há países dos Estados de Direito atuais em que o Governo é eleito
diretamente (ex: sistemas presidencialistas, como o Brasil ou os EUA), como são eleitos os
deputados. E portanto, este argumento só por si não chega para justificar a necessidade de
precedência de lei – de ato legislativo parlamentar – relativamente aos atos do governo.

Então, para termos uma compreensão adequada do princípio da reserva de lei nos dias de hoje,
teremos de ser capazes de responder à questão de saber o que é hoje a reserva de lei: o que é que
justifica que haja hoje certas matérias que devam ser primariamente tratadas por ato legislativo, o que
é que justifica que haja hoje certas matérias que devam ser primariamente tratadas por ato legislativo
parlamentar e não por ato do Governo.

Como vimos, a nossa CRP preocupou-se em traduzir e concretizar a ideia da reserva de lei em várias
disposições constitucionais: desde logo, no art. 18º, no art. 165º, no art. 266º, no art. 272º, entre outras.

46
Direitos Fundamentais Leonor Branco Jaleco

Assim, de várias disposições conseguimos retirar a certeza de que a CRP, como Constituição de
Estado de Direito tem esta preocupação essencial – a consagração do princípio da reserva de lei.

No entanto, seja na CRP ou noutra Constituição, é muito difícil deixar precisamente definido aquilo
que está ou não sujeito a reserva de lei, i.e., que tipo de atos têm de ser necessariamente praticados
sob forma de lei (no sentido de ato legislativo) e, por outro lado, falamos ainda em reserva de lei
parlamentar – matérias que, dentro da reserva geral de lei, devem ser decididas pela Assembleia
Parlamentar.

Subsiste assim um enorme espaço de dúvidas: no período em que estamos a atravessar – de Estado
de Emergência –, muitas vezes se tem discutido se, por um lado, o Governo tem ou não competência
para aprovar o tipo de normas restritivas que tem aprovado e se a forma do ato a que o Governo
recorre é ou não a mais adequada.

Com efeito, a CRP, no seu art. 165º, dispõe que compete à AR legislar sobre DLG; assim, poder-se-ia
pensar que, se este artigo deixa isto tão claro, então quando se trata de regular e aprovar normas
restritivas de DLG, deve sê-lo feito pela AR. Mas não é assim necessariamente, ou seja, as coisas não
ficam absolutamente claras na Constituição, pois esta refere que legislar sobre DLG é competência da
AR, mas não define a quem compete a regulamentação sobre DLG. No nosso caso, o Governo aprovou
um decreto simples, ou seja, regulamentou sobre DLG.

 É até curioso que o PR, por equívoco, tenha promulgado e não assinado (como deveria ter
feito; os decretos simples são objeto de assinatura pelo PR e não de promulgação – esta está
reservada para os decretos-lei), tendo, no dia seguinte, saído uma retificação deste engano.

É importante, nesta sede, recordar a seguinte distinção:

o Restrições (normas restritivas) – caráter geral e abstrato, que alteram a norma do direito
fundamental.
o Intervenções restritivas – agressões, intervenções pontuais e concretas num direito
fundamental.

Muitas vezes temos dúvidas sobre se o que o Governo fez, neste caso, foi uma restrição ou uma
intervenção restritiva. Normalmente, a intervenção restritiva surge quando já há lei restritiva que
habilita a intervenção restritiva, mas por vezes não há. Neste caso, não havia propriamente lei, mas
havia o decreto presidencial. Esta questão também não fica completamente esclarecida.

Note-se, contudo, que podemos conceber, eventualmente, que não haja uma norma restritiva que
habilite a intervenção restritiva e que, ainda assim, esta seja válida e necessária.

 Por exemplo, uma pessoa está certamente infetada e, por isso, se entrar em contacto com
outras pessoas, irá afetá-las e colocar em risco a sua vida. Neste caso, podemos não ter
nenhuma lei que diga que naquelas circunstâncias se pode impor o confinamento daquela
pessoa; no entanto, as autoridades policiais vêem-se perante o dilema de, para não
restringirem o direito fundamental daquela pessoa que está infetada, estão a permitir que
aquela pessoa, através do seu contacto social com outras que não estão afetadas, pusesse em
risco a saúde ou até a vida destas. Nesse sentido, as autoridades policiais encontrar-se-iam
perante o seguinte dilema: ou violam um direito para o qual não têm lei habilitante ou, não o
fazendo, violam o direito à proteção à saúde e à vida das outras pessoas. Assim, admite-se

47
Direitos Fundamentais Leonor Branco Jaleco

que, a título verdadeiramente excecional, possa haver intervenções restritivas mesmo sem
havendo habilitação anterior.

Serve tudo isto para dizer que não podemos ter a pretensão nem a ilusão de que a Constituição
esclarece todas estas dúvidas.

Como devemos então identificar, perante casos particulares, se um concreto ato deve ou não revestir
forma de ato legislativo ou legislativo parlamentar?

JRN entende que, talvez, a ideia mais adequada – mais até que a de nos focarmos exclusivamente no
texto da CRP – é procurarmos saber o que é que justifica a necessidade do princípio da reserva de lei,
quais são as exigências que levam a que todos os Estados de Direito Democrático acolham este
princípio.

Com base nas justificações, tentar-se-á concluir se, no caso concreto, se deve recorrer ou não a um ato
legislativo ou a uma lei parlamentar.

Sistematizando algumas razões/justificações:

Segundo JRN, pode falar-se em dois grupos de razões justificativas:

(i) Razões de Estado de Direito – estas razões apontam para a necessidade de existência de
precedência de lei. Desde logo, há uma ideia base de qualquer Estado de Direito que é a
necessidade de fazer a separação entre a criação da norma e a aplicação da norma; não devem
os dois momentos, a não ser a título excecional, estar confundidos. Em princípio, haverá um
órgão que cria a lei diferente do momento, da instância, do órgão que a aplica.
Vantagens desta separação:
a. Razões de segurança jurídica: os cidadãos precisam de saber, no desenvolvimento da sua
vida concreta, quotidiana, aquilo que as autoridades públicas podem fazer ou não e em
que medida podem ou não intervir na sua liberdade. Tal precisa de estar previamente
definido. As intervenções concretas que vierem a ser realizadas nas liberdades dos
cidadãos devem estar previamente estabelecidas.
b. Razões de igualdade: quando alguém cria uma norma sem saber a quem será aplicada,
uma eventual tentação de discriminação, de favorecimento, é mais difícil, se a norma
revestir este caráter geral. Se, pelo contrário, não existisse esta separação, esta tentação
provavelmente concretizar-se-ia aquando da feitura do ato normativo.
c. Razões de controlo judicial: todas as agressões em direitos fundamentais devem ser
suscetíveis de controlo judicial. Este controlo fica muito mais claro e certo quando temos,
num primeiro momento, a definição dos critérios gerais a abstratos e, num segundo
momento, a aplicação desses mesmos critérios. O juiz vai verificar se na aplicação ao caso
concreto se respeitaram ou não os critérios fixados anteriormente com caráter geral e
abstrato.

(ii) Razões democráticas – estas razões aconselham a que este tipo de norma revista uma forma
privilegiada, solene: a forma de ato legislativo. Mas ato legislativo parlamentar ou ato legislativo
governamental?

48
Direitos Fundamentais Leonor Branco Jaleco

a. Razões de legitimidade: tal era completamente nítido na origem de Estado de Direito


liberal quando havia uma separação entre Assembleia Parlamentar, representantes do
povo, legitimidade democrática e o dualismo segundo o qual os Executivos, muitas vezes,
eram ainda Executivos monárquicos (monarquias limitadas: a legitimidade democrática
do Parlamento não era acompanhada de igual legitimidade democrática do Executivo).
Hoje não é assim: os Executivos têm hoje, normalmente, competência legislativa, em
grande parte porque se atenuaram ou desapareceram as diferenças quanto à legitimidade
do Parlamento confrontada com a legitimidade do Executivo. Tal é particularmente
nítido, por exemplo, nos sistemas presidencialistas, em que o Parlamento é eleito (pelo
que beneficia de legitimidade democrática plena), mas também o Executivo é eleito,
fazendo com que as diferenças no domínio da legitimidade sejam quase inexistentes. Mas
mesmo nos sistemas parlamentares ou nos sistemas semipresidenciais podemos, com
certeza, afirmar que as coisas não são idênticas àquilo que se passava nos primórdios do
Estado de Direito liberal: (i) de um lado, as Constituições consagram competências
legislativas aos Governos e (ii) por outro lado, toda a legitimidade vinda da Constituição
acaba por ser, em última análise, uma legitimidade democrática, o que se traduz, por
exemplo, no facto de o Governo “sair” do Parlamento, ser formado com base na eleição
Parlamentar, responder perante o Parlamento (podendo por este ser destituído), de forma
que as duas legitimidades ficam quase como que imbricadas. Podemos, é certo, dizer
que o Governo tem uma legitimidade democrática mais enfraquecida, na medida em que é
indireta, mas tem legitimidade democrática.
Hoje, em todos os Estados, as eleições parlamentares são cada vez mais eleições de PM
(eleições do Governo); em grande medida, as pessoas que participam nas eleições têm
como grande preocupação a próxima constituição do Governo, quem vai ser o próximo
PM e não a específica constituição do Parlamento.
Se a razão que está por detrás da atribuição de uma reserva de lei ao Parlamento é uma
razão de legitimidade, então podemos afirmar que é duvidoso que haja uma separação
clara que determine que as matérias mais importantes devam ser decididas pelo
Parlamento e não pelo Governo, porque o Governo tem hoje uma legitimidade que, se
juridicamente é indireta, em termos práticos é uma legitimidade direta. Nesse sentido,
esta razão deve hoje ser vista de forma diferente daquela que existia há 100 ou 200 anos.
b. Razões de pluralismo e de garantia: garantia de que as decisões sejam baseadas no
encontro das várias posições políticas e de integração política e social em que toda a gente
se reconheça. Estas são também razões que aconselham a que as questões essenciais, por
um lado, revistam a forma de lei e que, tanto quanto possível, sejam decididas por uma
assembleia parlamentar: indiscutivelmente, o pluralismo que existe numa Assembleia
Parlamentar é diferente do monismo que normalmente encontramos nos Executivos;
pode não ser assim nos governos de coligação, mas normalmente é assim. O Parlamento
permite o confronto entre várias correias políticas.
c. Razões de transparência e publicidade: a decisão parlamentar tem uma vantagem que
não tem a decisão governamental – a transparência. Quando o Governo decide estas
questões, sabemos o que o Governo decidiu quando há uma conferência de imprensa ou
um briefing que se segue à reunião em Conselho de Ministros em que se comunica o que
o Governo decidiu. Quando é o Parlamento a decidir, antes da decisão já toda a gente
sabe o que está a ser decidido, o que vai ser aprovado, quais são as dúvidas, quais são as
diferentes propostas.
A teoria da essencialidade está sempre subjacente a estas considerações.

49
Direitos Fundamentais Leonor Branco Jaleco

Em síntese, quanto à reserva de lei (e nos termos da Teoria da Essencialidade):

1. As questões mais importantes devem ser decididas por ato legislativo e, tanto quanto possível,
que tenha a força que lhe dá a decisão parlamentar. É isto que a CRP quer dizer quando
reserva à AR a legislação sobre DLG. À luz da teoria da essencialidade, estes DLG englobam
todos os direitos fundamentais.
2. É importante distinguir entre restrição e intervenção restritiva. Por vezes, temos de admitir
que haja intervenções restritivas sem ter havido uma prévia decisão e aprovação parlamentar
de norma restritiva.
3. Quando a CRP prescreve o que está reservado ao Parlamento, faz uma diferença entre o que
é a reserva absoluta e a reserva relativa. Assim é porque pretende privilegiar e reservar em
termos absolutos ao Parlamento as decisões sobre algumas matérias. Logo, a admissibilidade
de regulamentos ou de decretos-leis sem terem sido autorizados, nestas matérias de reserva
absoluta, deve ser vista como estando praticamente excluída.
4. Também à luz da Teoria da Essencialidade, saber qual é a gravidade da lesão da intervenção
restritiva sobre o direito fundamental faz toda a diferença. Em função da maior ou menor
gravidade da lesão, da importância do que está em causa, assim se deve refletir nas exigências
de reserva de lei. Se se trata de um problema marginal, não avançamos com as mesmas
exigências que colocamos quando as questões mais importantes estão a ser decididas.
5. A questão de saber se o conteúdo da medida aprovada é um conteúdo consensual,
relativamente ao qual toda a gente está de acordo ou se, pelo contrário, é uma medida
controversa, com um conteúdo que suscita oposição, discussão política, fratura, é também
essencial. Se o Governo toma uma decisão, através de regulamento, mas é uma decisão que,
se tivesse ido ao Parlamento, toda a gente estaria de acordo, ninguém levanta problemas em
relação àquele tema, não se suscitam problemas. Mas se existe, quanto àquele tema,
controvérsia e discussão, então é aconselhado que essa decisão seja tomada por ato legislativo,
para permitir que haja lugar a intervenção prévia do Parlamento ou, eventualmente,
intervenção posterior.

APLICABILIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES ENTRE


PARTICULARES:

Estamos ainda no âmbito do art. 18º CRP, mas na última parte do seu n.º 1: “Os preceitos constitucionais
respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são diretamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e
privadas”.

Pode questionar-se: não é assim em todas as Constituições? Não. Só a CRP é que afirma que a
Constituição vincula os privados (para além das Constituições Caboverdiana e Angolana).

A Constituição Portuguesa afirma que a norma constitucional sobre direitos fundamentais limita os
poderes públicos, mas também limita as entidades privadas, os particulares. E esta ideia é nova, não
estando por isso nas outras Constituições.

Fala-se aqui em eficácia horizontal dos Direitos fundamentais ou eficácia dos Direitos
Fundamentais perante terceiros. Questão: os direitos fundamentais vinculam, para além dos poderes

50
Direitos Fundamentais Leonor Branco Jaleco

públicos, os particulares nas relações que estabelecem entre si? Se sim, isso não foge aos quadros normais de
uma Constituição, cuja ideia se resume a estabelecer limites aos poderes públicos?

É na segunda metade do séc. XX que surge esta discussão na Europa, nomeadamente, na Alemanha.
Nos EUA – única zona em que a Constituição valia como norma jurídica –, nunca se tinha suscitado
sequer esta discussão; sempre foi pacífico que a Constituição tinha sido feita para limitar os poderes
públicos e não para vigorar entre os particulares: para estes valia o princípio da liberdade.

Na Alemanha, eram essencialmente duas as posições desenvolvidas quanto a esta questão:

1. Uma posição favorecida pelos constitucionalistas, segundo a qual se mantinha a aplicação da


Constituição limitada aos poderes públicos; para os particulares, vale a Lei que vigora e que
deve traduzir e respeitar os princípios constitucionais.

2. Outra tese favorecida por alguns juslaboralistas – que sentiam a premência de impor novos
princípios num domínio tão vital como o das relações no trabalho – entendia que, enquanto
esses princípios não se encontrarem traduzidos na lei, devem aplicar-se direta e imediatamente
os princípios constitucionais nas relações entre privados.

Quando a Constituição portuguesa foi aprovada, em 1976, alguns constitucionalistas estavam mais
ou menos a par desta discussão alemã, que se decidiu por manter a Constituição como limite dos
poderes públicos.

O nosso OJ foi, aparentemente, num sentido oposto; a ideia instintiva era a de que é mais favorável
aos direitos fundamentais que a Constituição vigore em todos os tipos de relações. De certa forma, o
art. 18º/1, de uma forma algo irrefletida, procura traduzir esta ideia, quando dispõe que a
Constituição “vincula as entidades públicas e privadas”. Neste sentido ia, aliás, a Constituição
anotada da altura dos Profs. Gomes Canotilho e Vital Moreira.

Contradição essencial que se verifica na forma como a CRP trata este problema: segundo o que foi a
impressão primeira deste art. 18º, os direitos fundamentais deveriam ser aplicados de uma forma
genérica, o que significava que também nas relações entre particulares os juízes deveriam, para além
das normas civis, aplicar as normas constitucionais. Havendo contradição entre estas, prevaleciam,
obviamente, as normas constitucionais. Ora, os juízes não foram treinados para este tipo de lógica:

 Por exemplo, um juiz que está num tribunal de família aplica a lei e os princípios que vigoram
naquele momento quanto àquele concreto ramo de Direito, recorrendo muito raramente à
Constituição. Se obrigássemos os juízes a terem em conta a Constituição, estaríamos a obrigá-
los a restruturar toda a sua forma de atuação. Sendo assim, o que sucederia se os juízes comuns
resistissem a esta mudança e continuassem a aplicar as regras e princípios desse ramo, ignorando os
direitos constitucionais? O normal seria então que o TC lhes pudesse dar ou até impor
determinada orientação.

Todavia, no nosso sistema de fiscalização de constitucionalidade, o TC só aprecia a


constitucionalidade de normas em vigor, e não de atos, o que significa que o TC fica, por definição,
afastado destes conflitos respeitantes a direitos fundamentais entre particulares.

51
Direitos Fundamentais Leonor Branco Jaleco

Portanto, o TC não controla a constitucionalidade de atos, o que revela uma contradição essencial da
CRP: segundo aquela perspetiva enunciada acima, a CRP seria das únicas que aplica os direitos
fundamentais entre particulares, mas, na verdade, se os juízes comuns não derem razão aos
particulares, não se pode ir para o TC, que é suposto ser o órgão de garantia dos direitos
fundamentais constitucionais. Há uma intenção de fazer aplicar os direitos fundamentais mesmo
contra a opinião dos juízes comuns; contudo, atribui-se a estes a última palavra sobre o tema, uma
vez que estes apenas não terão a “última palavra” relativamente a normas.

Concluindo, se for a constitucionalidade de uma norma que está em causa, podemos recorrer para o
TC; se forem atos que violem direitos fundamentais, não se pode recorrer para o TC.

Normalmente diz-se que os EUA têm uma posição extrema: como referido supra, direitos
fundamentais só existem nas relações entre Estados e cidadãos e nunca entre particulares. A nossa
Constituição é exemplo de posição contrária a esta. Mas agora vejamos na prática como funcionam
as coisas:

o Nos EUA, quando um caso de direitos fundamentais entre particulares está a ser decidido
num tribunal, e este dá, naturalmente, razão a uma das partes, a outra continua a considerar-
se ofendida no seu direito. Esta pode recorrer para os tribunais superiores, eventualmente
para o Supremo Tribunal, que examinará a decisão tomada em primeira instância e verá se o
direito fundamental desse particular foi atingido. Desta forma, é possível que o particular faça
chegar o litígio (lesão do seu direito fundamental que tem origem numa relação entre
particulares) ao órgão encarregado da justiça constitucional (supremo tribunal).

o Em Portugal não funciona assim. Como referido, quando existe um conflito entre particulares
em que, por exemplo, um alega que o outro o agrediu, se o tribunal de primeira instância não
der razão, não é possível ir para o TC, porque se trata de um ato. Apenas quando se invoque
a inconstitucionalidade de uma norma. Fica invertida aquela que era a impressão primeira:
são os juízes comuns que têm a última palavra. Nestes casos, os particulares não têm a
possibilidade efetiva de defender os seus direitos fundamentais.

Resumindo, podemos identificar quatro teses/teorias sobre a questão em apreço:

1. EUA – irrelevância dos direitos fundamentais entre particulares, apesar de, como vimos, não
ser exatamente assim, na prática.

2. Alemanha – posição segundo a qual os direitos fundamentais vigoram primariamente nas


relações entre poderes públicos e particulares, mas como os poderes públicos, têm a obrigação
de, na sua atuação, respeitar os direitos fundamentais, então, desde o legislador que há uma
obrigação de respeito dos poderes públicos em traduzir os princípios fundamentais na
legislação ordinária, o que significa que os juízes continuam a aplicar a lei, mas esta deve ser
em conformidade aos direitos constitucionais. Esta consubstancia uma tese de eficácia
mediata ou indireta nas relações entre particulares.

3. Outra tese que surgiu na Alemanha (em sentido contrário à referida supra) – é a tese da
aplicabilidade imediata, segundo a qual o direito fundamental constitucional pode ser
aplicado imediatamente, mesmo sem tradução do legislador numa relação entre particulares.

52
Direitos Fundamentais Leonor Branco Jaleco

4. JRN – tese dos deveres de proteção, segundo a qual o Estado tem não apenas uma obrigação
de respeitar, mas ainda de os proteger. Neste domínio, significa que não apenas o legislador
– como era a posição da tese mediata –, mas também a Administração e sobretudo o juiz estão
obrigados a proteger os direitos fundamentais em todas as relações, de forma a que os poderes
públicos, por força desta obrigação, não deixem desprotegido um titular perante agressões de
outros particulares. Não há uma aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais entre
particulares, mas essa possibilidade existe através do dever de proteção dos diferentes
poderes públicos.

Apesar de a CRP, no art. 18º/1, determinar que os DLG vinculam as entidades privadas, este preceito
não é claro. Cumpre assim responder às seguintes questões:
a. Como vinculam? De forma direta, de forma indireta? Através da teoria dos deveres de proteção? Não
é claro. Ou seja: mesmo tendo sido a CRP inovatória neste domínio, não ficou claro na letra
da Constituição.

b. Entidades privadas significa todos os particulares ou apenas pessoas coletivas? Se era todos os
particulares, porque é que não se disse dessa forma?

c. São todos os direitos fundamentais que vinculam ou apenas os DLG?

Para tomarmos posição naquela controvérsia, há que aprofundar este tema num plano teórico e ver
o que cada uma das teorias propõe e concluirmos o que será mais adequado. Vejamos:
- State-action/Teoria da Irrelevância dos DF (EUA): a CRP não se aplica a entidades privadas.
Os particulares não estão vinculados pelas normas constitucionais, pelos princípios
constitucionais, pelos direitos fundamentais. Os DF são garantias jurídicas que protegem os
cidadãos das invasões e agressões dos poderes públicos. Entre os particulares, vigora a
autonomia privada. Portanto, esta acaba por ser a tese normalmente qualificada como de
irrelevância dos direitos fundamentais nas relações entre privados.

No entanto, como denota JRN, não podemos falar nesta irrelevância. Em primeiro lugar, importa
distinguir de que particulares estamos a falar. Existem aqueles particulares que, nas relações com
outros, atuam como que vestidos de funções públicas; estes assumem um papel estatal no seu
comportamento, ou pelo menos análogo ao poder estatal.

Assim, esta teoria refere esta distinção: os direitos fundamentais não vinculam as entidades privadas,
a não ser que a entidade em questão esteja numa posição da chamada “state-action”, ou seja, atue
de forma estatal, pública (ex: concessionários; serviços públicos). Assim, se o particular se assume
desta forma, o outro particular pode invocar as suas garantias contra o poder público, perante aquela
entidade privada.

Mas não há uma verdadeira irrelevância absoluta dos DF entre particulares nos EUA. Isto porque
quando os particulares se relacionam entre si, de acordo com esta tese, eles não estão vinculados pelos
DF da constituição. Contudo, a partir do momento em que há conflitos entre eles e choques das esferas
de autonomia individual, sendo esses conflitos resolvidos nos tribunais/órgãos estatais e poderes
públicos, então nessa altura surge aqui, por definição, uma intervenção estatal. Quando esse poder
decide num ou noutro sentido, um dos particulares envolvidos fica descontente com aquela decisão,
que é uma decisão estatal, o que lhe permite invocar direitos fundamentais.

53
Direitos Fundamentais Leonor Branco Jaleco

Há um caso emblemático que mostra bem como é errada a ideia de que não há relevância dos direitos
fundamentais entre particulares nos EUA: nos anos 40/50, algumas pessoas que habitavam uma zona
urbana, em que os seus habitantes tinham um nível económico e social mais elevado, estabeleceram
um pacto/acordo, reduzido a escrito, segundo o qual se comprometiam, no caso de venderem as
habitações, a não vender as casas de famílias de raça negra.
Este pacto é válido à luz da CRP? De acordo com a teoria da state-action, este pacto não é inconstitucional,
no sentido em que os particulares não estão vinculados, por exemplo, ao princípio da igualdade. O
problema foi o seguinte: a certa altura, alguém daquele grupo quis vender a casa e vendeu-a a uma
família de raça negra. Quando os outros reagiram e levaram o caso a tribunal, no sentido de exigirem
o cumprimento do acordo (autonomia privada), o problema com que se defronta o juiz daquele
tribunal é o seguinte: enquanto poder público, está vinculado pelo princípio da igualdade, o que
significa que ao tribunal está vedado aplicar um contrato contrário ao princípio da igualdade. O
caso chegou ao Supreme Court e este decidiu desta forma.

Entre nós, a discussão tem sido à volta de três outras teses, i.e., teses que partem da relevância dos
direitos fundamentais nas relações entre privados. Que tipo de relevância?

1. Tese da relevância direta ou imediata/aplicabilidade direta: segundo esta tese, as normas


constitucionais, os DF vinculam todas as entidades, sejam públicas ou privadas. E vinculam
da mesma forma. E sabemos que as agressões potenciais aos DF das pessoas tanto podem vir
de entidades públicas, como de entidades privadas. De acordo com esta tese, não é possível
distinguir ameaças a direitos fundamentais segundo a sua origem. Em termos dogmáticos, o
juiz deve aplicar o direito fundamental numa relação entre particulares, exatamente do
mesmo modo como a aplica na relação entre o Estado e um particular, ou seja, enquanto
direito subjetivo que um particular tem contra outros particulares. Trata-se de um direito
subjetivo a exigir o cumprimento daquele direito, relativamente a qualquer outro. Trata-se de
uma eficácia geral e imediata. Não há necessidade de interposição de nada, para invocar o
direito fundamental. A força desta tese reside na sua simplicidade.
Esta tese levanta inúmeros problemas. Desde logo: qual o papel do legislador aqui? Ou seja, nós temos
estes direitos na CRP e depois o legislador vai, nos Códigos civis, laborais, traduzir estes princípios
constitucionais na legislação que se aplica no dia-a-dia e, portanto, na legislação aplicável às relações
entre particulares. E se o legislador faz isso como uma obrigação e há portanto esta relação entre CRP
e lei ordinária. Se a lei ordinária está sujeita à CRP, é a lei que rege as relações entre particulares. Ou
deve ser a CRP?

2. Tese da relevância indireta ou mediata: para esta tese, nas relações entre particulares, em
primeiro lugar, aplicamos a lei. Se existe lei, aplicarmos essa lei. Havendo dúvidas e várias
interpretações possíveis daquela lei, então – e admitindo que não se trata de lei
inconstitucional – ou se pudermos fazer dela uma interpretação em conformidade à CRP,
continuamos a aplicar aquela lei, interpretada em conformidade aos DF e aos princípios
constitucionais, mas é a lei que aplicamos. Portanto, para esta tese, nas relações entre
particulares, os direitos fundamentais valem através desta tradução que lhes dá o legislador:
da lei, da interpretação dessa lei em conformidade aos DF.
No entanto, pode levantar-se um problema: por vezes, essa lei não concede qualquer solução para
certos conflitos entre particulares. Nestas situações, podemos recorrer aos DF previstos na CRP para

54
Direitos Fundamentais Leonor Branco Jaleco

resolver o problema? Não. Segundo a tese da aplicabilidade indireta ou mediata, não. A CRP tem o
seu papel, i.e., de aferir da constitucionalidade da lei. Se a lei não resolve o conflito, então há que
recorrer aos princípios gerais e cláusulas gerais daquele ramo de Direito para resolver o conflito entre
particulares. A CRP não é chamada, nem aplicada.

No fundo, cada ramo de Direito tem a sua autonomia e os seus princípios gerais e é isso que
continuamos a aplicar, mas com esta reserva de que essas cláusulas gerais são conformes à CRP.
Exemplo: cláusula geral da ordem pública foi sendo alterada com a evolução da CRP.

3. Tese dos deveres de proteção: relativamente aos DF, os poderes estatais têm vários deveres.
Não apenas o de respeitar esses DF, mas também o dever de proteger o direito fundamental.
De quê ou de quem? De agressões externas a esses direitos fundamentais que podem provir de
entidades públicas, de entidades privadas, de catástrofes naturais (exemplo: a situação que
vivemos hoje). É um exemplo de que como o Estado tem um dever de proteção, não apenas
contra ações dos particulares, mas também contra estes riscos epidémicos. É isto que permite
que a administração da saúde impeça alguém infetado com o vírus Covid-19 de circular
livremente. Mesmo que a lei/CRP não permita diretamente o confinamento obrigatório de
alguém infetado, sabendo-se que aquela pessoa pode ir infetar outras, pondo em risco a sua
saúde e a sua vida, a administração tem uma obrigação de proteger a vida e saúde daquelas
pessoas, mesmo que para isso precisa de restringir e afetar o direito do outro particular.
Ora, este dever de proteção tem muito a ver com o princípio da proibição do défice. Sabemos que
há um mínimo de proteção que tem de ser sempre garantido. O Estado não estaria a cumprir o
mínimo de proteção, deixando que uma pessoa infetada circulasse livremente. Mas já não é o mínimo,
obrigando uma pessoa que não está infetada a ficar numa quarentena como o caso dos Açores, em
que o tribunal decidiu assim, porque estamos perante uma pessoa que tinha um teste negativo e o
governo regional decidia, ainda assim, confiná-la num quarto de hotel, com polícia à porta e o
argumento era a proteção da saúde dos restantes Açorianos. Contudo, isso está muito para além do
mínimo de proteção. Não está de forma alguma em causa um mínimo. É estar a agredir um direito
de outro particular, apesar de se invocar um direito de proteção.
Onde está a diferença entre a teoria mediata e a teoria dos deveres de proteção? Isto é: estes deveres de proteção
não são também deveres que vão ser realizados pelo legislador ou pela administração? São. So que se
acrescenta aqui um dado decisivo: este dever de proteção é também o dever que vincula o juiz que
decide o conflito entre particulares. Ou seja, o legislador está em primeira linha obrigado a proteger,
mas se o legislador não o faz ou o faz duvidosamente, também há ali um dever para a Administração,
mas quando um conflito entre particulares chega ao tribunal, o tribunal vê-se diante deste problema
– não tenho lei suficiente para resolver este conflito/caso e sei que se não resolver de certa forma, posso deixar
uma das partes sem um mínimo de proteção. Nessa altura, o juiz está obrigado a decidir daquela forma
porque se não o fizer, ele próprio seria um agente de violação. Isto é: se um juiz decide um caso de
maneira a que não garantia um mínimo de proteção de um direito fundamental ao cidadão em
causa/uma das partes, ele próprio estaria a violar aquele direito.

Em termos práticos, há uma zona de convergência relativa entre estas últimas 3 teses: em primeiro
lugar, as relações entre particulares/privados, devem ser regidas pela lei ordinária. Em princípio, não
se plica a CRP, no sentido de que há uma primazia do legislador em reger as relações entre privados
e se a lei não é inconstitucional, aplicamos a lei.

55
Direitos Fundamentais Leonor Branco Jaleco

No entanto, note-se que só há acordo entre as várias teorias neste domínio porque a teoria da
aplicabilidade direta aqui esquece os seus pressupostos, no sentido de que se levasse a sério os seus
pressupostos, aquilo que aplicaria sempre seria a CRP, porque se tenho um direito legal e se, com o
mesmo conteúdo, tenho um direito constitucional, obviamente o direito constitucional é mais forte
que o legal. Se estou num conflito, apelo e invoco a arma mais forte. Logo, invoco o meu direito
constitucional e não o direito que está na lei.

E quando não há Lei? Aí é que as teses começam a divergir.

Para a tese da aplicabilidade direta, não havendo lei, aplicamos os DF que estão na CRP. As duas
partes invocam direitos fundamentais e resolve-se o caso através de ponderação.
Para a tese dos deveres de proteção, em princípio, numa sociedade livre como é a nossa, vigora o
princípio segundo o qual aquilo que não é proibido nas relações entre particulares, é permitido.

 Vejamos o seguinte exemplo: o legislador proíbe fumar em espaços fechados. Quer isto dizer
que as pessoas podem fumar ao ar livre. Se, por exemplo, A fuma na paragem de autocarro
ao lado de B e B invoca o seu direito à saúde, de acordo com a tese da aplicabilidade direta,
haveria que recorrer à ponderação, i.e., B invoca o seu direito á saúde e A invoca o direito ao
desenvolvimento da personalidade. Como resolvemos o conflito? Ponderando os vários
direitos fundamentais. Mas temos mesmo que ponderar? Não está esclarecido que tendo o
legislador proibido o fumo nos espaços fechados, isso significa que o permite nos espaços
abertos? Se não proíbe, é porque permite que se possa fumar. Para a tese da aplicabilidade
direta, não, porque em qualquer situação, podemos invocar diretamente contra outros
particulares DF e podemos invocá-los como direitos subjetivos contra outros particulares,
sendo tudo resolvido através de um juízo de ponderação.

Para a tese dos deveres de proteção, não é assim. Para esta tese, o que temos é que neste caso o conflito
já tinha sido indiretamente resolvido pelo legislador quando não proibiu o fumo nos espaços abertos,
o que significa que é possível fumar ao ar livre. Apenas quando o outro particular (B) ficasse sem o
mínimo de proteção, é que a tese dos deveres de proteção exigiria que o juiz decidisse o caso de outra
maneira. Em princípio, não. Em princípio a lei quando não proíbe, vale o princípio que é permitido,
a não ser que nas circunstâncias concretos, isso se reflita numa desproteção total ao acesso a um
direito fundamental por parte de um particular.

Como é que a tese da aplicabilidade direta, que afronta de tal maneira o princípio da separação de
poderes, se justifica ainda assim? Justifica-se, ancorando-se na ideia de que isto garante mais
liberdade para as pessoas, garante mais proteção dos DF. Se eu posso sempre invocar um DF, então
“isso é bom”, em linguagem simplista. Mas é mesmo assim? Não, pode ser exatamente o inverso
porque estamos a falar de relações entre particulares. Assim, a ideia de que a aplicabilidade direta é
aquele que protege da melhor forma os direitos fundamentais, é uma ideia ingénua porque do outro
lado, a invocação desta posição, significa o prejuízo num outro DF, numa outra liberdade. Se eu, em
nome de o DF de uma pessoa, mesmo que a lie não proíba, eu faço aplicar aquele direito fundamental,
há sempre uma autonomia que fica prejudicada. Por exemplo, se alguém contrata uma empregada
doméstica para educar os filhos e pretende que os filhos tenham uma edução religiosa, excluindo
quaisquer pessoas não católicas, essas pessoas poderiam invocar o direito fundamental ao trabalho
previsto na CRP. Mas a autonomia daqueles pais seria sempre inquinada. Nunca temos aqui um

56
Direitos Fundamentais Leonor Branco Jaleco

ganho para todas as partes, pelo que a tese de que a aplicabilidade direta fornece uma maior
liberdade, é uma tese falsa. E isto porque:

(i) Em primeiro lugar, quando temos direitos fundamentais de um lado e de outro, se


protegermos mais o DF de uma das partes, estamos a sacrificar o DF da outra. Portanto, esta
contraposição entre direitos fundamentais, não produz uma maior proteção dos direitos
fundamentais e da liberdade.

(ii) Em segundo lugar, a ideia segundo a qual se percebeu que nossos dias, as ameaças à
liberdade, não provêm apenas do Estado. Nesse sentido, uma vez que as ameaças são gerais
e não apenas unicamente dos poderes públicos, então também os DF deveriam ser defendidos
contra todas essas ameaças. Neste argumento, há um defeito de raciocínio que contamina toda
esta lógica e é a confusão que se faz entre proteção da liberdade/autonomia individual e
direitos fundamentais. Uma coisa é a proteção da liberdade, autonomia, bem-estar e é verdade
que estas ameaças que impendem sobre esta possibilidade de acesso à liberdade, autonomia,
bem-estar, igualdade provêm dessas várias fontes. A dúvida é saber quais as garantias
jurídicas mais adequadas para lhes fazer face. É que a tese da aplicabilidade direta confunde
estes dois planos.
Uma coisa é certa: há necessidade de proteção da liberdade e bem-estar individuais contra todas as
ameaças, independentemente do sítio de onde elas provenham. A dúvida é saber se os DF – esta
garantia jurídica particular – que também provaram, ao longo destes 200 anos, contra as agressões
dos poderes públicos (isso é claríssimo), também podem servir para proteger a liberdade de outros
particulares. Aqui é muito mais duvidoso, não sendo para JRN verdade. O Professor entende que os
direitos fundamentais não são garantias jurídicas adequadas para proteger de outros particulares.
Isto porque esses outros particulares também invocam direitos fundamentais, mesmo numa altura
que estejam a proceder a afetações no espaço de liberdade e autonomia de outros particulares.
Portanto, de um lado e do outro temos DF. E é por isso que esta garantia jurídica que, contra o Estado
serve bem, contra particulares não serve.
A decisão de ponderação entre dois direitos fundamentais acaba sempre por ser decida da seguinte
forma: esta decisão respeitou os princípios fundamentais estruturantes? Todos estes princípios, são
eles, que, numa imagem “conferem os dentes aos direitos fundamentais”. Os DF seriam uma coisa “mole”
sujeita a ser moldada segundo a conveniência dos particulares, seriam uma garantia muito débil e
muito flexível se não fossem estes “dentes” dos princípios estruturantes. É em nome dos princípios
que os Tribunais Constitucionais decidem.
Mas porque é que os princípios não podem ser aplicados nas relações entre particulares? Principalmente
porque os particulares não estão sujeitos aos princípios estruturantes. Os particulares exercem os seus
direitos sem estar vinculados a esses princípios.

Claro que existem princípios universais, como é o caso da dignidade da pessoa humana, apesar de
todas as dúvidas sobre qual o conteúdo normativo desse princípio. Contudo, podemos afirmar que
uma violação da dignidade da pessoa humana será sempre uma violação, quer se trate de um
particular ou de um poder público. Noa há aí diferenças. Relativamente aos outros princípios que
derivam da DPH é completamente diferente.

 Por exemplo, o princípio da igualdade. Quanto a este princípio, não restam dúvidas de que
qualquer poder público em Estado de Direito se encontra vinculado ao princípio da
igualdade.

57
Direitos Fundamentais Leonor Branco Jaleco

Mas se um particular quiser organizar uma festa em sua casa e convidar várias pessoas do seu
condomínio, não pode este diferenciar em função das suas preferências (convidar uns e não convidar
outros), por exemplo, em razão das suas convicções políticas? Claro que pode. Nós não somos
obrigados a tratar todos da mesma forma e por igual. O princípio da igualdade vincula os poderes
públicos mas não os particulares. Isto tudo, a menos que a lei expresse o contrário (pense-se, por
exemplo, nas normas de Direito do Trabalho).
 O princípio da proporcionalidade: temos de tratar os outros com proporcionalidade? Não
podemos ser desrazoáveis? Claro que podemos e somos e não cometemos nenhuma
inconstitucionalidade se formos fanáticos ou desproporcionados nalguma coisa (imagine-se
um crítico musical).
 O princípio da reserva de lei: um particular para afetar a área de autonomia de outro
particular, precisa de estar autorizado por lei? Ou pode fazer tudo o que a lei não proíbe?
Numa sociedade livre, de Estado de Direito, é este segundo princípio que vigora. Se os meus
comportamentos não forem proibidos por lei, eu posso atuar.
Por tudo isto, JRN afirma que aquelas supostas vantagens da tese da aplicabilidade direta se
dissipam quando se faz uma análise mais profunda das mesmas.

A TUTELA JUDICIAL DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NA ORDEM JURÍDICA


PORTUGUESA

Em primeiro lugar, cumpre referir que, independentemente dos nossos juízos sobre o nosso sistema
de fiscalização da constitucionalidade, é indiscutível que a nossa ordem jurídica é uma ordem jurídica
de Estado de Direito, o que significa que as agressões aos direitos fundamentais podem ser tuteladas
com recurso aos tribunais. Aí não há qualquer dúvida, não há espaços livres de Direito. Se de facto
há agressões aos DF, as pessoas podem ir a tribunal defender-se destas agressões.

O problema não é esse, mas sim o de saber se quando vamos para os tribunais, em defesa dos nossos
DF, se não nos for dada razão, se temos ou não possibilidade de defender os nossos DF junto da justiça
constitucional e do Tribunal Constitucional português.

Isto porque, se a CRP criou um TC que tem competência para fazer justiça constitucional, para
defender as garantias constitucionais, entre as quais se incluem os direitos fundamentais que constam
da CRP, o normal é que, em última análise, possamos defender os nossos direitos diante do TC.
Será que, de facto, podemos fazer esta defesa junto do TC? Não, nem sempre. E muitas vezes gerando um
enorme défice de proteção dos DF. É aqui que a ordem jurídica portuguesa deixa muito a desejar, em
comparação com outros.
E porquê? Como se sabe, o que distingue a singularidade do nosso sistema de fiscalização da
constitucionalidade é que, no nosso sistema, sujeito a fiscalização da constitucionalidade, sujeito a
jurisdição do TC, apenas as normas jurídicas são objeto de fiscalização. Tudo o que for norma
jurídica ou interpretação de norma jurídica pode chegar ao TC, o que significa que se os nossos DF
forem afetados e restringidos inconstitucionalmente através de norma, aí o nosso sistema garante
uma proteção plena.

O problema é outro: saber se, num Estado de Direito Democrático, as ameaças para os DF provêm
sobretudo do legislador ou dos outros poderes públicos. O pressuposto da nossa CRP é o de que as

58
Direitos Fundamentais Leonor Branco Jaleco

ameaças provêm do legislador, de quem faz normas, independentemente de qual seja o legislador
concreto, pois só normas e interpretação das mesmas chegam ao TC.

Fica assim de fora tudo o resto, que acaba por ser o mais importante. Este pressuposto, segundo o
qual o legislador é o único inimigo dos DF, é indefensável. Porquê?

1. Por um lado, estamos a falar de órgãos eleitos, controláveis, que necessitam de trabalhar para a
reeleição e devem preocupar-se em não afetar os DF das pessoas.
2. Segundo, estão sujeitos a todo um conjunto de filtros de constitucionalidade que, no seu termo,
determinam que na maior parte dos casos, as normas que entrem em vigor não são
inconstitucionais. Pode haver algumas excecionalmente. Mas em geral, quando as coisas são
discutidas nas AR, todas as questões de constitucionalidade já começaram ali a surgir.
3. Há ainda os filtros do PR que pode suscitar a constitucionalidade das normas. E se tal não
suceder, podem os deputados da oposição suscitar a fiscalização sucessiva da
constitucionalidade das normas.

Em todo o caso, o risco no dia-a-dia acaba por não ser esse. O risco vem sobretudo do relacionamento
entre o cidadão e a Administração, entre os funcionários, os agentes, os órgãos de poder público. Aí
é que há uma grande potencialidade de serem cometidos abusos e agressões aos DF. Se forem
cometidos abusos, é possível irem para os tribunais; mas e se os tribunais comuns e administrativos não
nos derem razão: podemos ir para o TC – órgão criado para defender a CRP? Não. Um ato administrativo
ou judicial não é sujeito a controlo do TC, mesmo que constitua a maior violação de um DF. Todos
sabemos que muitas vezes os magistrados judiciais violam garantias fundamentais. Podem os cidadãos
recorrer ao TC nessa altura? Não.

Podem, sim, recorrer ao TEDH, invocando violações do Estado português sobre os seus direitos
fundamentais, mas não podem recorrer ao TC – o que não faz sentido. Recorde-se que apenas os
cidadãos com recursos para tal podem recorrer ao TEDH, o que cria uma enorme desigualdade entre
quem tem meios e quem não tem.
Eventualmente, se o TEDH der razão, isso significa que o Estado português tem de indemnizar aquele
cidadão.
Assim, temos este absurdo de que todo o sistema é construído neste pressuposto: ameaças aos DF,
só o legislador. Quanto ao resto, não é necessário proteção.

Assim, temos que:

a. As normas restritivas de DF são tuteladas;


b. As intervenções restritivas em DF não, tal como não chegam ao TC violações a DF que
resultam da omissão estatal.
Com efeito, sabemos que um DF tanto pode ser violado por ação como por omissão. Se se omite o
mínimo de proteção, tudo isso constitui violações, por vezes sérias, de DF, que não podem chegar ao
TC; ao TC só chega violação de normas ou interpretação de normas.

c. Por último, também não chegam ao TC eventuais agressões a DF praticadas por outros
particulares (não são feitas através de norma). Ou seja, temos este absurdo de sermos a única
Constituição que admite que os direitos fundamentais valem contra outros particulares, mas
depois, se isso ocorrer, não nos podemos defender, a não ser nos tribunais comuns.

59
Direitos Fundamentais Leonor Branco Jaleco

O TC deveria ter aqui um papel decisivo ou não? Sim.

Como temos visto ao longo deste curso, a aplicação dos DF é muito complexa porque os enunciados
normativos de DF são enunciados vagos, lapidares. Salvo aquelas normas constitucionais que
garantem, inequivocamente, em termos absolutos, todas as outras são de conteúdo indeterminado, E
mesmo nestas últimas haverá sempre alguém que diz que aquela norma não é absoluta (ex: art. 27º/
2 e 3 CRP na situação do Covid-19).

Acaba assim por ser decisivo e importante saber o que está ou não garantido, pois se não houver essa
orientação e indicação, é caótico saber o que pode fazer ou não. A questão da jurisprudência
constitucional seria aqui importantíssima. No fundo, a CRP é aquilo que o TC diz que ela é. Em
grande medida é assim, quando lidamos com fórmulas destas.
Desta forma, na área em que seria necessária uma maior uniformização jurídica, grande parte fica de
fora dessa possibilidade de o TC o poder realizar. Assim, neste domínio, é importantíssimo saber
quem tem a última palavra.
O nosso problema é que não há uma única palavra, mas sim várias últimas palavras sobre o sentido
destes enunciados normativos.
 Por exemplo, se existir um problema/conflito entre DF dos particulares, a quem cabe a última
palavra na nossa ordem jurídica? Em última análise, ao STJ. Isto porque há um conflito entre
particulares que vão para os tribunais comuns em que se pode chegar ao STJ. Ou seja, será o
STJ que dará o conteúdo a um enunciado normativo constitucional, quando tal tarefa deveria
caber ao TC.

No entanto, se o conflito for não entre dois particulares mas entre um particular e um poder público
e se o particular teve que ir para os TA, nessa altura quem terá a última palavra será o STA. E aqui já
será o STA a dar a última palavra sobre a orientação que deve ser seguida quanto àquele enunciado
normativo.

E se se tratar de uma norma, será competência do TC dar a orientação/a última palavra.

Aquilo que se passou é que o TC, perante este vazio, tentou ao máximo conseguir chegar lá, mas
para isso criou novos problemas. O TC começou a ficcionar a possibilidade de recorrer de normas
implícitas. Portanto, complexificou de tal forma as coisas, que quando se pretender ir para o TC, tudo
residirá em saber ou não construir o recurso.
Segundo JRN, não há razão nenhuma para que o sistema de fiscalização da constitucionalidade se
tenha mantido assim desde 1976.

60

Você também pode gostar