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NOTAS SOBRE POESIA POLÍTICA não se apressa a generalizações sobre a incompatibilidade entre
excertos de uma palestra amor e poesia.
James Há uma tendência de separar qualidade estética e poesia
Scully política em categorias mutuamente exclusivas. Não obstante,
qualquer coisa que façamos tem qualidade estética (até mesmo
embalar um pacote: você o faz bem, ou melhor, ou
toscamente). Afirmações de que a poesia e a política não se
Minha resposta inicial ao tópico do simpósio foi de ruminar misturam não são declarações desinteressadas mas sim
sobre o que nos traz a este canto, onde temos um encontro intervenções propriamente políticas. Elas presumem não apenas
sobre “política e poesia.” Não sobre tipos de política, ou tipos que “poesia” e a “política” são categorias autônomas, mas
de poesia; apenas “política” e “poesia.” Assim definida, a também que há uma tal coisa como observação desinteressada.
questão é tão indefinida que chega a ser bem crua. Não que O que explica porque, quando se quando se embate contra este
devamos ser acusados por isso. É notável que haja mesmo um viés particular, pervasivo, o resultado dificilmente é uma
tal encontro. Comumente, “poesia política” é considerada além discussão. Não há nada para se discutir. Ou assim se supõe ser.
de comentário. Não obstante, se olharmos para o registro De fato, a tentativa de relegar, denegrir ou suprimir a poesia
histórico, para a poesia que tem sido mantida e reverenciada, é que lida abertamente com questões políticas, ou que tem
surpreendente que haja quaisquer reservas sobre a viabilidade desconfortáveis implicações políticas, é apenas outra versão da
da poesia política. campanha em andamento – essencialmente uma campanha
É claro, há uma verdade detrás da afirmação de que sócio-política – de determinar o que é e o que não é permitido
poesia e política não se misturam, mas é uma afirmação tão na poesia. Não apenas na poesia, mas em todos os modos
distorcida que volta sobre si mesma. A verdade é que tudo expressivos, do jornalismo à prática acadêmica ao cinema e
aquilo que é intitulado de poesia política, ou poesia que lida música pop. (Em um país as instituições governantes clamam
com a política, é monótono. Daí vem a generalização de que a por poesia “política.” Em outro, o consenso estabelecido bane
políica destrói a poesia. Não obstante, não seria esta uma quase tudo menos poesia “apolítica.” Superficialmente parecem
conclusão arbitrária? A maioria de qualquer tipo de poesia é opostos, entretanto cada um tem a mesma função: silenciar a
monótona, é negligente, negligente consigo mesma. O trabalho voz da poesia e/ou censurar a opinião.)
de mãos ociosas que não são, talvez, suficientemente ociosas. Não seria auto-evidente, como o poeta salvadorenho
Quando se depara com um inepto poma de amor provavelmente Roque Dalton o formula, que qualquer que seja que serve à
não se concluirá que amor e poesia não se misturam. Pode-se vida serve à poesia? Se nós aceitamos isto em teoria, porque
pensar que um poeta seja um mau poeta, ou mesmo uma pessoa não na prática, onde a teoria importa? Pense no que está em
imatura. E pode-se opinar um julgamento sobre o trabalho. Mas jogo. A política não é simplesmente mais um campo ou sujeito.
A dimensão política não é apenas outra faceta da vida. Ela
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sutura e ramifica de volta nas áreas mais íntimas de nossas isto de “poesia dissidente,” porque isto é o que ela é: a poesia
vidas, incluindo se temos ou não empregos, se vivemos ou não, da dissidência política.
se temos ou não filhos, e assim por diante. Nós a respiramos, a De um modo justo, nós devemos distinguir a poesia
vivemos. Ela é mais espécime-específica, mais dissidente da poesia de protesto. A maioria da poesia de
significativamente humana, do que comer ou dormir ou mesmo protesto é conceitualmente superficial. Eu penso sobre a típica
procriar. Como pretender que ela não existe ou não importa, ou antologia de protesto: poemas em oposição à guerra do Vietnã
que está fora de questão? ou contra o golpe no Chile, ecologicamente preocupada ou
Anteriormente eu fiz uma analogia entre poesia política poesia anti-nuclear (com umas poucas exceções devastadoras,
e poesia amorosa. Em alguns sentidos esta analogia, como principalmente japonesa), até mesmo poemas simpáticos aos
qualquer outra, é enganadora. Nem toda poesia é amorosa, mas trabalhadores (notavelmente aqueles que focam a opressão dos
existiria uma poesia que não seja política? Uma poesia a- trabalhadores, uma questão sintomática que leva à moralização
política? Bem, sim e não. Quero dizer, o próprios termos estão poética enquanto ignorando a exploração que necessita da
à disposição de quem quizer. Há poesia que não é opressão). Tal poesia é delimitada-por-questões, observante –
conscientemente política, e poesia que o é inconscientemente; e raramente a função de uma vida artística engajada, mas
ambos poder ser explicitas ou implícitas em suas políticas. Mas compensação para uma vida politicamente marginalizada. Ela
o ponto essencial é que toda poesia é política até ao ponto em tende a ser reativa, orientada-pela-vitimização, incapacitada,
que ela transporta um conjunto de suposições sobre a desprovida da coerência teórica e prática que poderia dar-lhe
organização e prioridades da vida, e traz com ela toda uma musculatura e objetivo. (Observe os finais dos poemas de
estrutura de vidas interpenetrando-a, exatamente como ela protesto.) Mas o signo característico da poesia de protesto é que
interpenetra a vida. Mesmo seus silêncios – algumas vezes ela raramente pronuncia a ira ativa ou a resolução de pessoas
especialmente os silêncios – têm conteúdo político. Como no pólo recebedor, Quero dizer, pessoas oprimidas e
comumente empregado, entretanto, “poesia política” não é exploradas. O sujeito real são as próprias delicadas
aplicada à trabalho que é coerente com a ideologia dominante sensibilidades do poeta, não o que está realmente,
de um dado lugar ou tempo. À menção de “poesia política” sistematicamente acontecendo. A poesia dissidente, entretanto,
ninguém irá provavelmente pensar em Eliot, digamos, porque não respeita fronteiras entre o privado e o público, o eu e o
sua coloração ideológica mistura muito bem com aquela do outro. Ao trespassar fronteiras ela trespassa silêncios: falando
estrato cultural no qual seu trabalho é honrado e preservado. O por, ou, no seu melhor, falando com, o emudecido; abrindo a
termo “poesia política” é reservado para trabalhos que se poesia, colocando-a no meio da vida ao invés de escorná-la
opõem ao tipo ideológico dominante. Ele se refere apenas à para um canto. É uma poesia que fala de volta, que atuaria
poesia que exibe um certo tipo de política. Se fossemos como parte do mundo, não simplesmente um espelho dele.
empregar uma linguagem mais honesta, poderíamos denominar Obviamente, uma tal poesia não exclui nada. A poesia
dissidente, portanto, realmente observa conexões – digamos,
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entre empoderamento social e valorização e definição humana mais crível, completa, desejosa poesia amorosa tem sido escrita
– que a ideologia dominante declara que a ‘poesia’ deva ignorar por um dos mais expressamente políticos poetas. Refiro-me,
ou suprimir. novamente, a Hikmet. Em parte isto se dá porque ele pode, e o
A maioria da melhor poesia é conscientemente política, faz, escrever sobre o outro – que nunca é meramente uma
e sempre tem sido. Onde desejamos começar? Com Ésquilo? desculpa para auto-imersão, e que não é reduzido, também, à
Vigílio? Dante? Você poderia imaginar-se confrontado Dante condição de um objeto deliciosamente a-histórico.
olho no olho e afirmar que poesia e política não se misturam? E Finalmente, a propaganda de que a poesia e a política não se
este são poetas ‘canonizados’: Milton, Blake, quem quer que misturam tem servido para trivializar ambas as produções
seja. Deveria mencionar Dryden? E então há aqueles ‘outros’ – poética e política. Não surpreendentemente, ela também tende a
tal como Spenser, cuja reputação foi gerada em uma dos trivializar a poesia que romperia a bolha da ideologia
maiores jogos de confiança na história literária. Este é alguém convencional (ideologia que justifica ou incita as relações de
apresentado como um poeta “puro,” um poeta dos poetas! Mas poder vigentes). Tal poesia é também moldada – formada e
quando você olha para o que escreveu, e porque, e o que fez, deformada, se assim desejar – pelas pressões de seu tempo e
fica claro que ele era tão consciente politizado quanto alguém lugar. Enquanto isso, o que tem faltado não são detratadores
pode ser. Aspectos desta política emprestou à sua linguagem insignificantes, dos quais há muitos, mas uma crítica séria,
alguma aspereza regional, mas a maioria dela era servil, imoral construtiva, respeitosa. Uma crítica suficientemente madura
– de fato, mortl. Não obstante, mesquinhas como são, elas para ser auto-anulante. É claro, há uma indústria crítica de um
ainda em alguns modos envigora sua escrita (por exemplo, as tipo abstrato – alguma dela nominalmente política – mas ela
preocupações políticas e carreiristas que obscurrecem e parece não possuir nenhuma base na vida ou na literatura. De
aprofundam o “Prothalamion”). Quem diria que algo similar fato, a depressão crítica corrente apresenta, ou é sintomática de,
não se aplica a poetas como Yeats – ou Pound, cujos quadros um sério problema confrontando todos os escritores. A pressão
de referência políticos eram potencialmente mais letais? Ou de fragmentar a poesia em cacos isolados a desarmá-la, a
Akhmativa: um explícito quadro de referência político tornou descontinuá-la – produziu uma cena bem patética. Uma vez que
seu (dela) trabalho mais importante e ressonante do que tinha os termos políticos perderam estabilidade institucional,
sido. tornando-se descolados, nossas poesias e críticas não se
Poetas politicamente sérios tendem a ser mais tornaram mais audaciosas, como poderia ter sido esperado, mas
profundos, não menos. Olhe novamente os registros. Em nosso distraída, retirada, reservada ao ponto de piedade e arrogância.
próprio tempo os três poetas mais formidáveis, parece-me, Elas se tornaram permissivas.
foram intensamente “políticos”; o poeta turco Nazim Hikmet, M última instância esta questão deve ser vista no
Vallejo e Brecht (enquanto poeta). Políticos no modo mais contexto mais amplo da sociedade: toda a rede, uma malha
explícito, concreto, parftidário. E o que é mais, suas realizações multi-camada, de relações sociais. O que acontece com a assim
estéticas o são devido às suas políticas, e não apesar delas. A chamada poesia política – como ela é ou não recebida – não
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depende apenas do mundo literário. Mas nada mais também o


é. Isto a torna apenas mais envergonhada que no contexto
literário a resposta ao discurso parece ser um muro de bandeiras
agitadas ou um muro de silêncio, mas, de qualquer modo, um
muro.
Apenas uma última coisa que gostaria de acrescentar.:
sobre as suposições de que as limitações ou desabilitações
estéticas são puramente pessoais, ou que alguém é
pessoalmente responsável por elas. Há uma verdade nisto,
obviamente, mas uma meia-verdade. As limitações mais
decisivas sobre o que fazemos ou não, sobre quão longe vamos
ou não podemos ir, não estão necessariamente dentro de nós. A
maioria da produção cultural está debilitada moralmente,
humanamente, esteticamente pelo sistema de classe e até
mesmo de castas no qual devemos funcionar. Ninguém
transcende a isto. Não obstante, o mesmo sistema é uma criação
social, afinal. Ele pode e deve ser mudado, por razões estéticas
bem como por outras profundamente humanas.
[Como conclusão eu leio uns poucos poemas. Um diz
respeito a um amigo que é analfabeto. A questão foi que sua
ignorância nos abafa, que sem ele – seu acesso, sua
participação – o que quer que seja que escrevamos está
desqualificado. A questão de poesias e críticas não pode ser
considerada à parte da questão social]

Extraído de James Scully, Line Break – poetry as social


practice. (Settle, Bay Press, 1988).

Traduzido por RUI CEZAR DOS SANTOS.

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